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26 fevereiro 2024

Racionalismo e fé cristã: René Descartes

Por Alcides Amorim

O Racionalismo é entendido como a corrente filosófica que argumenta ser a razão a única forma para se chegar ao verdadeiro conhecimento. Segundo o professor Colin Brown [1], esta tentativa de julgamento de tudo através do pensamento racional se fosse concretizada liquidaria completamente o sobrenatural, o que “… não sobraria mais nada além da natureza e dos fatos crus” (BROWN: 1985, pág. 37). Mas, numa abordagem mais específica do racionalismo percebe-se que os “… racionalistas não eram tão ateus como parece” (Idem, pág 37). Ele define como época do racionalismo os séculos XVII e XVIII, os quais sucedem, no campo filosófico, os reformadores protestantes do século XVI. Mas enquanto estes eram dominados por uma preocupação com Deus, aqueles ficaram entusiasmados, não tanto com Deus, mas com o mundo. Foram cientistas, matemáticos, especialistas em geometria, lógica etc., porém “… não eram homens sem religião” (Idem, pag. 38).

Os principais racionalistas, dos quais queremos fazer um breve estudo são Descartes, Espinosa, Leibniz e Pascal. Vamos destacar a seguir o filósofo René Descartes (1596-1650), que é considerado o principal personagem do racionalismo e também fundador da filosofia moderna. Ele foi contemporâneo de Carlos da Inglaterra e de Oliver Cromwell, de Kepler, de Galileu e de Harvey. Foi educado num colégio jesuíta, fez carreira militar, servindo em vários exércitos europeus e “… sempre tomando o cuidado de transferir-se para outro lugar quando surgiam hostilidades” (Idem, pag. 38). Justo L. González complementa que Durante a Guerra dos Trinta Anos, Descartes “… esteve a serviço do príncipe de Nassau; mas, ao invés de participar ativamente do conflito que banhava de sangue a Alemanha, aproveitou seu suposto serviço militar para continuar os estudos de física e matemática que havia começado pouco antes” (GONZALEZ: 1984, pág. 126). Ao que parece Descartes trabalhava poucas horas por dia e lia pouco, embora tenha deixado grandes contribuições nos campos da geometria e da filosofia. Naquela, inventou a geometria coordenada. Nesta, foi o pioneiro do racionalismo e da dúvida cartesiana. Suas duas obras filosóficas principais foram seu Discurso sobre Método (1637) e suas Meditações (1641).

O sistema filosófico de Descartes baseava-se em uma grande confiança na razão matemática (a exemplo de Pascal), “… unida a uma desconfiança diante de tudo o que não estivesse claro e indubitavelmente comprovado. Por isso, comparava seu método ao da geometria. Nessa disciplina, somente se aceita o que se tenha mostrado matematicamente ou o que é um axioma indubitável” (Idem, pág. 126). Em resumo, em seu Discurso sobre o Método, “Descartes cria quatro preceitos lógicos:

1º) jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal, isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; 

2º) dividir cada uma das dificuldades que eu examinar em tantas parcelas quantas possíveis e necessárias fossem para melhor resolvê-las; 

3º) conduzir, por ordem, meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos; e 

4º) fazer, em toda parte, enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada omitir...” (In: Wikipedia - Discurso sobre o Método).

E assim nasceu o racionalismo cartesiano [2]. Como ponto de partida na aplicação desse método, Descartes adotou uma postura de dúvida universal. Ele duvidava de tudo que estava em sua mente, surgindo seu célebre axioma: Cogito ergo sum ("Penso, logo existo"). O mero fato de que estava tendo dúvidas e, portanto, pensando, significava que ele existia.

E em relação à ou crença em Deus, como Descartes se comportava?

Bem, segundo ainda González (O. C., pág. 128 “… naturalmente, a ideia de tomar a dúvida como ponto de partida logo lhe proporcionou inimigos entre aqueles que viam nisso a negociação da fé. O próprio Descartes era pessoa profundamente religiosa e estava convencido que sua filosofia, longe de enfraquecer a fé, a fortaleceria, pois mostraria que os princípios do cristianismo eram eminentemente racionais e não se podia colocá-los em dúvida”. Ao argumentar sobre a existência de Deus, Descartes concebia a ideia de si mesmo como ser finito que subentendia a existência de um ser infinito. E também a própria ideia de um Ser Perfeito subentendia a existência dele. Declarava que Deus é perfeito e por isto mesmo não nos enganaria. Deus não “… nos deixaria pensar que nossas ideias claras e nítidas fossem verídicas, se não o fossem. Podemos, portanto, firmar-nos na segurança de que são válidas todas as nossas deduções lógicas acerca da realidade” (BROWN: 1985, pág. 39). Descartes era um homem de firmes convicções, permaneceu católico até o fim de sua vida, e “… de fato, quando descobriu seu ‘método’ de pensamento filosófico, foi em peregrinação de gratidão ao santuário da Virgem de Loreto...” (GONZALEZ: 1984, pág. 129). Mas, nem todos viam as coisas de igual maneira. Seu método teve muitos questionamentos. Teólogos de várias universidades famosas mostravam-se firmes partidários do sistema de Aristóteles e entendiam ser o cartesianismo uma heresia, embora houve outros que viram no cartesianismo a promessa de um renascer teológico.

