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31 julho 2023

Breve análise teológica sobre o Anticristo

Por Alcides Barbosa de Amorim


Os futuristas [posição atual da maioria dos evangélicos conservadores]creem que o anticristo introduzirá um período de grande tribulação no fim da história mundial, em conexão com um império poderoso tal qual uma Roma rediviva, e que dominará a política, a religião e o comércio até à vinda de Cristo(HUBBARD). Op. Cit.) [1]

A pregação do Anticristo [2]


Embora o termo "anticristo" ocorra somente nas cartas joaninas, o conceito de um arqui-oponente de Deus e de Seu Messias acha-se nos dois testamentos e nos escritos intertestamentários. A oposição é refletida em anti, que aqui provavelmente significa "contra", e não "em lugar de" embora as duas ideias possam estar presentes: apresentando-se como o Cristo, o anticristo se opõe a Ele.

1. Pano de Fundo Veterotestamentário

Pelo fato de que Cristo ainda não tinha sido plenamente revelado, o AT não oferece nenhum retrato completo do anticristo, mas fornece material para o quadro, nas descrições da oposição a Deus, pessoal ou nacional.

Belial. Certos indivíduos, infames pela sua maldade, são chamados "filhos de [ou homens de] Belial (beliya'al, provavelmente "sem valor", "inútil"), Idolatria (Dt 13.13), sodomia e estupro (Jz 19.22; 20.13), embriaguez (1 Sm 1.16), desconsideração a Deus (1 Sm 2.12), sacrilégio (1 Sm 2.17, 22), desrespeito à autoridade (1 Sm 10.27; 2 Cr 13.7), falta de hospitalidade (1 Sm 25.17, 25), perjúrio (1 Rs 2.10, 13) e maledicência (Pv 6.12: 1627) estão incluídos entre os pecados destes "homens vadios" (2 Cr 13.7), que são evitados pelos bons (SI 101.3).

Inimigos Estrangeiros. A oposição ao reino de Deus é oposição a Ele. A vã conspiração das nações contra o rei ungido por Deus, no Sl 2, pode ser uma prefiguração da ideia do anticristo. De modo semelhante, os cânticos de zombaria contra os soberanos da Babilônia (Is 14) e de Tiro (Ez 28) descrevem de modo vivo a queda calamitosa de monarcas que exercem as prerrogativas divinas. A derrota de Gogue (Ez 39.1-20; Ap 20.7-10) parece ser o clímax da luta infrutífera das nações, no sentido de frustrarem os propósitos de Deus ao atingirem o Seu povo.

O Chifre Pequeno. Esta rebelião é simbolizada pelo chifre pequeno, no livro de Daniel. O capitulo 7, o mais escatológico, parece retratar a derrota do último inimigo de Deus, ao passo que o capitulo 8 descreve Antíoco Epifânio (175-163 a. C.), o soberano estrangeiro mais odiado pelos judeus por causa da sua iniquidade pessoal e da sua perseguição implacável à religião deles.

O retrato deste "rei do norte" (Dn 11), a personificação do mal, tem ajudado de modo significante a formar a figura neotestamentária do anticristo:

  • (1) ele aboliu o holocausto contínuo e estabeleceu no templo a abominação desoladora (Dn 11.31; Mt 24.15; Mc 13.14; Ap 13.14-15);

  • (2) exaltou-se à posição de divindade (Dn 11.36-39; 2 Ts 2.3-4);

  • (3) sua morte irremediavelmente certa prevê a morte do "homem da iniquidade" às mãos de Cristo (Dn 11.45; 2 Ts 2.8; Ap 19.20).

Sejam quais forem os antecedentes dos animais em Daniel (W. Bousset: Antichrist Legend – "Lenda do Anticristo", sustenta que a batalha entre o anticristo e Deus tem sua origem na lenda babilônica da luta entre Marduque e Tiamate), claramente são nações que se opõem a Deus e ao Seu povo. A besta que sobe do mar em Ap 13.1 relembra Dn 7.3,7 e reforça o elo entre a profecia de Daniel e a descrição do anticristo no NT.

2. Desenvolvimento Intertestamentário

Duas ênfases aparecem nos apócrifos e nos pseudepígrafos:

  • (1) Roma toma o lugar da Síria como inimiga nacional, e Pompeu substitui Antíoco IV como epítome da oposição a Deus;
  • (2) Belial (Beliar) é personificado como espírito satânico.

O "iníquo" (2 Ts 2.8) tem sido ligado a Beliar, que a tradição rabínica interpretava como "sem jugo" (beliol), ou seja, aquele que recusa o jugo da lei. Esta associação parece ser reforçada pela tradução feita na LXX de belial por paranomos, "violador da lei" (Dt 13.13 etc.). Apesar disso, embora a descrição de Paulo possa refletir parcialmente a tradição de Beliar, ele faz uma distinção entre Beliar e o iníquo: Beliar é um sinônimo de Satanás (2 Co 6.15), ao passo que há diferenciação entre Satanás e o iníquo (2 Ts 2.9).

3. Desenvolvimento Neotestamentário

Os Evangelhos. As referências ao oponente de Cristo não são numerosas nem especificas. Os discípulos são advertidos de que falsos Cristos procurarão enganar até mesmo os próprios eleitos (Mt 24.24; Mc 13.22). De modo semelhante, Cristo fala daquele que vem no seu próprio nome, a quem os judeus recebem (Jo 5.43). Esta pode ser uma referência sutil ao anticristo ou a quaisquer falsos Messias que se apresentassem ao judaísmo. Até mesmo a menção do abominável da desolação (Mt 24.15; Mc 13.14), que relembra vividamente a profecia de Daniel, é feita com notável reserva. Talvez uma única personalidade esteja em vista, mas seu retrato nem sequer é esboçado.

2 Tessalonicenses. Paulo oferece um quadro mais claro do arqui-inimigo de Cristo, cuja característica mais destacada é o desprezo à lei. Dois homens – "o homem da iniquidade" (preferível a "homem do pecado") e "o iníquo" (2 Ts 2.3, 8-9) – ressaltam esta atitude de anarquia, que relembra Dn 7.25, onde o chifre pequeno procura mudar os tempos e a lei, Além disso, o anticristo faz uma reivindicação exclusiva à divindade (2 Ts 24) em termos que relembram Dn 7.25; 11.36. Paulo não retrata um pseudo-Messias que finge ser o mensageiro de Deus, mas um falso Deus que se opõe de modo malévolo a qualquer outro tipo de religião. Seu modelo pode ter sido o imperador blasfemo, Gaio 037-41 d.C.).

