Translate

25 outubro 2023

Humanismo Secular

Humanismo Secular

Por David W. Gill

Secularismo [1]


Na epístola de 2Coríntios (4.4) encontramos a expressão “deus deste século”, uma referência que sabemos, pelo contexto, tratar-se de um deus (com “d” minúsculo) capaz de cegar o entendimento das pessoas neste momento ou nesta forma de existência atual. Em Tito, Paulo afirma também que este “presente século” é cercado de impiedade, concupiscências mundanas etc., vícios que devemos renunciá-los(2.12). É neste sentido que gostaria de refletir sobre dois termos “secularização” e “laicização”, palavras similares que destacaremos em duas postagens.

Nesta, quero fazer uso quase na íntegra e com algumas notas adicionais, do texto de David W. Gill [2], e, no final, insiro para nossa reflexão o vídeo "Desafios para o Jovem Cristão em uma sociedade secularizada".

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Humanismo secular é o modo de vida e de pensamento que é seguido sem referência a Deus ou à religião. A raiz latina saeculum referia-se a uma geração ou a uma era. "Secular" velo a significar "pertencente a esta era, mundana" [3]. Em termos gerais, o secularismo envolve uma afirmação das realidades imanentes deste mundo, lado a lado com uma negação ou exclusão das realidades transcendentes do outro mundo. É uma cosmovisão e um estilo de vida que se inclina para o profano mais do que para o sagrado, o natural mais do que o sobrenatural. O secularismo é uma abordagem não-religiosa da vida individual e social.

Historicamente, "secularização" referia-se primeiramente ao processo de transferir os bens da jurisdição eclesiástica para o estado ou outra autoridade não-eclesiástica. Nesse sentido institucional, "secularização ainda significa a redução da autoridade religiosa formal (e.g., na educação). A secularização institucional tem sido alimentada pelo colapso de um cristianismo unificado desde a reforma [4], por um lado, e pela racionalização [5] cada vez maior da sociedade e da cultura desde o Iluminismo até à sociedade tecnológica moderna, por outro. Alguns analistas preferem o termo “laicização” [assunto que abordaremos num outro momento] para descrever essa secularização institucional da sociedade, ou seja, a substituição do controle religioso oficial pela autoridade não-eclesiástica.

Uma segunda maneira de se entender "secularização está ligada a uma mudança nos modos de pensar e viver, para longe de Deus e em direção a este mundo. O humanismo renascentista [6], o racionalismo iluminista [7], o poder e a influência cada vez maiores da ciência, o colapso das estruturas tradicionais (e.g., da família, da igreja, da vizinhança), a teorização da sociedade e a competição oferecida pelo nacionalismo, o evolucionismo e o marxismo, todos têm contribuído para aquilo que Max Weber chamou de “desencantamento” do mundo moderno.

Embora as secularizações institucional e ideológica tenham avançado simultaneamente no decurso destes últimos séculos, o relacionamento entre as duas não é causalmente exato nem necessário. Sendo assim, até mesmo num ambiente medieval, constantiniano, formalmente religioso no seu caráter, os homens e mulheres não estavam imunes a terem sua vida, seu pensamento e sua obra moldados por considerações seculares deste mundo. Da mesma forma, numa sociedade institucionalmente secularizada (laicizada) é possível aos indivíduos e grupos viverem, pensarem e trabalharem de modos que são motivados e orientados por Deus e por considerações religiosas.

A secularização, portanto, é um fato histórico, e tem seus prós e contras. O secularismo, no entanto, como uma filosofia abrangente da vida, expressa um entusiasmo sem reservas pelo processo da secularização em todas as esferas da vida. O secularismo carrega uma falha fatal pelo seu conceito reducionista da realidade, que nega e exclui Deus e o sobrenatural numa fixação míope naquilo que é imanente e natural. Na discussão contemporânea, o secularismo e o humanismo são frequentemente vistos como uma só dupla que forma o humanismo secular – uma abordagem da vida e da sociedade que glorifica a criatura e rejeita o Criador. O secularismo, como tal, constitui-se num rival do cristianismo.

Os teólogos e filósofos cristãos têm se engalfinhado com o significado e o impacto da secularização. Friedrich Schleiermacher [8] foi o primeiro teólogo que procurou fazer uma formulação radical do cristianismo em termos dos temas humanistas e racionalistas da Renascença e do Iluminismo. Embora seus esforços tenham sido brilhantes e extremamente influentes no desenvolvimento da teologia, os seus críticos fizeram a acusação de que Schleiermacher, ao invés de salvar o cristianismo, traiu aspectos cruciais da fé ao redefinir a religião em termos de sentimentos de dependência humana.

Nenhuma discussão contemporânea do cristianismo e do secularismo pode deixar de lidar com as Cartas e Papéis da Prisão escritas por Dietrich Bonhoeffer. Primeiramente pelo fato de a obra ser fragmentária e incompleta, os conceitos de Bonhoeffer tais como o “mundanismo cristão”, o “homem que ficou maior de idade”, e a necessidade de uma “interpretação não-religiosa da terminologia bíblica” têm sido sujeitados a debates calorosos quanto ao seu significado e às suas implicações. Friedrich Gogatten (The Reality of Faith – “A Realidade da Fé” – 1959), Paul van Buren (The Secular Meaning of the Gospel – “O significado Secular do Evangelho” – 1963), Harvey Cox (A Cidade do Homem – 1965), Ronald Gregor Smith (Secular Christianity – "O Cristianismo Secular – 1966), e os teólogos da “morte de Deus" são exemplos daqueles que seguiram o único rumo possível ao reformular o cristianismo em termos de um mundo secular, Kenneth Hamilton (Life in One's Stride – "Levando a Vida – 1968) nega que esta seja a melhor maneira de interpretar Bonhoeffer, e argumenta que aquele teólogo alemão nunca vacilou na sua convicção básica e ortodoxa.

