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28 março 2024

Revolução dos Bichos (I)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

    Capítulo 1 [3]

O Sr. Jones, da Fazenda Solar, tinha trancado os galinheiros como toda a noite, mas estava bêbado demais para se lembrar de fechar as portinholas laterais. Com o círculo de luz de sua lanterna dançando de um lado para o outro, ele se arrastou pelo pátio, tirou as botas na porta dos fundos da casa, encheu um último copo de cerveja no barril da copa e subiu para a cama, onde a Sra. Jones já estava roncando.

Assim que a luz do quarto se apagou, houve uma agitação e um rebuliço em todas as instalações da fazenda. Durante o dia, havia se espalhado a notícia de que o velho Major, um porco da raça middle white magnífico, tivera um sonho estranho na noite anterior e desejava contá-lo aos outros animais. Todos combinaram que deveriam se encontrar em segurança no grande celeiro assim que o Sr. Jones estivesse fora do caminho. O velho Major (assim o chamavam, embora seu nome de exibição fosse Beleza de Willingdon) gozava de tanto respeito na fazenda que todos estavam prontos para perder uma hora de sono a fim de ouvir o que ele tinha a dizer.

O Major já estava acomodado sobre uma cama de palha em uma das extremidades do grande celeiro, em cima de uma espécie de plataforma elevada sob uma lanterna pendurada em uma viga. Ele tinha doze anos de idade e já se encontrava bastante rechonchudo, mas ainda era um porco majestoso, com uma aparência sábia e benevolente, apesar de suas presas nunca terem sido cortadas. Em pouco tempo os outros animais começaram a chegar e a se aconchegar, cada um à sua maneira. Primeiro vieram as três cachorras, Lulu, Mimi e Pipa, e depois os porcos, que se assentaram na palha imediatamente em frente à plataforma. As galinhas se empoleiraram nos parapeitos das janelas, os pombos se agitaram até as vigas, as ovelhas e as vacas se deitaram atrás dos porcos, logo começando a ruminar.

Os dois cavalos de carga, Golias e Esperança, entraram juntos, andando muito devagar e pisando com seus cascos peludos com muito cuidado para não machucar qualquer animal de pequeno porte que estivesse escondido na palha. Esperança era uma égua de criação robusta que se aproximava da meia-idade, sem ter recuperado a forma depois [de] seu quarto potro. O Golias era uma besta enorme, com mais de um metro e oitenta de altura, e tão forte quanto dois cavalos comuns juntos. Uma faixa branca em seu nariz lhe dava um ar um pouco estúpido e, de fato, ele não era tão inteligente assim, mas todos o respeitavam por conta de sua firmeza de caráter e de seu imenso talento para o trabalho. Depois dos cavalos vieram Muriel, uma cabra branca, e Benjamin, um burro. Benjamin era o animal mais velho da fazenda, e o mais mal-humorado. Raramente falava e, quando falava, geralmente era para fazer algum comentário cínico – ele dizia, por exemplo, que Deus lhe havia dado um rabo comprido para manter as moscas longe, mas que ele preferia não ter nem o rabo, nem as moscas. Solitário entre os animais da fazenda, nunca ria. Se lhe perguntassem por que, ele diria que não via graça em nada. Entretanto, sem admitir abertamente, dedicava algum tempo ao Golias. Os dois geralmente passavam seus domingos juntos no pequeno cercado além do pomar, pastando lado a lado sem falar nada. Os dois cavalos tinham acabado de se deitar quando uma ninhada de patinhos, que haviam se perdido de sua mãe, entrou no galpão, piando baixinho e vagando de um lado para o outro para encontrar algum lugar onde não corriam riscos de serem pisoteados. Esperança fez uma espécie de muro em torno deles com sua longa pata dianteira, onde os patinhos se aninharam e logo adormeceram. Mollie, a tola e linda égua branca que puxava a carroça do Sr. Jones, chegou no último instante, trotando delicadamente e mastigando um torrão de açúcar. Ela encontrou um lugar perto da frente e começou a balançar sua crina branca, na esperança de chamar a atenção para as fitas vermelhas que ornavam suas tranças. Por último veio a gata, que, como sempre, procurou o lugar mais quentinho e finalmente se espremeu entre Golias e Esperança; ela ficou lá, ronronando durante todo o discurso de Major sem ouvir uma palavra do que ele estava dizendo.