Ele engana a muitos com os seus sinais (2 Ts 2.9-10). Cristo operava milagres pelo poder de Deus, e os judeus os atribuíam a Satanás (Mt 12.24ss.); o anticristo operará milagres pelo poder satânico, e muitos o adorarão como Deus. Um dos nomes do anticristo – "filho da perdição" (2 Ts 2.3; cf. Jo 17.12) – revela o seu destino: Cristo o matará com o sopro da Sua boca e com o brilho da Sua vinda (2 Ts 2,8; Ap 19.15, 20; cf. Is 11.4).

O anticristo é o clímax pessoal de um principio de rebeldia que já está operando secretamente "o mistério da iniquidade" (2 Ts 2.7). Quando for retirada a mão refreadora de Deus, que preserva a lei e a ordem, este espírito de iniquidade satânica será encarnado no "iníquo".

As Cartas Joaninas. Embora João reconhecesse que era esperado um único anticristo, ele dirige a sua atenção aos muitos anticristos que já apareceram negando que Jesus é o Cristo, contrariando, assim, a verdadeira natureza do Pai e do Filho (1 João 2.8, 22:43). Os docetistas contemporâneos não davam crédito à humanidade de Cristo (2 Jo 7), alegando que Ele parecia ter a forma humana. Para João, eles eram a concretização do espírito do anticristo. O modo de ver deles ensinava que o homem era divino à parte de Deus em Cristo, e assim deixaram Deus e o mundo sem união entre si.

Ao invés de contrariar, a explicação de João complementa a de Paulo. Seguindo o exemplo de Daniel, Paulo retrata um único arqui-inimigo, que reivindica o direito exclusivo de receber adoração pessoal. João ressalta os elementos espirituais nestas reivindicações e a mentira espiritual que torna o anticristo aparentemente forte.

O Apocalipse. A besta do Apocalipse (Ap 13), que, quanto ao espírito e aos pormenores, depende de Daniel, combina em si as características de todas as quatro bestas do AT. Além disso, a besta no NT tem uma autoridade que pertence somente ao chifre pequeno da besta de Daniel. Parece que João dá a subentender que a impiedade selvagem da Antíoco será incorporada num reino; a besta, embora tenha algumas características pessoais, é mais do que uma pessoa; suas sete cabeças são sete reis (Ap 17.10-12). A própria besta é um oitavo rei, que vem de um dentre os sete. Este quadro complicado sugere que a besta simboliza o poder mundano, o espirito contrário a Deus, de uma ambição nacionalista (personificada, na profecia de Daniel, em Antíoco, e, nos dias de João, em Roma) que se encarnará num só grande demagogo – o anticristo.

À explicação de Paulo, João acrescenta pelo menos um elemento importante – o falso profeta, uma segunda besta que opera sob a autoridade do anticristo, assim como este obtém a autoridade dele do dragão, Satanás (Ap 13.2, 11-12). Depois de dirigir os empreendimentos políticos e religiosos do anticristo, o falso profeta compartilha da condenação deste na ocasião da vinda de Cristo (Ap 19.20).

4. Interpretação Cristã

Os pais da igreja geralmente acreditavam na existência de um anticristo pessoal. Sua identidade dependia de se o "mistério da iniquidade" era interpretado de modo politico ou religioso. Politicamente, o candidato mais provável era Nero, que, segundo dizia a lenda, reaparecia na forma ressurreta (redivivus) para continuar seu reinado terrível. Esta interpretação, proposta por Crisóstomo e outros, obteve uma posição de destaque neste século, através dos intérpretes preteristas do Apocalipse tais como R. H. Charles e C. A, Scott. Irineu e outros, que afirmavam que o anticristo surgiria de um contexto religioso, fizeram-no remontar à tribo de Dã, com base em Gn 49.17:0 33.22; Jr 8.16 (cf. a omissão de Dã em Ap 7.5ss.).

Os reformadores comparavam o anticristo ao papado, assim como tinham feito alguns teólogos medievais – Gregório I (que ensinava que quem assumisse o titulo de “sacerdote universal" seria precursor do anticristo), Joaquim de Floris e Wycliffe. Lutero Calvino, os tradutores da AV (versão do Rei Tiago) e os autores da Confissão de Fé de Westminster concordavam nesta identificação. Os estudiosos católicos romanos retaliaram, taxando de anticristo os opositores de Roma.

No conceito ideal ou simbólico, o anticristo é uma personificação não temporal do mal, que não se pode identificar com uma só nação, instituição ou individuo. Esta ideia obtém apoio nas cartas de João, e tem valor no fato de enfatizar a natureza constante da guerra entre as múltiplas forças de Satanás e as de Cristo.

Os futuristas (e.g., Zahn, Seiss, Scofield) sustentam que os idealistas deixam de ressaltar suficientemente o clímax desta hostilidade num adversário pessoal. Creem que o anticristo introduzirá um período de grande tribulação no fim da história mundial, em conexão com um império poderoso tal qual uma Roma rediviva, e que dominará a política, a religião e o comércio até à vinda de Cristo.


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Veja também:


Notas:

  • [1David A. Hubbard (1928-1996) "Foi Presidente Emérito e Professor Emérito de Antigo Testamento no Seminário Teológico Fuller. Autor de Joel e Amós - Introdução e Comentário, igualmente publicado pela Vida Nova<https://www.vidanova.com.br/livros/autores/david-a-hubbard>. O texto a seguir é uma contribuição à Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (O. C.).


Referência bibliográfica:

  • HUBBARD, David A. Anticristo. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. I. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 81 a 84.



28 julho 2023

Breve análise teológica sobre a Teologia da Libertação

Breve análise teológica sobre a Teologia da Libertação

Por Alcides Barbosa de  Amorim


Os teólogos da libertação concordam com a famosa declaração de Marx: ‘Até agora, os filósofos têm explicado o mundo; a nossa tarefa é transformá-lo’. Argumentam que os teólogos não devem ser teóricos, mas praticantes que se engajam na luta para realizar a transformação da sociedade…” (WEBSTER) [1]

Teologia da Libertação e sua influência na Igreja [2]


Trata-se mais de um movimento que procura unir a teologia e as preocupações sociopolíticas do que de uma nova escola de teoria politica. É mais exato falar das teologias da libertação, no plural, porque essas teologias de libertação acham expressão contemporânea entre negros, feministas, asiáticos, latino-americanos e índios das Américas. A expressão mais relevante e articulada acontece na América Latina. Temas teológicos têm sido desenvolvidos no contexto latino-americano, servindo como modelos para outras teologias de libertação.