Embora as discussões entre os teólogos durante as décadas de 1950 e de 1960 tendessem a focalizar a adaptação da teologia cristã à secularização, as décadas de 1970 e de 1980 testemunharam uma nova resistência vigorosa ao secularismo em muitos ambientes. Jacques Ellul (The New Demons – "Os Novos Demônios – 1975 foi uma das muitas vozes que argumentaram que o secularismo por si só era uma forma de religião, e que era antagonista tanto do cristianismo quanto do humanismo cristão verdadeiro. Francis A. Schaeffer (How Should We Then Live? – "Como, pois, Devemos Viver? – 1976) e outros fundamentalistas e evangélicos conservadores atacaram o humanismo secular como o grande inimigo contemporâneo da fé cristã.

Da perspectiva da teologia bíblica cristã, o secularismo é culpado porque "mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura, em lugar do Criador” (Rm 1.25). Tendo excluído o Deus transcendente como o absoluto e o objeto da adoração, o secularista inexoravelmente torna o mundo do homem e da natura absoluto, e objeto da adoração. Em termos bíblicos, o Deus sobrenatural criou o mundo e sustenta a sua existência. Este mundo (o saeculum) tem valor porque Deus o criou, continua a preservá-lo, e age para redimi-lo. Embora Deus seja Senhor da história e do universo, Ele não pode ser identificado com um ou outro (o panteísmo). Homens e mulheres existem em liberdade e responsabilidade diante de Deus e para o mundo. Mordomia e parceria definem o relacionamento que o homem tem com Deus e o mundo.

O caráter sacro e teocrático do Israel antigo é modificado com a vinda de Cristo. Com a obra de Cristo, a cidade e a nação são secularizadas (dessacralizadas), e a Igreja, como templo do Espirito Santo, agora é sacralizada. O relacionamento entre a Igreja e a sociedade ao redor não é definido em termos de uma missão no sentido de dessacralizar a sociedade pela imposição de um governo eclesiástico sobre ela. O relacionamento é de serviço e testemunho, de proclamação e cura, tudo com amor. Nesse sentido, pois, a secularização da sociedade é uma vocação cristã. Isto quer que a sociedade não deve ser considerada divina ou absoluta, mas uma coisa histórica e relativa. Somente Deus é sagrado e absoluto de modo final. Reestabelecer a natureza sagrada de Deus, no entanto, importará em atribuir a este mundo seu valor correto e relativo.

É claro que a distinção entre o sagrado e o secular não é um abismo que não possa ser ligado. Da mesma maneira que Deus fala e age no saeculum, os cristãos devem falar e agir de modo criador e redentor. Isto importa em não abandonar o mundo secular ao secularismo. Em todas as circunstâncias, a vida cristã no mundo secular deve ser vivida sob o senhorio de Jesus Cristo e em obediência à vontade de Deus e não à vontade do mundo. E em situações tais como as que existem nos Estador Unidos onde o povo em geral pode votar e é convidado a dar sua opinião na política, na educação pública, nos serviços sociais e assim por diante, os cristãos podem ser operantes para garantir que a Palavra de Deus seja ouvida e tenha seu devido lugar entre as muitas outras vozes que constituirão a totalidade heterogênea. Insistir que a Palavra de Deus deva ser imposta a todos sem exceção é cair de novo no autoritarismo antibíblico. Deixar de articular a Palavra de Deus no saeculum, no entanto, é ceder diante de um secularismo que, ao excluir o Criador, somente poderá levar à morte.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Notas / Destaques:

  • [2David W. Gill: “PhD na Universidade do Sul da Califórnia. Deão e Professor Adjunto de Ética Cristã, New College Berkeley, Califórnia, EUA”. O texto Secular, Humanismo Secular, a seguir, é uma contribuição à Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, (Vide Referência bibliográfica).

  • [3Século ou geração (cf 2Co 4.4) estão relacionados à este geração mundana e a frase "deus deste mundo" (ou "deus deste século") “… indica que Satanás é a maior influência sobre os ideais, opiniões, metas, desejos e pontos de vista da maioria das pessoas. Sua influência também abrange filosofias, educação e comércio mundiais. Os pensamentos, ideias, especulações e falsas religiões do mundo estão sob o seu controle e surgiram a partir de suas mentiras e enganos…” (in: <Como Satanás é o deus deste mundo…?>. Acesso em: 24/10/2023.

  • [4Um dos pontos doutrinários por Lutero, o principal reformador protestante é o livre exma de Bíblia. Este princípio trouxe pontos positivos, mas também o risco de uma série de interpretações errôneas acerca de alguns dogmas ou doutrinas do cristianismo. O sola scriptura, por exemplo, foi e é motivo de críticas por parte da Igreja Católica aos protestantes, além da sociedade intelectual secularizada.

  • [5O pai do racionalismo é René Descartes, que com seu slogan “penso, logo existo” tentou incutir na mente das pessoas a ideia de tudo analisar pela busca da razão. A Igreja Católica chega até proibir alguns de seus livros, em especial Meditações metafísicas, por adentrar em assuntos teológicos que contrariavam os ensinamentos da Igreja. Parte de um texto que li há mais de 40 anos atrás, de Colin Brown, diz: “… Num dos seus momentos mais especulativos, o Arcebispo William Temple certa vez foi tentado a perguntar a si mesmo qual foi o momento mais desastroso na história da Europa. A resposta que lhe ocorreu foi: o dia em que Descartes se encerrou na sua estufa [quando escreveu sua principal obra ‘Discurso do método’]. Ao dizer isto, Temple não estava pensando tanto no conceito que Descartes tinha de Deus, mas, sim, na tendência à qual deu início no pensamento europeu…” (BROWN, Colin. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 39/40.