Merece destaque o que Brown diz sobre o Arcebispo William Temple [3], afirmando que este “… certa vez foi tentado a perguntar a si mesmo qual foi o momento mais desastroso na história da Europa. A resposta que lhe ocorreu foi: o dia em que Descartes se encerrou na sua estufa [4]. Ao dizer isto, Temple não estava pensando tanto no conceito que Descartes tinha de Deus, mas, sim, na tendência à qual deu início no pensamento europeu…”, isto é, o racionalismo, inaugurando uma tendência que foi seguida por muitos que até rejeitavam seu sistema propriamente dito, e estabelecendo a consciência individual como o critério final da verdade. O racionalismo dominou a filosofia da Europa continental até quase o fim do século XVIII.

O renascer teológico, como muitos viam as ideias de Descartes na França, foi, segundo Gonzalez, uma influência jansenista – doutrina da qual já falamos aqui –, que estava em moda naquele país. E muitos abraçaram o cartesianismo como sua contra-parte filosófica. O modo em que Descartes colocava a existência de Deus no centro de seu sistema, ainda antes de aceitar a existência de seu próprio corpo, prestava-se a uma interpretação jansenista. “Antoine Arnauld, o chefe dos jansenistas da segunda geração, estudou detidamente o pensamento cartesiano e o adaptou para o uso da polêmica jansenista. Pouco a pouco, ainda fora dos círculos jansenistas, o cartesianismo foi abrindo espaço e os debates acerca das doutrinas de Descartes perduraram por longo tempo”, afirma Gonzalez (O.C., pág. 130).

De parte de suas meditações, disse Descartes: “ocorreu-me indagar de onde havia aprendido a pensar em algo mais perfeito que eu e conheci evidentemente que devia ser em uma natureza que fora mais perfeita”. Logo, a existência de Deus se prova, não a partir de um mundo cuja realidade pode ser posta em dúvida, mas da própria ideia de Deus.

Portanto, resta tão somente a ideia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que não possa ter provindo de mim mesmo? Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são… foram criadas e produzidas… E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir, de tudo o que foi dito antes, que Deus existe… (Meditação Terceira, 22).

Concluímos então que os racionalistas, a exemplo de Descartes, tinham interesses pelo mundo da natureza e a confiança na razão, mas não eram homens “sem religião” (repito). Descartes, segundo Brown, permaneceu “católico” mesmo depois do Discurso sobre o Método e das Meditações. Ele entendia que Deus é a razão pela qual não se pode duvidar…


Veja também:


Notas:

  • [1] “O Dr. Colin Brown é professor de Teologia Sistemática no Fuller Theological Seminary, em Pasadena, Califórnia, USA. Entre outros livros, é autor de Karl Barth and the Christian Message. Editor de History, Criticism and Faith e o responsável pela edição em inglês do Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, publicado por esta Editora [Vida Nova], ao qual também contribuiu vários artigos.” (BROWN, O. C., contracapa).
  • [2Cartesianismo: nome que era dado à filosofia de Descartes, porque o nome dele em latim era Cartesio.
  • [3William Temple “… foi um um sacerdote anglicano que serviu como Bispo de Manchester, Arcebispo de York e Arcebispo de Cantuária. Filho de um arcebispo de Cantuária, teve uma educação tradicional, após a qual foi brevemente professor na Universidade de Oxford antes de se tornar diretor da Repton School, entre 1910 e 1914…”. Veja mais em: <William Temple - Wikipedia)>. Acesso em: 16/02/2024.
  • [4A estufa foi um equipamento que manteve a sala aquecida, local onde, no inverno de 1919-1920, na Alemanha, Descartes produziu sua obra: Discurso sobre o Método.


Referências bibliográficas:

  • BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 37 a 40.

  • GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos dogmas e das dúvidas – Vol. 8. São Paulo: Vida Nova, 1984.


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Ainda sobre Renê Descartes, veja a seguir o vídeo de Alysson Augusto:


21 fevereiro 2024

Racionalismo: algumas considerações filosófico-teológicas

 Por Gary R. Habermas [1]

O racionalismo filosófico abrange vários aspectos do pensamento, sendo que todos eles usualmente têm em comum a convicção de que a realidade é de fato racional na sua natureza, e que fazer as deduções apropriadas é essencial para a obtenção do conhecimento. Semelhante lógica dedutiva e o emprego de processos matemáticos fornecem as ferramentas metodológicas principais. Dessa maneira, o racionalismo frequentemente tem sido considerado em contraste com o empirismo.

Formas anteriores do racionalismo encontram-se na filosofia grega, mais notavelmente em Platão, que sustentava que o uso apropriado do raciocínio e da matemática era preferível à metodologia da ciência natural. Esta última, i. é. o empirismo, não só se engana em muitas ocasiões, como também apenas consegue observar fatos neste mundo mutável. Mediante o raciocínio dedutivo, Platão acreditava ser possível Extrair o conhecimento inato que já está presente quando a pessoa nasce, conhecimento este que é derivado do mundo das formas.

O Racionalismo, no entanto, é mais frequentemente associado com os filósofos do iluminismo tais como Descartes, Spinosa e Leibniz. É essa forma do racionalismo da Europa continental o assunto principal deste artigo.

1. Ideias Inatas

Descartes enumerou vários tipos de ideias, tais como aquelas que derivam da experiência, aquelas que são extraídas da própria razão e aquelas que são raras e, portanto, são criadas por Deus na mente humana. Este último grupo era um esteio principal do pensamento racionalista.