Há, no mínimo, quatro fatores principais que desempenharam um papel relevante na formulação da teologia da libertação latino-americana. Em primeiro lugar, é um movimento teológico pós-iluminista. Os proponentes principais – tais como Gustavo Gutiérrez, Juan Segundo, José Miranda reagem favoravelmente às perspectivas epistemológicas e sociais de Kant, Hegel e Marx. Em segundo lugar, a teologia da libertação tem sido grandemente influenciada pela teologia politica europeia e pela teologia radical norte-americana, e tem achado em J. B. Metz e Jürgen Moltmann e Harvey Cox perspectivas que criticaram a natureza não-histórica e individualista da teologia existencial.

Em terceiro lugar, é, na sua maior parte, um movimento teológico católico romano. Com exceções notáveis tais como José Miguez-Bonino (metodista) e Rubem Alves (presbiteriano), a teologia da libertação tem sido identificada com a Igreja Católica Romana. Depois de Vaticano II (1965) e da Conferência dos Bispos Latino-Americanos (CELAM II) em Medelin, na Colômbia (1968), um número relevante de líderes latino-americanos dentro da Igreja Católica Romana voltou-se para a teologia da libertação como a voz teológica da igreja latino-americana. O papel dominante da Igreja Católica Romana na América Latina fez dela um veículo significante para disseminar a teologia da libertação por todo o continente sul-americano.

Em quarto lugar, é um movimento teológico situado de modo especifico e singular no contexto latino-americano. Os teólogos da libertação argumentam que o continente deles tem sido vitimado pelo colonialismo, imperialismo e pelas sociedades anônimas multinacionais. O “desenvolvimento” econômico colocou as nações do Terceiro Mundo, chamadas subdesenvolvidas, numa situação de dependência, e, como resultado, as economias locais da América Latina estão sendo controladas por decisões feitas em Nova Iorque, Houston ou Londres. A fim de perpetuarem essa exploração econômica (assim argumentam os liberacionistas), os países capitalistas poderosos, especialmente os Estados Unidos, oferecem ajuda militar e econômica para garantir certos regimes políticos que colaboram para o estado atual da economia. Esses quatro fatores combinam-se para criar um método e uma interpretação teológicos distintivos.


1. O Método Teológico

Gustavo Gutiérrez define a teologia como "a reflexão critica sobre a práxis histórica. A feitura de uma teologia exige que o teólogo esteja engajado na sua própria história intelectual e sociopolítica. A teologia não é um sistema de verdades eternas que ocupa o teólogo no processo repetitivo da sistematização e da argumentação apologética. A teologia é um exercício dinâmico contínuo que envolve percepções contemporâneas do conhecimento (a epistemologia), do homem (a antropologia) e da história (a análise social). "Práxis significa mais do que a aplicação da verdade teológica a uma determinada situação. Significa a descoberta e a formulação da verdade teológica dentro de uma determinada situação histórica, mediante a participação pessoal na luta de classes, visando uma nova sociedade socialista. A teologia da libertação aceita o duplo "desafio do Iluminismo" (Juan Sobrino). Esses dois elementos criticos formam a hermenêutica bíblica da teologia da libertação. O primeiro desafio vem através da perspectiva filosófica começada por Immanuel Kant, que argumentava a favor da autonomia da razão humana. A teologia já não é elaborada para corresponder à autor revelação de Deus mediante a autoria divino-humana da Bíblia. Essa revelação "externa" é substituída pela revelação de Deus achada na matriz da interação humana com a história. O segundo desafio vem através da perspectiva politica fundada por Karl Marx, que argumenta que a integridade do homem pode ser realizada somente quando se vence as estruturas políticas e econômicas alienantes da sociedade. O papel do marxismo na teologia da libertação deve ser entendido com honestidade. Alguns criticos sugerem que não se pode distinguir entre a teologia da libertação e o marxismo, mas tal conceito não é totalmente exato.

Os teólogos da libertação concordam com a famosa declaração de Marx: "Até agora, os filósofos têm explicado o mundo; a nossa tarefa é transformá-lo". Argumentam que os teólogos não devem ser teóricos, mas praticantes que se engajam na luta para realizar a transformação da sociedade. Para fazer isso, a teologia da libertação emprega uma análise de classes de estilo marxista, que divide a cultura entre os opressores e os oprimidos. Essa análise sociológica do conflito procura identificar as injustiças e a exploração dentro da situação histórica. O marxismo e a teologia da libertação voltam-se para a fé cristã como um meio de efetivar a libertação. Marx não conseguiu perceber a força emotiva, simbólica e sociológica que a igreja poderia ser na luta pela justiça. Os teólogos da libertação declaram que não estão deixando para trás a antiga tradição cristã quando empregam o pensamento marxista como uma ferramenta para a análise social. Declaram que não usam o marxismo como uma cosmovisão filosófica, nem como um plano abrangente para a ação politica. A libertação humana pode começar com a infraestrutura econômica, mas não termina ali.

O desafio do Iluminismo é seguido pelo desafio da situação latino-americana na formulação da hermenêutica da práxis da teologia da libertação. A chave hermenêutica importante que emerge do contexto latino-americano 6 resumida na referência de Hugo Assmann ao "privilégio epistemológico dos pobres". Num continente onde a maioria é pobre e católico romana, a teologia da libertação declara que a luta é contra a desumanidade do homem para com o seu próximo, e não contra a incredulidade. Os teólogos da libertação têm esculpido uma posição especial para os pobres. "O pobre, o outro, nos revela o totalmente Outro" (Gutiérrez). Toda a comunhão com Deus depende de optar pelas classes pobres e exploradas, Identificando-se com sua triste situação, e compartilhando seu destino. Jesus "seculariza os meios da salvação, o faz com que o sacramento do 'outro' seja um elemento determinante para a entrada no Reino de Deus" (Leonardo Boff). "Os pobres são a epifania do Reino ou da exterioridade infinita de Deus” (Enrique Dussel). A teologia da libertação sustenta que na morte do camponês ou do indígena, somos confrontados com "o poder monstruoso do negativo” (Hegel). Somos forçados a entender Deus a partir da história mediada através das vidas dos seres humanos oprimidos. Deus não é reconhecido analogicamente na beleza e no poder da criação, mas dialeticamente no sofrimento e no desespero da criatura. A tristeza "dispara o processo da cognição" e nos capacita a compreender Deus e o significado da Sua vontade (Sobrino). Combinar a reflexão crítica pós-iluminista com uma nítida consciência da história latino-americana, tão elevada de conflitos, resulta em várias perspectivas teológicas importantes.


