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21 fevereiro 2024

Racionalismo: algumas considerações filosófico-teológicas

 Por Gary R. Habermas [1]

O racionalismo filosófico abrange vários aspectos do pensamento, sendo que todos eles usualmente têm em comum a convicção de que a realidade é de fato racional na sua natureza, e que fazer as deduções apropriadas é essencial para a obtenção do conhecimento. Semelhante lógica dedutiva e o emprego de processos matemáticos fornecem as ferramentas metodológicas principais. Dessa maneira, o racionalismo frequentemente tem sido considerado em contraste com o empirismo.

Formas anteriores do racionalismo encontram-se na filosofia grega, mais notavelmente em Platão, que sustentava que o uso apropriado do raciocínio e da matemática era preferível à metodologia da ciência natural. Esta última, i. é. o empirismo, não só se engana em muitas ocasiões, como também apenas consegue observar fatos neste mundo mutável. Mediante o raciocínio dedutivo, Platão acreditava ser possível Extrair o conhecimento inato que já está presente quando a pessoa nasce, conhecimento este que é derivado do mundo das formas.

O Racionalismo, no entanto, é mais frequentemente associado com os filósofos do iluminismo tais como Descartes, Spinosa e Leibniz. É essa forma do racionalismo da Europa continental o assunto principal deste artigo.

1. Ideias Inatas

Descartes enumerou vários tipos de ideias, tais como aquelas que derivam da experiência, aquelas que são extraídas da própria razão e aquelas que são raras e, portanto, são criadas por Deus na mente humana. Este último grupo era um esteio principal do pensamento racionalista.

Ideias inatas são aquelas que são os verdadeiros atributos da mente humana, que foram dadas à mente por Deus. Sendo assim essas ideias "puras” são conhecidas a prori por todos os seres humanos e, portanto, são cridas por todos. Elas eram de importância decisiva para os racionalistas, de modo que usualmente se sustinha que essas ideias eram a condição prévia para a aprendizagem de fatos adicionais. Descartes acreditava que, sem ideias natas, nenhum outro dado poderia ser conhecido.

Os empiristas1 atacavam os racionalistas neste aspecto e argumentavam que o conteúdo das ideias chamadas inatas na verdade era aprendido através da experiência das pessoas, embora elas talvez tenham refletido pouco sobre isso. Dessa maneira, aprendemos vastas quantidades de conhecimento através da nossa família, educação e sociedade, que surge bem cedo na vida e que não pode ser contado como inato.

Uma das respostas racionalistas a esse argumento empírico era indicar que havia muitos conceitos largamente usados na ciência e na matemática, que não podiam ser descobertos apenas pela experiência. Os racionalistas, portanto, concluíram que o empirismo não poderia existir sozinho, pelo contrário exigia que grandes quantidades de verdades fossem aceitas pelo uso apropriado da razão.

2. A Epistemologia

Os racionalistas tinham muito a dizer a respeito do conhecimento e de como a pessoa poderia ter certeza. Embora essa pergunta recebesse respostas algo diferentes, a maioria dos racionalistas finalmente voltou para a asserção de que Deus era a garantia definitiva do conhecimento.

Talvez o exemplo melhor dessa conclusão se encontre na filosofia de Descartes. Começando a partir da realidade da dúvida, ele resolveu não aceitar nada de que não poderia certeza. Pelo menos uma realidade, no entanto, poderia ser deduzida dessa dúvida: ele estava duvidando e, portanto, devia existir. Nas palavras do seu ditado famoso: "Penso, logo existo”.

A partir da percepção de que duvidava, Descartes concluiu que ele era um ser dependente e finito. Passou, então, para a existência de Deus através de procedimentos dos argumentos ontológico e cosmológico. Nas Meditações III-IV das suas Meditações de Filosofia Primeira, Descartes sustentou que sua ideia de Deus como infinito independente é um argumento nítido e distinto em defesa da existência de Deus.

Descartes, na realidade, concluiu que a mente humana não é capaz de conhecer nada com mais certeza do que conhece a existência de Deus. Um ser finito não será capaz de explicar a presença da ideia de um Deus infinito à parte da Sua existência necessária.

