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8 de março de 2023

1850: Mutações

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

Rio de Janeiro, 1850

“No meio do século XIX, repleta de escravos, a capital do Império foi descrita e comparada como ‘uma grande metrópole africana, lar de um poderoso príncipe negro’” [2]



A década de 1840 não foi somente a de busca de cidades perdidas... Os dirigentes do Império tinham consciência de que, sem instituições sólidas, não seria possível construir uma nação. Em outras palavras: não bastava convencer as elites regionais de que elas eram brasileiras, era também necessário acenar com vantagens, mostrar, por exemplo, que a monarquia era um antídoto contra a guerra civil vivida no período regencial, ou então que ela era capaz de tratar da questão escravista, garantindo a transição lenta do sistema, proporcionando formas de trabalho alternativas aos fazendeiros. Daí a obsessão da época em torno da questão da ordem, preocupação que se desdobrará, por um lado, em um arranjo político conservador e, por outro, em uma transformação radical da sociedade, decorrente da vinda em massa de imigrantes europeus.

Vejamos como se desenvolveu essa combinação de conservadorismo político com mudança social.

Desde 1835 havia poderosos defensores da antecipação da ascensão de d. Pedro ao trono, prevista para 1843, quando então o futuro monarca completaria 18 anos. O denominado Golpe da Maioridade, que ocorreu em 1840, representou a vitória desse grupo e sagrou o jovem imperador – que nem mesmo havia completado 15 anos de idade – como representante da nação. O retorno de um membro da casa de Bragança ao trono foi acompanhado por uma série de medidas legais que combatiam os chefes e caudilhos locais, revigorando os dispositivos da Constituição de 1824 através do Poder Moderador, abolindo inovações regenciais, tais como a eleição de presidentes de província, que passaram a ser indicados pelo monarca, e subordinando a autoridade policial ao Ministério da Justiça. O sistema político que emergiu das lutas dos primeiros vinte anos da independência apresentava, por isso mesmo, um forte sabor centralizador: o imperador reinava, governava e administrava.

Todavia, ao mesmo tempo em que isso ocorria, os dirigentes do Império, escaldados pelas duras lutas contra as revoltas regionais, procuraram conquistar os fazendeiros, legitimando, através da mediação do Estado, a dominação que exerciam localmente. Para tanto, trataram de consolidar os partidos políticos liberal e conservador, com o objetivo de mostrar aos proprietários que na monarquia não haveria monopólio de poder nas mãos de um único grupo. Com o intuito de viabilizar essa política de cooptação, o reinado de d. Pedro II também distribuiu prodigamente títulos de nobreza. Assim, enquanto d. Pedro I concedeu de dois a cinco títulos de barão por ano, seu sucessor elevou essa média para dezoito títulos. É possível dizer, portanto, que durante o Segundo Império (1840–89), a cada dois meses tínhamos três novos barões; muitos deles mulatos endinheirados pelo café, que causavam escândalo entre viajantes europeus racistas, como o conde de Gobineau, e eram alvo do deboche popular. Risos à parte, essa sutil forma de conquistar os “mandões” locais serviu como uma maneira de compensá-los simbolicamente pela perda de parte do domínio que, sem interferência de poderes públicos, antigamente exerciam.

Contudo, a transição para um sistema político centralizado não ocorreu sem conflitos. Em 1842, oligarquias regionais, como as de Minas e São Paulo, lideraram a Revolução Liberal, pegando em armas contra o governo do Rio de Janeiro. Na combativa província de Pernambuco, durante a Revolução Praieira de 1848, os rebeldes contaram com a adesão popular, havendo até a defesa da reforma agrária, o que em muito assustou os grupos conservadores, que, talvez pela primeira vez, fazem menção à “ameaça socialista” que pairava sobre o Brasil, conforme se lê nas devassas feitas contra os insurgentes.

Ao cabo de uma década, as instituições e articulações políticas dos dirigentes do Império foram suficientemente eficazes a ponto de sufocar os revoltosos e convencer as elites locais da importância e viabilidade do projeto centralizador. Nesse sentido, 1850 representa um marco do que se planejara desde o Golpe da Maioridade. Pode-se mesmo afirmar que esse ano consolida 1822: finalmente cessam os projetos de independência “alternativa” liderados pelas elites provinciais, e a monarquia firma-se como o sistema político que garantia a manutenção da unidade territorial herdada do período colonial. Uma nova etapa da história brasileira vem à luz. A manutenção da ordem adquire, a partir de agora, uma conotação mais ampla, não exclusivamente repressiva, mas que também valoriza um projeto civilizador da sociedade através da supressão da escravidão.

A ideia, aliás, não era nova. Na malograda Constituinte de 1823, José Bonifácio a defendera, propondo a adoção de leis que gradualmente emancipassem o que então denominou “inimigos domésticos”, considerando tais medidas a única maneira de garantir a formação de uma nação civilizada. Essa proposta, contudo, não vingou. De fato, não é difícil compreender as razões desse fracasso: entre 1820 e 1840, o café expandiu-se vertiginosamente pelo interior do Rio de Janeiro, levando à necessidade cada vez maior de mão de obra, com a consequente importação em larga escala de africanos, até que, em 1850, o gabinete conservador, liderado por Eusébio de Queirós, sancionasse uma lei extinguindo o tráfico internacional de escravos. Em certo sentido, tratava-se de um paradoxo: conservadores implementaram mudanças que nem mesmo os liberais radicais tiveram coragem de propor por ocasião das revoltas do período regencial. Uma maneira de explicar essa ousadia é a de atribuí-la às pressões inglesas.

A revolução industrial valorizou a formação de mercados de consumo. Além disso, nos fins do século XVIII surgiram críticas filosóficas ao sistema escravista. Segundo tal ponto de vista, a igualdade humana é um produto natural que a civilização corrompeu, dando origem ao despotismo ou, pior ainda, à escravidão. Uma abundante literatura, sob essa inspiração, veio à luz pela pena de humanistas e publicistas europeus. Se, em termos de conselhos práticos, os intelectuais sugeriam reformas aos administradores coloniais, do ponto de vista do discurso filosófico, faziam da crítica à escravidão uma maneira de condenar o absolutismo europeu, conforme panfletos, poemas, peças de teatro e romances da época da Revolução Francesa muito bem ilustram. A rebelião escrava, nessa literatura, tornou-se sinônimo de luta contra o poder que não conhece limites, aquele que oprime impunemente e que é desumano por natureza. Em Les chaînes de l’esclavage [As cadeias da escravidão], de 1774, por exemplo, Jean-Paul Marat emprega a metáfora da “escravidão” para produzir um violentíssimo livro contra o governo monárquico da época.

É nesse contexto intelectual que nasce o movimento abolicionista. De certa maneira, um sinal de enraizamento dos valores humanitários na sociedade europeia e também uma expressão da luta política contra as diversas formas de opressão existentes. A confluência entre a “opinião pública” abolicionista – gente que muitas vezes nunca havia visto um escravo de perto, mas nele projetava suas amarguras e sofrimentos – e os interesses econômicos da nascente revolução industrial fez surgir um poderoso movimento antiescravista em escala mundial.

A Inglaterra é, certamente, o melhor exemplo disso. Em 1807, foi abolido o tráfico de escravos em todos os territórios ingleses. Nos anos seguintes, graças à pressão diplomática sobre Portugal, são firmados tratados em 1810, 1815 e 1817, que previam, para breve, o fim do tráfico no Brasil. Após a independência, mudam apenas os negociadores. Entre 1826 e 1830 são assinados novos acordos, que transformam o tráfico em pirataria, atividade ilegal em qualquer ponto do oceano Atlântico. No ano de 1845, por decisão unilateral inglesa, é aprovado o Aberdeen Act, que permitia o ataque por parte de navios ingleses aos navios de traficantes também em portos brasileiros.

Embora se deva reconhecer a importância dessas medidas, é difícil atribuir exclusivamente a elas a razão do fim do tráfico de escravos. Aliás, cabe perguntar: se a pressão inglesa era assim tão avassaladora, por que o tráfico não foi abolido em 1810 ou em 1830?! Na verdade, o que surpreende é a capacidade de as elites brasileiras resistir ao imperialismo inglês. Talvez elas tenham finalmente cedido, extinguindo o tráfico em 1850, por temerem outro tipo de ameaça: aquela proveniente da sociedade escravista, consubstanciada nas rebeliões da senzala; temor intensificado a partir de 1835, em razão da Revolta dos Malês, em Salvador, quando então foram descobertos planos, escritos em árabe, que, entre outras coisas, previam a morte de todos os brancos imediatamente após os escravos conquistarem o poder.