2. A Interpretação Teológica

Os teólogos da libertação acreditam que a doutrina ortodoxa tende a manipular Deus para favorecer a estrutura social capitalista. Alegam que a ortodoxia depende de noções gregas antigas que viam Deus como um ser estático que está distante e remoto da história humana. Essas noções distorcidas da transcendência e da majestade de Deus resultaram numa teologia que pensa num Deus “lá em cima" ou "lá fora". Como consequência, a maioria dos latino-americanos tornou-se passiva diante da injustiça e supersticiosa na sua religiosidade. A teologia da libertação responde ressaltando o mistério incompreensível da realidade de Deus. Deus não pode ser resumido a uma linguagem objetificante nem conhecido através de uma lista de doutrinas. Deus é achado no curso da história humana. Deus não é uma entidade perfeita e imutável, "acomodado longe do mundo". Ele Se apresenta diante de nós na fronteira do futuro histórico (Assmann). Deus é a força motriz da história, que leva o cristão a experimentar a transcendência como uma “revolução cultural permanente” (Gutiérrez). O sofrimento e a dor tornam-se a força motivadora para conhecer a Deus. O Deus do futuro é o Deus crucificado que submerge num mundo de desgraça. Deus é achado nas cruzes dos oprimidos mais do que na beleza, no poder ou na sabedoria.

A noção bíblica da salvação é equiparada ao processo da libertação da opressão e da injustiça. O pecado é definido em termos da desumanidade do homem para com seu próximo. A teologia da libertação, para todos os propósitos práticos, equipara amar ao próximo com amar a Deus. As duas atitudes não são apenas praticamente inseparáveis como também virtualmente indistinguíveis entre si. Deus é achado em nosso próximo e a salvação é identificada com a história do "tornar-se homem". A história da salvação passa a ser a salvação da história, que abrange todo o processo de humanização. A história bíblica é importante à medida que oferece modelos e ilustrações para essa busca da justiça e da dignidade humana. A libertação de Israel no Êxodo e a vida e a morte de Jesus destacam-se como protótipos da luta humana contemporânea pela libertação. Esses eventos bíblicos representam a relevância espiritual da luta secular pela libertação.

A Igreja e o mundo já não podem ser segregados. A igreja deve deixar que seja habitada e evangelizada pelo mundo. "Uma teologia da Igreja no mundo deve ser implementada por uma teologia do mundo na Igreja" (Gutiérrez). Tomar o partido dos oprimidos, em solidariedade com eles, contra os opressores é um ato de "conversão", e "evangelização” é proclamar a participação de Deus na luta humana pela justiça.

A importância de Jesus para a teologia da libertação acha-se na Sua luta exemplar pelos pobres e proscritos. Seus ensinos e Suas ações em favor do reino de Deus demonstram o amor de Deus numa situação histórica que tem notável semelhança com o contexto latino-americano. O significado da encarnação é reinterpretado. Jesus não é Deus num sentido ontológico nem metafísico. O essencialismo é substituído pela noção da relevância relacional de Jesus. Jesus nos mostra o caminho de Deus; Ele nos revela o meio de nos tornarmos filhos de Deus. O significado da encarnação de Jesus acha-se na Sua total imersão numa situação histórica de conflito e opressão. Sua vida absolutiza os valores do reino – o amor incondicional, o perdão universal e a referência continua ao mistério do Pai. Mas é impossível fazer exatamente aquilo que Jesus fez, porque Seus ensinos específicos dirigiam-se a um período histórico especifico. Em certo nível, Jesus pertence irreversivelmente ao passado, mas em outro nível, Jesus é o ápice do processo evolucionista. Em Jesus, a história chega ao seu alvo. Seguir a Jesus, no entanto, não é questão de seguir Seus passos na tentativa a aderir à Sua conduta moral e ética, mas é recriar o Seu caminho, mantendo-se aberto à Sua "memória perigosa" que lança dúvidas sobre o nosso caminho. A singularidade da cruz de Jesus não se acha no fato de que Deus, num momento específico do espaço e do tempo, experimentou o sofrimento que é intrínseco à pecaminosidade do homem a fim de fornecer um caminho de redenção. A morte de Cristo não é uma oferta vicária pela humanidade que merece a ira de Deus. A morte de Jesus é sem igual porque Ele torna histórico de modo exemplar o sofrimento de Deus em todas as cruzes dos oprimidos. A teologia da libertação sustenta que através da vida de Jesus as pessoas são trazidas à convicção libertadora de que Deus não permanece fora da história, indiferente ao curso presente de maus eventos, mas que Ele Se revela através do veículo autêntico dos pobres e dos oprimidos.


3. A Análise Crítica Teológica

A força da teologia da libertação acha-se na sua compaixão pelos pobres e na sua convicção de que o cristão não deve permanecer passivo e indiferente diante dos seus apuros. A desumanidade do homem para com o seu próximo é pecado e merece o castigo divino e a oposição dos cristãos. A teologia da libertação é um apelo a um discipulado sacrificial e uma lembrança de que seguir Jesus envolve consequências práticas sociais e políticas.

A fraqueza da teologia da libertação tem sua origem na aplicação de princípios hermenêuticos enganosos e no afastamento da fé cristã histórica. A teologia da libertação tem razão em condenar uma tradição que procura fazer uso de Deus para atingir as suas próprias finalidades, mas engana-se ao negar a auto-revelação definitiva de Deus na revelação bíblica. Argumentar que nosso conceito de Deus é determinado pela situação histórica é concordar com a secularização radical que absolutiza o processo temporal e dificulta a distinção entre a teologia e a ideologia.

O marxismo pode ser uma ferramenta útil para identificar a luta de classes que está sendo travada entre muitos países do Terceiro Mundo, mas surge a pergunta: O papel do marxismo foi limitado a uma ferramenta de análise ou foi transformado em solução politica? A teologia da libertação tem razão em desmascarar o fato da opressão na sociedade e o fato de haver opressores e oprimidos, mas é errado dar a esse alinhamento uma condição quase ontológica. Talvez isso possa ser feito com o marxismo, mas o cristão entende que o pecado e a nossa alienação de Deus é um dilema que confronta tanto o opressor como os oprimidos. A ênfase que a teologia da libertação atribui aos pobres dá a impressão de que os pobres não somente são o objeto da solicitude de Deus, como também o sujeito da salvação e da revelação. Somente o clamor dos oprimidos é a voz de Deus. Tudo o mais é projetado como uma tentativa vã de compreender Deus por algum meio que sirva aos próprios interesses. Essa é uma noção confusa e enganadora. A teologia bíblica revela que Deus é a favor dos pobres, mas não ensina que os pobres são a própria corporificação de Deus no mundo de hoje. A teologia da libertação ameaça politizar o evangelho de tal maneira que aos pobres é oferecida uma solução que poderia ser provida com ou sem Jesus Cristo.