Ideias inatas são aquelas que são os verdadeiros atributos da mente humana, que foram dadas à mente por Deus. Sendo assim essas ideias "puras” são conhecidas a prori por todos os seres humanos e, portanto, são cridas por todos. Elas eram de importância decisiva para os racionalistas, de modo que usualmente se sustinha que essas ideias eram a condição prévia para a aprendizagem de fatos adicionais. Descartes acreditava que, sem ideias natas, nenhum outro dado poderia ser conhecido.

Os empiristas1 atacavam os racionalistas neste aspecto e argumentavam que o conteúdo das ideias chamadas inatas na verdade era aprendido através da experiência das pessoas, embora elas talvez tenham refletido pouco sobre isso. Dessa maneira, aprendemos vastas quantidades de conhecimento através da nossa família, educação e sociedade, que surge bem cedo na vida e que não pode ser contado como inato.

Uma das respostas racionalistas a esse argumento empírico era indicar que havia muitos conceitos largamente usados na ciência e na matemática, que não podiam ser descobertos apenas pela experiência. Os racionalistas, portanto, concluíram que o empirismo não poderia existir sozinho, pelo contrário exigia que grandes quantidades de verdades fossem aceitas pelo uso apropriado da razão.

2. A Epistemologia

Os racionalistas tinham muito a dizer a respeito do conhecimento e de como a pessoa poderia ter certeza. Embora essa pergunta recebesse respostas algo diferentes, a maioria dos racionalistas finalmente voltou para a asserção de que Deus era a garantia definitiva do conhecimento.

Talvez o exemplo melhor dessa conclusão se encontre na filosofia de Descartes. Começando a partir da realidade da dúvida, ele resolveu não aceitar nada de que não poderia certeza. Pelo menos uma realidade, no entanto, poderia ser deduzida dessa dúvida: ele estava duvidando e, portanto, devia existir. Nas palavras do seu ditado famoso: "Penso, logo existo”.

A partir da percepção de que duvidava, Descartes concluiu que ele era um ser dependente e finito. Passou, então, para a existência de Deus através de procedimentos dos argumentos ontológico e cosmológico. Nas Meditações III-IV das suas Meditações de Filosofia Primeira, Descartes sustentou que sua ideia de Deus como infinito independente é um argumento nítido e distinto em defesa da existência de Deus.

Descartes, na realidade, concluiu que a mente humana não é capaz de conhecer nada com mais certeza do que conhece a existência de Deus. Um ser finito não será capaz de explicar a presença da ideia de um Deus infinito à parte da Sua existência necessária.

Em seguida, Descartes concluiu que, sendo perfeito, Deus não poderia enganar seres finitos. Além disso, as próprias capacidades que Descartes tinha para julgar o mundo em seu redor lhe foram dadas por Deus, e, portanto, não o enganam. O resultado é que tudo quanto ele pode deduzir mediante o pensamento claro e nítido (tal como aquele que se acha na matemática), a respeito do mundo e de outras pessoas deve, portanto, ser verdadeiro. Sendo assim, a existência necessária de Deus no somente torna possível o conhecimento, como também garante a verdade a respeito daqueles fatos que podem ser claramente delineados. A partir da realidade da dúvida Descartes passou para a sua própria existência, Deus e o mundo físico.

Spinoza também ensinava que o universo operava segundo princípios racionas que o uso apropriado da razão revelava essas verdades, e que Deus era a garantia definitiva do conhecimento. Rejeitava, no entanto, o dualismo cartesiano, e preferiu o monismo (que alguns chamam de panteísmo), em que existia uma só substância chamada Deus ou natureza. A adoração era expressada de modo racional, de acordo com a natureza da realidade. Dos muitos atributos da substância, o pensamento e a extensão eram os mais importantes.

Spinoza utilizava metodologia geométrica para deduzir verdades epistemológicas que podiam ser tidas como fatuais. Ao limitar boa parte do conhecimento a verdades auto evidentes, reveladas pela matemática, ele acabou construindo um dos melhores exemplos da sistematização racionalista da história da filosofia.

Leibniz expôs o seu conceito de realidade na sua obra importante Monadologia. Em contraste com o conceito materialista dos átomos, as mônadas são unidades metafísicas de força sem igual, que não são afetadas pelos critérios externos. Εmbora cada mônada se desenvolva individualmente, estão inter-relacionadas através de uma "harmonia preestabelecida" lógica, que envolve uma hierarquia de mônadas, disposta por Deus e que culmina nEle, que é a Mônada das mônadas.

Para Leibniz, vários argumentos revelavam a existência de Deus, estabelecido como o responsável pela organização das mônadas num universo racional, que era “o melhor de todos os mundos possíveis". Deus era também a base para o conhecimento, e esse fato explica a existência do relacionamento epistemológico entre o pensamento e a realidade. Leibniz, portanto, voltou para um conceito de um Deus transcendente muito mais próximo da posição sustentada por Descartes e em contraste com Spinoza, embora, nem ele nem Spinoza tenham começado com o eu subjetivo, como fez Descartes.