Agora todos os animais estavam presentes, exceto Moisés, o corvo dócil que dormia em um poleiro atrás da porta dos fundos. Quando Major viu que todos eles estavam confortáveis e esperavam atentos, limpou a garganta e começou:

Camaradas, vocês já ouviram falar do estranho sonho que eu tive ontem à noite. Mas chegarei ao sonho mais tarde. Tenho algo mais importante para dizer antes. Não creio, camaradas, que estarei com vocês por muitos mais tempo e, antes de morrer, sinto o dever de transmitir-lhes toda a sabedoria que adquiri. Tive uma vida longa e muito tempo para pensar enquanto estava deitado sozinho em minha baia e acho que posso dizer que compreendo a natureza da vida nesta terra, assim como de qualquer animal que está vivo sobre ela agora. É sobre isto que desejo falar com vocês.

E qual é, camaradas, a natureza desta nossa vida? Vamos encarar a verdade: nossas vidas são miseráveis, laboriosas e curtas. Nascemos, recebemos apenas a quantidade de comida necessária para manter nosso corpo respirando e aqueles de nós que são capazes são forçados a trabalhar até o último fio de nossas forças. No instante em que nossa utilidade chega ao fim, somos massacrados com uma crueldade hedionda. Nenhum animal da Inglaterra sabe o significado da felicidade ou do lazer depois do primeiro ano de vida. Nenhum animal da Inglaterra é livre. A vida de um animal é só miséria e escravidão: essa é a simples verdade.

Mas será que isto faz parte da ordem da natureza? Será que isso acontece porque nossa terra é tão pobre que não pode proporcionar uma vida decente para aqueles que nela habitam? Não, camaradas, mil vezes não! O solo da Inglaterra é fértil, seu clima é bom e capaz de fornecer alimento em abundância a um número enormemente maior de animais do que os que habitam nela hoje. Até mesmo a nossa fazenda seria capaz de sustentar uma dúzia de cavalos, vinte vacas, centenas de ovelhas – todos vivendo em um conforto e dignidade que agora estão quase além da nossa imaginação. Por que então continuamos nesta condição miserável? Porque quase todo o produto de nosso trabalho é roubado de nós pelos seres humanos. Essa, camaradas, é a resposta para todos os nossos problemas. Para resumir em uma palavra – o Homem. O Homem é o único e verdadeiro inimigo que temos. Basta remover o Homem de cena que o motivo primário da fome e do excesso de trabalho será abolido para sempre.

O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Ele não dá leite, não põe ovos, é muito fraco para puxar o arado, não consegue correr rápido o suficiente para pegar coelhos. No entanto, ele é senhor de todos os animais. Põe todos para trabalhar e devolve apenas o mínimo necessário para que não passemos fome. O resto ele guarda para si mesmo. Nosso trabalho enche o solo, nosso esterco o fertiliza, e ainda assim não há um de nós que possua mais do que sua própria pele. As vacas que vejo diante de mim: quantos milhares de galões de leite já deram neste último ano? E o que aconteceu com o leite que deveria ter criado bezerros robustos? Cada uma das gotas desceu pela garganta de nossos inimigos. E vocês galinhas, quantos ovos puseram neste último ano e quantos desses ovos já chocaram? Os demais foram todos para o mercado, para trazer dinheiro para Jones e seus homens. E você, Esperança, onde estão aqueles quatro potros que você carregou, que deveriam ser o apoio e o prazer de sua velhice? Cada um deles foi vendido com um ano de idade – e você nunca mais verá qualquer um novamente. O que você já ganhou em troca de quatro partos e de todo seu trabalho nos campos, exceto suas rações secas e uma baia?

