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25 de julho de 2025

Dogmatismo: breve análise filosófica

Por: Alcides Amorim  


Filosofia e dogmatismo[1]

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Em posts anteriores falamos um pouco sobre ética bíblica; ética x moral, ceticismo e dogmatismo no sentido teológico. Continuando, em conexão com estes temas, queremos continuar falando sobre dogmatismo, principalmente em seu sentido filosófico.

Como já vimos, o dogmatismo, ao contrário do ceticismo, refere-se à crença em verdades absolutas e inquestionáveis, geralmente baseadas em princípios estabelecidos ou em autoridades reconhecidas e que implica na adoção de uma postura de firme convicção, sem espaço para dúvidas ou críticas.

Enquanto na visão teológica cristã, o dogmatismo se refere à aceitação de dogmas ou verdades consideradas incontestáveis tendo a Bíblia como paradigma, na filosofia, o dogmatismo é entendido como o oposto do ceticismo. Enquanto o cético é descrente em muitas situações e predisposto a duvidar de tudo, o dogmático, pelo contrário, defende a possibilidade de se alcançar verdades absolutas e inquestionáveis. Mas, diferentemente do senso comum, quando ideias são aceitas como verdadeiras sem questionamento, baseadas em crenças populares ou na tradição, filosoficamente, as verdades reveladas são consideradas incontestáveis com base em estudo aprofundado e testado de determinado tema, debates, lógica, razão, ciências etc., que se tornam princípios sólidos e racionais. Por exemplo, a lógica “... é uma área do conhecimento tão exata quanto a matemática, aliás, ela explica muito do que é feito na matemática. A lógica é um campo do conhecimento que podemos chamar de dogmático, pois está fundamentada em princípios tão sólidos quanto a própria racionalidade. Dessa maneira, quando existem princípios inabaláveis que definem uma área do saber, podemos chamar essa área de dogmática[1] (In: Mundo Educação).

Bem, lógica e matemática são exemplos de disciplinas dogmáticas e/ou exatas. Mas nas áreas humanistas há também filósofos dogmáticos que, por causa de sua teoria racional bem fundamentada, resistem ao tempo e espaço, tornando-se célebres nos meios acadêmicos em geral. É possível haver rigor lógico de suas ideias e mesmo assim elas serem aprovadas pela crítica e serem aceitas como verdades ou princípios. Platão e Descartes, por exemplo, são considerados dogmáticos por acreditarem na existência de verdades eternas e imutáveis, acessíveis através da razão. O dogmatismo de Platão se manifesta em sua teoria das Ideias, onde ele postula a existência de realidades perfeitas e imutáveis, acessíveis apenas, repito, através da razão. Já Descartes, ao permear ceticismo com racionalidade, sintetizada, sobretudo em sua famosa frase "Penso, logo existo", buscava um fundamento seguro para o conhecimento através da dúvida metódica, rejeitando qualquer crença não justificada racionalmente.

·  Teoria das Ideias: A base do dogmatismo platônico reside em sua crença na existência de um mundo inteligível, separado do mundo sensível, onde residem as Ideias perfeitas e eternas. Essas Ideias, como a Beleza, a Justiça e o Bem, são consideradas modelos para as coisas do mundo material.

·  A razão como método: No chamado método cartesiano (de Descartes), investiga-se a verdade com base na dúvida metódica, com o objetivo de alcançar a certeza através da razão. Portanto, seu dogmatismo refere-se à sua abordagem filosófica que busca verdades absolutas, utilizando a razão como método para alcançar um conhecimento seguro e inquestionável. Ele acreditava ser possível alcançar verdades absolutas por meio da razão.

Voltando à Teoria das Ideias de Platão e traçando um paralelo com o conceito de dogmatismo[2], podemos afirmar que:

·   para Platão, as Ideias são verdades eternas e perfeitas;
·   o questionamento está presente no processo dialético, mas as Ideias são o fim da investigação: são tidas como certezas;
·   as Ideias não mudam. O conhecimento é alcançado quando se reconhece essas verdades imutáveis;
·   a razão pura e alma humana reconhecem as Ideias por reminiscência, pois o conhecimento não é adquirido através dos sentidos, mas sim inato e lembrado pela alma.

Portanto, o platonismo tem traços dogmáticos especialmente na crença em verdades eternas e absolutas (as Ideias). No entanto, Platão estimula o uso da razão e do diálogo filosófico (a dialética) como meio para alcançar essas verdades, diferentemente do dogmatismo fechado ao questionamento. Assim, Platão não é dogmático no método, mas o é no resultado: ele crê que há verdades definitivas a serem descobertas.

E ainda sobre Descartes: este propõe que existem ideias inatas, ou seja, ideias que não vêm da experiência, mas já estão na mente desde o nascimento. Entre essas estão, por exemplo, a ideia de Deus, de substância, de infinito e de perfeição. Ele distingue entre: Ideias adventícias, provenientes dos sentidos; Ideias factícias, criadas pela imaginação e Ideias inatas, que pertencem à própria natureza da mente racional. Ele rejeita o dogmatismo no ponto de partida, pois inicia sua filosofia duvidando de tudo — inclusive das ideias tradicionais. Porém, após esse processo, ele reconstrói o conhecimento com base em ideias inatas que ele considera absolutamente certas, como a existência do "eu pensante" e de Deus. Assim, podemos afirmar que há um paralelo entre o dogmatismo e o resultado final do pensamento cartesiano, que sustenta algumas verdades inquestionáveis, embora seu o método é essencialmente antidogmático, pois exige que todo conhecimento seja submetido à dúvida antes de ser aceito como verdadeiro.