Dessa maneira, a epistemologia era caracterizada por um processo dedutivo de argumentação, sendo que atenção especial era dada à metodologia matemática, e pela fundamentação de todo o conhecimento na natureza de Deus. O sistema de geometria euclidiana desenvolvido por Spinoza reivindicava ter demonstrado que Deus ou a natureza era a única substância da realidade. Certos estudiosos de convicções cartesianas passaram a sustentar o ocasionalismo, segundo a qual os eventos mentais e físicos correspondem entre si (assim como o barulho de uma árvore que cai corresponde ao acontecimento propriamente dito), sendo que os dois são ordenados por Deus. Leibniz utilizou uma aplicação rigorosa de cálculo para derivar, por dedução, o conjunto infinito de mônadas que culminam em Deus.

Esta metodologia racionalista, e a ênfase dada à matemática em especial, foi uma influência importante sobre a ascensão da ciência moderna durante aquele período. Galileu sustentava algumas ideias essencialmente relacionadas, especialmente no seu conceito da natureza matematicamente organizada e percebida como tal através da razão.

3. A Crítica Bíblica

Das muitas áreas em que a influência do pensamento racionalista foi sentida, a alta crítica das Escrituras é certamente uma das mais relevantes para o estudo das tendências teológicas contemporâneas. Spinoza não somente rejeitava a inerrância e a natureza proposicional da revelação especial nas Escrituras, como também era um precursor de David Hume e de alguns deístas ingleses que rejeitavam os milagres. Spinoza sustentava que os milagres, caso sejam definidos como eventos que quebram as leis da natureza, não ocorrem.

Várias tendências no deísmo inglês refletem a influência do racionalismo da Europa continental e semelhanças com ele; o mesmo pode ser dito sobre a influência do empirismo britânico e as similaridades com ele. Além da aceitação do conhecimento inato disponível a todos os homens, e da dedução de proposições a partir desses conhecimentos gerais, os deístas como Matthew Tindal, Anthony Collins e Thomas Woolston procuravam rejeitar os milagres e as profecias cumpridas como evidências a favor da revelação especial. Na realidade, o deísmo como um todo era geralmente caracterizado como uma tentativa de encontrar uma religião natural à parte da revelação especial. Muitas dessas tendências tiveram efeitos marcantes na alta critica contemporânea.

Avaliação

Embora o racionalismo fosse bastante influente de muitas maneiras, também era fortemente criticado pelos estudiosos que notaram vários pontos fracos.

Em primeiro lugar, Locke, Hume e os empiristas nunca se cansavam de atacar o conceito das ideias inatas. Asseveravam que as crianças pequenas davam pouca indicação, ou até mesmo nenhuma, de alguma quantidade vital de conhecimentos Inatos, Pelo contrário, os empiristas não hesitavam em indicar a experiência dos sentidos como o principal mestre, mesmo na infância.

Em segundo lugar, os empiristas também asseveravam que a razão não poderia ser o único (e nem sequer o principal) meio de se conseguir o conhecimento considerando que uma quantidade tão grande dele é captada pelos sentidos. Embora seja verdade que boa parte do conhecimento não pode ser reduzida à experiência dos sentidos, esse fato não indica que seja o meio principal de se adquirir conhecimento.

Em terceiro lugar, tem sido frequentemente indicado que, isoladamente, a razão leva para um número por demais grande de contradições metafisicas e de outras espécies. Por exemplo, o dualismo de Descartes, o monismo de Spinoza e a monadologia de Leibniz, todos têm sido declarados absolutamente conhecíveis, em nome do racionalismo. Se uma ou mais destas opções forem incorretas, o que se deve dizer a respeito das demais?

Em quarto lugar, refutações da alta critica racionalista e deísta apareceram rapidamente, escritas por estudiosos capazes como John Locke, Thomas Sherlock Joseph Butler e William Paley. A revelação especial e os milagres foram especialmente defendidos contra os ataques. Analogy of Religion (Analogia da Religilo") de Butter em especial, era tão devastador que muitos têm concluido que a obra não é apenas uma das apologéticas mais poderosas a favor da té crista, mas também a razão principal do desfalecimento do deísmo.


Notas / Referências bibliográficas:

  • [1] Gary Robert Habermas “… é um estudioso e teólogo americano do Novo Testamento que frequentemente escreve e dá palestras sobre a ressurreição de Jesus. Ele se especializou em catalogar e comunicar tendências entre estudiosos no campo do Jesus histórico e dos estudos do Novo Testamento”. In: <Gary Habermas>. O artigo – Racionalismo – usado (e adaptado) aqui é uma contribuição de Habermas à Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. III. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 225 a 228.

  • [2] Sobre o empirismo: “… embora tudo isto tenha sucedido no continente europeu, na Grã-Bretanha a filosofia tomava um caminho muito distinto. Esse caminho era o do ‘empirismo’ (de uma palavra grega que significa “experiência”). Seu fundador foi o professor de Oxford, João Locke, que em 1690 publicou seu Ensaio sobre o entendimento humano. Locke havia lido as obras de Descartes e estava tão convencido como o filósofo francês de que a ordem do mundo corresponde a ordem do pensamento. Mas não cria que houvesse tal cousa como ideias inatas. Segundo ele, todo conhecimento procede da experiência. Essa experiência pode ser tanto a que nos dão os sentidos como a que nos dá nossa mente ao conhecer-se a si mesma (o que ele chama “sentido interno”). Mas na mente não existe ideia alguma antes que a experiência nos conduza a ela. Isto quer dizer ainda que o único conhecimento certo é o que se baseia na experiência. Não em qualquer experiência passada, mas unicamente na experiência atual.” (Veja aqui, pág., 8).