E mesmo essas vidas miseráveis que levamos não têm permissão de chegar ao fim em seu tempo natural. Não resmungo por mim, pois sou um dos sortudos. Tenho doze anos de idade e tive mais de quatrocentos filhos. Assim é a vida natural de um porco. Mas nenhum animal escapa da cruel faca no final. Vocês, jovens porcos que estão sentados à minha frente, cada um de vocês vai gritar por suas vidas dentro de um ano. Esse horror eventualmente encontra todos nós – vacas, porcos, galinhas, ovelhas, todos. Nem os cavalos e os cães têm um destino melhor. Você, Golias, no mesmo dia em que esses seus grandes músculos perderem seu poder, será vendido por Jones para o abatedouro, onde vão cortar sua garganta e te transformar em comida de cão de caça. Quando os cães estiverem velhos e sem dentes, Jones amarrará um tijolo aos seus pescoços e os afogará na lagoa mais próxima.

Então não é óbvio, camaradas, que todos os males desta nossa vida brotam da tirania dos seres humanos? Livrem-se apenas do Homem, e os produtos de nosso trabalho seriam nossos. Quase da noite para o dia poderíamos ficar ricos e livres. O que devemos fazer? Trabalhar noite e dia, de corpo e alma, para depor a raça humana! Esta é a minha mensagem para vocês, camaradas: Revolução! Não sei quando essa Revolução chegará, pode ser daqui a uma semana ou daqui a cem anos, mas sei, tão certo quanto vejo esta palha debaixo dos meus pés, que mais cedo ou mais tarde será feita justiça. Fixem seus olhos nisso, camaradas, durante o tempo restante de suas vidas! E acima de tudo, passem esta minha mensagem àqueles que vierem depois de vocês, para que as gerações futuras continuem a luta até encontrarem a vitória.

E lembrem-se, camaradas, seu ímpeto nunca deve vacilar. Nenhum argumento deve levá-los ao engano. Nunca escutem quando lhes disserem que o Homem e os animais têm interesses em comum, que a prosperidade de um é a prosperidade dos outros. Tudo isso é mentira. O Homem não serve aos interesses de nenhuma criatura, exceto dele mesmo. E entre nós, animais, que haja perfeita unidade, perfeita camaradagem na luta. Todos os Homens são inimigos. Todos os animais são camaradas”.

Neste momento, houve um tremendo tumulto. Enquanto o Major falava, quatro grandes ratos haviam saído de seus buracos e estavam sentados em seus traseiros, ouvindo-o. Os cães de repente os viram e os ratos só se salvaram porque correram de volta para seus buracos. O Major levantou sua pata para pedir silêncio.

Camaradas”, disse ele, “aqui está um assunto que deve ser resolvido. As criaturas selvagens, como ratos e coelhos, são nossos amigos ou nossos inimigos? Vamos colocar o tema em votação. Proponho esta pergunta para os reunidos:

Os ratos são camaradas?” A votação foi realizada imediatamente, e foi acordado por uma maioria esmagadora que os ratos eram camaradas. Havia apenas quatro dissidentes, os três cães e a gata, que depois descobriu-se que tinha votado de ambos os lados. O Major continuou: “Estou chegando no fim da minha fala. Apenas repito, lembrem-se sempre de seu dever de inimizade para com o Homem e seus costumes. O que quer que ande sobre duas pernas é um inimigo. O que quer que ande sobre quatro patas, ou que tenha asas, é um amigo. E lembrem-se também que na luta contra os seres humanos, não devemos nos tornar parecidos com eles. Mesmo quando o derrotarem, não adotem seus vícios. Nenhum animal jamais deve viver em uma casa, dormir em uma cama, usar roupas, beber álcool, fumar tabaco, usar dinheiro ou se envolver em comércio. Todos os hábitos do Homem são maus. E, acima de tudo, nenhum animal deve jamais tiranizar sobre sua própria espécie. Fracos ou fortes, espertos ou simples, todos somos irmãos. Nenhum animal deve jamais matar nenhum outro animal. Todos os animais são iguais.