O meio-termo entre o ceticismo  e o dogmatismo é o chamado escrutínio crítico. O dogmatismo e o escrutínio crítico representam atitudes opostas diante do conhecimento, da verdade e das crenças. Daí, podemos concluir com uma pergunta: é possível um código de ética que concilia – filosoficamente – dogmatismo e escrutínio crítico? Um código de ética dogmática parte do princípio de que os valores estão dados, são absolutos, inquestionáveis e vêm de uma fonte superior (Deus, tradição, razão pura, etc.). Já o escrutínio crítico exige liberdade de questionamento, inclusive sobre os fundamentos dos próprios valores éticos. Portanto, do ponto de vista crítico, um código dogmático pode ser visto como autoritário ou ingênuo. Mas há também uma relação indireta ou dialética. Assim, o escrutínio crítico não precisa destruir o dogma, mas pode oferecer uma via de renovação e aprofundamento...

Veja também o meu vídeo sobre o assunto a seguir:


Notas / Referências bibliográficas:

  • [1] Imagem meramente ilustrativa, feita pelo I.A. Chat Gpt.

14 de julho de 2025

Dogma e dogmatismo: breve análise teológica

Por: Alcides Amorim

Tribunal de dogmas [1]

Já falamos um pouco sobre ética bíblica; ética x moral e ceticismo, que entendemos ser assuntos interrelacionados. Mais um tema correlacionado a estes é o conceito de dogmatismo.

O dogmatismo, ao contrário do ceticismo, refere-se à crença em verdades absolutas e inquestionáveis, geralmente baseadas em princípios estabelecidos ou em autoridades reconhecidas. Implica na adoção de uma postura de firme convicção, sem espaço para dúvidas ou críticas. Sua fundamentação tem conexão principalmente com os contextos religioso e filosófico/jurídico/cultural. Por isso, quero destacar este assunto em duas partes: neste artigo, destacando o conceito teológico-cristão, ou seja, o dogmatismo e sua relação com a ética e a fé, e num outro momento, o seu conceito filosófico em conexão com a ética: ética dogmática.

1.    Dogma

No Novo Testamento, a palavra dogma (do grego, δόγμα) refere-se a um decreto, ordenança, decisão ou mandamento sagrado (divino) e/ou de autoridades civis. Por exemplo, em Lucas 2.1, o termo “dogma” é usado como “decreto” de César Augusto para que todos fossem recenseados; em Atos 16.4, "dogma" é usado para descrever as decisões tomadas pelos apóstolos e anciãos em Jerusalém para que os gentios não precisassem se circuncidar, mas apenas se abstivessem de idolatria, fornicação e sangue; em Efésios 2.15, Paulo fala sobre a "lei dos mandamentos expressos em ordenanças" (dogmas em algumas traduções), que Jesus removeu ao abolir a lei cerimonial judaica; em Colossenses 2.14, “dogma” é utilizada como “ordenanças” ou dívidas que foram pagas por Cristo na cruz e assim por diante.

No breve resumo teológico sobre dogma, Donald K. McKIM [2] destaca que na filosofia grega posterior, o uso legal do termo “dogma” era abrangido como proposições doutrinárias que expressavam o ponto de vista oficial de um mestre ou escola filosófica em particular.

A teologia cristã primitiva finalmente veio a usar o termo da mesma maneira. Basílio Magno, em meados do século IV, distinguiu entre o kërygma [3] e os dogmas cristãos no sentido das proposições de fé. A primeira aprovação que a igreja deu a declarações "dogmáticas" ocorreu em 325, no Concilio de Nicéia, onde a consubstancialidade do Filho com o Pai foi declarada como uma confissão de fé.

Na Idade Média, a Igreja Católica Romana desenvolveu o conceito do depositum fidel ("depósito de fé") [4], segundo o qual considerava-se que à igreja era confiado um certo depósito de verdades cujas ramificações podiam ser licitamente desenvolvidas pela igreja. Finalmente, através do Concilio de Trento (1545-63) e o Primeiro Concilio Vaticano (1870), os pronunciamentos dogmáticos da Igreja Católica passaram a ser considerados infalíveis. Assim, o dogma era visto no catolicismo romano, até mesmo antes da Reforma, como uma verdade cujo conteúdo objetivo é revelado por Deus e definido pela igreja. Isto é feito mediante um concilio eclesiástico, por um papa ou através da propagação geral do dogma nos ensinos da igreja.