Em seguida, Descartes concluiu que, sendo perfeito, Deus não poderia enganar seres finitos. Além disso, as próprias capacidades que Descartes tinha para julgar o mundo em seu redor lhe foram dadas por Deus, e, portanto, não o enganam. O resultado é que tudo quanto ele pode deduzir mediante o pensamento claro e nítido (tal como aquele que se acha na matemática), a respeito do mundo e de outras pessoas deve, portanto, ser verdadeiro. Sendo assim, a existência necessária de Deus no somente torna possível o conhecimento, como também garante a verdade a respeito daqueles fatos que podem ser claramente delineados. A partir da realidade da dúvida Descartes passou para a sua própria existência, Deus e o mundo físico.

Spinoza também ensinava que o universo operava segundo princípios racionas que o uso apropriado da razão revelava essas verdades, e que Deus era a garantia definitiva do conhecimento. Rejeitava, no entanto, o dualismo cartesiano, e preferiu o monismo (que alguns chamam de panteísmo), em que existia uma só substância chamada Deus ou natureza. A adoração era expressada de modo racional, de acordo com a natureza da realidade. Dos muitos atributos da substância, o pensamento e a extensão eram os mais importantes.

Spinoza utilizava metodologia geométrica para deduzir verdades epistemológicas que podiam ser tidas como fatuais. Ao limitar boa parte do conhecimento a verdades auto evidentes, reveladas pela matemática, ele acabou construindo um dos melhores exemplos da sistematização racionalista da história da filosofia.

Leibniz expôs o seu conceito de realidade na sua obra importante Monadologia. Em contraste com o conceito materialista dos átomos, as mônadas são unidades metafísicas de força sem igual, que não são afetadas pelos critérios externos. Εmbora cada mônada se desenvolva individualmente, estão inter-relacionadas através de uma "harmonia preestabelecida" lógica, que envolve uma hierarquia de mônadas, disposta por Deus e que culmina nEle, que é a Mônada das mônadas.

Para Leibniz, vários argumentos revelavam a existência de Deus, estabelecido como o responsável pela organização das mônadas num universo racional, que era “o melhor de todos os mundos possíveis". Deus era também a base para o conhecimento, e esse fato explica a existência do relacionamento epistemológico entre o pensamento e a realidade. Leibniz, portanto, voltou para um conceito de um Deus transcendente muito mais próximo da posição sustentada por Descartes e em contraste com Spinoza, embora, nem ele nem Spinoza tenham começado com o eu subjetivo, como fez Descartes.

Dessa maneira, a epistemologia era caracterizada por um processo dedutivo de argumentação, sendo que atenção especial era dada à metodologia matemática, e pela fundamentação de todo o conhecimento na natureza de Deus. O sistema de geometria euclidiana desenvolvido por Spinoza reivindicava ter demonstrado que Deus ou a natureza era a única substância da realidade. Certos estudiosos de convicções cartesianas passaram a sustentar o ocasionalismo, segundo a qual os eventos mentais e físicos correspondem entre si (assim como o barulho de uma árvore que cai corresponde ao acontecimento propriamente dito), sendo que os dois são ordenados por Deus. Leibniz utilizou uma aplicação rigorosa de cálculo para derivar, por dedução, o conjunto infinito de mônadas que culminam em Deus.

Esta metodologia racionalista, e a ênfase dada à matemática em especial, foi uma influência importante sobre a ascensão da ciência moderna durante aquele período. Galileu sustentava algumas ideias essencialmente relacionadas, especialmente no seu conceito da natureza matematicamente organizada e percebida como tal através da razão.

3. A Crítica Bíblica

Das muitas áreas em que a influência do pensamento racionalista foi sentida, a alta crítica das Escrituras é certamente uma das mais relevantes para o estudo das tendências teológicas contemporâneas. Spinoza não somente rejeitava a inerrância e a natureza proposicional da revelação especial nas Escrituras, como também era um precursor de David Hume e de alguns deístas ingleses que rejeitavam os milagres. Spinoza sustentava que os milagres, caso sejam definidos como eventos que quebram as leis da natureza, não ocorrem.