11 fevereiro 2024

A Aposta de Pascal: da razão à fé em Deus

Por: Alcides Amorim


O Racionalismo, corrente filosófica que argumenta ser a razão a única forma para se chegar ao verdadeiro conhecimento é normalmente atribuído ao filósofo francês René Descartes (1596-1650), que é considerado também o fundador da filosofia moderna. Mas esta ideia de chegar ao verdadeiro conhecimento choca-se muitas vezes com a teologia e a fé. Foi na tentativa de aliar a razão com a fé que outro filósofo – também francês –, chamado Blaise Pascal (1623-1662) [1], desenvolve a apologética famosa exposta em sua principal obra Pensées (Pensamentos sobre a Religião e Alguns Outros Assuntos).

Segundo Richard V. Pierard, Pascal foi uma das maiores figuras na história intelectual do Ocidente, embora tenha vivido muito pouco: 39 anos. Foi criado por seu pai viúvo, um brilhante advogado e oficial cívico; tornou-se pensador, cientista e matemático; usando o método experimental, criou o primeiro calculador mecânico, pesquisas básicas sobre vácuos e hidráulica, a formulação da teoria da probabilidade e a formação dos alicerces para o cálculo diferencial e integral, entre outras contribuições.

Em 1646 Pascal passou por uma "conversão" para um ensino austero de renúncia do mundo e de submissão a Deus, conforme propunham os discípulos de Jean du Vergier. O resultado foi uma cessação temporária das suas labutas intelectuais, mas logo deixou o grupo. Em 1654 experimentou uma "segunda conversão", muito mais significativa, à doutrina Jansenista [2] em Port Royal, e aceitou fervorosamente a fé cristă, como se vê em suas obras posteriores, as Cartas Provinciais (1657) e sua obra publicada postumamente Pensées.

Nos seus escritos religiosos, Pascal era mais um apologista do que um pensador sistemático. Ao argumentar a favor da existência de Deus, não era um fideísta completo, pois achava possível demonstrar aos descrentes que a religião não era contrária à razão, mas rejeitava provas metafísicas como as de Descartes por serem insuficientes para levar alguém ao Deus vivo. Na verdade, argumentava psicologicamente [3], acreditando que o coração era a chave. Deus podia ser percebido pela intuição do coração, mas não pela razão. Tratava-se de combinar o conhecimento, o sentimento e a vontade, e de estabelecer um relacionamento místico vivificante com Cristo. Quando Pascal apresenta seu argumento da aposta, a probabilidade nos obriga a correr o risco da fé em Deus. Além disso, ele via a condição humana como de "grandeza e miséria". Rejeitando o pelagianismo jesuíta, Pascal aceitou a reafirmação jansenista do conceito agostiniano do pecado original. Disse que o homem possui uma condição moral e religiosa especial que o eleva muito acima dos animais, mas ele é controlado pelo pecado e necessita desesperadamente da graça especial de Deus a fim de ser salvo. Embora ele achasse que "o coração tem razões que a própria razão desconhece", não deixou de sustentar que as Escrituras, que se validam a si mesmas, as profecias, a existência dos judeus, os milagres e o testemunho da história, todos servem para autenticar o cristianismo.

Sobre a Aposta de Pascal deve ser considerado, conforme Rodrigo Silva, que pelo fato de sua doença que o levou à morte ainda muito jovem, este deixou muitos trabalhos ainda rascunhados, tanto que a Pensées foi uma obra póstuma e, possivelmente em elaboração, sem a conclusão do próprio autor. Em seu estudo, Rodrigo Silva mostra como as percepções de Pascal era parte de uma conclusão matemática daquele filósofo, um dos mais célebres da história. Portanto, embora Pascal é visto como controverso teologicamente – veja, por exemplo aqui –, é inegável que ele era um homem de fé, além de um filósofo. Fé e razão andando juntas.

Para Pascal, continua Pierard, ‘Ou Deus existe, ou Ele não existe’, e propõe que apostemos no assunto. Apostar que Ele existe importa numa modesta entrega da nossa razão, mas optar pela não-existência divina è arriscar a perda da vida e felicidade eternas. O valor da aposta (a nossa razão) é mínimo comparado ao prêmio que pode ser ganho. Se aquele que apostou em Deus tiver razão, ganhará tudo, mas nada perderá se sua escolha se revelar errada. Ja que foi demonstrado que esta aposta é razoável, pode-se avançar, agora, do ámbito do provável para a ação prática de se colocar a fé em Deus.

Deus existe ou Deus não existe [4]


Notas / Referências bibliográficas:

  • [1R. V. PIERARD, Doutor da Universidade de Iowa. Professor de História na Universidade Estadual de Indiana, Terre Haute, Indiana, EUA… (E mais aqui). Dois breves estudos, “A Aposta de Pascal” e “Blaise Pascal”, utilizados como fontes aqui, são contribuições de Pierard à Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. I (Pág. 101 e 102) e Vol. III (Pág. 100) respectivamente. São Paulo: Vida Nova: 1988. (Texto adaptado).

  • [2O Jansenismo foi um movimento de muito rigor moral e dogmático, além de disciplinar e que assumiu também contornos políticos, ocorrido no seio da Igreja Católica nos séculos XVII e XVIII e cujas teorias foram consideradas controversas pela própria igreja. O Jansenismo foi fundado Na Bélgica por Cornélio Jansénio e difundido na França por Jean du Vergier. Foi neste meio de ensino austero de renúncia do mundo e submissão a Deus, que Pascal conviveu num primeiro momento e que provocou uma cessação temporária das suas labutas intelectuais, passando depois (em 1654) por outra experiência que ficou conhecida como uma ‘segunda conversão’. 