Desde a Reforma, o protestantismo tem rejeitado a associação entre o dogma e os pronunciamentos eclesiásticos infalíveis. Segundo o pensamento da Reforma, todos os dogmas devem ser testados em comparação com a revelação de Deus nas Sagradas Escrituras. Conforme observou Karl Barth: "A Palavra de Deus está tão acima do dogma quanto os céus estão acima da terra" (In: Dogmática Eclesiástica...). Além disso, para os reformadores, a fé é confiança pessoal em Deus e relacionamento com Ele mediante Jesus Cristo, não basicamente a anuência àquilo que a igreja ordena que seja crido. "Dogma" veio a significar uma expressão de verdade doutrinária que obteve o "status" eclesiástico, porém sem reivindicações à infalibilidade.

A obra escrita em 1845 por John Henry Newman, An Essay on the Development of Christian Doctrine (Um Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Crista), foi uma contribuição seminal para o surgimento de questões a respeito das tradições, dos desenvolvimentos e das ligações das ideias cristãs. Os estudiosos alemães tais como Ferdinand Christian Baur e Adolf Harnack submeteram os desenvolvimentos históricos dos dogmas e doutrinas cristãos ao escrutínio crítico [5]. De pontos de vista diferentes, a mesma coisa foi feita por três teólogos escoceses: William Cunningham, Robert Raimy e James Orr.

Karl Barth reinterpretou o antigo uso católico-romano no protestantismo moderno ao definir o dogma como "a concordância entre a proclamação feita pela igreja e a revelação atestada nas Sagradas Escrituras" (Dogmática Eclesiástica...). Os dogmas são as formas nas quais o dogma aparece. O dogma torna-se, em última análise, um "conceito escatológico", visto que nenhuma formulação humana chegará a concordar completamente com a Palavra de Deus antes do reino final de Deus, segundo diz Barth. A pesquisa dogmática, no entanto, pode estar livre para trabalhar com dogmas individuais e apreciá-los como tentativas de se expressar a verdade da revelação.

2.    Dogmática e/ou Teologia Sistemática

A dogmática é o ramo da teologia que procura expressar as crenças e doutrinas (dogmas) da fé cristã – demonstrar "todo o desígnio de Deus" (At 20.27) de um modo organizado ou sistemático. Visto que nenhum teólogo dogmático trata somente dos "dogmas" da igreja, esta disciplina atualmente é mais conhecida por "teologia sistemática" ou simplesmente "teologia".

Os teólogos dogmáticos ou sistemáticos geralmente ocupam-se das fontes bíblicas e do apoio às doutrinas da fé, da história do desenvolvimento de tais doutrinas, dos dogmas contrastantes de outras comunidades da fé e das opiniões de outros teólogos que tratam de tais doutrinas. Pelo fato de esta disciplina aplicar-se à totalidade, e não somente a doutrinas específicas, a teologia sistemática sempre reflete uma comunidade específica da fé católico-romana, a ortodoxia oriental, a luterana, a reformada, a liberal, a neo-ortodoxa, a existencialista, etc.

Bem, num sentido mais didático, a teologia dogmática [6] recebe esse nome da palavra grega e latina dogma, a qual, ao se referir à teologia, simplesmente significa "uma doutrina ou corpo de doutrinas formalmente e autoritariamente afirmada". Basicamente, a teologia dogmática refere-se à teologia oficial ou "dogmática" como reconhecida por uma certa igreja, como a Igreja Católica Romana, Igreja Reformada Holandesa, etc.

Enquanto se pensa que o termo teologia dogmática tenha aparecido pela primeira vez em 1659 no título de um livro de L. Reinhardt, o termo se tornou mais amplamente utilizado após a Reforma e foi usado para designar os artigos de fé que a igreja tinha formulado oficialmente. Um bom exemplo de teologia dogmática encontra-se nas declarações ou dogmas doutrinários que foram formulados pelos primeiros conselhos da igreja que procuraram resolver problemas teológicos e tomar uma posição contra o ensino herético. Os credos ou dogmas que vieram desses conselhos foram considerados autoritários e vinculativos para todos os cristãos porque a igreja os afirmara oficialmente. Um dos propósitos da teologia dogmática é permitir que uma igreja formule e comunique a doutrina que é considerada essencial para o Cristianismo e que, se negada, constituiria heresia.

Mas na resposta à pergunta O que é a teologia dogmática?, o Ministério Got Questions difere teologia dogmática de teologia sistemática. A teologia dogmática às vezes é confundida com a teologia sistemática, e os dois termos são às vezes utilizados de forma intercambiável. No entanto, existem diferenças sutis, mas importantes, entre os dois. Para entender a diferença entre a teologia sistemática e teologia dogmática, é importante notar que o termo "dogma" enfatiza não apenas as afirmações da Escritura, mas também a afirmação eclesiástica e autoritária dessas declarações. A diferença fundamental entre a teologia sistemática e a teologia dogmática é que a teologia sistemática não requer sanção ou aprovação oficial por parte de uma igreja ou de um corpo eclesiástico, enquanto que a teologia dogmática está diretamente ligada a um determinado corpo ou denominação da igreja. A teologia dogmática normalmente discute as mesmas doutrinas e muitas vezes usa o mesmo esboço e estrutura que a teologia sistemática, mas faz isso de uma posição teológica particular, afiliada a uma denominação ou igreja específica.

