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09 julho 2023

Uma República Velha?

Por  Alcides Amorim [1]


Em 1922, comentando a presença de um mendigo vivendo num matagal na capital federal, Lima Barreto observa: “Não diz a notícia dos jornais que o homem se alimentasse de caça e pesca, acabando assim o quadro de uma vida humana perfeitamente selvagem, desenvolvendo-se bem perto da avenida Central que se intitula civilizada”. Nesse trecho da crônica “Variações”, podemos perceber que as transformações indicadas nos capítulos anteriores conviveram com a permanência de tempos anteriores, de tempos quase selvagens. Constatações como esta fizeram muitos estudiosos encararem o regime criado em 1889 como uma superficial reorganização de instituições políticas, sem grandes implicações econômicas ou sociais. Mais ainda: houve quem interpretasse o novo sistema político como um “salto” para trás no tempo histórico, uma ruptura com a tendência centralizadora do Império, que deu lugar ao pleno domínio dos fazendeiros no quadro político nacional.

Da mesma forma que os temas anteriormente discutidos, essas interpretações são alvo de calorosas discussões. Um dos principais aspectos questionados é o suposto enfraquecimento do Estado. A crítica, por sinal, tem sua razão de ser, pois a fragmentação federalista, inversamente ao que ocorreu na época regencial, não fez surgir movimentos separatistas. Ao contrário, o poder central, de certa maneira, se viu fortalecido, pois a Primeira República coincide com a decadência econômica dos proprietários rurais de numerosas regiões e que, por isso, se tornam dependentes das funções, dos recursos e da proteção proporcionados pelo aparelho público federal.

Outras interpretações sublinham que a novidade republicana foi o surgimento de governos estaduais fortemente controlados por grupos oligárquicos, situação que, em razão do Poder Moderador, dificilmente ocorria na época monárquica. Assim, entre o mandão de uma cidadezinha e o presidente da República, surge uma instância intermediária, que barganha favores, empregos e verbas em troca de apoio político. Esse arranjo consiste no núcleo da Política dos Governadores, que, entre 1898 e 1930, dominou a República Velha. Campos Sales, seu idealizador, é, por isso, considerado um político sagaz e de grande imaginação. Uma análise comparativa com o que ocorria em outros países da América Latina revela, porém, que a proposta não era propriamente uma novidade; na Argentina, por exemplo, ela existia desde 1880, sob a denominação de Liga dos Governadores.

Além de disporem de toda uma rede de favores de natureza econômica, os governadores também conseguem apoio político federal para se perpetuar no poder. Isso era possível graças ao fato de os candidatos eleitos estarem sujeitos, segundo as leis eleitorais, à reconfirmação de seus respectivos mandatos pelo Congresso e pelo presidente da República. Os vitoriosos não apoiados pelo grupo dominante passavam, assim, a ser alvo do que popularmente ficou conhecido como degola. No outro extremo dessa cadeia de compromissos e barganhas, o poder estadual concedia carta-branca aos chefes locais para decidirem a respeito de todos os assuntos relativos ao município, podendo, inclusive, indicar protegidos seus para ocupar cargos estaduais.

Tal sistema, aparentemente, atendia aos interesses dos mini, médios e super coronéis. Mas isso só na aparência, pois, na prática, a política republicana contrariava muitos. O problema básico consistia na falta de regras claras a respeito da sucessão de poder, dando lugar, como no caso do gaúcho Borges de Medeiros, a grupos que por décadas se perpetuam no governo. Na ausência do imperador para dar “a última palavra”, ou ao menos para agir como um mediador consensual, são criadas condições propícias para um quadro de permanente conflito armado entre as oligarquias. No plano federal, essa situação propicia o pleno domínio de paulistas e mineiros. Em 1889, além de contar com partidos republicanos organizados há mais de uma década, há fatores econômicos e demográficos que favorecem esses estados. No caso paulista, obviamente, a supremacia econômica decorria do café. Em Minas, a vantagem advinha do fato de tratar-se do mais populoso membro da federação e, portanto, o que mais poderia influenciar nas votações presidenciais. Dessa maneira, não é de se estranhar que, entre 1894 e 1930, as oligarquias paulistas e mineiras tenham elegido nove dos doze presidentes republicanos. Tal situação, vale repetir, marginaliza numerosos grupos oligárquicos, dando origem a um quadro de conflitos e de permanente denúncia – muitas delas meramente oportunistas – contra a corrupção eleitoral e o clientelismo (na época também chamado de “filhotismo”); denúncias que acabam tornando recorrente a opinião de que a monarquia havia sido superior à república.