A teologia da libertação desperta os cristãos para levarem a sério o impacto politico e social da vida e da morte de Jesus, mas deixa de fundamentar a singularidade de Jesus na realidade da Sua divindade. Alega que Ele é diferente de nós quanto ao grau, mas não quanto ao tipo, e que a Sua cruz é o clímax da Sua identificação vicária com a humanidade sofredora ao invés de ser uma morte vicária oferecida para desviar a ira de Deus e para triunfar sobre o pecado, a morte e o diabo. Uma teologia da cruz que isola a morte de Jesus do seu lugar específico no desígnio de Deus, e que repudia o desvendamento do seu significado revelado não tem poder algum para nos levar a Deus, e para garantir, assim, que nossa entrega teológica seja perpétua.


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Veja também:


Sugiro, também, o vídeo, a seguir, de Luiz Camargo:


Notas:

  • [1Douglas D. WEBSTER é um pastor presbiteriano (?), Ph.D., Universidade de Toronto, Professor de Teologia, Seminário Teológico de Ontário, Willowdale. Ontário, Canadá… Veja mais em: <Douglas Webster (samford.edu)>. O texto a seguir é uma contribuição à Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (R. B.).


Referência bibliográfica:

  • WEBSTER, Douglas D.. Teologia da Libertação. In: Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. Editor Walter A. Elwell. Vol. III. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 479 a 483.

17 julho 2023

Breve análise teológica sobre Karl Marx

Por Luiz A. T. Sayão [1]

“… o marxismo é uma miscelânea de evolucionismo, hegelianismo com iluminismo humanista impregnado de fortes influências da cosmovisão judaico-cristã...”

 


O pensamento de Karl Marx, bem como o sistema filosófico conhecido como marxismo, tem sido amplamente discutido como uma teoria sociopolítico-econômica [2]. Parece difícil comprovar a eficácia das promessas marxistas na história, Quando executadas, seus resultados são poucos satisfatórios. Apesar disso, o marxismo tem sido visto, de modo geral, como um sistema filosófico e "cientifico". Nestas poucas linhas gostaríamos de comentar alguns aspectos religiosos e teológicos do marxismo que têm sido pouco enfatizados, mas que, talvez, possam explicar o relativo sucesso e popularidade das ideias do renomado filósofo judeu-alemão.

É quase universalmente conhecida a visão negativa que o pensamento de Marx sustenta com respeito à religião. A religião é o ópio do povo. Ela aliena o homem de si mesmo, proporcionando-lhe uma fuga de sua atitude transformadora da história. Assim, o marxismo é caracterizado como ateu e antirreligioso. O fato, porém, é que Marx, sendo judeu e tendo vivido na Europa Ocidental do século XIX, aproveitou muito de sua herança judaico-cristã para a elaboração de seu sistema filosófico. Invertendo o idealismo de Hegel [3], Marx considera a matéria como realidade única e entende o desenvolvimento da história de modo similar à visão cristã. A história caminha para um alvo final que é a remissão do homem de todas suas injustiças, mazelas desigualdades. O comunismo marxista implantará esta condição sem par. A visão é escatológica. Deus é substituído pelo homem, que se torna o personagem principal do cenário. As profecias bíblicas e aspirações de uma idade de ouro (recuperada ou não) são aproveitadas, mas somente se cumprirão mediante a ação humana e a execução dos princípios dos escritos de Marx e Engels, substitutos da Bíblia. Nessa estrutura Humanista também não falta um povo escolhido ou predestinado, que executará a brilhante tarefa: o proletariado. Este tem os mais ricos como gentios e deverão triunfar sobre eles. Há, então, um aspecto messiânico e soteriológico no pensamento marxista que, certamente, tem suas origens no pensamento judaico-cristão, tão fortemente criticado pelo mesmo.

Devido a estes aspectos, o marxismo já tem sido considerado até mesmo uma espécie de heresia do cristianismo. Enquanto as ideias de Marx parecem ignorar as necessidades transcendentais ou religiosas do ser humano, quando postas em prática seu sucesso parece depender diretamente destas mesmas necessidades! Parece sensato afirmar que o marxismo é uma miscelânea de evolucionismo, hegelianismo com iluminismo humanista impregnado de fortes influências da cosmovisão judaico-cristã. Ele tenta unir o agradável e desejável do pensamento cristão (promessas de um futuro perfeito, propósito específico para a história e para o homem) com as inovações da modernidade que procuraram suavizar ao homem as exigências do cristianismo histórico (humanismo; o homem é Deus, a ciência humana trará felicidade final ao homem etc.). Com esta estrutura, aliada às injustiças sociais e fracassos de diversos sistemas políticos, o marxismo tem encontrado grande espaço no século XX, visto que está mais bem elaborado para atingir e se comunicar com a grande parte dos homens este século que não quer Deus, mas que deseja seus benefícios. Além deste aspecto, deve ser lembrado que o marxismo permanece como um dos poucos sistemas filosóficos da atualidade que possui propósitos e promessas, visto que as filosofias europeias do século XX têm tentado focalizar o absurdo, o desespero e a falta de significado do ser humano (existencialismo). Tal fato deixa o marxismo com poucos concorrentes! Talvez seja possível entender as razões do crescimento do marxismo ateu neste século, cujo sucesso relativo ocorre devido às suas características transcendentais e religiosas, as quais ele tanto condena no cristianismo. Talvez isso aconteça por temor ao seu concorrente que já tem séculos de permanência e vida, enquanto o marxismo declina principalmente por contar com uma visão antropológica otimista, confiando na bondade e esforços humanos, enquanto os cristãos confiam no Deus criador e na redenção que há em Cristo Jesus.



Notas:

  • [1] Luiz Alberto Teixeira Sayão é um pastor batista, teólogo, linguista, tradutor bíblico e hebraísta brasileiro…. Atualmente apresenta alguns programas na Rádio Trans Mundial que são: Rota 66, A Verdadeira Espiritualidade, Conversando com Luiz Sayão e No Ponto (Wikipedia). Veja mais em: <https://luizsayao.com.br/about-us/>. O texto a seguir é uma contribuição à Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã (R. B.).