Também podemos diferenciar dogma de doutrina e, nesse caso, fazer uma correlação – sob o enfoque cristão protestante – entre teologia, dogma e doutrina:

·  Teologia sistemática, esforço organizado de compreender, de forma lógica e coerente, as verdades reveladas nas Escrituras sobre Deus, o ser humano, a salvação, a igreja e os eventos futuros. Ela busca reunir todos os ensinamentos bíblicos em um sistema unificado.

·   Dogmas: verdades centrais e inegociáveis da fé cristã, como a Trindade, a divindade de Cristo e a ressurreição. São verdades inquestionáveis inseridas nas doutrinas oficialmente reconhecidas pelas igrejas como essenciais para a salvação e identidade cristã.

·   Doutrinas: ensinamentos derivados das Escrituras que instruem a vida e a prática da fé, podendo variar entre tradições denominacionais. No caso específico dos protestantes, no entanto, as Escrituras têm a autoridade final sobre a definição dogmática de um ponto ou item de um conjunto de doutrinas. Toda doutrina pode ser parte da teologia sistemática, mas nem toda doutrina é dogma. Assim, a teologia sistemática organiza as doutrinas e reconhece os dogmas, formando uma base sólida para a fé e a vida cristã.

Concluindo, por aqui, como foi nossa intenção neste post, tentamos analisar o dogma como uma verdade estabelecida como fundamental e indiscutível dentro de um sistema religioso, especialmente no cristianismo, e dogmatismo, como a atitude de aceitar ou impor ideias como absolutas e inquestionáveis, sem admitir questionamento ou debate. Enquanto o dogma pode ter base revelada e reconhecida por uma tradição, o dogmatismo é mais uma postura rígida e fechada ao diálogo, que pode ocorrer tanto na religião quanto em outras áreas, como a política ou a filosofia. Resumindo: dogma é o conteúdo (o que se crê); dogmatismo é a postura (como se crê e se defende).

Veja também:

·        Ética bíblica.
·        Ética x moral.
·        O depósito da fé.


Notas:

  • [1] Tribunal de dogmas: Imagem ilustrativa feita por Inteligência do Artificial do chatgpt, em 12/07/2025.
  • [2] McKIM, Donald K. Dogma (texto adaptado). R.B.
  • [3] Dogma x kerygma: “Em termos simples, o kerygma é o anúncio inicial do Evangelho, a mensagem central de Jesus Cristo, enquanto dogma é uma verdade de fé definida pela Igreja como revelada por Deus e obrigatória para todos os fiéis. O kerygma é o ponto de partida, a proclamação da Boa Nova, enquanto o dogma é uma formulação clara e definitiva dessa fé“. Veja mais este resumo (Kerygma x Dogma), muito bem feito por I. A. do Google. Veja também: kerygma.
  • [5] Escrutínio crítico: “... refere-se à análise detalhada e avaliativa de algo, com o objetivo de identificar pontos fortes, fracos, erros ou inconsistências. Envolve uma investigação cuidadosa e questionadora, indo além de uma simples observação. Pode ser aplicado a diversos contextos, como textos, ideias, ações, políticas ou até mesmo pessoas...” (I.A., Google).


Referências Bibliográficas:

GOT QUESTIONS. O que é teologia dogmática? Disponível em: teologia dogmática. Acesso em: 11/07/2025.

KLOOSTER, Fred H. Dogmática. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. I. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 493 e 494.

MCKIM, Donald K. Dogma. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. I. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 490 e 491.

12 de junho de 2025

Ceticismo: conceito, dúvida e fé

Por: Alcides Amorim

Um cético confuso [1]

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Escrevi até aqui dois artigos específicos sobre ética: ética bíblica e ética x moral. E antes de continuar com outros artigos relativos ao assunto achei por bem falar antes sobre os conceitos de ceticismo, dogmatismo e falibalismo. E, como são assuntos longos, resolvi fazer isto em três momentos, começando, na sequência, com o ceticismo. Mas, sempre com uma pitada de apologia teológica e/ou de fé.

1.    Ceticismo: conceito

A palavra ceticismo diz respeito a um estado de um indivíduo que duvida de tudo, que é descrente e/ou tem predisposição constante para a dúvida e incredulidade. Deriva da palavra grega askesis, que significa exercício de reflexão, meditação. Fala de um indivíduo que, ao pé da letra, é uma pessoa pensativa, absorvida em si mesma e, portanto, "ausente" do mundo. Mas o ceticismo é também nome de uma corrente filosófica, cujo fundador foi o filósofo grego Pirro de Élis (360? a 272? a.C.). Ele pregava uma ideia radical, caracterizada, essencialmente, por duvidar de todos os fenômenos que rodeiam o ser humano. Para ele, seria impossível conhecer verdadeiramente qualquer coisa.

Os céticos, seguidores da escola de Pirro, “... admitiam que a realidade existe, mas afirmavam que o ser humano não teria nenhum instrumento para atingir a verdade de qualquer coisa. Em outras palavras, a filosofia deveria ser uma negação do saber, não uma busca” (CHALITA: 2004, pág. 75). Em tese, os céticos desprezam a ideia de valores sociais regendo o comportamento e as relações entre os homens. Aliás, eles defendem que a felicidade pode até ser atingida desde que o indivíduo alcance “... o estado de ataraxia, palavra grega que designa a imperturbabilidade, o estado de paz tal como concebido pelo ceticismo...” (Idem, pág. 75) e em relação com o que Pirro aprendeu do bramanismo.