  • [3] … e principalmente matematicamente, na opinião de Rodrigo Silva, confrme o  vídeo abaixo.

  • [4Esquema ilustrativo anexo ao estudo de Rodrigo Silva, Aposta de Pascal. Acesso em: 09/02/2024.



Se o link não abrir, acesse: A Aposta de Pascal, com Rodrigo Silva..


09 fevereiro 2024

Período Militar – 1964 a 1985

 Por  Alcides Barbosa de Amorim


O Regime Militar, fase da história do Brasil ocorrida entre 1964 e 1985, foi governado por 5 militares, sendo:

  • Humberto de Alencar Castelo Branco (1964 a 1967);

  • Artur da Costa e Silva (1967 a 1969);

  • Emílio Garrastazu Médici (1969 a 1974);

  • Ernesto Geisel (1974 a 1979);

  • João Batista Figueiredo (1979 a 1985).


  • Os fatos mais importantes deste período, descritos de forma didática, relatei-os no texto que pode ser consultado AQUI. 
  • Veja também o post Ditadura ou Regime Militar  AQUI.

04 fevereiro 2024

Ditadura ou Regime Militar?

1964: o Brasil entre armas e livros [1]

Para falar sobre o período da história brasileira entre 1964 e 1985, achei importante destacar duas visões sobre o assunto. Para isto, escrevi na íntegra o texto dos autores Renato Venancio e Mary Del Priori, sob o título “Da guerrilha à abertura” (Nota 2) e inserção do vídeo-documentário da Brasil Paralelo “1964: Brasil entre armas e livros” (Nota 1).

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O governo [2] nascido do golpe de 1964 [3] foi definido certa vez como o “Estado Novo da UDN”. Essa definição tem sua razão de ser. Durante duas décadas, políticos udenistas – representantes de parcelas importantes das elites empresariais e agrárias – dificilmente chegam a conseguir apoio de mais de 30% do eleitorado brasileiro. Entretanto, através da ditadura militar, puderam implementar várias de suas propostas em matéria de política econômica, como a diminuição do valor real dos salários e a ampla abertura da economia aos investimentos estrangeiros.

A aliança entre udenistas e militares tem ainda outras repercussões. Apesar de oportunistas e golpistas, os partidários da UDN são admiradores de democracias liberais. Tal posicionamento impede a adoção de um modelo fascista no Brasil. Mesmo nos momentos de maior intolerância, a ditadura militar, por meio da rotatividade dos presidentes, evita o caudilhismo, não deixando também de reconhecer a legalidade da oposição parlamentar. A extinção dos partidos tradicionais, em 1965, é acompanhada da criação de duas novas agremiações: Arena (Aliança Renovadora Nacional) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Este último representa boa parte dos grupos que lutam pelo retorno à normalidade democrática.

A direção central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), logo após o Golpe Militar, dá início à autocrítica diante do esquerdismo e condena a resistência armada. Todavia, tal postura não foi unânime, fazendo com que dirigentes abandonassem o partido, como nos casos de Carlos Marighella (indo para a Aliança Nacional Libertadora – ANL) e Apolônio de Carvalho (indo para o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário – PCBR). Critica-se, então, o que se denominava etapismo, uma estratégia que prega a revolução por etapas, cabendo ao PCB apoiar a burguesia no processo de constituição de uma sociedade liberal, antifeudal e anti-imperialista, deixando para um futuro distante a luta pela implantação do socialismo. Para os dissidentes, a estratégia do PCB facilitava a implantação da ditadura, pois subordinava o movimento operário aos acordos de cúpula com as lideranças populistas. Avalia-se que a burguesia depende de sua associação com a agricultura de exportação e com o capitalismo internacional, não havendo por parte do empresariado qualquer inclinação pela ruptura com as classes dominantes. O populismo radical de Goulart representa, quando muito, aspirações de segmentos minoritários e mais atrasados da burguesia nacional.

A ausência de resistência ao Golpe Militar faz esse tipo de interpretação ganhar adeptos. Entre 1965 e 1967, amplia-se o número de dissidências atingindo até organizações formadas anos antes. Várias delas tinham raízes internacionais e não eram um fenômeno particularmente novo. No Brasil, desde os anos 1930, movimentos trotskistas dão origem a partidos rivais do PCB, como a Liga Comunista Internacionalista ou o Partido Operário Leninista. Com o surgimento de novos países comunistas, que, às vezes, não aceitam as mudanças de rumo da política soviética, as dissidências proliferam. No início dos anos 1960, além do PCB e do Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT), havia o Partido Comunista do Brasil (PC do B) – primeiro de inspiração chinesa e depois albanesa –, a Organização Revolucionária Marxista - Política Operária (Polop) e, por fim, a Ação Popular (AP), moderada, pelo menos em sua fase inicial, e vinculada ao que veio a ser conhecido como catolicismo progressista.