E agora, camaradas, vou lhes contar sobre meu sonho de ontem à noite. Não sou capaz de descrever esse sonho para vocês. Foi um sonho de como a Terra será quando o Homem tiver desaparecido. Mas isso me fez lembrar de algo que há muito tempo eu havia esquecido. Há muitos anos, quando eu era um porquinho, minha mãe e as outras porcas costumavam cantar uma velha canção da qual só conheciam a melodia e as três primeiras palavras. Eu já conhecia essa canção na minha infância, mas há muito tempo ela havia se perdido na minha cabeça. Na noite passada, no entanto, ela voltou para mim em meu sonho. E, mais ainda, as palavras da canção também voltaram, tenho certeza, palavras que foram cantadas pelos animais de muito tempo atrás e que se perderam na memória por gerações. Agora vou cantar essa canção, camaradas. Estou velho e minha voz está rouca, mas quando eu vos ensinar a melodia, vocês poderão cantá-la melhor vocês mesmos. Ela se chama ‘Animais da Inglaterra’”.

O velho Major limpou a garganta e começou a cantar. Como ele havia dito, sua voz era rouca, mas cantou suficientemente bem. Era uma melodia agitada, algo entre ‘Clementine’ e ‘La Cucaracha’. As palavras correram:

Animais da Inglaterra e da Irlanda
Animais daqui ou de acolá
Ouçam a notícia de esperança
Do notável tempo que vir
Cedo ou tarde o dia está chegando,
Em que o tirano cairá ao chão,
E nos férteis solos da Inglaterra
Somente os animais passearão.
Sem mais argolas em nossas ventas,
Sem novos pesos a carregar,
Freios e esporas enferrujando
E chicotes sem mais estralar.
Com mais fartura que em nossos sonhos:
Trigo e cevada, feno praiano,
Aveia, feijão e beterraba
Serão o nosso cotidiano.
Brilharão os campos da Inglaterra,
Com águas das mais puras matizes,
Mais doce ainda serão suas brisas
No momento em que estivermos livres.
Lutemos todos por esse dia
Mesmo que ao custo de nossa vida
Vacas, perus, porcos e cavalos
É a liberdade a nossa lida
Animais da Inglaterra e da Irlanda
Animais daqui ou de acolá
Ouçam a notícia de esperança
Do notável tempo que virá

Cantar esta canção deixou os animais selvagemente excitados. Quase antes de Major ter chegado ao fim, eles já começaram a cantá-la sozinhos. Mesmo os menos espertos já haviam captado a melodia e algumas das palavras, enquanto os mais espertos, como os porcos e cães, tinham decorado a canção inteira em poucos minutos. E então, após algumas tentativas preliminares, toda a fazenda se pôs a cantar “Animais da Inglaterra” em uníssono. As vacas mugiram, os cães uivaram, as ovelhas baliram, os cavalos relincharam, os patos grasnaram. Eles ficaram tão encantados com a canção que a cantaram cinco vezes seguidas, e poderiam ter continuado cantando a noite toda se não tivessem sido interrompidos.

Infelizmente, o alvoroço despertou o Sr. Jones, que saltou da cama, certo de que havia uma raposa no pátio. Ele pegou a arma que sempre estava em um canto de seu quarto, e atirou para a escuridão. As balas se enterraram na parede do celeiro e a reunião se desfez rapidamente. Todos fugiram para seu próprio abrigo. Os pássaros saltaram para seus poleiros, os animais se assentaram na palha e, de repente, toda a fazenda estava dormindo.

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Veja também o vídeo a seguir:



Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.

  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos?O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.

  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo I, pág. 2 a 15. Veja o livro completo aqui.

19 março 2024

Racionalismo e fé cristã: Leibniz

Por: Alcides Amorim


Sobre o Racionalismo, corrente filosófica que argumenta ser a razão a única forma para se chegar ao verdadeiro conhecimento, já falamos dos filósofos franceses René Descartes (1596-1650) e Blaise Pascal (1623-1662) e o do holandês Baruch Spinoza (1632-1677). O último fisósofo desta série, e o menos comentado, é o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716).

Para um estudo sobre Leibnz, veja o que escreve D. A. RAUSCH [1]:


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Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) foi filho brilhante de um professor de filosofia na Universidade de Leipzig. Leibniz inicialmente estudou Direito em Leipzig, mas em pouco tempo dirigiu sua atenção à filosofia e à matemática, interesses estes que tomariam toda sua atenção durante o restante de sua vida. De 1673 até o fim da vida, trabalhou para o Duque de Brunswick, reunindo e catalogando os vastos arquivos da Casa de Brunswick, enquanto escrevia uma história extensa da família. Sendo um homem de muitos interesses e contatos intelectuais, fundou a Academia Prussiana, em 1700, e procurou promover paz entre os teólogos protestantes e católicos romanos, bem como unir as igrejas protestantes em geral. Dedicou-se à causa da paz internacional.