Bem, se o dogmatismo – como veremos mais adiante –, por exemplo, é a crença absoluta em certas verdades, sem questionamento ou possibilidade de erro, o cético questiona tudo o que lhe é apresentado como verdade e não admite a existência de dogmas, fenômenos religiosos ou metafísicos.

Outro pensador que ficou conhecido também por conta de seu ceticismo foi o humanista francês Michel de Montaigne (1533-1592), em sua obra Ensaios. A frase atribuída a ele, “dizem que filosofar é duvidar”, expressa bem este aspecto do ceticismo, quando manifesta a sua visão de que o conhecimento humano é limitado. No entanto, o ceticismo de Montaigne não é passivo, mas sim ativo, e é usado como ferramenta para questionar e criticar os costumes, saberes e instituições da época e, portanto, seu pensamento servia para atenuar a excessiva confiança que o homem renascentista – contemporâneo seu –, tinha nas capacidades humanas. Em síntese, a obra Ensaios, de Montaigne, se caracteriza pela sua abordagem individual, subjetiva e reflexiva, onde ele explora a diversidade e complexidade do ser humano, relativizando verdades absolutas e questionando dogmas.

A questão é que se for levado ao pé da letra o ceticismo leva-nos a duvidar do próprio ceticismo. “Ao mesmo tempo, não poderíamos emitir nenhuma opinião sobre o ceticismo. Será que é possível negar tudo que está a nossa volta? Se negarmos tudo, negaremos a própria negação e a dúvida que nos fez questionar o objeto. Desta maneira, em algo devemos acreditar, ainda que tenhamos que contestar as verdades que nos rodeiam” (BEZERRA. O.C.).

O ceticismo tem ocupado o pensamento de muitos no meio religioso. No item abaixo, veremos um pouco sobre isto.

2.    O ceticismo na religião x resposta bíblica [2]

O ceticismo religioso não é sinônimo de ateísmo, sendo que céticos podem ter dúvidas sobre a religião sem rejeitá-la completamente. Exemplos históricos de céticos, como os discípulos Natanael (Jo 1.45-47) e Tomé (Jo 20.25), ilustram que esse fenômeno não é novo, mas tem se intensificado atualmente. A cultura contemporânea, marcada pelo Iluminismo, por exemplo, e pela diversidade de influências, tem contribuído para o aumento do ceticismo, especialmente entre os jovens, que consideram as respostas bíblicas simplistas.

Além disso, experiências negativas com práticas religiosas e a hipocrisia de alguns indivíduos têm levado muitos a se afastarem da fé cristã. A dependência do empirismo e a confusão provocada por diversas crenças religiosas também alimentam o ceticismo. No entanto, o ceticismo saudável é importante para questionar doutrinas errôneas e buscar verdade. O diálogo respeitável e humilde é essencial para abordar as dúvidas dos céticos e compartilhar a esperança cristã de maneira construtiva.

Na verdade, o ceticismo religioso de base intelectual, por si só, não é ruim. De fato, o ceticismo saudável é uma coisa boa — devemos ser cautelosos com o ensino falso, e recebemos a seguinte instrução: "... provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora" (1 Jo 4.1). Aqui, vemos um exemplo de ceticismo no sentido positivo: ter dúvida se algo é bom ou ruim. Uma fé saudável e duradoura incorpora permissão para questionar e buscar respostas. Deus pode resistir ao nosso escrutínio, e a dúvida não tem que equiparar a descrença. Deus nos convida: "Vinde, pois, e arrazoemos, diz o SENHOR" (Is 1.18). O apóstolo Paulo também afirma: “Portai-vos com sabedoria para com os que são de fora; aproveitai as oportunidades..." (Cl 4.5), quando podemos envolver os céticos no diálogo que conduz à verdade. O apóstolo Pedro também diz: "... antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós" (1Pe 3.15). Ele segue imediatamente esse comando com instruções sobre como envolver o questionador: "... fazendo-o, todavia, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo" (1Pe 3.16). A humildade e o respeito são cruciais para lidar com céticos em nossa era pós-moderna.

Mas como um cético pode encarar ou abordar um princípio ético? Como conciliar posições céticas com normas ou deveres legais? Possivelmente, um cético, ao abordar a ética, geralmente adotará uma postura questionadora e, por vezes, incrédula em relação às verdades morais e às suas bases. Em vez de assumir a existência de um código moral universal e objetivo, o cético pode se concentrar em examinar e avaliar as diversas perspectivas e costumes que formam a ética em diferentes contextos. Daí, o desafio de membros do governo (Legislativo), por exemplo, de criar uma ética social – como veremos também em outro momento – que possa ser aplicada a toda a sociedade e que contemple os céticos.