Para quem vivia no Brasil dessa época, tal possibilidade estava longe de ser absurda. Se analisarmos os dados referentes à colonização da América portuguesa, veremos que havia um forte desequilíbrio entre a população livre e a cativa. Assim, por exemplo, as estimativas relativas ao período de 1500 e 1822 sugerem que, no máximo, um milhão de portugueses vieram para o Brasil, ao passo que o número referente aos africanos é da ordem de três milhões. O período imediatamente posterior à independência não corrigiu esse desequilíbrio, acentuando-o em uma escala nunca vista durante a época colonial: entre 1821 e 1830 chegavam anualmente 43 mil africanos em portos brasileiros, ao passo que a entrada de portugueses foi inferior a mil por ano. Nas duas décadas seguintes, o número destes últimos imigrantes dobrou, mas continuou ainda bastante inferior às médias de desembarques anuais de africanos. Foram registradas até 1850 as chegadas de cerca de 33 a 37 mil escravos negros por ano. Além disso, um em cada três portugueses retornava a Portugal alguns anos depois de, como se dizia na época, “fazer o Brasil”. A historiografia oficial sempre procurou esconder ou camuflar o predomínio de africanos como “povoadores forçados” do território brasileiro, mas os líderes do Império nunca deixaram de perceber e escrever amargas notas a respeito do predomínio de negros no conjunto da população, alertando por isso mesmo para o constante risco de rebelião escrava.

Talvez a expressão que melhor sintetize essas preocupações seja medo da africanização, ou seja, medo da importação de escravos, que, segundo as visões preconceituosas da época, além de ser um risco para a segurança pública, afastava o Brasil das “rotas da civilização”. Uma vez mais, essa questão é mais bem compreendida se lembrarmos os debates europeus. Dessa maneira, cabe sublinhar que, na época em que nasceu o movimento abolicionista europeu, também surgiram as primeiras teorias racistas com base na biologia.

A raça passou a ser uma condição herdada. Algo bem diferente do que ocorria no início da expansão ultramarina europeia, quando então o termo dizia respeito à religião que o indivíduo professava. O século XVIII altera radicalmente essa tradição. Mais ainda, questiona a interpretação bíblica de que todos os homens descenderiam de Adão e Eva. Postula-se, por exemplo, a origem independente dos africanos, considerados então como uma espécie humana inferior. Assim, a Europa que chora em relação aos sofrimentos dos escravos, é aquela que, como a França, sanciona leis, a partir de 1763, proibindo a entrada de negros e casamentos inter-raciais em seu território, ou a que, como a Inglaterra, funda colônias africanas, a primeira delas em Serra Leoa (1786-87), com o objetivo de deportar negros livres que moravam em Londres ou em outras importantes cidades portuárias britânicas, como Liverpol e Bristol.

No Brasil, o medo da africanização era, dessa forma, um “produto” a mais importado da civilizada Europa. Só que, no contexto da sociedade imperial, esse preconceito contava com um importante contraponto: a necessidade de trabalhadores para a agricultura. No intuito de conseguir apoio dos fazendeiros, a política adotada pelos reformistas foi a de estimular a vinda de imigrantes europeus, destinados a fazer com que a sociedade brasileira não necessitasse mais de seus “inimigos domésticos”. Uma outra vertente caminhou no sentido de reformar a escravidão, procurando de certo modo “europeizar” os trabalhadores da senzala. Não por acaso, na transição da primeira para a segunda metade do século XIX, proliferaram, entre os grandes fazendeiros, manuais esclarecendo o tratamento a ser dado aos escravos. Um exemplo: o Manual do agricultor brasileiro, de autoria de Carlos Augusto Taunay, pioneiro da cafeicultura em seu sítio na Tijuca, Rio de Janeiro. Embora considerasse a escravidão “uma violação do direito natural”, o autor julgava que era preciso defendê-la por ser importante para a economia do Império. Taunay propunha um modelo paternalista de gestão dos escravos: uniformização do tratamento, alimentos e roupas suficientes, melhoria do estado sanitário das senzalas, adequação do trabalho às habilidades dos cativos e rigorosa disciplina. Já o fazendeiro do Vale do Paraíba, grande produtor cafeeiro, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck escreveu, em 1847, uma memória dedicada ao filho, explicando-lhe usos e costumes para que pudesse assumir “a vida laboriosa” de agricultor. O escravo, explicava, não era um inimigo. Mas um aliado. Daí o gestor não poder ser “frouxo” nem “severo”, mas “justo”.

O ano de 1850 foi, nesses debates, um marco divisor de águas. Embora, após a extinção oficial do tráfico, tenham sido registrados alguns desembarques clandestinos de africanos, estes foram em pequeno número e, dez anos após a promulgação da referida lei, o Brasil havia definitivamente deixado de ser um país importador de escravos. Cresce, então, o tráfico interno, deslocando milhares de cativos das regiões açucareiras em crise para as fazendas de café do Sudeste. Registra-se, também, a progressiva chegada de proletários da Europa, vindos nos antigos navios negreiros, reaproveitados pelas companhias de colonização.

Paralelamente à vinda de europeus, assistiremos a uma migração de costumes. De 1840 a 1889, em todos os aspectos do cotidiano brasileiro procurou-se imprimir a marca europeia. No café da manhã, por exemplo, o pão “francês” substitui a mandioca cozida, enquanto no almoço a cerveja começa a ser registrada e, na sobremesa, os sorvetes disputam, palmo a palmo, com os centenários doces, cujas receitas foram transmitidas de geração a geração nas fazendas açucareiras coloniais. As formas de tratamento também não ficam imunes a essas mudanças: expressões tradicionais, portuguesas ou resultados da influência africana, como dona, sinhá ou iaiá dão lugar a denominações afrancesadas, como mademoiselle ou, mais popularmente, madame. No vestuário, apesar do clima tropical, adota-se a lã e o veludo como padrão, em roupas sobrepostas, como no caso das saias compostas por três camadas de panos. As cores vivas, comuns a essas roupas e aos objetos de uso diário colonial, também tendem a ser substituídas pela sisuda e puritana cor preta – quase luto fechado, conforme sublinha Gilberto Freyre. Na moda, a influência do famoso costureiro parisienese Paul Poiret vai desfolhar os grandes vestidos rodados, elegendo a imagem da mulher-sílfide, longilínea e magra, em oposição às curvilíneas do final do Império. Na vida literária, a influência também foi grande: em livrarias como a Garnier, a Laemmert ou a Briguiet, os intelectuais da época compravam traduções de Balzac, Maupassant, Rimbaud, Verlaine, Baudelaire, Victor Hugo, Jean Lorrain e Huysmans. Na Biblioteca Nacional, os volumes mais consultados eram Alexandre Dumas, Verlaine e Victor Hugo. Mais tarde, no jornalismo, o cronista João do Rio toma emprestado de Zola expressões, como bas-fond, para caracterizar a vida dos trabalhadores pobres. Hábitos e leituras abriam caminho para o romantismo francês – que vai atingir sua expressão mais forte por volta de 1840 – na voz de poetas, escritores e dramaturgos. Se, na época, a literatura deixava de ser um reflexo das letras portuguesas, fazendo-se lugar para os assuntos nacionais, continuava-se a ler e a admirar Victor Hugo, Lamartine e Musset. Razão pela qual certa mademoiselle Edet, certamente uma secrétaire, anunciava que o Cabinet de Lecture instalado na rua do Ouvidor, nº 118, Rio de Janeiro, recebera um rico sortimento de “romances novos dos melhores autores”: entre os conhecidos, certo Charles Paul de Kock, então afamado escritor de dramas românticos, alguns com títulos picantes para a época, A mulher, o marido e o amante, por exemplo.

Em 1844 eram dez as livrarias e doze as tipografias cariocas, encarregadas de atualizar o gosto literário afrancesado. Dez anos mais tarde, o casal imperial dava exemplo aos membros da Corte. A imperatriz Teresa Cristina recebia de Paris caixotes de livros enviados pela duquesa de Berry. E para o imperador, d. Pedro II, vinham os exemplares da Revue des Deux Mondes. Mas não era só através da literatura que a França se fazia presente. O teatro e a confeitaria foram outras duas modas que “pegaram”. O diretor da Sociedade Dramática Francesa, que se apresentava ativamente no palco do Théatre Français, avisava aos leitores dos jornais que os ingressos para a “soirée qui aura lieu demain Dimanche 10 mai, 1845, seront distribués aujourd’hui” [evento que acontecerá amanhã, domingo, 10 de maio, serão distribuídos hoje]. Ao final da peça, os espectadores corriam à Déroche para tomar sorvetes, cognacs ou uma coupe de champagne. Na década de 1850, o vaudeville, gênero de comédias ligeiras, desembarcou entre nós e o público teve a oportunidade de aplaudir as peças de Octave Feuillet, uma delas com um título muito atual: La Crise!