Várias tendências no deísmo inglês refletem a influência do racionalismo da Europa continental e semelhanças com ele; o mesmo pode ser dito sobre a influência do empirismo britânico e as similaridades com ele. Além da aceitação do conhecimento inato disponível a todos os homens, e da dedução de proposições a partir desses conhecimentos gerais, os deístas como Matthew Tindal, Anthony Collins e Thomas Woolston procuravam rejeitar os milagres e as profecias cumpridas como evidências a favor da revelação especial. Na realidade, o deísmo como um todo era geralmente caracterizado como uma tentativa de encontrar uma religião natural à parte da revelação especial. Muitas dessas tendências tiveram efeitos marcantes na alta critica contemporânea.

Avaliação

Embora o racionalismo fosse bastante influente de muitas maneiras, também era fortemente criticado pelos estudiosos que notaram vários pontos fracos.

Em primeiro lugar, Locke, Hume e os empiristas nunca se cansavam de atacar o conceito das ideias inatas. Asseveravam que as crianças pequenas davam pouca indicação, ou até mesmo nenhuma, de alguma quantidade vital de conhecimentos Inatos, Pelo contrário, os empiristas não hesitavam em indicar a experiência dos sentidos como o principal mestre, mesmo na infância.

Em segundo lugar, os empiristas também asseveravam que a razão não poderia ser o único (e nem sequer o principal) meio de se conseguir o conhecimento considerando que uma quantidade tão grande dele é captada pelos sentidos. Embora seja verdade que boa parte do conhecimento não pode ser reduzida à experiência dos sentidos, esse fato não indica que seja o meio principal de se adquirir conhecimento.

Em terceiro lugar, tem sido frequentemente indicado que, isoladamente, a razão leva para um número por demais grande de contradições metafisicas e de outras espécies. Por exemplo, o dualismo de Descartes, o monismo de Spinoza e a monadologia de Leibniz, todos têm sido declarados absolutamente conhecíveis, em nome do racionalismo. Se uma ou mais destas opções forem incorretas, o que se deve dizer a respeito das demais?

Em quarto lugar, refutações da alta critica racionalista e deísta apareceram rapidamente, escritas por estudiosos capazes como John Locke, Thomas Sherlock Joseph Butler e William Paley. A revelação especial e os milagres foram especialmente defendidos contra os ataques. Analogy of Religion (Analogia da Religilo") de Butter em especial, era tão devastador que muitos têm concluido que a obra não é apenas uma das apologéticas mais poderosas a favor da té crista, mas também a razão principal do desfalecimento do deísmo.


Notas / Referências bibliográficas:

  • [1] Gary Robert Habermas “… é um estudioso e teólogo americano do Novo Testamento que frequentemente escreve e dá palestras sobre a ressurreição de Jesus. Ele se especializou em catalogar e comunicar tendências entre estudiosos no campo do Jesus histórico e dos estudos do Novo Testamento”. In: <Gary Habermas>. O artigo – Racionalismo – usado (e adaptado) aqui é uma contribuição de Habermas à Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. III. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 225 a 228.

  • [2] Sobre o empirismo: “… embora tudo isto tenha sucedido no continente europeu, na Grã-Bretanha a filosofia tomava um caminho muito distinto. Esse caminho era o do ‘empirismo’ (de uma palavra grega que significa “experiência”). Seu fundador foi o professor de Oxford, João Locke, que em 1690 publicou seu Ensaio sobre o entendimento humano. Locke havia lido as obras de Descartes e estava tão convencido como o filósofo francês de que a ordem do mundo corresponde a ordem do pensamento. Mas não cria que houvesse tal cousa como ideias inatas. Segundo ele, todo conhecimento procede da experiência. Essa experiência pode ser tanto a que nos dão os sentidos como a que nos dá nossa mente ao conhecer-se a si mesma (o que ele chama “sentido interno”). Mas na mente não existe ideia alguma antes que a experiência nos conduza a ela. Isto quer dizer ainda que o único conhecimento certo é o que se baseia na experiência. Não em qualquer experiência passada, mas unicamente na experiência atual.” (Veja aqui, pág., 8).

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