Quero terminar enfatizando a pessoa do Tomé como um cético e questionador. Mas, Jesus soube envolvê-lo no diálogo e confrontá-lo na sua fé. Vejamos:

·   Jo 14.5 – Tomé questiona a Jesus sobre o Caminho para o Pai dito por Ele.

·  Jo 14.6 – Jesus responde, ser Ele o Caminho. Será que Tomé entendeu? Parece que não, mas aceitou, pensou, creu...

·  Jo 20.25 – Conhece o ditado “sou igual a Tomé, tenho que ver para crer”? Pois é, esta frase está baseada nas palavras que ele disse: "Se eu não vir as marcas dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei".

·  Jo 20.27-29 – Jesus aparece aos discípulos, diz a Tomé para ele colocar o seu dedo nas marcas dos pregos e parar de duvidar. Ou seja, Jesus confronta a dúvida ou o ceticismo de Tomé com verdade, a fé e o milagre da ressurreição: o ceticismo de Tomé é revertido em fé, pois ele sabia que Jesus tinha morrido e agora aparece vivo. Veja a resposta de Tomé: “Senhor meu e Deus meu!”. Esta é uma das maiores verdades de um ex-cético que deixou de duvidar e passou a crer. Aceitar a Jesus como o seu Deus (deísmo de Jesus) é um dos dogmas mais importantes do Cristianismo, pois trata-se de Jesus, como o Cristo e uma das pessoas da trindade, a principal doutrina cristã. 

Veja também:

§  Ceticismo, dogmatismo e falibilismo.

§  Ética bíblica.

§  Ética e moral.

§  Ceticismo da religião.

§  O apóstolo Tomé.

Na sequência, veja o vídeo de Jonas Madureira, onde ele faz uma reflexão sobre o ceticismo, e sua relação com a ciência e a fé:

Notas:

  • [1] Um cético confuso. Imagem meramente ilustrativa, feita pela I. A. Grok em: 09/06/2025.

  • [2] Resumo/comentário do artigo “O que é o relativismo ético?“ (O.C.).

Considerações bibliográficas:

BEZERRA, Juliana. Ceticismo. In: Toda Matéria, [s.d.]. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/ceticismo/. Acesso em: 09/06/2025.

CHALITA, Gabriel; Vivendo a filosofia. São Paulo: Atual, 2004.

GOT QUESTIONS. Ceticismo da religião. Disponível em: https://www.gotquestions.org/Portugues/ceticismo-da-religiao.html. Acesso em: 09/06/2025.

26 de maio de 2025

Ética Bíblica

Biblia Sagrada: a base judaico-cristã da ética

Estude a Bíblia para ser sábio; creia na mesma para ser salvo; siga os seus preceitos para ser santo” (Billy Graham).

Já destacamos brevemente aqui os conceitos/diferenças entre a ética e a moral. E continuando, queremos destacar abaixo o conceito de ética bíblica. Ou seja, a Ética teológica, que trata daquilo que pode ser aproveitado dos alegados entendimentos de uma determinada comunidade, no tocante a esta vida ou a do porvir.

A ética [1] acha seu lugar num dicionário teológico exatamente porque nem no pensamento judaico nem no pensamento cristão ela pode ser separada do seu contexto teológico, a não ser visando o propósito da concentração. Toda a teologia bíblica tem implicações morais nas quais consiste a ética bíblica.

1.    No Antigo Testamento

Ao reconhecer o AT como escritura cristã, a Igreja adotou alguns precedentes morais embaraçosos: a queima das bruxas, a taça envenenada para a prova moral, o castigo de famílias inteiras, a poligamia, o concubinato e muita violência e guerra. Mas também foi herdeira de grande dose de instrução moral, advertências, exemplos, alta inspiração e fé moral, que aumentou incomensuravelmente os recursos éticos do cristianismo.

A principal conquista foi, sem dúvida, o fundamento teocrático da ética como a vontade de Deus, santa, fiel e boa, uma ética que se baseava naquilo que Deus já fizera como Criador e Redentor do Seu povo. Assim, o Decálogo começa com "Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão"; ao passo que a aliança sem igual que ligava Israel ao seu Deus, não num vínculo natural (como se Deus fosse o ancestral mais remoto) mas num relacionamento moral, que se originou na escolha, promessa e libertação da parte de Deus, às quais Israel correspondeu com obediência e confiança gratas, conferiu uma qualidade sem paralelo de humildade e confiança ao pensamento ético judaico. Corretamente entendida, a obediência não procurava obter o favor divino, mas era inspirada por ele.

O próprio Decálogo (perpetuando ideais ainda mais antigos) é um documento ético notável, sendo que sua forma tradicional abrange um código duplo de deveres religiosos (Ex 20.3-12) e sociais (vv. 13-17) embora submeta as duas áreas (a adoração, a proibição dos ídolos, o juramento, o dia sagrado e a piedade filial, de um lado; e a santidade de vida, casamento, das posses, da verdade e do desejo, do outro lado) à autoridade divina direta. Inevitavelmente esta forma de mandamento deu seu tom à moralidade judaica, embora o mandamento final contra a cobiça entre num âmbito onde o legalismo nada possa fazer.