Embora fosse um racionalista, Leibniz censurou a filosofia de Spinoza, denunciando-a como um ataque contra a imortalidade pessoal e por não deixar lugar para o propósito e a criatividade divinos. Ele não se satisfez com o dualismo de Descartes quanto à "substância espiritual” que misteriosamente interage com a "substância material", e não gostava do conceito mecanicista do universo, proposto por Newton. Leibniz considerava Deus como um Ser livre e racional, um Ser que poderia ter criado qualquer tipo de mundo que desejasse. Acreditava que Deus deve ter criado o melhor mundo possível, onde os homens são recompensados e castigados de acordo com a sua conduta. Deus não é responsável pelo mal. O mal é o resultado da liberdade humana. Leibniz tinha um otimismo teísta, que foi ridicularizado por Voltaire, mas que antecedeu o otimismo do Iluminismo em geral. Ele foi a primeira pessoa a empregar o termo "teodiceia" (no titulo de uma obra que publicou em 1710), explicando que a existência do mal é uma condição necessária para a existência do maior bem moral.

Em Monadologia (1720) – veja mais abaixo –, Leibniz concorda em que a matéria consiste de átomos, mas argumenta que além dos átomos físicos divisíveis, e por baixo deles, estão os átomos metafísicos indivisíveis. A estes centros espirituais de força ele chamou mônadas. Estas mônadas são independentes entre si, mas são levadas a uma organização racional mediante uma harmonia predeterminada, planejada pela mente e vontade de Deus. Seu sistema permitia que ele defendesse as provas tradicionais da existência de Deus (com modificações) e sustentasse alguns princípios escolásticos que haviam sido atacados por outros filósofos. Ele acreditava que a sua doutrina de substância podia ser harmonizada com a transubstanciação e a consubstanciação. O cristianismo, ele observou, era a soma de todas as religiões.

Leibniz é considerado o maior filósofo alemão do século XVII e uma das mentes mais universal de todos os tempos. Ele é uma indicação da grande diversidade dentro do racionalismo moderno inicial.


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Ainda sobre as ideias de Leibniz, Collin Brown [2] destaca:

  • Monadologia: principal obra de Leibniz, escrita em 1714 e publicada em 1720.

  • Mônadas: substancias simples, sem partes e sem janelas pelas quais alguma coisa pudesse entrar ou sair. São indivisíveis e sempre ativas. Cada mônada espelha a totalidade da existência.

  • As nômadas formam uma série ascendente, desde a inferior, que é quase nada, até superior, que é Deus.

  • Deus é um Ser Necessário, ou "a substância simples original, da qual todas as mônadas criadas e derivadas, são produzidas.


Notas:

  • [1] David A. Rausch (1947-2023) foi autor e professor Ph.D., na Universidade Estadual de Kent. Professor de História Eclesiástica e Estudos Judaicos no Seminário Teológico na Ashland University em Ohio, EUA… O artigo (estudo biográfico) Gottfried Wilhelm Leibniz usado (e adaptado) aqui é uma contribuição de Rausch à Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. II. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 422.
  • [2] BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 42 (texto adaptado).


Veja também o vídeo de Mateus Salvadori:

04 março 2024

Racionalismo e fé cristã: Spinoza

 Por: Alcides Amorim

Continuando nosso estudo sobre Racionalismo e fé cristã, Já vimos um pouco sobre dois filosófos racionalistas: René Descartes (1596-1650) e Blaise Pascal (1623-1662). Desta feita, queremos descatar a vida e pensamento de Benedito (ou Baruque) de Spinoza (1632-1677).