A arquitetura também registra mutações. Nas cidades, os antigos sobrados e casas-grandes dão lugar a chalés ou a construções de inspiração neoclássica, enquanto nos jardins substituem-se as antigas espécies nativas por exuberantes roseiras, ao fundo acompanhadas não mais por canários-da-terra, mas sim por seus rivais belgas... Nem o submundo da prostituição escapou a esse afã de ser europeu, sendo ao final do século XIX organizado um “tráfico” de “polacas”, russas, austríacas, francesas e italianas; “mulheres de má nota” no dizer da época, que, independentemente da nacionalidade, eram cobiçadas por serem brancas.

Espíritos mais lúcidos não se deixaram levar pela moda de “ser europeu”, ou pelo menos se posicionaram diante dela. Machado de Assis escreve, com grandes pitadas de ironia, um pequeno guia de como se comportar nos bondes, ridicularizando o refinamento artificial da época: “Os encatarroados” – afirma o escritor – “podem entrar nos bondes com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro”. Às vésperas da proclamação da República, Olavo Bilac torna-se um defensor do aristocrático e europeu duelo, em substituição ao bem brasileiro emprego de capoeiras e capangas por quem quisesse “lavar a honra”.

As mutações de 1850 tiveram, porém, repercussões não previstas por seus idealizadores. A imigração europeia e a importação de modas que a acompanhou tenderam a se concentrar em áreas economicamente mais desenvolvidas. O resultado disso foi o aumento das diferenças culturais entre o Norte e o Sul do país, assim como entre cidade e campo, entre litoral e sertão. Era como se a história tivesse sofrido uma “aceleração” em algumas regiões, enquanto noutras continuasse a reproduzir o modelo de vida herdado do período colonial. O surgimento dessa diferença, por sua vez, alimentará uma nova faceta da europeização: aquela relativa à crença na ciência como um meio de reformar a sociedade, postura que encontrou no Exército os seus mais ardorosos defensores e que fez nascer uma nova onda de críticas ao governo monárquico.

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Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de:DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 128 a 134, Capítulo 18.


Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


6 de março de 2023

O Anticristo na concepção de Fulton J. Sheen

O Anticristo não terá esse nome, senão ele não teria seguidores. Ele não vestirá um collant vermelho, não vomitará enxofre, não portará um tridente, nem terá um rabo com flecha como o Mefistófeles no Fausto...” (O.C., p. 25).

Segundo o Arcebispo Fulton Sheen (1895 – 1979) [1]:

* * *

Nós estamos vivendo os dias do Apocalipse [2] – os últimos dias da nossa era. As duas grandes forças – do Corpo Místico de Cristo e do Corpo Místico do Anticristo – começam a desenhar as linhas de batalha para o embate final.

O Falso Profeta terá uma religião sem a Cruz. Uma religião sem um mundo vindouro. Uma religião para destruir as religiões. A Igreja de Cristo será uma delas. Haverá uma falsa igreja. E o falso profeta vai criar uma outra. A falsa igreja é mundana, ecumênica e global. Vai ser uma federação de igrejas.

E as religiões irão formar um tipo de associação global. Um Parlamento Mundial das Igrejas. [A Igreja verdadeira] será esvaziada de todo o conteúdo divino e será o corpo místico do Anticristo. O corpo místico hoje na Terra terá o seu Judas Iscariotes e o falso profeta. Satanás o recrutará dentre os nossos bispos.

O Anticristo não será chamado assim, porque, se o fosse, não teria seguidores. Ele não usará roupas vermelhas, nem vomitará enxofre ou usará um tridente ou terá uma cauda, como Mefistófeles em Fausto. De fato, tais coisas mascararam e ajudaram o diabo a convencer os homens de que ele não existe. Quanto mais o desconhecem como realmente é, mais poderoso ele se torna. Deus se definiu como "Eu Sou Quem Eu Sou" e o diabo como "Eu sou quem eu não sou".

Em nenhuma passagem das Escrituras encontramos defesa para a descrição popular do diabo como um palhaço vestido de vermelho. Pelo contrário, ele é descrito como um anjo caído do Céu, como "o príncipe deste mundo", cujo legado é nos convencer que não existe outro mundo.

Sua lógica é simples: se não há o Céu, também não há Inferno; se não há Inferno, então não há pecado; se não há pecado, então não há Juiz, e se não há nenhum Julgamento, então o mal é o bem e o bem é o mal.

Mas, acima de todas essas descrições, Nosso Senhor nos diz que o diabo será tão parecido com Ele mesmo que seria capaz de enganar até os escolhidos, e certamente nenhum diabo descrito pelas imagens humanas seria capaz de enganar os escolhidos. Então, como ele vai vir nesta nova era para ganhar seguidores para a sua religião?

A crença da Rússia pré-comunista é que ele virá disfarçado como um grande humanista; vai falar de paz, de prosperidade e de abundância; não como meios para levar-nos a Deus, mas como fins em si mesmos.

A terceira tentação, com a qual Satanás pediu a Cristo para adorá-lo em troca de todos os reinos do mundo, irá tornar-se a tentação de se ter uma nova religião sem a Cruz e sem liturgia, sem um mundo futuro, uma religião para destruir a Religião, ou uma política que é uma religião – que também dá a César até mesmo as coisas que são de Deus.

No meio de todo o seu amor aparente pela humanidade e do seu discurso simplista de liberdade e de igualdade, o Anticristo ocultará um grande segredo que não será revelado a ninguém: ele não acredita em Deus, porque a sua religião será uma fraternidade sem a paternidade de Deus, e ele vai querer enganar até os escolhidos. Ele vai estabelecer no mundo uma contra-igreja como falsa cópia da Santa Igreja, porque ele, o diabo, é o macaqueador de Deus.

Essa falsa igreja terá todos os aspectos e as características da Igreja de Cristo, mas em sentido inverso e esvaziada do seu conteúdo divino. Terá um corpo místico de Anticristo que exteriormente vai imitar o Corpo Místico de Cristo. Mas o século XX vai se juntar a esta contra-igreja com a alegação de que ela será infalível quando sua cabeça visível falar ex cathedra (...) sobre temas como economia e política e como pastor-chefe do comunismo mundial.

* * *

Achei importante ver a posição deste autor católico, Fulton Sheen, uma vez que suas ideias se diferem em muito da posição do papa Francisco e da CNBB, por exemplo, que defendem o Comunismo enquanto o autor supracitado o condenava. Sheen afirmava, inclusive, que o Anticristo virá deste sistema que misturará religião com “… uma política que será ela mesma uma religião, que dará a César até as coisas que pertencem a Deus”.

Veja também o vídeo a seguir, de Marcelo Fernandes Ferreira [3]...


Notas:

  • [1SHEEN, Fulton J. O Comunismo e a consciência do Ocidente. Trad. Guilherme Ferreira Araújo. São José dos Campos/SP. Domine, 2021, pp. 24-28.

2 de março de 2023

O Movimento Ku Klux Klan (KKK) e a esquerda

O que é a Ku Klux Klan, a organização racista com que
  Lula comparou os apoiadores de Bolsonaro” [1]

No estudo que fiz sobre os Estados Unidos no século XIX, fizemos referência a este movimento considerado supremacista formado por brancos ex-confederados que surgiu após a Guerra da Secessão (1864-1865), quando estados escravistas do Sul do país saíram derrotados do conflito. Seu objetivo era impedir a integração dos negros como homens livres com direitos adquiridos e garantidos por lei após a abolição da escravidão. O traço característico de seus membros era o uso de capuzes cônicos e longos mantos brancos, destinados a impedir o reconhecimento de quem os usava.

As duas primeiras palavras do nome do grupo “Ku Klux” vêm do grego “kyklos”, que quer dizer círculo. O termo “Klan”, por sua vez, faz referências aos velhos clãs e grupos familiares tradicionais. Seguindo seus objetivos, o KKK, logo após a Guerra Civil, passou a promover atos de violência e intimidação contra negros libertados. Já promoveram assassinatos, enforcamentos e linchamentos de negros. Do sul americano, o grupo conseguiu se projetar nacionalmente e hoje tem entre 5 e 8 mil membros em 130 facções pelo país. Hoje, a KKK também discrimina judeus, imigrantes e a população gay.