  • [2] Já destacamos brevemente suas ideias (econômicas e políticas) quando falamos sobre a Revolução Russa de 1917. Veja o link: <A Revolução Russa de 1917>.


Referência bibliográfica:

  • SAYÃO, Luiz Alberto Teixeira. Karl Max. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. II. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 483 e 484.

15 julho 2023

Breve análise teológica sobre Hegel

Por Alcides Barbosa de Amorim

 

“Se Deus se revela ao homem, ele faz essencialmente ao homem como ser pensante... os animais não têm religião..."

 

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (1770-1831) [1], Filósofo alemão. Filho de um funcionário público em Stuttgart. Nada na sua juventude nem na sua escolaridade indicava a grande influência que viria a ter. Quando se formou na Universidade de Tübingen, em 1793, seu certificado recomendava seu bom caráter e conhecimento razoável de teologia e filologia, bem como seu domínio inadequado de filosofia. Depois de ter sido um tutor residente de famílias aristocráticas, Hegel aceitou um professorado na Universidade de Jena, em 1801. Ali, foi influenciado por Schelling, com quem trabalhou na redação do Critical Journal of Philosophy ("Revista Critica da Filosofia"). Foi em Jena, também, que escreveu sua primeira obra importante: The Phenomenology of Spint CA Fenomenologia do Espirito"). Infelizmente, uma batalha militar em 1807 forçou a Universidade a se fechar, e Hegel passou a trabalhar por um breve período como editor de um noticiário diário. Em 1808, tornou-se diretor de uma escola em Nuremberg, onde sua filosofia continuava a florescer num ritmo natural. Em 1816, começou a ensinar filosofia na Universidade de Heidelberg. Finalmente, em 1818 tornou-se catedrático de Filosofia na Universidade de Berlim, onde ficou famoso e influente.

Hegel foi o mais influente dos idealistas alemães. Na opinião dele, apenas a mente é real: tudo o mais é a expressão da mente. A filosofia veio a ser um tipo de teologia para Hegel, porque via toda a realidade como uma expressão do Absoluto, que é Deus Tudo quanto existe é a expressão da mente divina, de modo que o real é racional e o racional é real.

Em termos de método, Hegel procurava acentuar aquilo que considerava como contradições no pensamento das pessoas, a fim de desmascarar a fraqueza das suas opiniões. Pensava que o erro é causado polo pensamento incompleto ou pela abstração. Quando ele desmascarava as "contradições", as pessoas podiam perceber que seus pensamentos eram incompletos, sendo levadas a compreender aquilo que era especifico e real. Hegel pensava na própria História como um foro onde as contradições e as insuficiências do pensamento e ação finitos são desmascaradas, permitindo que a mente infinita do Absoluto chegue a níveis superiores da expressão cultural e espiritual.

Segundo Hegel, o Estado é a realização mais sublime do homem. Embora ele enfatizasse o amor dentro da família, considerava que o Estado era uma expressão mais sublime e universal do amor familiar. O Estado produz a concretização do ideal ético; a mente da nação é o divino, "o Deus real", que em si mesma tem conhecimento e vontade. O fato de que o Estado impõe sua vontade pela força não preocupava Hegel, que considerava benéfica a guerra. A guerra evita a estagnação na história e preserva a saúde das nações. Duas nações diferentes podiam ter razão igualmente, e as duas podiam ser expressões divinas; a guerra decide qual "direito" tem que ceder lugar ao outro.

Hegel dividia a religião em quatro etapas diferentes – quatro maneiras de obter conhecimento do Absoluto. A primeira é a religião natural, ou o animismo, em que o homem adorava as árvores, os ribeiros e os animais. A segunda etapa representa Deus de forma humana, com templos edificados e estátuas honradas. Esta etapa também envolve o desenvolvimento da autoconsciência nos seres humanos. O cristianismo histórico fornece a terceira etapa. Mediante a encarnação, Deus está presente no mundo – Deus e os homens juntos. Hegel dava valor aos ensinos éticos de Jesus, especialmente os do Sermão da Montanha. Jesus não fazia distinção entre inimigos e amigos; ele rompia as desigualdades. Com Jesus, a moralidade era uma expressão espontânea da vida – uma participação da vida divina. A quarta etapa é a mais alta; é a reformulação por Hegel das crenças cristãs em conceitos da filosofia especulativa.

Segundo Hegel, a religião (como a vida da mente em geral) aparece sobretudo na forma dos pensamentos ou conceitos humanos. Sentir é a forma inferior de consciência, enquanto que o raciocínio – que distingue o homem dos animais – é a forma mais elevado. ‘Se Deus se revela ao homem, ele faz essencialmente ao homem como ser pensante... os animais não têm religião.’ O sistema de Hegel abria espaço para os aspectos eruditos e especulativos da teologia... [2]

Hegel via Deus manifestado no mundo de muitas maneiras. A própria História é estudo da providência divina. Mediante a ação divina, "contradições entre movimentos ou culturas antitéticos são repetidas vezes resolvidas numa síntese superior. Deus Se expressou plenamente na encarnação, porque aqui Sua presença não estava restrita além do mundo. Apesar disso, na encarnação Deus ficou demasiadamente ligado a um meio ambiente especifico. É necessária uma religião filosófica mais geral. Deus é amor, e, portanto, embora a negação e a oposição sejam historicamente necessárias entre as teses e antíteses, a reconciliação e a síntese são sempre essenciais. Os movimentos dialéticos da História são expressões da providência de Deus no decurso de todo o tempo.

As interpretações de Hegel variam grandemente. Muitos consideram que seu cristianismo "filosofizado" é herético, um panteísmo levemente velado. Para outros, o sistema de Hegel é uma tentativa sincera de articular a verdade cristã na linguagem filosófica. Sua influência teve amplo alcance e se estendeu para a dialética histórica de Marx por um lado, e para a preocupação de Kierkegaard com a autoconsciência e a paixão, por outro lado.


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Veja também:

Notas:

  • [1] DEVRIES P. H.: Ph.D., Universidade de Virgínia. Professor Adjunto de Filosofia, Wheaton College, Wheaton, Illinois, EUA. O texto a seguir é uma contribuição à Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, mencionado nas Referências Bibliográficas deste artigo.

  • [2] HAGGLUND, 2003: Pág. 313.


Referências bibliográficas:

  • DEVRIES, Paul Henry. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich (1770-1831). In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. II. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 242 e 243.