Nesses grupos nascem propostas de luta armada. Há, sem dúvida, inúmeros matizes entre uma tendência política e outra. No entanto, a perspectiva de uma revolução iminente parece ser um traço comum às diversas siglas. Paradoxalmente, esse engajamento radical mantém vínculos com algumas ideias do desprezado PCB e do nacionalismo desenvolvimentista. Generaliza-se, por exemplo, a noção de que o capitalismo brasileiro entrara em uma fase de estagnação. A não realização das reformas de base é responsável por isso. Acreditava-se que as classes dominantes dependiam de um governo ditatorial para continuar existindo, sendo em vão a luta pelo retorno à democracia.

A novidade do período é que os grupos revolucionários recém-formados recrutam militantes predominantemente na classe média. Havia ainda, em partidos que aderiam à luta armada, o predomínio de estudantes e professores universitários. Esses segmentos, segundo os processos da justiça militar, respondem por 80% do Movimento de Libertação Popular (Molipo), 55% do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e 53% do Comando de Libertação Nacional (Colina), para mencionarmos apenas alguns exemplos.

Outro dado importante é a predominância de menores de 25 anos nos diversos agrupamentos revolucionários. O aparecimento de numerosos jovens, não necessariamente pobres ou miseráveis, dispostos a lutar contra os poderes constituídos não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. De certa maneira, isso traduz certas mudanças que ocorriam na juventude em escala mundial. Durante a maior parte do século XX, o ensino universitário foi acessível a um grupo extremamente reduzido; nos anos 1960, porém, essa situação começa a se modificar. O caso brasileiro é típico: entre 1948 e 1968, o número de estudantes universitários passa de 34 mil para 258 mil; no mesmo período em que a população brasileira dobra, o número de jovens que frequentavam universidades aumenta oito vezes. O crescimento desse segmento torna-o cada vez mais capaz de influenciar politicamente a sociedade.

Tão importante quanto essa mudança é a alteração do quadro político mundial. A partir dos anos 1940, o mundo é sacudido por revoluções nacionalistas na Ásia e na África. O impossível parecia ocorrer: países pobres do Terceiro Mundo conseguem vencer antigos colonizadores europeus. Coroando essas transformações, em 1959, um pequeno grupo de guerrilheiros faz uma revolução em Cuba, enfrentando a oposição do tradicional partido comunista local e dos Estados Unidos, que na época desfruta o título de maior potência econômica e militar do mundo.

Mais ainda: a revolução é um fenômeno da alta cultura. Entre seus partidários estão refinados romancistas, filósofos e artistas europeus e norte-americanos. No Brasil, algumas das produções culturais extraordinariamente bem-sucedidas – como o cinema de Glauber Rocha, a música de João Gilberto e o teatro de Augusto Boal – revelam o lado positivo da ruptura radical com o passado. Mesmo nos meios nacionalistas – como é o caso dos intelectuais vinculados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado em 1955 – respira-se o ar da utopia. A identidade nacional é vista como a ruptura com o passado e não como a sua recuperação, conforme almejavam os românticos do século XIX.

Ao longo dos anos 1960, tal visão é difundida por meio do cinema, teatro e jornalismo, assim como por palestras e debates promovidos pelos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE). A valorização desse novo nacionalismo também representa uma resposta à forte influência cultural norte--americana, interpretada como uma ameaça à identidade nacional, pois, ao contrário da europeização do século precedente, não se restringe a grupos de elites, destinando-se ao conjunto da população.

Vista a partir de hoje, a luta armada parece algo politicamente ingênuo ou até incompreensível, mas, na época, é fortemente marcada pelo sentimento nacional e de justiça social, em um mundo onde revoluções que pareciam impossíveis estavam ocorrendo. Como, porém, se organiza essa luta? Em primeiro lugar, é necessário lembrar que defender a revolução imediata nem sempre implica pegar em armas. Os agrupamentos de esquerda que assim agiram, geralmente adotaram os princípios do foquismo, teoria elaborada a partir do exemplo da revolução cubana, em que um pequeno grupo guerrilheiro inicia um processo revolucionário no campo.

Para tanto, primeiramente, são necessários recursos financeiros. Em 1967, inicia-se uma série de roubos a bancos por parte dos grupos guerrilheiros, processo que se arrasta até o início dos anos 1970 e resulta em cerca de trezentos assaltos (ou, como se dizia na época, desapropriações revolucionárias), com a arrecadação de mais de 2 milhões de dólares. Na prática, a guerrilha – salvo no caso do Araguaia – não se estende ao campo. À medida que o sistema repressivo realiza prisões, o emprego sistemático da tortura faz com que mais e mais revolucionários sejam capturados. Em 1969, a própria dinâmica do movimento guerrilheiro é alterada, passando a ter como objetivo resgatar os companheiros das masmorras militares. Os assaltos a bancos vão dando lugar a sequestros – dentre os quais os dos embaixadores norte-americano, alemão e suíço no Brasil –, cujos resgates são a libertação de prisioneiros políticos.

Alegando a ameaça comunista e acentuando uma tendência de endurecimento, que vinha desde o ano anterior – com a eleição do general Costa e Silva em 25 de maio de 1966 –, o governo militar se torna cada vez mais ditatorial. Nesse contexto é fortalecida a doutrina de segurança nacional, que torna prioridade entre as forças armadas a luta contra a ameaça interna, e não mais a defesa contra inimigos estrangeiros. Assiste-se também à ampliação das redes de espionagem e de repressão. Paralelamente ao Serviço Nacional de Informações (SNI), criado em 1964, atuam agora outras organizações, como o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), a Operação Bandeirantes (Oban) e o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), somente para citarmos algumas siglas.