O movimento KKK tornou-se bem conhecido servindo até de base de comparação e referência com políticos conservadores de direita, pela esquerda, quando lhe convém. É o que fez, por exemplo, o candidato Lula em setembro de 2022, ao classificar a participação de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, na cerimônia de 7 de setembro. Segundo Lula “foi uma coisa muito engraçada o ato do Bolsonaro. Parecia uma reunião da Ku Klux Klan. Só faltou o capuz". Pelo menos o candidato percebeu que os membros da KKK usam “capuz”. Só não sei se ele sabe que esta peça de vestuário servia exatamente para esconder a face do indivíduo. Veja o caso dos chamados Black blocs, que barbarizam a sociedade, fazendo protestos pelas ruas, queimando pneus, destruindo carros etc., eles fazem tudo isto mascarados para não serem reconhecidos como faziam os KKK. Alguma semelhança? Se não nos alvos escolhidos, mas pelo menos nos modos violentos empregados são muitos parecidos, ou seja, ambos são grupos terroristas, embora os esquerdistas tentam tratar os black blocs como “vítimas do sistema” e tentam de alguma forma defendê-los.

Interessante notar que o… "O Klan também perseguia outras pessoas (inclusive americanos brancos) que se mostrassem favoráveis à concessão de direitos civis aos negros" [3]. Alguma semelhança com o que políticos de esquerda faz ou tentam fazer com a direita hoje? Na verdade, “a esquerda tem muitas semelhanças com… grupos supremacistas, inclusive a Ku Klux Klan” (Fernando Holiday – veja o vídeo abaixo). Se há algum grupo indivíduo de direita ou extrema-direita que venha a cometer crimes, que tal usar o seu exemplo para tentar envolver os demais direitistas conservadores na mesma jogada? E que tal envolverem os direitistas que incomodam os políticos esquerdistas, principalmente, tentando encontrar “crimes”, como por ofensas na internet, nas manifestações em datas comemorativas, em quartéis etc., com base em exemplos como os da KKK, nazismo etc, mesmo que não haja relação nenhuma entre os casos?

Bem, de “… acordo com Linda Gordon, a KKK teve quatro momentos importantes na história: sua criação, logo após a abolição da escravatura, depois uma ascensão e queda durante os anos 1920, um novo fortalecimento entre os anos 1950 e 1960, durante os movimentos pelos direitos civis, e o período contemporâneo, quando coexiste com outros grupos de supremacia branca. Hoje, de acordo com a organização americana Southern Poverty Law Center (SPLC), especializada em direitos civis, o grupo agrega de 5 a 8 mil membros, divididos entre dezenas de subgrupos que usam a mesma denominação.” [2].

Agora, vejamos dois vídeos do Fernando Holiday a seguir:


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Notas:

27 de fevereiro de 2023

Os Estados Unidos no Século XIX




Veja o estudo completo feito em 2014, gravado em PDF no Meu Drive:

Os Estados Unidos no Século XIX


24 de fevereiro de 2023

O Brasil como Nação

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


Misturando arqueologia com poesia, linguística com romance de folhetim, pintura com ópera, foram elaboradas, representadas, divulgadas e debatidas explicações de como o Brasil se tornou brasileiro” (idem, Nota 1, pág. 127).

 

                                  “A construção da identidade brasileira constituiu-se como um
                                    processo histórico, cultural e político desde a Independência,
                                    em 1822” [2]

Em meados do século XIX, a capital do Império viu surgir uma nova moda cultural: a de procurar vestígios de antigas civilizações que teriam existido no interior do Brasil antes da chegada de Cabral. Tais incursões, promovidas pelo prestigiado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ou, mais sucintamente, IHGB, não eram organizadas por lunáticos, mas sim por renomados intelectuais da época que contavam, inclusive, com o apoio do governo imperial. A primeira delas, realizada em 1839, teve dimensões modestas, destinando-se a buscar vestígios arqueológicos nas imediações do Rio de Janeiro, onde se acreditava existir – na Pedra da Gávea, sintomaticamente denominada Esfinge – escritas rupestres de autoria de antigos fenícios.

Embora essas suspeitas não tenham se confirmado, a esperança de novas e espetaculares descobertas não desapareceram. Tanto foi assim que, em 1840, iniciaram-se os preparativos de uma arrojada incursão ao sertão baiano com o objetivo de confirmar informações, que circulavam desde o século XVIII, a respeito das ruínas de uma cidade antiga nas remotas matas do Cincorá. Como seria de esperar, essa expedição, apesar de ter durado vários anos, não obteve sucesso.

Nem tudo, porém, era fracasso. Alguns empreendimentos científicos, embora não vinculados diretamente ao IHGB, resultaram em descobertas surpreendentes. Isso ocorreu, por exemplo, em Lagoa Santa, Minas Gerais, onde o cientista dinamarquês Peter Lund identificou, na década de 1840, fósseis humanos pré-históricos, confirmando as expectativas sobre um antiquíssimo povoamento do território brasileiro.

Animados com essas descobertas, os membros do IHGB reiniciaram as explorações arqueológicas, identificando, em várias partes do território brasileiro, sambaquis – uma espécie de depósito de lixo pré-histórico. Alguns desses depósitos alcançavam dimensões gigantescas e, no entender da época, bem que podiam esconder no seu interior construções monumentais. Foi isso pelo menos o que imaginou o erudito Francisco Freire Allemão, que, também na década de 1840, tendo por base informações de um grande sambaqui, escreveu uma monografia a respeito de uma suposta “pirâmide” localizada no Campo Ourique, no Maranhão.
Paralelamente a essa arqueologia fantástica, desenvolveu-se na capital do Império uma linguística igualmente fantástica, na qual aquele que é considerado o fundador da historiografia brasileira, Francisco Adolfo de Varnhagen, procurou demonstrar, por meio da comparação de vocábulos indígenas com os de antigas civilizações, a origem euro-asiática dos povos tupis-guaranis. Com base nesse conjunto de indícios, especulou-se a respeito da origem dos índios do Brasil, quase sempre afirmando que eram “povos decaídos”, ou seja, descendentes de altas civilizações mediterrâneas, como a dos egípcios ou fenícios, que haviam regredido ao estado de selvageria. O imperador d. Pedro II não se furtou ao debate, escrevendo, na década de 1850, aos diretores do IHGB para que procurassem responder o mais rapidamente possível: quais são os vestígios que podem provar a existência de uma civilização anterior aos portugueses?

E, mais ainda, em um rompante de etnólogo amador, o imperador sugeriu uma nova questão, interrogando: Existiram ou não as amazonas no Brasil?

Aos olhos do leitor atual, esses insólitos empreendimentos científicos podem parecer piada. Na época, porém, o tema era levado a sério. Para compreendermos a razão disso, devemos ter em mente que as buscas arqueológicas oitocentistas eram uma espécie de ponta de iceberg de outra questão fundamental da época: a da identidade nacional brasileira.

E essa será a questão de que trataremos a seguir.

Conforme mencionamos em páginas anteriores, logo após 1822 surgiram movimentos que questionavam o projeto político imperial carioca e reivindicavam o federalismo ou até a independência de suas respectivas regiões. A luta contra esses movimentos demandou extraordinários recursos humanos e financeiros. Sua evolução também esteve longe de ser linear. Em 1831, a abdicação de d. Pedro I ao trono significou uma vitória das forças descentralizadoras, havendo o que se convencionou chamar de “experiência republicana”, tendo em vista a eleição direta de regentes, uma espécie de presidente da época, como foi o caso de Diogo Feijó.

No entanto, a abdicação não diminuiu o ímpeto separatista. Ao contrário, o período que se estende até 1848 foi caracterizado pelo avanço desse segmento. A elite imperial não só ordenou o massacre dos rebeldes das províncias como também procurou criar instituições que viabilizassem o projeto monárquico. Os intelectuais vinculados a esse projeto investiram, por sua vez, no combate aos movimentos separatistas, mostrando que os brasileiros constituíam uma nacionalidade com características próprias. Em outras palavras, para ser viável, o Império deveria não só se impor através da força, como também por meio de boas instituições e de uma identidade coletiva que justificasse a razão de ser da nação que estava se formando.

Para felicidade desses intelectuais, a última questão também era enfrentada por boa parte dos países europeus, em processo de unificação, facultando-lhes assim um conjunto bastante rico de discussões a respeito da construção da identidade nacional. A instituição que centralizou tais debates foi o já referido Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838. O IHGB reuniu historiadores, romancistas, poetas, administradores públicos e políticos em torno da investigação a respeito do caráter nacional brasileiro. Em certo sentido, a estrutura dessa instituição, pelo menos enquanto projeto, reproduzia o modelo centralizador imperial. Assim, enquanto na corte localizava-se a sede, nas províncias deveria haver os respectivos institutos regionais. Estes, por sua vez, enviariam documentos e relatos regionais para a capital, onde se trataria de escrever a “história do Brasil”.