  • HAGGLUND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre/RS: Concórdia, 2003.

09 julho 2023

Uma República Velha?

Por  Alcides Amorim [1]


Em 1922, comentando a presença de um mendigo vivendo num matagal na capital federal, Lima Barreto observa: “Não diz a notícia dos jornais que o homem se alimentasse de caça e pesca, acabando assim o quadro de uma vida humana perfeitamente selvagem, desenvolvendo-se bem perto da avenida Central que se intitula civilizada”. Nesse trecho da crônica “Variações”, podemos perceber que as transformações indicadas nos capítulos anteriores conviveram com a permanência de tempos anteriores, de tempos quase selvagens. Constatações como esta fizeram muitos estudiosos encararem o regime criado em 1889 como uma superficial reorganização de instituições políticas, sem grandes implicações econômicas ou sociais. Mais ainda: houve quem interpretasse o novo sistema político como um “salto” para trás no tempo histórico, uma ruptura com a tendência centralizadora do Império, que deu lugar ao pleno domínio dos fazendeiros no quadro político nacional.

Da mesma forma que os temas anteriormente discutidos, essas interpretações são alvo de calorosas discussões. Um dos principais aspectos questionados é o suposto enfraquecimento do Estado. A crítica, por sinal, tem sua razão de ser, pois a fragmentação federalista, inversamente ao que ocorreu na época regencial, não fez surgir movimentos separatistas. Ao contrário, o poder central, de certa maneira, se viu fortalecido, pois a Primeira República coincide com a decadência econômica dos proprietários rurais de numerosas regiões e que, por isso, se tornam dependentes das funções, dos recursos e da proteção proporcionados pelo aparelho público federal.

Outras interpretações sublinham que a novidade republicana foi o surgimento de governos estaduais fortemente controlados por grupos oligárquicos, situação que, em razão do Poder Moderador, dificilmente ocorria na época monárquica. Assim, entre o mandão de uma cidadezinha e o presidente da República, surge uma instância intermediária, que barganha favores, empregos e verbas em troca de apoio político. Esse arranjo consiste no núcleo da Política dos Governadores, que, entre 1898 e 1930, dominou a República Velha. Campos Sales, seu idealizador, é, por isso, considerado um político sagaz e de grande imaginação. Uma análise comparativa com o que ocorria em outros países da América Latina revela, porém, que a proposta não era propriamente uma novidade; na Argentina, por exemplo, ela existia desde 1880, sob a denominação de Liga dos Governadores.

Além de disporem de toda uma rede de favores de natureza econômica, os governadores também conseguem apoio político federal para se perpetuar no poder. Isso era possível graças ao fato de os candidatos eleitos estarem sujeitos, segundo as leis eleitorais, à reconfirmação de seus respectivos mandatos pelo Congresso e pelo presidente da República. Os vitoriosos não apoiados pelo grupo dominante passavam, assim, a ser alvo do que popularmente ficou conhecido como degola. No outro extremo dessa cadeia de compromissos e barganhas, o poder estadual concedia carta-branca aos chefes locais para decidirem a respeito de todos os assuntos relativos ao município, podendo, inclusive, indicar protegidos seus para ocupar cargos estaduais.

Tal sistema, aparentemente, atendia aos interesses dos mini, médios e super coronéis. Mas isso só na aparência, pois, na prática, a política republicana contrariava muitos. O problema básico consistia na falta de regras claras a respeito da sucessão de poder, dando lugar, como no caso do gaúcho Borges de Medeiros, a grupos que por décadas se perpetuam no governo. Na ausência do imperador para dar “a última palavra”, ou ao menos para agir como um mediador consensual, são criadas condições propícias para um quadro de permanente conflito armado entre as oligarquias. No plano federal, essa situação propicia o pleno domínio de paulistas e mineiros. Em 1889, além de contar com partidos republicanos organizados há mais de uma década, há fatores econômicos e demográficos que favorecem esses estados. No caso paulista, obviamente, a supremacia econômica decorria do café. Em Minas, a vantagem advinha do fato de tratar-se do mais populoso membro da federação e, portanto, o que mais poderia influenciar nas votações presidenciais. Dessa maneira, não é de se estranhar que, entre 1894 e 1930, as oligarquias paulistas e mineiras tenham elegido nove dos doze presidentes republicanos. Tal situação, vale repetir, marginaliza numerosos grupos oligárquicos, dando origem a um quadro de conflitos e de permanente denúncia – muitas delas meramente oportunistas – contra a corrupção eleitoral e o clientelismo (na época também chamado de “filhotismo”); denúncias que acabam tornando recorrente a opinião de que a monarquia havia sido superior à república.

Em várias regiões brasileiras, violentas disputas entre os grupos oligárquicos reforçam a sensação de regressão social. Um conflito registrado em Mato Grosso, no ano de 1906, leva à deposição do governador local; outro acontecido oito anos mais tarde, no Vale do Cariri, orquestrado por coronéis cearenses – dentre eles padre Cícero –, promove um ataque à capital para depor o governador Franco Rabelo. Tais conflitos acabam exigindo a interferência de tropas federais, como os do estado de Goiás, em que lutas sucessivas entre Caiados e Wolneys desestabilizam a vida política local. Foram também múltiplas as guerras travadas no sertão baiano contra os poderosos Seabras. Em outras palavras, aos olhos de muitos, a vida política republicana havia se transformado, na maioria das vezes, em um campo de tiroteios e emboscadas, e não de diálogo e negociação.

Tais lutas eram, em certo sentido, expressão máxima do que costuma ser definido como coronelismo, forma de “mandonismo local”, particularmente mais intensa no Nordeste, que se baseava na formação de exércitos particulares de jagunços. Estes atuavam criminosamente no sertão desde os tempos coloniais, sendo eventualmente contratados para servir em guerras entre famílias rivais ou, em épocas de muita penúria econômica, para proteger o gado. A novidade da República Velha foi, por um lado, o uso político desses foras da lei, como ocorreu na mencionada revolta cearense do Vale do Cariri, que chegou a reunir bandos compostos por 5 mil jagunços. De certa maneira, a decadência da economia açucareira e do algodão contribuiu para isso, pois extinguiu boa parte dos empregos que garantiam, durante determinados meses do ano, a remuneração de inúmeras famílias sertanejas. Por outro lado, o declínio da produção de borracha nas áreas amazônicas, ocorrido no início do século XX, debilita a solução migratória como uma alternativa à miséria. A combinação entre estagnação econômica, secas e diminuição da emigração fez que aumentasse muito a população sertaneja miserável e a de pequenos proprietários que enfrentam a amarga experiência de declínio social. Por isso, essas populações se tornam facilmente recrutáveis pelos grupos oligárquicos. Não sendo raro que, após o fim dos conflitos, jagunços engrossem fileiras do cangaço “autônomo” – como foi o caso do célebre bando de Lampião –, que vivia do roubo e da extorsão. Tal situação reproduzia no Brasil um quadro não muito distante de desprezadas realidades comuns às mais pobres repúblicas latino-americanas da época.