Em várias regiões brasileiras, violentas disputas entre os grupos oligárquicos reforçam a sensação de regressão social. Um conflito registrado em Mato Grosso, no ano de 1906, leva à deposição do governador local; outro acontecido oito anos mais tarde, no Vale do Cariri, orquestrado por coronéis cearenses – dentre eles padre Cícero –, promove um ataque à capital para depor o governador Franco Rabelo. Tais conflitos acabam exigindo a interferência de tropas federais, como os do estado de Goiás, em que lutas sucessivas entre Caiados e Wolneys desestabilizam a vida política local. Foram também múltiplas as guerras travadas no sertão baiano contra os poderosos Seabras. Em outras palavras, aos olhos de muitos, a vida política republicana havia se transformado, na maioria das vezes, em um campo de tiroteios e emboscadas, e não de diálogo e negociação.

Tais lutas eram, em certo sentido, expressão máxima do que costuma ser definido como coronelismo, forma de “mandonismo local”, particularmente mais intensa no Nordeste, que se baseava na formação de exércitos particulares de jagunços. Estes atuavam criminosamente no sertão desde os tempos coloniais, sendo eventualmente contratados para servir em guerras entre famílias rivais ou, em épocas de muita penúria econômica, para proteger o gado. A novidade da República Velha foi, por um lado, o uso político desses foras da lei, como ocorreu na mencionada revolta cearense do Vale do Cariri, que chegou a reunir bandos compostos por 5 mil jagunços. De certa maneira, a decadência da economia açucareira e do algodão contribuiu para isso, pois extinguiu boa parte dos empregos que garantiam, durante determinados meses do ano, a remuneração de inúmeras famílias sertanejas. Por outro lado, o declínio da produção de borracha nas áreas amazônicas, ocorrido no início do século XX, debilita a solução migratória como uma alternativa à miséria. A combinação entre estagnação econômica, secas e diminuição da emigração fez que aumentasse muito a população sertaneja miserável e a de pequenos proprietários que enfrentam a amarga experiência de declínio social. Por isso, essas populações se tornam facilmente recrutáveis pelos grupos oligárquicos. Não sendo raro que, após o fim dos conflitos, jagunços engrossem fileiras do cangaço “autônomo” – como foi o caso do célebre bando de Lampião –, que vivia do roubo e da extorsão. Tal situação reproduzia no Brasil um quadro não muito distante de desprezadas realidades comuns às mais pobres repúblicas latino-americanas da época.

O coronelismo e o cangaço eram, dessa maneira, um lado sombrio de nossa belle époque e indicam o caráter excepcional das transformações registradas no meio urbano, que, aliás, até a década de 1920 concentra apenas 20% da população brasileira. Trata-se de fato de uma ironia da história: na maioria das regiões brasileiras, o regime nascido em 1889 inverte, em vez de acentuar, a tendência europeizante da segunda metade do século XIX. Não é, portanto, de estranhar que a República Velha, mesmo quando “nova”, tenha gerado inúmeros críticos, a começar pela instituição que lhe deu origem: o Exército.

Conforme já observamos, a partir de 1898, os militares afastam-se da vida política. Tal retraimento, em parte decorrente das desastrosas campanhas de Canudos, também foi conseguida graças à concessão de cargos públicos a oficiais; prática que criou raízes e silenciou as casernas. Em 1910, porém, é dada ao Exército a possibilidade de voltar à cena. Eclode no Rio de Janeiro um levante de marinheiros. Liderados por João Cândido Felisberto, filho de ex-escravos, os revoltosos, em 23 de novembro, apoderam-se de embarcações de guerra e bombardeiam a capital federal. O principal objetivo da revolta revela a ambiguidade republicana, ou, melhor dizendo, a incapacidade de o novo regime romper com o passado: os amotinados exigem a abolição da chibata como castigo; aliás, o uso da chibata já era, de há muito, legalmente proibido. A reclamação estava longe de ser retórica: no dia da eclosão da revolta, um marinheiro carioca havia sido condenado ao nada agradável castigo de 250 chibatadas.