Até a oposição legal deixa de ser aceita. A Frente Ampla composta por Carlos Lacerda e João Goulart, que defende bandeiras democráticas, como eleições diretas, anistia e nova Constituição, é proibida em 1968. A recessão e o declínio do poder de compra dos salários fazem, por sua vez, com que o movimento sindical renasça. Greves envolvendo milhares de operários ocorrem em Minas Gerais e São Paulo. No mesmo período, manifestações estudantis cruzam o país, culminando com a Passeata dos 100 mil em 26 de agosto de 1968. A resposta dos militares: maior endurecimento do regime. Em 13 de dezembro é assinado o AI-5: com ele, o presidente da República passa a poder, a bel-prazer, fechar desde Câmaras de Vereadores até o próprio Congresso Nacional, nomear interventores para qualquer cargo executivo, cassar os direitos políticos de qualquer cidadão e também suspender o recurso ao habeas corpus.

Mas se 1968 é o ano do auge repressivo da ditadura, é também o da retomada do crescimento econômico. O modelo econômico adotado rende finalmente seus frutos e o Brasil, até 1973, apresenta taxas bastante elevadas de desenvolvimento industrial, superando mesmo os 10% ao ano. Fala-se em milagre econômico, mas um milagre que, alguns anos mais tarde, cobraria seu preço.

O aumento dos investimentos das multinacionais, como se previa desde os anos 1950, não é acompanhado pelo crescimento do setor de insumos industriais e de energia, e o resultado disso é a necessidade de importar esses produtos e petróleo. A economia brasileira entra aí em um labirinto de endividamento.

O milagre econômico também amplia, em relação aos padrões da economia brasileira da época, o mercado de produtos industriais de custo elevado, como os automóveis. Tal decisão gera um quadro perverso, no qual a concentração de renda torna-se necessária para garantir o funcionamento do sistema econômico. Bem ou mal, porém, a ditadura conta com algum grau de aprovação popular. No início dos anos 1970, embalados pela vitória da Arena, partido de sustentação do governo, os militares empenham-se em campanha de legitimação do novo regime. O general Emílio Garrastazu Médici, presidente empossado em outubro de 1969, lança a campanha “Brasil, grande potência” e também, com a abertura da Transamazônica, tenta reviver a euforia da época da construção de Brasília.

Em 1974, as consequências mundiais do aumento do custo do petróleo, associadas à política irresponsável de endividamento externo, lançam a economia brasileira novamente em crise. Nessa época, os antigos grupos vinculados à ala legalista das forças armadas – na época definida como castellista, numa alusão ao marechal Castello Branco – recuperam o terreno perdido. A eleição, no referido ano, do general Ernesto Geisel é considerada um marco dessa transição. O novo presidente defende desde o primeiro dia de posse uma abertura política “lenta, segura e gradual”. Para tanto, enfrenta os grupos da linha-dura, altera os comandos militares e procura lentamente subordinar ao Ministério da Justiça os aparelhos repressivos militares, que haviam saído do controle.

Desde 1972, os movimentos armados urbanos não existem mais. A guerrilha, que sobreviveu apenas no Araguaia, foi destroçada em 1974. Os vários tentáculos repressivos passam a perseguir grupos que não participaram desse tipo de enfrentamento, como foi o caso dos militantes do PCB e de membros da Igreja. Por intermédio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a subjugação dos organismos repressivos ganha apoio da sociedade civil.

O processo de abertura, como prevê Geisel, não é linear. Expressivos segmentos militares agrupados em torno do general Sílvio Frota fazem oposição ao presidente, contando inclusive com o apoio de parte, igualmente expressiva, da Arena. A eles, Geisel eventualmente cede, endurecendo o regime, principalmente após o desempenho eleitoral do MDB nas eleições de 1974. Dois anos mais tarde é aprovada a denominada Lei Falcão, em alusão ao nome do ministro da Justiça da época. Através dessa lei ficam proibidos, em programas eleitorais televisivos, o debate e a exposição oral de propostas e críticas ao regime. Mais ainda: em 1977, reformas legais criam meios de a Arena manter presença majoritária no Congresso, apesar das derrotas eleitorais. Amplia-se a representação parlamentar do Norte e do Nordeste e institui-se a indicação de senadores pelo próprio governo, popularmente chamados de “senadores biônicos”.

Por meio dessa delicada engenharia política, Geisel garante a própria sucessão. O novo escolhido é o general João Baptista de Oliveira Figueiredo, empossado em 1979. Nessa eleição concorre o general Euler Bentes Monteiro, apoiado pelo MDB e segmentos importantes do empresariado brasileiro. Nem os mais beneficiados defendem a ditadura, cujo fim não demoraria muito a ocorrer.

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Notas:

  • [11964 — O Brasil entre armas e livros “… é um documentário da Brasil Paralelo que conta a história da Ditadura Militar no Brasil, revelando detalhes que tinham sido ignorados ou ocultados. Ele foi injustamente considerado pró-ditadura e censurado em alguns colégios e faculdades”. Veja abaixo, mais informações sobre o documentário em artigo e vídeo da Brasil Paralelo sobre o período da história do Brasil entre 1964 e 1985.
  • [2] DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Da guerrilha à abertura. In: Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010. Cap. 31, pág. 204 a 208. Texto básico e adaptado...

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