O desenvolvimento desta base ética no "Livro da Aliança" (Ex 20.22-23.19; veja 24.7) reflete um fundo histórico simples nômade e agrícola, e leva um senso de justiça e de responsabilidade comedida às condições primitivas; os delitos capitais são numerosos, a escravidão é aceita, mas a equidade e a piedade começam a afetar a vida social.

Deuteronômio enfatiza um espirito humanitário, uma liberalidade, compaixão e santidade interior ("Amarás o SENHOR teu Deus", 6.5) inteiramente de conformidade com o ensino dos profetas. Amós tornou a ética essencial ao relacionamento entre Israel e Deus, e sua moralidade era pura, autodisciplina, apaixonadamente defensora dos pobres e oprimidos, oposta à crueldade, ao dolo, ao luxo e ao egoísmo. Isaias e Miquéias exigiam uma religião de conformidade com o caráter do Santo de Israel. Jeremias, Ezequiel e Isaias 40-66 aplicam as lições amargas do exilio na Babilônia de modos éticos inexoráveis, embora sempre dentro do contexto do propósito inabalável de Deus pelo Seu povo. O Deus de Israel é enfaticamente o Autor e Guardião da lei moral, exigindo acima de tudo que os homens pratiquem a justiça, amem a misericórdia e andem humildemente com o seu Deus (Mq 6.8).

O ensino moral judaico posterior incluía (em Provérbios, Eclesiastes, Jó. Siraque) "sabedoria" ética valiosa, cujo alvo era simplificar o dever em reverência prática por Deus, o mais simples bom-senso naqueles que se sabem criaturas do Eterno: "O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria" (SI 111.10). O ideal da sabedoria é expresso de modo eloquente em Jó 31.

O exilio na Babilônia e o domínio estrangeiro que o seguiu tanto ameaçaram a autoidentidade judaica que uma ênfase tremenda foi dada à lei escrita e oral, que entesourava tudo quanto era distintivamente judaico. A piedade, o nacionalismo e o orgulho combinaram-se para produzir um legalismo exagerado, um fardo para a maioria e uma fonte de cegueira moral, casuísmo hipócrita e farisaísmo para muitos. Daí surgiu a oposição "religiosa" a Jesus, para quem o legalismo não tinha nenhuma autoridade divina, e à ênfase que o cristianismo dava à liberdade.

 

2.    No Novo Testamento

Uma longa tradição ética foi resumida, portanto, quando João Batista apareceu, exigindo pureza, retidão, honestidade e solicitude social (Lc 3.10-14). Mas especialmente iluminadora é a discriminação de Jesus, ao retomar do judaísmo seu monoteísmo ético, sua consciência social e o relacionamento entre a religião e a moralidade, enquanto rejeitava a tendência ao farisaísmo, o legalismo duro e externo, o nacionalismo, o cultivo de mérito e a não diferenciação entre o ritual e a moralidade. Por outro lado, Jesus levou a exigência da retidão ainda mais longe do que a Lei tinha feito, penetrando na mentalidade e no motivo por trás do comportamento (Mt 5.17-48), voltando aos propósitos originais de Deus (Mc 2.27; Mt 19.3-9) ou ao mandamento suficiente e sobrepujante do amor a Deus e ao próximo (Mt 22.35-40). Neste resumo de todo o dever, religioso e social, em termo do amor, acha-se a contribuição mais característica de Jesus ao pensamento ético, e Seu exemplo do significado do amor e Sua morte por amor aos homens perfazem Sua contribuição mais poderosa à realização ética.

A religião e a ética encontram-se de novo no evangelho do reino de Deus, que Cristo pregou, Sua versão da esperança messiânica e da visão dos profetas de Deus como Senhor da História; a descrição que Cristo fez da vida no reino, com suas oportunidades e obrigações, dá aplicação à Sua ideia radical e realista de justiça e de amor à vida da família, mordomia cristã das riquezas, responsabilidade diante do estado, os males sociais e o fato da enfermidade e crueldade do pecado. Em todos os âmbitos, a obediência à vontade de Deus constitui-se no reino e assegura as suas bênçãos, embora possa envolver a perda da própria vida, que terá lucro eterno.

Mas o Rei também é Pai, e os cidadãos do reino são Seus filhos, que compartilham de uma condição e de uma vida que refletem o caráter de Deus, numa comunhão e rum espírito de perdão, em liberdade e confiança, que tornam alegre a obediência. Por trás de tudo, está a lealdade pessoal dos homens ao próprio Jesus como Salvador e Senhor, naquele amor (Jo 14.15; 21.15-17), o desejo de ser como Cristo torna-se um incentivo moral de imenso poder emocional. Semelhante amor deleita-se em guardar os mandamentos de Cristo.

Há bons motivos para se crer que a igreja apostólica oferecia treinamento moral considerável aos convertidos, abrangendo a abstinência dos pecados antigos e dos costumes pagãos, a firmeza sob a perseguição, o incentivo à comunhão e a submissão aos líderes. Este treinamento provavelmente incluía listas de deveres de maridos, esposas, pais, filhos, servos, escravos, vizinhos (veja Colossenses e 1 Pedro). O desenvolvimento mais antigo do ensinamento ético cristão provavelmente seja melhor lustrado em 1 Pedro, onde a ênfase recai sobre a santidade e a submissão às autoridades civis (2.13-17), aos senhores de escravos (2.18-25), aos maridos (3.1-7) e dentro da comunhão (3.8-9, 4.8-11:5.5-6). Este tema inesperado não somente descreve o significado da vida sob o domínio divino; ele segue o conceito bíblico da essência do pecado como vontade própria.