  • [6] Ênfase no papel do homem como personagem central da arte, literatura, ciência etc., que o racionalismo, mais à frente, dá continuidade...

  • [7] “Embora a descrença na existência de Deus seja percebida no mundo em todas as épocas, o ateísmo se tornou mais evidente a partir do nascimento do iluminismo, movimento que contribui para a elevação da ciência e consequente enfraquecimento da religião.” (In: <Ateísmo moderno>. Acesso em:25/10/2023.

  • [8Nos campos Filosófico-Teológicos, Schleiermacher é chamado de “pai do liberalismo”. “À luz de seus pressupostos filosóficos fundamentais, bem como dos reflexos desses mesmos pressupostos sobre sua teologia, pode-se vislumbrar as bases do liberalismo que, desenvolvendo-se desde os tempos do Iluminismo, passou a representar uma forte ameaça contra a ortodoxia até os nossos dias…”.In: <O Tríplice Fundamento Filosófico da Teologia de Schleiermacher/>. Acesso em: 25/10/2023.


Fonte:

  • GILL, David. W. Secular, Humanismo Secular. São Paulo. In: In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. III. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 364 a 366 (Texto adaptado).
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Veja também o vídeo a seguir:


21 outubro 2023

Bispos e Papas: (2) Anacleto

 

Bispos e Papas: (2) Anacleto

Por: Alcides Barbosa de Amorim

Bispo Anacleto [1]

Prosseguindo nossa tarefa de breves estudos acerca dos bispos e/ou papas, quero destacar neste post a pessoa de Anacleto, também chamado de Cleto ou Anencleto. Consideraremos o primeiro nome, Anacleto, para todos os efeitos.

Como já dissemos no post O Bispo Lino, consideraremos o papado a partir de Leão I (440-461). Antes disso, ficamos apenas com o título de bispos romanos àqueles “papas”, tidos pela Igreja Católica como sucessores de Pedro.

Sobre Anacleto, encontramos na História Eclesiástica de Eusébio que “depois que Vespasiano reinou cerca de dez anos, foi sucedido por seu filho Tito”1, e que no “segundo ano de seu reinado, Lino, bispo da igreja de Roma, que se mantivera no ofício por cerca de doze anos, transferiu-o a Anencleto…” (Idem). No capítulo XIV, Eusébio afirma que Anacleto foi bispo de Roma “durante doze anos”.

Vale destacar que no primeiro século do cristianismo, que também é o de Anacleto, não havia padrão uniforme de organização eclesiástica. “Algumas Igrejas eram governadas por grupos de presbíteros ou bispos, auxiliados pelos diáconos”2. Estes bispos eram pastores que dirigiam cada qual a sua igreja e não várias, como ocorre no século II. Em meados do deste século (II), “… começou a surgir uma organização que depois veio a ser conhecida como Igreja Católica. O termo ‘católica’ quer dizer universal. Esta foi uma federação ou associação de igrejas que eram ligadas por um acordo formal, com três aspectos…” (Idem, pág. 47): 1) unidade espiritual e também exterior, numa só forma forma de governo centralizada na pessoa de um bispo; 2) adoção de um só credo, substancialmente o Credo dos Apóstolos; e 3) adoção de uma só coleção de livros do Novo Testamento. 

Como Anacleto viveu ainda no primeiro século antes da padronização ou “catolização” eclesiástica, entendemos que ele era um líder sem a importância ou destaque que a Igreja Católica lhe atribui. As informações a seguir3 sobre sua pessoa são encontradas em bibliografia católica. Segundo informado, por exemplo, pela Arquidiocese de São Paulo, sobre Anacleto:

  • seus dados biográficos se embaralharam ao serem transcritos século após século;

  • teve sua vida contada como se ele "fosse dois": papa Anacleto e papa Cleto;

  • governou entre os anos 76 e 88;

  • nasceu em Roma e, durante o seu pontificado, o imperador Domiciano desencadeou a segunda perseguição contra os cristãos;

  • mandou construir uma memória, isto é, um pequeno templo na tumba de São Pedro;

  • morreu mártir no ano 88 e foi sepultado ao lado de São Pedro, sendo substituído por Clemente I (88-97)…

Bem, não se sabe a data do nascimento de Anacleto, mas de sua morte, ocorrida em 92, e que foi bispo entre parte nos anos 70 e 80, é possível – ou não – que ele tenha conhecido o apóstolo Pedro, Paulo, João e outros, no entanto não temos registros sobre isto nem seu nome aparece nos escritos bíblicos. Ele entra na lista dos papas inserida no Liber Pontificalis, uma obra publicada por volta de 536, que trata sobre uma biografia dos “papas” de Pedro até Estêvão V, no século XV4. Mas sua posição de bispo, como representante direto de Deus e da Igreja como vai dizer Inácio de Antioquia, vai aparecer provavelmente um pouco depois de sua morte. Segundo Inácio “..., pois é evidente que temos de respeitar o bispo da mesma maneira como respeitamos o próprio Senhor"5, posição que ocupa o início do clericalismo e da sucessão apostólica que tem início em meados do século seguinte.

Veja também:


Notas / Referências bibliográficas:

  • [1] CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica: os primeiros quatro séculos da Igreja Cristã, (Livro 3, Cap. XIII).

  • [2] NICHOLS, Robert Hastings. História da Igreja Cristã. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 2000, pag. 46/47.

14 outubro 2023

Sionismo e sionismo cristão

 Sionismo e sionismo cristão

Por Alcides B. de Amorim



Sobre a relação da Igreja e a sociedade mundial com Israel, já destacamos aqui algumas postagens, como: A Igreja e Israel no Novo Testamento; Semitismo, Antissemitismo e Xenofobia; As Setenta Semanas de Daniel… e agora destaco o que é sionismo e porque a maioria dos cristãos o defende. E para tanto, quero utilizar os textos quase na íntegra de D. A. Rausch [1], um resumo de Fritz May e o vídeo de Marcos Granconato.