Nas discussões que se seguiram imediatamente à fundação do IHGB, a versão do que seria o elemento central da história nacional, ironicamente, foi definida por um estrangeiro. Segundo o esquema proposto por Karl von Martius, naturalista alemão, a história do Brasil resultaria da fusão de três raças: branca, negra e índia. Com certeza, nos dias de hoje tal definição não é levada a sério, pois sabemos que a história não é um subproduto das raças. Além disso, do ponto de vista cultural, os três grupos mencionados não formaram unidades homogêneas, nem muito menos mantiveram relações igualitárias no Novo Mundo, como a noção que fusão sugere. Na época, porém, a tese de Martius estava em dia com os mais avançados debates científicos que, por intermédio da análise das diferentes misturas entre anglo-saxões, francos, normandos, celtas e romanos, tentavam explicar as diferentes nacionalidades europeias. Talvez a extraordinária repercussão da interpretação adotada pelo IHGB resulte desse pretenso rigor, que encantou não só historiadores, mas também romancistas e poetas.

A “teoria” das três raças se fundindo e formando a nacionalidade apresentava ainda dois atrativos suplementares. Em primeiro lugar, mostrava que os brasileiros eram diferentes dos portugueses, sendo legítimas, portanto, as aspirações de 1822. Em segundo lugar, tal interpretação procurava esvaziar a legitimidade dos movimentos separatistas, unificando, em uma única categoria nacional, o conjunto de habitantes dispersos pelas várias regiões do Império, contribuindo assim para a formação de uma identidade brasileira diferenciada daquela do antigo colonizador.
Mas o sentimento de ser “diferente” em relação aos antigos metropolitanos era abordado pelos intelectuais de maneira contraditória. É bom ter sempre em mente que, tal qual o imperador, boa parte da elite monárquica descendia de portugueses. Como se não bastasse isso, romper totalmente com o passado significava romper com os laços europeus, laços que, segundo o ponto de vista de muitos, coloriam o passado brasileiro com tintas de civilização.

No texto elaborado por Martius, que durante décadas serviu de guia a respeito de “como se deve escrever a história do Brasil”, o tema do contato das três raças é explorado de maneira exemplar. Nele, a contribuição portuguesa para a formação da nacionalidade brasileira é associada a instituições políticas, econômicas e religiosas; em outras palavras, às formas de vida civilizadas. Já a contribuição dos negros é apresentada de maneira contraditória, havendo sucintas alusões aos conhecimentos dos africanos em relação à natureza e, ao mesmo tempo, a seus preconceitos e superstições.

Segundo tal interpretação, o que faria do Brasil uma sociedade positivamente diferente da portuguesa não seria propriamente a presença africana – esta, conforme veremos, combatida através de leis favoráveis à extinção do tráfico internacional de escravos –, mas sim a indígena. Em relação a este segmento, a posição de Martius foi a de não mencionar uma contribuição, mas sim indicar que eles eram “ruínas de povos”, ou seja, descendiam de uma antiga civilização que teria migrado para o Novo Mundo e entrado em decadência, regredindo ao estado de selvageria. Ora, essa sutil nuança em relação aos outros dois povos formadores da nacionalidade brasileira tinha importantes implicações. Se refletirmos um pouco, perceberemos que Martius transferiu para o futuro a definição do que seria a contribuição indígena; dependendo dos rumos tomados pelos estudos arqueológicos e linguísticos, mencionados no início do presente capítulo, essa contribuição poderia ser considerada tão importante quanto a dos portugueses.

Cabe lembrar ainda que, por essa época, os principais centros econômicos do Império contavam com uma população indígena residual. Tal situação abria margem para a análise desse grupo enquanto elemento já incorporado à sociedade brasileira. Haveria, assim, na química simbólica da nacionalidade brasileira, um misterioso ingrediente que, quando estudado com o devido cuidado, poderia revelar um passado monumental, rival até ao europeu.

Para os intelectuais vinculados a esse debate, a descoberta de vestígios de uma ou de várias complexas sociedades no território brasileiro era uma questão de tempo. Tal crença, por sua vez, resolvia, por assim dizer, um dilema que a muitos assustava: se os portugueses eram a única fonte de comportamento civilizado da nossa índole nacional, quais seriam, ao longo do tempo, os resultados do rompimento com a Metrópole? Haveria um retrocesso? Assumir uma identidade não branca, no mínimo, abalaria a autoestima dos súditos da nova nação. Afinal, quais seriam as razões para os brasileiros se orgulharem de ser brasileiros?!

Ora, é justamente nesse ponto que a apropriação de uma tradição indígena, baseada na existência de uma fantasiosa e ancestral “alta cultura”, desempenhou um papel central na “química” da nacionalidade. Aos índios podia ser atribuído o que, supostamente, faltava ao negro, permitindo-lhes rivalizar com os brancos. Da ótica do pequeno grupo de intelectuais que, na época, refletiu a respeito da identidade nacional brasileira, os primeiros habitantes do Brasil passaram a ser vistos como portadores de valores que até os portugueses da Época Moderna, marcados pela ânsia do lucro e do acúmulo de bens materiais, haviam perdido. Para os autores que adotaram esse tipo de concepção, o mundo indígena teria conservado a nobreza, a generosidade e a bravura do mundo antigo, valores que não existiam mais nas sociedades contemporâneas. A tradição indígena – ou a invenção dessa tradição – fornecia, por assim dizer, os ingredientes que faltavam para fazer do brasileiro um ser diferente do português, mas nem por isso inferior.

Boa parte da literatura brasileira do século XIX, como as clássicas obras produzidas por Gonçalves Dias e José de Alencar, estende raízes nesse intricado debate. A cada “ossinho” encontrado em cavernas, a cada desenho rupestre identificado, a cada novo rumor de cidades perdidas nas selvas, cresciam as expectativas a respeito das descobertas de altas civilizações indígenas que teriam existido no território brasileiro. Essas expectativas, por sua vez, devido às características da vida intelectual no Império, conquistaram um público bem mais amplo do que o restrito grupo de sócios do IHGB. Por essa época, havia no Brasil muito pouca especialização da atividade intelectual. Um indivíduo podia, ao mesmo tempo, ser magistrado, jornalista, romancista, poeta, historiador, arqueólogo, naturalista, transitando, assim, em diversas áreas de conhecimento.

Para compreendermos as consequências dessa situação, é necessário sublinhar que, nas primeiras décadas do século XIX, observamos no Brasil o florescimento do romantismo. Em linhas gerais, os românticos caracterizavam-se pelo ecletismo filosófico, propondo criar um meio-termo entre ciência e religião; estranha combinação que, pelo menos entre alguns autores da época, desdobrava-se em uma aproximação da ciência com a literatura e a poesia. O romantismo também fazia oposição à ideia de que as sociedades tinham a mesma origem, evoluindo da mesma maneira, ou ainda que a história humana fosse guiada por algum objetivo, como aquele relativo à busca do progresso ou da liberdade. Ao contrário das teorias evolucionistas do século XVIII, os românticos não classificavam as nações como atrasadas, mas sim como diferentes entre si.

Ao considerar a nacionalidade como algo a ser descoberto, o romantismo em muito contribuía para a superação intelectual da experiência colonial. Daí, inclusive, a busca pelo passado indígena. Justamente por não se saber ao certo a origem dos índios, as descobertas arqueológicas que estavam para ser feitas poderiam sugerir novas formas de entender e de valorizar a identidade nacional brasileira. Cabia aos intelectuais aprofundar os estudos e criar meios pedagógicos de sua divulgação. Misturando arqueologia com poesia, linguística com romance de folhetim, pintura com ópera, foram elaboradas, representadas, divulgadas e debatidas explicações de como o Brasil se tornou brasileiro. O leitor, caso queira confirmar isso, deve folhear os antigos números da Revista do IHGB, visitar museus que conservam quadros de Victor Meireles, ouvir um CD de Carlos Gomes, ou então correr à estante e abrir, em uma página qualquer, algum romance de José de Alencar.


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Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 123 a 127, Capítulo 17.

  • [2] Construção da identidade brasileira. Imagem disponível em: <https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/a-identidade-nacao-brasileira.htm>. Acesso em 23/02/2023.

Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

14 de fevereiro de 2023

A casa de Bragança no Brasil

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

“A vinda da família real foi um acontecimento iniciado em 29 de novembro de 1807, e o seu desembarque em terras brasileiras ocorreu em 22 de janeiro de 1808, na cidade de Salvador. A vinda foi consequência direta do Período Napoleônico e do desentendimento existente entre França e Portugal na questão do Bloqueio Continental. Com isso, a família real portuguesa mudou-se para o Brasil e instalou-se no Rio de Janeiro, junto à toda estrutura de governo de Portugal. Isso iniciou o Período Joanino e resultou em uma série de transformações, como a abertura dos portos brasileiros, que contribuíram para levar o Brasil na direção de seu processo de independência" [2]

Até o período em que se deu a Independência, vivia-se um cenário com algumas características invariáveis: o Brasil continuava a ser um país agrário, com produção monocultora voltada para a exportação e apoiada no braço escravo. Enquanto isso, a Europa do início do século XIX se transformara no teatro das guerras napoleônicas. Em 1807, o rei de Espanha, de joelhos, pedia apoio ao imperador francês; o rei da Prússia tinha fugido da capital ocupada pelos soldados franceses; o Stathouder holandês estava refugiado em Londres; o rei das duas Sicílias exilado em Nápoles; a Escandinávia buscava um herdeiro entre os membros da tropa de elite de Napoleão. A fragilidade portuguesa, em contraste com a robustez militar do inimigo, deixava entrever a invasão. O projeto de transferir a Corte para o Brasil tomou forma quando as tropas napoleônicas, vindas de território espanhol, avançaram sobre a capital. Embora o embarque tenha sido atropelado, a decisão de atravessar o Atlântico não foi imposta pelo pânico. Havia muito se estudava essa possibilidade. Às vésperas da partida, a esquadra portuguesa estava pronta, aparelhada com o tesouro e a biblioteca real. Apesar da ação conspiratória de alguns grupos que desejavam aderir à França, d. João foi avisado com antecedência da chegada de Junot, o general francês. Segundo vários cronistas da época, instalou-se certa confusão, com muitos fidalgos fazendo-se transportar às pressas para os navios, onde não havia mais lugar. O povo de Lisboa manifestava com lágrimas, dor e desolação seu sentimento diante da partida do príncipe. Mas, ao aportar na Bahia, não era um refugiado que chegava, e sim o chefe de um Estado nacional em funções que resolveu migrar para cá.

De acordo com vários viajantes estrangeiros que aqui estiveram, na primeira metade do século XIX a paisagem urbana brasileira era então bem modesta. Com exceção da capital, Rio de Janeiro, e de alguns centros – onde a agricultura exportadora e o ouro tinham deixado marcas, caso de Salvador, São Luís e Ouro Preto –, a maior parte das vilas e cidades não passava de pequenos burgos isolados com casario baixo e discreto, como São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. Mesmo na futura Corte, o Rio de Janeiro, as mudanças eram mais de forma do que de fundo. As notícias divulgadas pela Gazeta do Rio de Janeiro (1808-22), órgão da imprensa da época, eram tediosas. Até a inauguração do Real Teatro de São João, palco onde se exibiam companhias estrangeiras e artistas, como a “graciosa Baratinha” ou as “madames Sabini e Toussaint”, as atividades culturais cariocas não eram suficientes para quebrar a monotonia cotidiana. Além dos saraus familiares e do popular entrudo – uma espécie de carnaval –, o evento social mais importante continuava a ser a missa dominical. A capital era cortada por ruas estreitíssimas, lembrando a mouraria lisboeta, e as vivendas não tinham vislumbre de arquitetura decorativa. Os conventos eram numerosos, mas apenas habitáveis. A talha dourada das igrejas, inferior às da Bahia, provocava entre os devotos um estímulo às obras de embelezamento. Bairros como Botafogo ou Catete eram considerados arrabaldes, encerrando casas de campo que procuravam abrigo sob a frondosa vegetação. O Passeio Público representava a melhor área de lazer da população. Pelas ruas, sentados sobre barris, os aguadeiros esperavam sua vez diante dos chafarizes que traziam “a linfa mais cristalina” do Alto da Tijuca. Seus gritos se misturavam ao ruído de escravos, mendigos e ciganos. Nas noites de luar, era à beira d’água que famílias se reuniam, entoando modinhas e lundus ao som de violão.

Foi nesse Rio de Janeiro que desembarcaram, a 8 de março de 1808, o futuro monarca e a família real, trazendo em sua bagagem a prataria de uso privado e uma formosa biblioteca para encher horas mortas. O desembarque traduziu-se em imensa festa popular. Os habitantes da capital, atendendo às ordens do conde dos Arcos, receberam o príncipe regente com demonstrações de entusiasmo. As ruas estavam atapetadas de areia da praia e ervas aromáticas, colchas de Goa tremulavam nas varandas e os sinos repicavam. Sob um pálio escarlate se acomodavam o juiz de fora e os vereadores da Câmara. À medida que a Corte descia dos navios era recebida com uma chuva de flores e plantas odoríferas. Na frente da igreja do Rosário, sacerdotes paramentados com capas de seda incensavam os recém-chegados, enquanto o ar era sacudido por fanfarras, foguetes e o matraquear da artilharia. A chegada da Corte foi retratada num folheto publicado pela Imprensa Régia em 1810 (Relação das festas...) em que, sob a forma de uma carta, um narrador conta que a cidade celebrou com nove dias de luminárias a chegada de Sua Alteza Real: em pequenos vasos com óleo de baleia e pavios acesos figuravam o retrato do rei enfeitados com rosas, a África de joelhos oferecendo suas riquezas, a América oferecendo seu coração e os ditos: “América feliz tens em teu seio, do novo império o fundador sublime [...] O povo era tanto nestes nove dias de luminárias que cercava o palácio em grande multidão [...] uns iam sentar-se a bordo do cais, a contemplar o prateado dos mares, outros se entretinham a ouvir a música [...] que vinha de um coreto decentemente ornamentado [...] os louvores do grande e incomparável príncipe”. Desde a chegada de d. João, seu aniversário, no dia 13 de maio, passou a ser celebrado com festividades públicas. Em 1808, registrou-se que consistiram em uma grande parada, com audiência e beija-mão à Corte, aos membros dos tribunais e às pessoas mais condecoradas naquele ano. Em 1809, o programa de festejos manteve-se inalterado, tendo sido apenas enriquecido com a inauguração de uma fonte no Campo de Santana, cerimônia que teve “o numeroso concurso do povo”. Dez anos depois de estabelecida a família real entre nós, inovou-se a mesma festa com a introdução de um “teatro de Corte”.

Na vida da família real misturavam-se representantes da elite urbana constituída por alguns comerciantes de grosso trato como Brás Carneiro Leão, futuro barão de São Salvador de Campos. Coube à inglesa Maria Graham, em sua segunda viagem ao Brasil, em 1823, alguns registros sobre o cotidiano urbano. Os salões de Brás Carneiro Leão, por exemplo, eram decorados ao gosto francês, revestidos de papéis de parede e molduras douradas, além de móveis de origem inglesa e francesa. A neta do anfitrião, como boa filha da elite, falava bem francês e fazia progressos em inglês. Localmente, porém, o exemplo era raro, queixava-se, em 1813, John Luccock, afirmando que a maioria das mulheres costumava desnudar sua falta de educação e instrução. Saber ler – comentava, amargo –, só o livro de reza, uma vez que pais e maridos temiam o mau uso da escrita para comunicar-se com amantes. Debret, por seu turno, confirmava o despreparo intelectual das mulheres de elite. Até 1815, e malgrada a chegada da família real, a educação se restringia a recitar preces de cor e calcular de memória, sem saber escrever nem fazer as operações. A “ignorância”, segundo ele, era incentivada por pais e maridos receosos da temida correspondência amorosa. Mesmo os mais ricos não tinham maiores divertimentos. “A vida que se leva aqui é muito monótona; poucas são as distrações e quase não há reuniões”, resmungava em 1819 o prussiano Theodor von Leithold, de passagem pelo Rio de Janeiro. Resumiam-se essas reuniões nas conversas nas lojas, antes da ceia e depois de retiradas das portas as mercadorias empoeiradas, ou aos jogos de gamão ou whist. O teatro, um velho, sujo e mal ventilado casarão de Manoel Luiz Ferreira ao pé do Paço, tinha uma orquestra deficiente e levava espetáculos de gosto duvidoso. Ao seu lado, relata-nos Leithold, funcionava um café que garantia aos mais aficionados jogos clandestinos. Apesar do meio social insípido, a população fluminense era alegre, expansiva, excitável e ruidosa. Submetia-se, sem maiores resistências, à vida custosa e pouco confortável. Os aluguéis eram altíssimos e comia-se mal. A carne de vaca era de má qualidade, a boa manteiga era importada e o leite, intragável. Só as frutas e os legumes eram abundantes. Além disso, o café era quase tão caro quanto em Lisboa. “Não há cantinho do universo onde se seja pior alimentado e pior alojado por preços tão excessivos”, queixava-se o inglês John Mawe, que, a pedido do conde de Linhares, se dispusera a administrar a Real Fazenda de Santa Cruz.