O coronelismo e o cangaço eram, dessa maneira, um lado sombrio de nossa belle époque e indicam o caráter excepcional das transformações registradas no meio urbano, que, aliás, até a década de 1920 concentra apenas 20% da população brasileira. Trata-se de fato de uma ironia da história: na maioria das regiões brasileiras, o regime nascido em 1889 inverte, em vez de acentuar, a tendência europeizante da segunda metade do século XIX. Não é, portanto, de estranhar que a República Velha, mesmo quando “nova”, tenha gerado inúmeros críticos, a começar pela instituição que lhe deu origem: o Exército.

Conforme já observamos, a partir de 1898, os militares afastam-se da vida política. Tal retraimento, em parte decorrente das desastrosas campanhas de Canudos, também foi conseguida graças à concessão de cargos públicos a oficiais; prática que criou raízes e silenciou as casernas. Em 1910, porém, é dada ao Exército a possibilidade de voltar à cena. Eclode no Rio de Janeiro um levante de marinheiros. Liderados por João Cândido Felisberto, filho de ex-escravos, os revoltosos, em 23 de novembro, apoderam-se de embarcações de guerra e bombardeiam a capital federal. O principal objetivo da revolta revela a ambiguidade republicana, ou, melhor dizendo, a incapacidade de o novo regime romper com o passado: os amotinados exigem a abolição da chibata como castigo; aliás, o uso da chibata já era, de há muito, legalmente proibido. A reclamação estava longe de ser retórica: no dia da eclosão da revolta, um marinheiro carioca havia sido condenado ao nada agradável castigo de 250 chibatadas.

Apesar de a rebelião ter chegado ao fim através de um acordo negociado, o Exército se firma como uma instituição fiadora da ordem. Nesse ano, a campanha do marechal Hermes da Fonseca relança em palanque a defesa do soldo cidadão, salvador da pátria. Uma vez eleito, o marechal não altera em muito – ou melhor, não altera em nada – o quadro republicano. Em 1915, uma revolta de sargentos do Rio de Janeiro indica que o descontentamento havia alcançado a baixa oficialidade. Na década seguinte, outros levantes revelam novas insatisfações. O movimento dos 18 do Forte de Copacabana, de 1922, foi um deles. A revolta origina-se de cartas (falsas, por sinal), atribuídas a Artur Bernardes, nas quais supostamente fazia críticas severas ao Exército. O objetivo dos revoltosos não era nada modesto: depor o presidente. Dois anos mais tarde, novo levante, agora em razão das duras punições destinadas aos amotinados de Copacabana. Conhecidas como revoltas tenentistas, tais movimentos ganham ainda maior destaque com a Coluna Prestes, que, entre 1924 e 1927, cruza o país até se dispersar na Bolívia.

Talvez bem mais importante do que seus épicos desempenhos em batalhas, tenha sido o fato de esses oficiais reformadores passarem a atuar politicamente fora das vias institucionais, recolocando na ordem do dia o golpe militar como um meio de transformar a sociedade, mudança que ajuda a compreender a eclosão da Revolução de 1930. No meio civil, por sua vez, não faltam denúncias contra o sistema político da República Velha. Em 1910, a campanha eleitoral de Rui Barbosa, embora apoiada pela máquina eleitoral da oligarquia paulista, denuncia, em praças e comícios públicos, as constantes fraudes e a corrupção do sistema eleitoral. Escritores em nada conservadores, como Euclides da Cunha e Lima Barreto, alistam-se entre esses críticos à república, o mesmo ocorrendo entre intelectuais vinculados à Semana de Arte Moderna de 1922. Até nas oligarquias dominantes, como as de São Paulo, havia dissidências, conforme ficou registrado em 1926, quando da criação do Partido Democrático.

Em outras palavras, o sistema político dos anos 1920 é um caldeirão prestes a entrar em ebulição. O que falta é um estopim, e Washington Luís o fornece. Ao contrário do que era esperado para as eleições de 1930, o então presidente não indica um mineiro para sucedê-lo, mas sim seu conterrâneo Júlio Prestes. Agindo dessa maneira, o representante da oligarquia paulista acirra os ânimos dos grupos dominantes mineiros. Esses últimos conseguem selar um acordo com segmentos políticos importantes do Rio Grande do Sul e da Paraíba para lançar um candidato próprio à sucessão presidencial, marcada para 1º de março de 1930. Na costura da então denominada Aliança Liberal, os gaúchos consagram um candidato: Getúlio Vargas.

Como se previa, tendo em vista o quadro de fraude eleitoral, os aliancistas são derrotados. Além disso, a maioria dos deputados federais eleitos, que faziam parte da coligação oposicionista, não tem seus mandatos reconhecidos pelo Congresso. Para complicar ainda mais a situação, João Pessoa, um importante membro da Aliança Liberal e governador da Paraíba, é assassinado por motivos políticos. Apoiadas em setores descontentes do Exército, as oligarquias dissidentes dão início ao movimento pela deposição do presidente. Entre 3 e 24 de outubro ocorre a Revolução de 30, que, uma vez vitoriosa, sugere uma indagação: em que o novo regime será diferente do anterior?

Lista dos presidentes deste período [2]:

  • Marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891).

  • Floriano Peixoto (1891-1894).

  • Prudentes de Morais (1894-1898).

  • Campos Salles (1898-1902).

  • Rodrigues Alves (1902-1906).

  • Afonso Pena (1906-1909).

  • Hermes da Fonseca (1910-1914).

  • Venceslau Brás (1914-1918).

  • Epitácio Pessoa (1918-1922).

  • Arthur Bernardes (1922-1926)

  • Washington Luís (1926-1930).

Veja também:

Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 175 a 179, Capítulo 26. Para a lista dos presidente, veja Nota 2.

  • [2] In: BEZERRA, Juliana . República Velha. O.C..


Fonte / Referências bibliográficas:

  • BEZERRA, Juliana. República Velha. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/republica-velha/>. Acesso em: 09/07/2023.

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

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