. . . . . . . . . . . . .

1. O que é sionismo


Este termo [sionismo] refere-se à filosofia da restauração do povo judeu a "Sião”, que no começo da história judaica era identificado com Jerusalém. Depois de os romanos expulsarem os judeus de Jerusalém em 135 d.C., essa ideia de "Sião" nunca se separou completamente do pensamento judaico, e as orações dos judeus (tanto individuais como coletivas) enfatizavam o desejo de voltarem à sua pátria. O judeu religioso sonhava com um período final de derradeira libertação da sua dispersão entre as nações e de uma volta à Terra Prometida. Um pequeno número de judeus sempre tinha permanecido na Palestina, e os números foram aumentados pelos refugiados da Inquisição Espanhola em 1492. Apesar disso, para muitos judeus, a noção de uma volta física para a Palestina parecia um sonho ilusório e até mesmo impossível.

Durante o século XIX, a ascensão da literatura hebraica, do nacionalismo judaico, e, principalmente, de um novo surto de anti-semitismo, estimulou grupo como Hoveve Zion (“Amantes de Sião") a levantarem recursos financeiros para os judeus que se estabeleciam na Palestina. Os pogroms na Rússia czarista depois de 1881 tiveram como resultado milhares de refugiados tomados pelo pânico, que perceberam que a Palestina seria seu melhor lugar de refúgio. As colonias agrícolas eram patrocinadas, também, por benfeitores como o Barão Edmond de Rothschild.

O sionismo pré-moderno enfatizava um tema religioso e uma colonização pacifica do território. Com a publicação de Der Juden-staat ("O Estado Judaico") por Theodor-Herzl em 1896, no entanto, nasceu o sionismo politico e, com ele, o conceito moderno do sionismo. Abriu-se uma nova era na história Judaica quando Herzl, um jornalista austríaco, deixou a defesa da assimilação Judaica adotando a crença de que o anti-semitismo seria inevitável enquanto a maioria do povo judaico vivesse fora da sua pátria. Ele expunha esforços políticos, econômicos e técnicos que, segundo acreditava, eram necessários para criar um Estado judaico que funcionasse. O primeiro Congresso Sonista reuniu-se em 1897, e mais de duzentos delegados do mundo inteiro adotaram o Programa de Basileia. Esse programa ressaltava que o sionismo queria criar uma pátria legalizada na Palestina para o povo judeu, e que promoveria a colonização, criaria organizações mundiais para unir os judeus, fortaleceria a consciência nacional judaica e obteria o consentimento dos governos do mundo.

O pensamento de Herzl era puramente secular; na realidade, ele era agnóstico. A maioria dos seus seguidores, no entanto, eram judeus ortodoxos, do sudeste da Europa, e embora Herzl se opusesse a transformar o sionismo numa sociedade cultural, religiosa ou de colonização gradativa, fez concessões a seus defensores. Essa aliança frágil indica as muitas facetas do sionismo durante o século XX. Para Herzl, o alvo principal do sionismo era obter uma carta magna politica que concedesse aos judeus os direitos de soberania na sua pátria. Pouco depois da sua morte em 1904, aproximadamente setenta mil judeus já tinham se estabelecido na Palestina. Uma maioria (pelo menos 60 por cento) habitavam nas cidades. O sionismo foi transformado num movimento de massa e poder politico durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1917, os britânicos promulgaram a Declaração Balfour [2], que favoreceu o estabelecimento de um lar nacional dos judeus na Palestina.

O sionismo era um movimento minoritário e encontrava oposição mesmo dentro da comunidade judaica. O Judaísmo Reformado dos Estados Unidos, por exemplo, acreditava que os judeus não tinham condições de enfrentar os rigores da Palestina, onde grassavam a fome e a peste. Além disso, alegavam que a Palestina já não era um país judaico, e que os Estados Unidos representavam "Sião". Segundo esses judeus não-sionistas, o sionismo estava lesando a harmonia do judaísmo e apenas servia para provocar a inimizade dos russos. Somente o horror do assassinato em massa de cem mil judeus por unidades do exército russo entre 1919 e 1921, e, finalmente, o horror do holocausto nazista durante a Segunda Guerra Mundial, quando foram exterminados seis milhões de judeus, reuniu os sionistas e os não-sionistas no apoio à Palestina como uma república judaica – um porto seguro para os perseguidos e os desabrigados. Em novembro de 1947, um plano de dividir a região para criar um estado judaico, endossado tanto pelos Estados Unidos como pela União Soviética, foi adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas. O Estado de Israel foi formalmente reconhecido 14 de maio de 1948, quando terminou o domínio britânico. À medida que o novo Estado se fortalecia, a definição do sionismo, e aquilo que deve ser seus alvos propósitos atuais, têm sido debatidos calorosamente dentro da própria Organiza Sionista Mundial. A partir de 1968, a ênfase da aliyah (a migração pessoal para Israel) tem sido entendido por muitos como um alvo final, ainda que controvertido.

O sionismo tem sido ajudado nos séculos XIX e XX pelos "sionistas cristãos”. Por causa da sua escatologia pré-milenista, os evangélicos fundamentalistas têm dado apoio especial ao retorno do povo judaico a Israel, e ao próprio Israel no século XX.