Pois foi nesse “cantinho” que se instalou d. João. Primeiramente no Paço da cidade, cujo conforto deixava a desejar para a numerosa família real, seus criados e cortesãos. Depois, graças à generosidade do negociante Elias Antônio Lopes, passou a morar em sua Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão. Os coches colocados à sua disposição para o transporte na cidade eram pobres, sem adornos, “ridículos”. Para a rainha-mãe fora reservada a única carruagem vinda de Lisboa; era puxada por duas mulas ordinárias e dirigida por um lacaio de vestimenta velha e desbotada. Ia sempre acompanhada de uma dama e precedida de doze soldados mal montados e fardados de forma ainda pior. O transporte do príncipe regente era ainda mais pobre; consistia em uma carruagem antiga, com as competentes cortinas de couro. A princesa, sua esposa, não tinha carruagem; quando não ia com o esposo, contentava-se em sair a cavalo. Todos os demais indivíduos da família real, em número de dez, resignavam-se a andar a pé. Num gesto sutil de alguém incomodado com o seu entorno, um ano depois de sua chegada, d. João mandou, por decreto municipal, substituir por janelas de vidraça os antigos muxarabiês árabes e as gelosias de madeira, que, “além de serem incômodas, prejudiciais à saúde pública, interceptando a livre circulação do ar”, enfeavam a cidade. As compensações estéticas encontravam-se na capela da igreja do Carmo ou no Paço, em que o soberano, um apaixonado por música, abandonava-se às composições do pardo José Maurício ou aos acordes de Marcos Portugal. O espaço foi rapidamente transformado em sala de ópera, passando a denominar-se Capela Real. Como atividade pública e social complementar havia ainda as tertúlias – uma espécie de reunião literária – com os padres carmelitas da Lapa (entre os quais frei Pedro de Santa Maria, matemático, frei Custódio Alves Serrão, naturalista, e frei Leandro do Sacramento, botânico) ou no convento franciscano de Santo Antônio, abrigo de uma plêiade de homens cultos, como frei José Mariano da Conceição Veloso ou Mont’Alverne.

O Paço de São Cristóvão distava hora e meia da cidade. Aí instalaram-se o rei, seu filho, d. Pedro, e a infanta Maria Teresa, viúva de d. Pedro Carlos de Espanha, com um filho, menino de 8 anos, e o futuro d. Miguel, de 6 anos e vítima, segundo o prussiano Leithold, de uma voraz solitária. A rainha, por seu lado, residia com as duas outras filhas, dona Micaela Maria, de 18 anos, e dona Josefa, de 15, no Paço da cidade. Com ela, vivia também a tia do regente, viúva do príncipe d. José. O edifício tinha aprazível situação, gozando de vista sobre a cidade e o porto; de ambos os lados estendiam-se altas montanhas e vales povoados de chácaras e tinha um só andar com catorze janelas de frente. Em 1819, foram construídas alas laterais para aumentar-lhe a superfície. Antes de se chegar ao Paço, atravessava-se um extenso terraço; uma escadaria circular, com balaústres de ferro pintados de verde e ornamentados com ouro, dava acesso à porta do palácio e, através dessa, à galeria que ocupava toda a extensão da fachada. De um lado dessa modesta galeria abriam-se as ditas janelas, de outro, enfileiravam-se, na parede, pinturas a óleo representando cenas religiosas. O rei costumava sair a passeio num carro aberto e saudava os passantes com a maior amabilidade. Atrás dele seguia uma espécie de guarda de corpo uniformizada e com espadas desembainhadas. Andava pouco, pois sofria de gota. Acompanhado do pequeno infante espanhol, só se aventurava a fazer exercício quando seu estado de saúde permitia. Vivia sob dieta severa e quase não bebia vinho. Era de extrema gentileza com visitantes. Com Leithold conversou em francês, mostrando-se interessado por sua trajetória e opinião sobre o Brasil. O beija-mão, cerimônia igualmente de rigor na Espanha, tinha lugar todas as noites às oito horas, em São Cristóvão e, nas grandes cerimônias, no chamado Paço da cidade. Se não se sentisse bem, adormecesse ou se sobreviesse uma tempestade, o que lhe produzia forte impressão, o rei encerrava-se em seus aposentos e não recebia ninguém. A brilhante assembleia reunida na galeria de São Cristóvão, onde não havia nem bancos nem cadeiras, era então despedida sem nenhum acanhamento e muitas vezes depois de longa espera, conta-nos, atônito, Leithold.

Os membros da família real devem ainda ter participado de vários bailes e banquetes, muitos deles oferecidos por membros da nobreza ou diplomatas estrangeiros servindo no Brasil. No aniversário do príncipe regente da Inglaterra, por exemplo, “fez aqui o ministro daquela corte, mr. Strangford, uma função esplendíssima, ou seja, um baile e a ceia servidos pelos ingleses”, menciona o português Luís dos Santos Marrocos em sua correspondência. O visconde de Vila Nova da Rainha, por sua vez, recebeu em seu palácio em Botafogo a princesa d. Carlota com suas filhas e criadas, ao som de excelente orquestra vocal, dança e refrescos. Qualquer baile, e principalmente aqueles a que assistiam membros da família real, obedecia a um ritual claramente definido pela etiqueta da época. Tocava-se a “sinfonia de abertura” e determinadas pessoas abriam o baile. Seguiam-se minuetos, valsas e outras contradanças pela ordem estabelecida pelos mestres-salas. Cabia-lhes convidar cada senhora para cada uma dessas danças, dando-lhes os pares, que eram sempre diferentes. Evitavam-se danças de longa duração por conta de fadigas. O baile era geralmente acompanhado de um banquete, no qual homens e mulheres comiam em separado.

Os momentos de júbilo, assim como os de tristeza, vividos em público pelos Bragança, foram vivamente registrados pela pena do cônego Luís Gonçalves dos Santos, professor de gramática latina do seminário da Lapa, mais conhecido pela alcunha de padre Perereca. Bodas, aniversários e enterros, luminárias, foguetórios e pompas fúnebres por ele descritas, constituíam-se claramente num pacto social entre o rei e seus súditos. O culto ao rei e seus ritos seculares eram a expressão do simbolismo dos laços entre a monarquia portuguesa e seu povo no além-mar. Nessas circunstâncias de festas públicas, o rei orava, regozijava-se, ria e chorava, irmanado com seus súditos e funcionando como um instrumento de propaganda em causa própria. As solenidades da Corte, tais como o enlace da princesa Maria Teresa, o casamento do príncipe real, os desfiles alegóricos no Campo de Santana, a aclamação em 1818, verdadeiros restos da liturgia absolutista, traziam para a praça pública, em várias cenas teatralizadas, a ideia de que rei e reino eram uma coisa só. Em público, a personalidade do monarca configurava-se o lugar de encontro da estrutura de poder e das pressões conjunturais que esta sofria. Seus gestos em relação ao povo, sua simpatia e afabilidade para com a Corte, sua devoção religiosa perpetuavam seu poder pessoal.

A relação do regente com essa Corte feita de magistrados, funcionários, monges, visitantes estrangeiros e grandes proprietários de terra, alguns brasileiros, outros lusos, constituía-se num campo de relações clientelistas. A manipulação das tensões entre aqueles nascidos na América portuguesa, que deviam favores, ou a sua ascensão, ao rei, tais como os comerciantes de grosso trato do porto do Rio de Janeiro, cujas casas Sua Majestade frequentava, e aqueles que se orgulhavam de títulos de nobreza e que com a família real haviam transposto o Atlântico, permitiam ao monarca governar centralizando decisões. Sua preocupação era dupla: não deixar a Corte portuguesa chegar a um grau de decadência ameaçador, pois seu desaparecimento comprometeria sua própria existência e a significação de sua função. Era, contudo, preciso dominar a velha aristocracia emigrada, destituída, no Brasil, de cargos administrativos ou militares. D. João consolidou, então, um sistema fundado na desigualdade e codificado pela hierarquia, fazendo as diferenças parecerem “naturais”, chanceladas que estavam por sua presença física na Colônia. Entre um grupo e outro, o monarca manobrava. A economia de amizades e as trocas clientelares eram uma das marcas da monarquia portuguesa. Dar, receber e restituir eram atos que comandavam as relações sociais entre o monarca e seus súditos, provocando um contínuo reforço nos laços que os uniam em crescente espiral de poder; espiral subordinada a uma estratégia de ganhos simbólicos que se estruturava sob os atos de gratidão e serviços.