Apesar de a rebelião ter chegado ao fim através de um acordo negociado, o Exército se firma como uma instituição fiadora da ordem. Nesse ano, a campanha do marechal Hermes da Fonseca relança em palanque a defesa do soldo cidadão, salvador da pátria. Uma vez eleito, o marechal não altera em muito – ou melhor, não altera em nada – o quadro republicano. Em 1915, uma revolta de sargentos do Rio de Janeiro indica que o descontentamento havia alcançado a baixa oficialidade. Na década seguinte, outros levantes revelam novas insatisfações. O movimento dos 18 do Forte de Copacabana, de 1922, foi um deles. A revolta origina-se de cartas (falsas, por sinal), atribuídas a Artur Bernardes, nas quais supostamente fazia críticas severas ao Exército. O objetivo dos revoltosos não era nada modesto: depor o presidente. Dois anos mais tarde, novo levante, agora em razão das duras punições destinadas aos amotinados de Copacabana. Conhecidas como revoltas tenentistas, tais movimentos ganham ainda maior destaque com a Coluna Prestes, que, entre 1924 e 1927, cruza o país até se dispersar na Bolívia.

Talvez bem mais importante do que seus épicos desempenhos em batalhas, tenha sido o fato de esses oficiais reformadores passarem a atuar politicamente fora das vias institucionais, recolocando na ordem do dia o golpe militar como um meio de transformar a sociedade, mudança que ajuda a compreender a eclosão da Revolução de 1930. No meio civil, por sua vez, não faltam denúncias contra o sistema político da República Velha. Em 1910, a campanha eleitoral de Rui Barbosa, embora apoiada pela máquina eleitoral da oligarquia paulista, denuncia, em praças e comícios públicos, as constantes fraudes e a corrupção do sistema eleitoral. Escritores em nada conservadores, como Euclides da Cunha e Lima Barreto, alistam-se entre esses críticos à república, o mesmo ocorrendo entre intelectuais vinculados à Semana de Arte Moderna de 1922. Até nas oligarquias dominantes, como as de São Paulo, havia dissidências, conforme ficou registrado em 1926, quando da criação do Partido Democrático.

Em outras palavras, o sistema político dos anos 1920 é um caldeirão prestes a entrar em ebulição. O que falta é um estopim, e Washington Luís o fornece. Ao contrário do que era esperado para as eleições de 1930, o então presidente não indica um mineiro para sucedê-lo, mas sim seu conterrâneo Júlio Prestes. Agindo dessa maneira, o representante da oligarquia paulista acirra os ânimos dos grupos dominantes mineiros. Esses últimos conseguem selar um acordo com segmentos políticos importantes do Rio Grande do Sul e da Paraíba para lançar um candidato próprio à sucessão presidencial, marcada para 1º de março de 1930. Na costura da então denominada Aliança Liberal, os gaúchos consagram um candidato: Getúlio Vargas.

Como se previa, tendo em vista o quadro de fraude eleitoral, os aliancistas são derrotados. Além disso, a maioria dos deputados federais eleitos, que faziam parte da coligação oposicionista, não tem seus mandatos reconhecidos pelo Congresso. Para complicar ainda mais a situação, João Pessoa, um importante membro da Aliança Liberal e governador da Paraíba, é assassinado por motivos políticos. Apoiadas em setores descontentes do Exército, as oligarquias dissidentes dão início ao movimento pela deposição do presidente. Entre 3 e 24 de outubro ocorre a Revolução de 30, que, uma vez vitoriosa, sugere uma indagação: em que o novo regime será diferente do anterior?

Lista dos presidentes deste período [2]:

  • Marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891).

  • Floriano Peixoto (1891-1894).

  • Prudentes de Morais (1894-1898).

  • Campos Salles (1898-1902).

  • Rodrigues Alves (1902-1906).

  • Afonso Pena (1906-1909).

  • Hermes da Fonseca (1910-1914).

  • Venceslau Brás (1914-1918).

  • Epitácio Pessoa (1918-1922).

  • Arthur Bernardes (1922-1926)

  • Washington Luís (1926-1930).

Veja também:

Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 175 a 179, Capítulo 26. Para a lista dos presidente, veja Nota 2.

  • [2] In: BEZERRA, Juliana . República Velha. O.C..


Fonte / Referências bibliográficas:

  • BEZERRA, Juliana. República Velha. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/republica-velha/>. Acesso em: 09/07/2023.

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

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