2. Sionismo Cristão

Os cristãos têm desempenhado um papel importante no apoio ao retorno do povo judeu a "Sião". Dentro da tradição milenista, a convicção de que s judeus voltariam à Palestina veio a ser um dogma importante. À medida que pré-milenismo foi conquistando terreno durante o século XIX, formando o coração do movimento fundamentalista antigo, os adeptos não somente acreditavam que o povo Judeu voltaria, como também se pronunciavam abertamente a favor do direto de os judeus serem reconduzidos à sua pátria original. Até mesmo antes de Der Judenstaat de Theodor Herzl, o evangélico fundamenta-lista William E._Blackstone [3] propunha o reestabelecimento de um Estado Judaico e circulou uma petição conclamando os Estados Unidos a devolverem a terra da Palestina ao povo judeu. A Petição de Blackstone de 1891 foi assinada por 413 líderes cristãos e judeus de destaque, e foi distribuída às principais nações do mundo através do Departamento do Estado. Durante a Primeira Guerra Mundial, Blackstone persuadiu o Presidente Woodrow Wilson a fazer mais uma petição, e em 1918 foi convidado a falar diante de uma concentração sionista em Los Angeles.

Outros cristãos, tais como William H. Hechler, amigo intimo de Herzl, trabalhavam diligentemente para promover o sionismo político como a solução final para a questão judaica. Hechler tentava encorajar chefes de estados (inclusive o sultão turco que controlava a Palestina) a apoiarem as propostas de Herzl, e acompanhou Herzi à Palestina em 1898 para um encontro com o kaiser. O apoio de tais sionistas cristãos em muitos países influenciou a ação politica, e mesmo a Declaração Balfour de 1917 foi o resultado de atividade religiosa e não apenas politica. Os sionistas cristãos, como indivíduos, provinham de uma ampla gama de tradições teológicas. Até mesmo o protestantismo liberal, que historicamente se opunha ao sionismo, contribuiu com clérigos através de organizações como o Concilio Cristão para a Palestina durante a Segunda Guerra Mundial.

Ainda assim, são os evangélicos fundamentalistas que, por causa da sua escatologia pré-milenista, têm dado mais apoio à restauração do povo judeu à terra de Israel, e à própria nação de Israel no século XX. Na sua revista Our Hope ("Nossa Esperança"), Arno C. Gaebelein defendia, desde 1894 até 1945, não somente o retorno do povo judeu à Palestina, como também que eles tinham um direito inerente de posse aquela terra. Quando Israel tornou-se um Estado em 1948, os cristãos que enfatizavam as profecias consideravam que se tratava de um milagre de Deus. Na década de 1960 o protestantismo liberal fazia apelos a favor da "internacionalização" da cidade de Jerusalém, mas o evangélico fundamentalista declarava que a Bíblia a dava ao povo judeu. Depois da Guerra de Seis Dias em 1967, a Concilio Nacional de Igrejas condenou o fato de Israel ter anexado a Cidade Velha de Jerusalém. Por outro lado, os evangélicos fundamentalistas regozijavam-se e insistiam que Deus tinha feito com que o povo Judaico saísse vencedor, a despeito da opressão e dos obstáculos impostos pelo mundo.

Em 30 de outubro de 1977, Billy Graham deu destaque a décadas de apoio a Israel, ao fazer uma preleção diante da reunião do Conselho Executivo Nacional do Comitê Judaico Norte-Americano, quando conclamou os Estados Unidos a se rededicar à existência e à segurança de Israel. No Congresso Bicentenário da Profecia em Filadélfia no ano anterior, uma proclamação que apoiava Israel tinha sido assinada por onze evangélicos fundamentalistas de destaque. Recebeu, então, sete mil assinaturas adicionais rapidamente, e foi apresentada ao embaixador do Estado de Israel. Declarações de apoio também tem aparecido em anúncios de páginas inteiras nos jornais – vários no jornal New York Times.

Esse inequívoco sionismo cristão não tem passado sem receber ataques. Tem sido criticado mesmo dentro do evangelicalismo, como uma filosofia politica errônea baseada numa interpretação espúria da Bíblia que declara que a Palestina moderna é o território especial dos judeus. Esses criticos argumentam que o sionismo cristão desconsidera totalmente os direitos do povo árabe palestino, e que os judeus, já há muito tempo, perderam seu direito à Terra Prometida por causa da sua infidelidade.

. . . . . . . . . . . . .

O que são sionistas cristãos (destaques)?

“Sionistas cristãos são pessoas:

  • que creem no Senhor Jesus Cristo.
  • que têm raízes espirituais inseparavelmente ligadas com o povo de Israel.
  • que promovem e incentivam a volta do povo judeu a Sião com todos os meios disponíveis (oração, recursos, diálogo).
  • que amam e visitam Jerusalém e a terra de Israel (Sião), para aprofundarem a sua fé e sua relação com Israel.
  • que se empenham pelo direito à existência do povo e da terra de Israel entre o Mediterrâneo e o Jordão e que demonstram amor e solidariedade para com pessoas judias (Is 62.1ss).

Um pouco mais sobre a base do sionismo, em:


Notas:

  • [1David A. Rausch: Professor PhD na Universidade Estadual de Kent. Professor de História Eclesiástica, Universidade de Guelph, Ontário, Canadá. "Ele serviu como presidente do Departamento de História e Ciência Política da Ashland University… e escreveu centenas de artigos e pelo menos trinta e nove livros”. O texto a seguir é uma contribuição à Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (Vide Referência bibliográfica).

  • [2] Leia mais aqui sobre a Declaração de Balfour, documento “… em que os britânicos comprometeram-se a criar um lar para os judeus - por isso, ele pode ser usado como um marco para o início da formação do Estado de Israel...”.