Ilustrações da vida cristã moral mais antiga são melhor vistas na galeria impressionante de Lucas (em Atos) de pessoas essencialmente boas, felizes, socialmente úteis, corajosas e transformadas, que corresponde estreitamente ao seu quadro de Jesus em seu evangelho. Tiago, também, provavelmente apresenta um quadro primitivo da tomada de posição moral da igreja, numa série de meditações sobre as grandes palavras de Jesus segundo o modo de literatura de sabedoria judaica.

A preocupação ética de Paulo era ir contra o legalismo que fracassara na sua própria vida e que ameaçava limitar a Igreja a uma seita judaica; ele assim fazia ao insistir na suficiência da fé para salvar judeus e gentios, igualmente, e na liberdade do cristão para seguir a orientação do Espírito (Gálatas). Ao transmitir aos convertidos a tradição comum do ensinamento ético (Rm 6.17; 2 Ts 2.15; 3.6), Paulo explicava especialmente o significado ético da fé e a natureza da vida no Espírito.

Enfrentando o desafio de quem dizia que, se a justificação é pela fé somente, o crente pode continuar impunemente no pecado, Paulo responde que a fé que salva envolve tão grande identificação pessoal com Cristo na morte ao pecado, ao eu, e ao mundo, e na ressurreição para uma vida nova de liberdade, consagração e triunfo, que continuar no pecado ao exercer semelhante fé é incoerente, desnecessário e impossível (Rm 6; Gl 2.20). Para Paulo, a fé que salva, santifica. Se algum crente achar que não acontece assim, ele está deixando de ser aquilo que em Cristo veio a ser – morto para o pecado, vivo para Deus.

O outro tema ético de Paulo argumenta que aquilo que a Lei nunca pode fazer, por causa da fraqueza da natureza humana, "a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus" realiza, de modo que a lei é cumprida em nós (Rm 8.1-4). Jeremias e Ezequiel já tinham ligado o poder invisível de Deus na criação e na história (Espírito) com o novo coração e a nova vontade necessários em Israel. Lucas, ao demonstrar que Jesus traz o Espírito e O outorga, e João, ao descrever o Espírito como o outro Eu de Jesus, revelam como, no pensamento cristão primitivo, a ideia inteira do Espírito divino estava estampada com a imagem de Jesus (At 16.7). Paulo declara que o efeito desta identificação é produzir a o caráter semelhante ao de Cristo – o fruto do Espírito – em cada crente bem disposto (Gl 5.22-23, Rm 5.5: 8.9-14). Esta transformação dos homens pela dinâmica interior do Espírito de Cristo é um dos temas éticos centrais do cristianismo.

Outro tema comum em todo o ensinamento ético do NT é a imitação de Cristo. Os evangelhos sinóticos apresentam o tema como simplesmente seguir a Jesus. João expõe o ideal de Christus Exemplar, como amar (13.34; 15.12), obedecer (9.4, 15:10) ficar firme (15.20) e servir humildemente (13.14-15), conforme Jesus fez por nós. 1 João a liga com a esperança cristã (3.2). Pedro associa a imitação especialmente com a Cruz (1 Pe 2.21-25; 3.17-18; 4.1,13). Paulo faz dela o alvo da adoração (2) Co 3.18), do ministério (Ef 4.11-13), da exortação (1 Co 11.1) e da providência divina (Rm 8.28-29) definindo seu significado mais interno como ter "a mente de Cristo" (1 Co 2.16, Fp 2.5) “o Espirito de Deus" (1 Co 7.40).

Resumo.

Em contraste com os sistemas filosóficos, as marcas permanentes da ética bíblica são: seu fundamento no relacionamento com Deus; sua obrigação imposta e objetiva à obediência; eu apelo aquilo que há de mais profundo no homem, sua relevância social realista, e sua capacidade de adaptação e desenvolvimento contínuos

A formulação bíblica final do ideal como a semelhança a Cristo relaciona-se diretamente com o amor e a gratidão despertados pela experiência da redenção, está arraigada na História objetiva (como implicação ética óbvia da Encarnação): faz um forte apelo às melhores intuições morais do homem, exige um ministério semelhante ao de Cristo entre os necessitados deste mundo e o cumprimento do reino de Deus na terra e no decurso dos séculos cristãos suas muitas formas e interpretações têm comprovado sua adaptabilidade flexível às condições mutáveis. O mandamento bíblico antigo: "Sede santos, porque Eu sou santo", acha um claro reflexo na promessa bíblica mais recente: "Seremos como Ele".

Nota / Referência bibliográfica:

  • [1] WHITE, Reginald E. O. Ética Bíblica. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. II. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 87-90 (Texto copiado na íntegra e adaptado à nova regra ortográfica).