1. Spinoza: vida e obras [1]

Spinoza nasceu em Amsterdã (Países Baixos), filho de pais judeus – expulsos da Espanha –, numa época e lugar de liberdade do pensamento, um refúgio para quem buscava os direitos de opiniões. Ainda jovem Spinoza fez pleno uso destes direitos. Embora fosse criado como judeu, seu livre pensamento resultou na sua expulsão da sinagoga. E foi, segundo registros, um pioneiro na crítica biblica. Em 1663 publicou uma exposição de Descartes disposta de forma geométrica, Renati des Cartes principiorum Philosophiae Pars I et II. More Geometrico Demonstratae per Benedictum de Spinoza. Foi o único livro seu, publicado durante sua vida, que haveria de conter seu nome no frontispicio. Foi seguido em 1670 por um tratado da política e da religião, Tractatus Theologico-Politicus. Mas a obra principal da sua vida, que foi publicada postumamente e secretamente no ano da sua morte foi sua Ética, ou Ethica Ordine Geometrico Demonstrata. Esta também foi escrita (conforme sugere o título em Latim) numa forma quase geométrica, com definições, axiomas, proposições e provas...

Spinoza tem sido descrito, de vários modos, como um ateu pavoroso e como pessoa inebriada por Deus. Na realidade, era um panteísta. Mas não era o tipo de panteísta da imaginação romântica e poética. O dele era um panteísmo racional, sobriamente calculado a partir de premissas semelhantes àquelas de Descartes. Como este último, começa com ideias claras e distintas, noções que, segundo pensa ele, são evidentemente verdadeiras em si mesmas. A veracidade delas pode ser percebida meramente ao declará-las corretamente. Sua ideia básica é a da Substância que define como "aquilo que existe por si mesmo, e que é concebido por si mesmo; ou seja, algo cuja concepção não exige qualquer outra coisa para sua formação" Diz-se que esta ideia é verdadeira pela sua evidência interna. "Se alguém disser, portanto, que tem uma ideia clara e distinta, ou seja, verdadeira, da Substância, e mesmo assim, duvida que semelhante Substância existe, é como aquele que diz que tem uma ideia verdadeira e que, mesmo assim, pensa que ela talvez seja falsa." A partir daqui, passa a argumentar que há uma só Substância, e que esta Substância pode ser considerada ou como sendo Deus ou como sendo a natureza. Pois, “Tudo quanto existe, está em Deus, e sem Deus nada pode existir, nem se pode conceber dele”.

No seu sentido literal, esta última proposição poderia ser entendida num sentido teístico cristão. Mas Spinoza logo deixa claro que ele não pensa assim. Deus, pois, não existe fora da natureza, mas, sim, dentro dela. "Deus é a causa imanente e não transiente de todas as coisas." Quer digamos "Deus", quer digamos "natureza", estamos realmente falando acerca da mesma coisa. A diferença realmente é de ênfase. Falar em Deus chama a atenção à causa, falar na natureza indica o produto acabado, por assim dizer.

O ensino de Spinoza foi desenvolvido com detalhes consideráveis. No decurso do seu argumento negava a totalidade do livre arbítrio, e também negava que Deus pudesse amar aos homens de modo pessoal. O sistema inteiro é tão impessoal e mecânico quanto um teorema. Mas, a despeito da sua forma que parece rigorosa, o argumento está longe de ser estanque. A parte das falhas no seu desenvolvimento, o sistema inteiro falha porque Spinoza não conseguiu estabelecer a validade das suas definições e procedimentos.

Apesar disto, Spinoza continuou a fascinar os pensadores da Europa continental até mesmo quando romperam com sua filosofia específica. A ideia de um sistema que abrangia a tudo, juntando Deus e o homem, e explicando tudo em termos de uma única realidade espiritual, deslumbrava os idealistas do século XIX, assim como a Lorelei fascinava com bruxarias os navegantes no baixo Reno. Enfeitiçados pela perspectiva, precipitavam-se para a frente sem prestar atenção às rochas mal escondidas debaixo da torrente de ideias. Pouco importava se o sistema podia ser harmonizado com o cristianismo histórico e com a religião, conforme realmente eram experimentados e praticados. Tanto pior para o cristianismo histórico. Onde os fatos podiam ser encaixados, tanto melhor. Mas, senão, o sistema podia dispensar os fatos. Até hoje, a brilhante perspectiva não perdeu totalmente seus encantos. Em Honest to God, John Robinson ecoou de novo o louvor melancólico que Tillich dirigiu à ideia de Spinoza, de que Deus existe, não sobre e acima das coisas, mas dentro delas como "o fundamento criador de todos os objetos naturais".