  • [3] Na Petição de 1891 Blackstone comentou, em relação aos judeus: “Por que não lhes devolver a Palestina? De acordo com a distribuição das nações feita por Deus, a Palestina é a sua terra natal — uma possessão inalienável da qual eles foram expulsos à força. Quando eles a cultivavam, era uma terra extraordinariamente frutífera que sustentava milhões de israelitas; eles diligentemente lavravam as suas encostas e vales. Eram agricultores e produtores, bem como se constituíam numa nação de grande importância comercial — o centro da civilização e da religião [...] Cremos que este é o momento adequado para que todas as nações, principalmente as nações cristãs da Europa, demonstrem benevolência para com Israel. Um milhão de exilados que, devido ao seu terrível sofrimento, imploram, de forma comovente, a nossa compaixão, justiça e humanidade. Restauremos-lhes agora a terra da qual eles tão cruelmente foram despojados pelos nossos ancestrais Romanos". In: <Blackstone e o Sionismo cristão>. Acesso em 12/10/2023.


Referência bibliográfica:

  • RAUSCH, David A. Sionismo / Sionismo Cristão. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. III. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 400 a 403 (Texto adaptado).

11 outubro 2023

Igreja e Israel: a controvérsia

Igreja e Israel: a controvérsia

Por Dr. Cornelis P. Venema

VENEMA, Dr. Cornelis P [1]. Igreja e Israel: a controvérsia [2].  São José dos Campos: Editora Fiel, 2015.


Ao longo da história da Igreja cristã, a questão do lugar de Israel nos propósitos redentivos de Deus tem sido de especial importância. Na história moderna, com a emergência do dispensacionalismo como uma perspectiva escatológica popular e o estabelecimento do estado de Israel em 1948, a questão teológica acerca da intenção de Deus para Israel se tornou ainda mais premente. Depois do holocausto, com o esforço nazista para exterminar os judeus por toda a Europa durante a Segunda Guerra Mundial, o problema da relação entre a e Israel foi novamente afetado pela triste realidade do antissemitismo, que muitos alegam pertencer a qualquer teologia cristã que insista em um único caminho de salvação pela fé em Jesus Cristo, seja para judeus ou gentios.
A teologia dos “dois pactos”
Teologia da substituição radical
Conclusão

A fim de orientar a discussão dessa crucial controvérsia, precisamos começar com um entendimento claro das principais visões deste assunto que estão atualmente representadas na igreja. Essas visões ilustram não apenas a importância da questão, mas também a ampla diversidade de posições.

Dispensacionalismo pré-milenarista: o propósito especial de Deus para Israel

Embora o dispensacionalismo pré-milenarista seja uma perspectiva relativamente nova na história da teologia cristã, a sua posição acerca do propósito especial de Deus para Israel tem moldado, até mesmo dominado, os debates recentes entre os cristãos evangélicos acerca do relacionamento entre a Igreja e Israel.

No dispensacionalismo clássico, Deus tem dois povos distintos: um povo terreno, Israel, e um povo celestial, a Igreja. Segundo o dispensacionalismo, Deus administra o curso da história da redenção por meio de sete dispensações (ou economias da redenção) sucessivas. Durante cada dispensação, Deus prova os seres humanos por uma revelação distinta da sua vontade. Entre essas sete dispensações, as três mais importantes são a dispensação da lei, a dispensação do evangelho e a dispensação do reino. Embora não seja possível, num pequeno ensaio como este, descrever todas as diferenças dessas três dispensações, o que importa é a insistência do dispensacionalismo de que Deus tem um propósito separado e um modo distinto de lidar com o seu povo terreno, Israel. Durante a presente era, a dispensação da Igreja, Deus “suspendeu” seus propósitos especiais para Israel e voltou sua atenção, por assim dizer, para o ajuntamento dos povos gentios mediante a proclamação do evangelho de Jesus Cristo para todas as nações. Contudo, quando Cristo retornar a qualquer momento para “arrebatar” a Igreja antes de um período de sete anos de grande tribulação, ele retomará o programa especial de Deus para Israel. Esse período de tribulação será um prelúdio à inauguração da futura dispensação do reino de mil anos sobre a terra. Para o dispensacionalismo, o milênio marca o período durante o qual as promessas de Deus a Israel, seu povo terreno, terão um cumprimento distinto e literal. Apenas ao final da dispensação do reino milenar é que Cristo finalmente vencerá todos os seus inimigos e introduzirá o estado final.

Embora o dispensacionalismo reconheça que todos, judeus ou gentios, são salvos pela fé no único Mediador, Jesus Cristo, ele mantém uma clara e permanente distinção entre Israel e a Igreja nos propósitos de Deus. As promessas do Antigo Testamento não se cumprem mediante o ajuntamento da Igreja de Jesus Cristo de entre todos os povos da terra. Essas promessas são dadas a um povo terreno e etnicamente distinto, Israel, e serão cumpridas de modo literal apenas durante a dispensação do reino que segue a presente dispensação do evangelho.

A visão reformada tradicional: um único povo de Deus

Ao contrário da rígida distinção do dispensacionalismo entre os dois povos de Deus, Israel e a Igreja, a teologia reformada histórica insiste na unidade do programa redentivo de Deus ao longo da história. Quando Adão, o cabeça pactual e representante da raça humana, caiu no pecado, todos os seres humanos enquanto sua posteridade se sujeitaram à condenação e à morte (Romanos 5.12-21). Em virtude do pecado de Adão e de suas implicações para toda a raça humana, todos se sujeitaram à maldição da lei e se tornaram herdeiros de uma natureza pecaminosa e corrupta.

Segundo a interpretação reformada tradicional da Escritura, Deus introduziu o pacto da graça, após a queda, a fim de restaurar o seu povo eleito à comunhão e intimidade consigo mesmo. Embora o pacto da graça seja administrado de maneiras diversas ao longo da história da redenção, ela permanece uma em substância, desde o tempo de sua ratificação formal com Abraão até a vinda de Cristo na plenitude do tempo. Em todas as várias administrações do pacto da graça, Deus redime o seu povo mediante a fé em Jesus Cristo, o único Mediador do pacto da graça, por meio de quem os crentes recebem o dom da vida eterna e a comunhão restaurada com o Deus vivo [vide Louis Berkhof, Teologia sistemática (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2013).