Um especialista no período não se furta em dizer que não conheceu despacho, reservado ou confidencial, de embaixador, ministro ou encarregado de negócios estrangeiros para seu governo que não se refira com respeito e elogios a d. João. “É curioso verificar que nenhum mesmo tenta fazê-lo, de leve que seja, ridículo”, afirma o autor. “Com justiça, nada se encontrava de burlesco neste personagem.” A lista de adjetivos que faz do personagem é longa: atencioso, benevolente, curioso, bem informado, bonacheirão, desconfiado, sensível a ponto de chorar fácil e frequentemente, como fez na morte da mãe, na partida das filhas para a Espanha ou ao abraçar o enfermo marquês de Aguiar. E, finalmente, sagaz por cercar-se de gente competente. Os adjetivos, contudo, não esclarecem seu comportamento cotidiano e doméstico. Mas, como seria, para o rei português, viver o que se entendia, na época, por “privacidade”, ou seja, o trato de si e de sua família?

Durante sua permanência no Brasil, d. João incentivou o aumento das escolas régias – equivalentes, hoje, ao ensino médio –, apoiando também o ensino de primeiras letras e as cadeiras de artes e ofícios. O príncipe regente criou, ainda, nosso primeiro estabelecimento de ensino superior, a Escola de Cirurgia, na Bahia, em 1808. No Rio, ampliava-se a Academia Militar, enquanto na Bahia e no Maranhão solidificavam-se escolas de artilharia e fortificação. Bibliotecas e tipografias começaram a funcionar, sendo a Imprensa Régia, na capital, responsável pela impressão de livros, folhetos e periódicos, nela publicados entre 1808 e 1821. Com o rei vieram, igualmente, diversos artistas portugueses de valor, entre os quais Joachim Cândido Guilhobel e Henrique José da Silva, aos quais se juntaram os brasileiros José Leandro de Carvalho e Francisco Pedro do Amaral. Em 1816, chegou a Missão Artística Francesa, chefiada por Joachim Lebreton, secretário do Instituto de Belas-Artes da França, pouco depois falecido. Eram seus componentes Nicolas-Antoine Taunay e Jean Baptiste Debret, ambos pintores; Auguste-Marie Taunay, escultor; Grandjean de Montigny, arquiteto que muito influenciou a construção civil na cidade; Charles Simon Pradier, gravador como Zéfherin Ferrez; e Marc Ferrez, ornamentista. O pintor Arnauld Julien Pallière, vindo para cá também nessa época, foi o responsável pelo palco urbanístico da Vila Real da Praia Grande, atual Niterói. Em 13 de junho de 1808, com a denominação de Jardim de Aclimação, é inaugurado o Jardim Botânico, com espécimes transplantados da Índia, das ilhas Maurícias e da Guiana Francesa: eram muscadeiras, canforeiras, cravos-da-índia, mangueiras, abacateiros, além de especiarias finas e outros produtos exóticos. Para plantar e colher as folhas do chá, vieram também chineses.

Em 1815, foi criado o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, legalizando o fim da condição colonial. O Brasil, contudo, continuava mal unificado internamente. A Corte carioca mantinha um controle rígido sobre as demais capitanias, submetendo-as a encargos fiscais e monopólios. Os colonos não se entendiam com as mudanças sugeridas pelo governo do Rio de Janeiro e acumulavam-se as críticas aos novos dominadores. O mal-estar se agravou com a queda nos preços do açúcar e do algodão depois do fim das guerras napoleônicas e com o aumento de impostos para custear a dispendiosa intervenção militar que valeu a incorporação do Uruguai ao Brasil, como Província Cisplatina. Antigos antagonismos explodirão no processo de independência, nosso próximo assunto.


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Texto complementar: O Rio de Janeiro na época de D. João.

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Veja também:


Notas:

[1]  Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de:  DEL PRIORI, Mary e
      VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora 
          Planeta do Brasil, 2010, pp., 110 a 116, Capítulo 15.

[2]  Vinda da família real para o Brasil. In: <https://www.historiadomundo.com.br/idade-                   contemporanea/vinda-da-familia-real-para-o-brasil.htm>. Acesso em 14/02/2023.


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São
          Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

13 de fevereiro de 2023

O Rio de Janeiro na época de D. João

Com a chegada da família real portuguesa e cerca de 15 mil acompanhantes, a vida no Rio de Janeiro sofreu grandes mudanças. É o que nos relata o texto que segue [1]

  

"É no Paço dos Governadores (chamado de Paço  dos  Vice-Reis
desde que a capital mudou de Salvador para o Rio) que a família
real se hospeda, ao chegar à cidade. Pintura guache do início do
século XIX (Crédito: Frans Josef Frühbeck)” [2]

Nessa época, a cidade oferecia poucas distrações: as famílias ricas iam a espetáculos, embora fossem de má qualidade, frequentavam bailes familiares, e os homens, reuniões de jogo. Praticamente não existia a vida noturna por causa da falta de iluminação. Nas procissões e nas festas religiosas, toda a população da cidade tomava parte. Quando foi inaugurado o Passeio Público, algumas famílias logo o transformaram em ponto de encontro entre parentes e conhecidos que lá se reuniam à tardinha para contar os fatos do dia e as últimas notícias.

Esse tipo de vida calma e aparentemente sem preocupações foi de um dia para o outro revolucionado pela chegada da família real portuguesa e toda a sua corte. Para atender às exigências, foram logo construídas novas casas e reformadas as existentes. Os balcões fechados com madeira trançada, as rótulas, começaram a ser substituídos por janelas com vidraças. Começaram a aparecer também residências isoladas, longe do centro, em meio a jardins, com muitas árvores e gramados.

Seguiu-se toda uma série de modificações introduzidas pelos comerciantes vindos sobretudo da Inglaterra e da França, após a abertura dos portos. No centro da cidade, na rua do Ouvidor, instalaram-se inúmeras lojas cheias de artigos europeus e orientais, dos mais finos. Surgiram livrarias, perfumarias, tabacarias, lojas de calcados, oficinas de costureiras e de modistas, salões de barbeiros e cabeleireiros. Tudo isso foi modificando, aos poucos, gostos, hábitos e costumes da população, introduzindo na cidade noções de conforto desconhecidas até e então.

Para assegurar o progresso material foi necessário um número maior de pedreiros, carpinteiros, ferreiros, de pessoas, em suma, especializadas em vários ofícios; daí foi surgindo aos poucos uma nova camada social, a pequena classe média, intermediária entre os escravos e os ricos e nobres.

As famílias de posses começaram a dar maior importância ao interior das casas, às peças de mobiliário, à decoração dos cômodos e, o que é importante, também aos trajes cotidianos e caseiros. Guarda-roupas e cômodas ocuparam os lugares tomados antes por arcas e baús. Consoles, pianos, poltronas, sofás, lustres, grandes espelhos foram importados da Londres e de Paris; na mesa tornou-se usual a louça inglesa, e nas residências mais ricas adotaram-se banheiras em substituição às tinas para banho.

A presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro ofereceu à população oportunidades várias de divertir-se: festas, comemorações cívicas, procissões, desfiles, espetáculos teatrais mais frequentes, concertos. A mulher pôde sair de seu isolamento, de seu mundo restrito a tarefas domésticas; nas residências particulares havia saraus com recitais de piano e canto, danças e jogos; os parentes e vizinhos começaram a visitar-se com mais frequência.

A cadeirinha foi proibida de ser usada no centro da cidade para facilitar a passagem de veículos. Nas ruas, começaram a circular carruagens puxadas por cavalos. A cidade foi se tornando, assim, mais colorida, mais alegre e mais comunicativa. (...)

Daí por diante, os filhos de senhores de engenho, dos fazendeiros e dos estancieiros vieram educar-se nos centros urbanos e, aos poucos, as capitais das províncias se modificaram sob a influência das transformações do Rio de Janeiro. Mas o Rio, como capital do império, será o pólo de atração dos grandes proprietários de terras que, após a Independência, ocuparão os cargos políticos de maior projeção.


Notas:

  • [1] HOLANDA. Sérgio Buarque de. História do Brasil. São Paulo, Nacional... p 148-50).
  • [2] O Rio de Janeiro como cenário real. In: <https://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/historia-do-brasil/rio-de-janeiro/2474-o-rio-de-janeiro-como-cenario-real>. Acesso em: 13/02/2023.