2. O Deus de Spinoza [2]

A doutrina defendida por Spinoza era conhecida como monismo” (do grego monos, que quer dizer “um”). Inspirando-se em Descartes, Spinoza se propôs a oferecer uma interpretação da realidade baseada nos princípios do raciocínio matemático. Isto pode ver-se no próprio título de sua principal obra, Ética demonstrada segundo a ordem da geometria, que foi publicada postumamente porque seu autor sabia que as opiniões expressadas nela seriam condenadas. Com efeito, o modo como Spinoza resolve o problema da comunicação das substâncias é negando que haja na realidade mais que uma substância. A realidade é somente uma (daí o nome de “monismo”). O pensamento e a extensão não são atributos de uma substância única, como a redondeza e a cor são atributos da mesma maçã. E o mesmo pode-se dizer de Deus e o mundo, que são apenas atributos dessa mesma realidade única...

Como afirmamos em outro momento, os racionalistas não eram homens sem religião, mas obviamente, escorregavam-se no modo como interpretavam os textos bíblicos e/ou a fé cristã. E como era de se esperar, as doutrinas do racionalista Spinoza não foram bem acolhidas nos círculos religiosos, pois, de fato, negavam que existira um Deus à parte e por cima da natureza física ou que esse Deus fora criador do mundo. Tendo uma visão monista ou panteísta, o certo é que a ideia de Spinoza sobre Deus fugia muito do que os teólogos cristãos afirmam sobre o conceito de Deus nas Escrituras. Aliás, ele pregava a antiteologia.

Entendemos como falsa a ideia panteísta de Spinoza de que Deus é tudo, e tudo é Deus”. A Bíblia fala claramente de Deus como algo separado da Sua criação. Deus é Criador do mundo e tudo o que nele existe, mas o que existe, e que foi criado por Deus são coisas separadas de Deus. Veja:

“O panteísmo declara que somente Deus existe; tudo é Deus. Isso contradiz descaradamente muitos conceitos centrais apresentados na Bíblia. Deus diz explicitamente que Ele não é a mesma coisa que o homem (Números 23:19), o universo é uma coisa criada (Gênesis 1:1), o homem é feito à Sua imagem (Gênesis 1:27) e assim por diante. As Escrituras descrevem o homem e Deus falando um com o outro (Gênesis 3:9-10; Êxodo 3:4-5), Deus julgando o homem (Isaías 2:4; 33:22) e Deus separando-se de certos seres (Apocalipse 20: 12-15). Todo o conceito de oração implica que há um ‘outro’ para ouvir a oração (Mateus 6:9). É por isso que os verdadeiros panteístas não oram; eles meditam, pois o panteísmo nega que haja um ‘outro’ com quem se comunicar. (…) A Escritura é clara: Deus não é o mesmo que a Sua criação. Ele certamente não é o mesmo que o homem. Obscuro ou não, o panteísmo cristão é, em última análise, outro exemplo de má interpretação da Bíblia e de uma lógica ainda pior...” [3]

Bem, como filósofo racionalista Spinoza tentava compreender os atos humanos. Mas também tinha fé, porém acreditava num Deus panteísta do qual certamente não o compreendia verdadeiramente. De qualquer forma, sua maneira de crer em Deus serviu de referência para o grande cientista Albert Einstein. Ao ser perguntado se ele cria em Deus, Einstein disse “sim”, creio no “Deus de Spinoza” [4]. E sobre isto veja também o vídeo abaixo...

Notas / Referências bibliográficas:

  • [1] BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 37 a 40 (texto adaptado).
  • [2] GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos dogmas e das dúvidas – Vol. 8. São Paulo: Vida Nova, 1984, pág. 131 a 132 (texto adaptado).
  • [3] O que é o panteísmo cristão?In: <https://www.gotquestions.org/Portugues/panteismo-cristao.html>. Acesso em: 01/03/2024.









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Revolução dos Bichos: características gerais

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