No entendimento reformado da história da redenção, portanto, não há nenhuma separação radical entre Israel e a Igreja. A promessa que Deus fez a Abraão na ratificação formal do pacto da graça (Gênesis 12, 15, 17), a saber, que ele seria o pai de muitas nações e quem em seu “descendente” todas as famílias da terra seriam abençoadas, encontra seu cumprimento em Jesus Cristo. O descendente prometido a Abraão no pacto da graça é Jesus Cristo, o verdadeiro Israel, e todos aqueles que mediante a fé são unidos a ele e, assim, são feitos herdeiros das promessas do pacto (Gálatas 3.16, 29). Na visão reformada, o evangelho de Jesus Cristo cumpre diretamente as promessas do pacto da graça para todos os crentes, sejam judeus ou gentios. Israel e a Igreja não são dois povos distintos; em vez disso, a Igreja é o verdadeiro Israel de Deus, “raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (1 Pedro 2.9).

Na história recente da reflexão sobre Israel e a Igreja, surgiu uma posição nova e mais radical. Frequentemente ligada ao nome de Franz Rosenzweig, o autor judeu de uma obra escrita logo após a Primeira Guerra Mundial e intitulada The Star of Redemption, a teologia dos dois pactos ensina que há dois pactos separados, um entre Deus e Israel e outro entre Deus e a Igreja de Jesus Cristo. Em vez de haver um único caminho de redenção mediante a fé em Jesus Cristo para crentes judeus e gentios indistintamente, o relacionamento pactual original de Deus com o seu povo ancestral, Israel, permanece separado do seu novo relacionamento pactual com as nações gentias por meio do Senhor Jesus Cristo.

No cenário do segundo pós-guerra, com sua preocupação quanto ao legado de antissemitismo na Igreja cristã, a posição da teologia dos dois pactos se tornou cada vez mais popular entre muitas importantes igrejas protestantes. Mesmo dentro da Igreja Católica Romana, alguns teólogos apelaram aos pronunciamentos do Concílio Vaticano II e à encíclica Redemptoris Missio do Papa João Paulo II (1991), os quais defendem o diálogo entre cristãos e judeus, a fim de se oporem aos contínuos esforços de evangelização dos judeus. Na perspectiva dos dois pactos, a confissão cristã acerca da pessoa e obra de Cristo como o único Mediador ou Redentor permanece verdadeira dentro da moldura do pacto de Deus com a Igreja. Contudo, uma vez que o pacto de Deus com Israel é um pacto separado, que não se cumpre na vinda de Jesus Cristo na plenitude do tempo, os cristãos não podem impor a Israel os termos do pacto de Deus com a Igreja.

A última posição na controvérsia sobre Israel e a Igreja que precisa ser mencionada é a que podemos denominar “teologia da substituição radical”. Embora os dispensacionalistas frequentemente insistam que a afirmação reformada tradicional de um único povo de Deus, constituído de judeus e gentios que creem em Cristo, seja uma forma de “teologia da substituição”, a visão reformada não considera que o evangelho “substitui” a antiga economia pactual com Israel, antes, que a “cumpre”. A teologia da substituição radical é o ensino de que, porquanto muitos dos judeus não reconheceram Jesus Cristo como o Messias prometido, Deus substituiu Israel pela Igreja gentílica. O evangelho de Jesus Cristo chama todas as nações e povos à fé e ao arrependimento, mas não deixa nenhum espaço para qualquer ênfase particular sobre o propósito redentivo de Deus para o seu povo ancestral, Israel. Uma vez que a Igreja é o verdadeiro Israel, o espiritual, qualquer ênfase peculiar sobre a questão do intento salvador de Deus para Israel não é mais permitida.

A teologia da substituição radical representa no espectro o extremo oposto da posição dos dois pactos. Em vez de falar de um distinto relacionamento pactual entre Deus e Israel que continua mesmo depois da vinda de Cristo e da proclamação do evangelho às nações, a teologia da substituição sustenta que o programa e o interesse de Deus em Israel cessaram.

A diversidade entre essas várias posições na questão de Israel e da Igreja testifica a importância da controvérsia. Tem Deus um propósito e um programa redentivo separado para Israel e a Igreja? Ou será que o evangelho de Jesus Cristo cumpre o propósito de Deus de ajuntar um povo de toda tribo, língua e nação, judeus e gentios indistintamente, em uma única família universal? Quando o apóstolo Paulo declara em Romanos 1 que o evangelho é “o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (Romanos 1.16), ele declara que há um único caminho de salvação para todos os que creem em Jesus Cristo, Ainda assim, ele ao mesmo tempo afirma que essa salvação não remove nem suplanta o propósito redentivo de Deus para os judeus, mas, em vez disso, o cumpre. O contínuo debate acerca de Israel e da Igreja precisa manter o equilíbrio apostólico, não separando Israel da Igreja nem substituindo Israel pela Igreja.


Notas:

  • [1Dr. Cornelis P. Venema: presidente e professor de estudos doutrinários no Mid-America Reformed Seminary e pastor associado da Redeemer United Reformed Church em Dyer, Indiana.

08 outubro 2023

Bispos e Papas: (1) Lino

Bispos e Papas: (1) Lino

Por Alcides Amorim


Bispo Lino [1]


Quero iniciar, com a ajuda de Deus, um trabalho resumido sobre os bispos, que segundo a Igreja Católica tornaram-se papas e seguiremos a falar sobre os demais, se conseguir, até os dias atuais, no momento, o papa Francisco.

Assumo aqui a posição protestante, que afirma ser o primeiro papa, não o apóstolo Pedro, e sim, Leão I (440-461), que “… defendeu explicitamente a autoridade papal, articulando mais plenamente o texto de Mateus 16.18 como fundamento da autoridade dos bispos de Roma como sucessores de Pedro... [1]”, dando início – aliás, continuidade – à ideia de papado [2] A partir daí, a autoridade papal passou a ficar em evidência, sendo que, inclusive “… seu sucessor Gelásio I (492-496) expôs a célebre teoria das duas espadas: dentre os dois poderes legítimos que Deus criou para governar no mundo, o poder espiritual – representado pelo papa – tinha supremacia sobre o poder secular sempre que os dois entravam em conflito…” Essas raízes da supremacia eclesiástica romana foram alimentadas pelas atividades capazes de muitos papas.

O bispo de Roma, considerado agora “bispo dos bispos”, já a partir de Vitor I (189 a 199), reivindica também a posição de “sucessor de Pedro”, com Leão I (440-461). Mas, neste momento, o império já estava dividido e Roma estava preste a cair nas mãos dos “bárbaros”, principalmente os hunos, sob o governo de Átila. Com Leão, chamado também de “Leão I, o Grande”, e os bispos de Roma ou (agora) papas, que lhe sucedem, estes conseguiram manter certa estabilidade em Roma, após sua desintegração pelos bárbaros, e assim prossegue por toda a Idade Média [3].

Quero portanto, destacar até Leão I, os bispos mencionados por Eusébio [4], e depois passaremos a chamar de papas os chefes da Igreja Católica até o momento, se Deus nos permitir.

Iniciaremos pelo bispo Lino.

Eusébio (HE, Livro 3, Cap. II) destaca Lino como o que primeiro presidiu sobre a igreja em Roma, após o martírio de Pedro e Paulo. No capítulo IV (Livro 3), Eusébio afirma: “Quanto a Lino, mencionado em sua segunda Epístola a Timóteo como seu companheiro em Roma, já se declarou ter sido o primeiro depois de Pedro a obter o episcopado de Roma”.

Importante destacar que Eusébio de Cesareia afirma isto já no início do século IV, quando muitos (até possivelmente equivocados) já tinham uma lista feita dos bispos sucessores de Pedro, que posteriormente constaram na listas dos papas pelos teólogos católicos.

Mas nem todos os católicos acreditam assim. No artigo mencionado acima (Nota 3), Hans Kung, teólogo e sacerdote católico, afirma, ao tratar de Pedro como possuidor de uma episcopado monárquico, que “… no entanto, teólogos católicos concedem que não há evidência confiável de que Pedro tenha sido encarregado da Igreja de Roma como chefe supremo ou bispo. Em qualquer caso, o episcopado monárquico foi introduzido em Roma relativamente tarde”. E sobre os bispos de Roma como sucessores de Pedro, incluindo logicamente Lino, foi Leão que “… viu o Bispo de Roma como sucessor de Pedro fundamentado numa carta do Papa Clemente a Tiago, irmão do Senhor, em Jerusalém. De acordo com essa, em seu último testamento Pedro fez de Clemente seu único sucessor legítimo. Mas a carta era uma falsificação do final do segundo século e foi traduzida em latim apenas no final do século IV e o início do V”.

Bem, percebe-se que além de poucas informações sobre Lino, e algumas até questionáveis, ficamos apenas com o contexto histórico e religioso de seus dias.

  • Lino era colaborador e contemporâneo de Pedro, Paulo, Timóteo e de muitos cristãos que possivelmente até chegaram a conviver com Jesus.
  • A única referência que encontramos na Bíblia sobre Lino, não dá um destaque como sendo ele portador de um cargo eclesiástico, como bispo.
  • Quem afirma ter sido Lino, bispo de Roma e sucessor de Pedro, foi Eusébio, porém não encontramos nada de seu trabalho. Alias, até sobre a pessoa de Pedro, como bispo de Roma, há muitos questionamentos.
  • Lino, como primeiro sucessor de Pedro, conforme afirma a maioria (acho) dos teólogos católicos, também é identificado como o segundo Papa pela Igreja Católica.
  • Se procederem as informações da Wikipédia, Lino era italiano, nascido na Toscana e pode ter estado entre os setenta (setenta e dois) discípulos enviados enviados por Jesus (Lc 10). Se Lino era italiano, é quase certo que não fora um dos 70 discípulos de Jesus.
  • O ambiente político para os cristãos era de perseguição, pois os conflitos dos cristãos como o Estado romano já estavam em prática, e Pedro e Paulo acabaram-se sendo martirizados, sob o imperador Nero (54-68), além de os cristãos terem sido culpados pelo incêndio de Roma, em 64. Possivelmente, ele tenha companhado também os governos dos imperadores5 Galba (68-69), Oto (69), Vitélio (69) e Vespasiano (69-79).

Lino está, além da lista dos papas, também entre os mártires e santos da Igreja Católica. Aqui, afirma-se que a morte de Lino pode ter ocorrido em 67, ou 78, ou ainda em 81, decapitado pelo cônsul Saturnino.


Notas / Referências bibliográficas:

  • [2]  Por papado, entende-se ”… a crença na jurisdição universal de um bispo romano infalível, como se defende hoje na apologética católica popular”. Diversos trabalhos sobre o papado e o catolicismo são produzidos por Lucas Banzoli. Veja aqui, por exemplo, a citação de vários historiadores e teólogos católicos que reconhecem que não havia papado na Igreja antiga..
  • [4CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica: os primeiros quatro séculos da Igreja Cristã. Rio de Janeiro: CPAD, 1999. Nesta versão, produzida pela CPAD, há uma lista dos bispos, citados por Eusébio, página 409-410, na qual me baseei.

Revolução dos Bichos: características gerais

  Por Alcides Barbosa de Amorim Porco Major [1] O livro Revolução dos Bichos (1945), do indiano George Orwell, nascido durante o domínio b...