O que me
motivou a falar aqui sobre Joseph Fletcher foi conhecer um pouco acerca de seu
ponto de vista sobre valores cristãos e o que ele chama de “ética situacional”.
Numa época de pragmatismo, relativismo, consequencialismo, ideologia/narrativa,
“governo do amor” etc., torna-se importante saber sobre as mentes pensantes por
trás destes conceitos. E Fletcher é uma destas mentes, cuja teologia serviu e
serve de base para a (tentativa de) aplicação de uma ética cujo “fim justifica
os meios”.
Joseph Francis Fletcher (1905–1991) [2] foi um teólogo e filósofo norte-americano conhecido como o principal formulador
da ética situacional (ou ética da situação), apresentada em sua
obra Situation Ethics: The New Morality (1966).
O pensamento de Fletcher em relação à ética
situacional baseada no “amor ágape”[3] já tinha embasamento nas ideias de outros
pensadores e concentrava-se:
· na
"vontade de Deus para a comunidade" (Brunner);
· na
"receptividade para com a exigência do amor" (Barth);
· em se
"deixar que o amor de Deus flua através de nós"; “onde há amor, nenhum outro preceito é
necessário" (Nygren);
Assim, foi consagrado seu tema da ética situacional. Como enfatiza Reginald E. O. White [4], ela não depende das percepções cristãs. Fletcher cita expressões e precedentes bíblicos quando é conveniente e menciona oito "textos de prova" para sua "norma do amor" incluindo palavras de Jesus, a respeito do Grande Mandamento, e de Paulo, sobre o amor que cumpre a lei, mas nada vê de especialmente diferente ou sem igual nas escolhas do cristão. A amorosidade é o motivo operante com plena força, por trás das decisões de muitos não-cristãos.
Além disso, Fletcher rejeita todas as normas reveladas, exceto o mandamento do amor. Jesus não tinha regras nem sistemas de valores; princípios reverenciados, até mesmo os Dez Mandamentos, podem ser colocados de lado se entrarem em conflito com o amor. Violar o sétimo mandamento, por exemplo, pode ser uma coisa boa: depende de se os interesses do amor são plenamente revelados. As relações sexuais antes do casamento se a decisão for feita de modo "cristão" podem ser certas. Não há nenhuma ética pessoal, visto que a moralidade depende do relacionamento do amor, o que torna o Sermão do Monte supérfluo em grande medida. Paradoxalmente, ao fazer tudo depender da reação instante e intuitiva do agente diante das circunstâncias, a ética situacional exclui qualquer padrão generalizado de moralidade aplicável aos outros ou à sociedade outro sabor nitidamente não-cristão.
"A fé que opera pelo amor" oferece um alicerce para a norma do amor, mas não é essencial; um homem sincero, inteligente e sábio pode rejeitar a Cristo sem afetar a sua moralidade situacional. A base da norma é nossa decisão de que ela será o amor; para alguns, isto dependerá de uma decisão (não revelação) prévia de que Deus é amor.
Procura-se apoio num famoso ditado de Agostinho: "Ama, e faze o que queres" – "seis palavras benditas, parte do patrimônio dos emancipados", que fazem de Agostinho o santo padroeiro da "nova moralidade". Este fato ilustra bem o perigo da moralidade dos lemas, porque naquele contexto (Homilias, 1 Jo 7.8, 10.7) Agostinho está argumentando que é uma atitude amorosa o uso da força do Estado para obrigar os hereges donatistas a "entrarem" na festa ortodoxa do evangelho; o argumento de uma consciência inquieta que procura tristemente comprovar que um fim "amoroso" justifica quaisquer meios usados, produzindo um princípio que foi o alicerce para toda a perseguição religiosa a partir de então. Fica claro que tudo depende daquilo que é incluído na conduta amorosa.
Mas na ética situacional somente uma coisa é intrinsecamente boa – o amor, "um modo de se relacionar com as pessoas e de usar coisas". O fim procurado, o amor, é o único critério, e exclusivamente ele justifica os meios. Não há regras determinadas somente o amor. A única pergunta a ser levantada em qualquer situação é: O que produzirá a quantidade máxima de amor? A pessoa não recita textos, deveres, mandamentos, virtudes, obrigações, nem estima consequências: a pessoa reage em cada situação como o eu livre, exercitando o amor responsável, e pratica ou evita uma coisa segundo as exigências do amor. Esta atitude simplifica, liberta e é suficiente. Nenhuma outra orientação é necessária ou possível numa era tão nova. E porque as situações modernas podem ser mesmo tão complexas, o amor pode facilmente achar-se sacrificando os outros (para preservar segredos da guerra); contando mentiras; furtando; permitindo-se práticas homossexuais, "autossexuais", promíscuas ou adúlteras; lançando bombas atómicas; aprovando o aborto, a prostituição ou a poligamia.
Na superfície, há muita coisa atraente para os cristãos “A única lei é a lei do amor, de Cristo"; mas o critério-chave permanece essencialmente vago, porque não fica definido qual é o alvo do amor. É totalmente individualista, impulsivo, produto da situação: todas as obrigações são dissolvidas no impulso amoroso. Talvez seja verdadeiro que semelhante "amor" não é peculiar aos cristãos: mas o amor cristão o é.
Se for alegado que a norma é o amor ensinado por Jesus, logo é incoerente abandonar o Seu conceito de amor como o cumprimento, e não a revogação, da lei divina: argumentar que Jesus tinha razão somente no tocante ao amor, mas que estava enganado quanto à castidade, ao divórcio, à autodisciplina, aos mandamentos de Deus; e é bem falso reivindicar a Sua autoridade para qualquer coisa que o "amor" desculpe – o aborto, o sexo extraconjugal, as mentiras e as demais coisas. Sempre que se apela à autoridade de Cristo, o significado dEle deve ser mantido. Fletcher não raciocina, em lugar algum, acerca daquilo que o amor requer; os evangelhos estão repletos de ilustrações daquilo que Jesus queria dizer com isso, e fica abundantemente claro, no NT inteiro, que o amor cristão proíbe positivamente a fornicação, o adultério, o assassínio, a mentira, o furto e muitas coisas mais. Aquilo que o amor requer, e aquilo que ele exclui, não é deixado aos impulsos intuitivos e sem instrução.
Desta forma, embora a aparente simplificação também seja atraente, a norma do amor, que com justa razão é suprema, não é autossuficiente. Muita coisa deve ser conhecida de antemão quanto ao alvo cristão para a vida e os indivíduos, no tocante à escala de valores cristãos, acerca daquilo que realmente é bom para o nosso próximo e quanto à vontade de Deus em cada situação, antes de o amor saber o que fazer. A "situação", também, não é um mero acaso, mas uma oportunidade dentro da qual a providência colocou o cristão, com indicações do dever e da orientação divina Pressupõem-se bastante percepção, conhecimento e maturidade espiritual. A ética situacional é, na melhor das hipóteses, uma etapa final no crescimento moral, que vem depois de etapas anteriores que precisam de diretrizes, experiência emprestada e instrução clara. Fletcher reconhece tacitamente este fato, ao pressupor que o amor inclui inteligência, informação, previsão, prudência e muitas coisas mais.
Finalmente, a imediação prática da ética situacional é atraente aos cristãos. Sugere que o indivíduo está "aberto à inspiração do momento" quanto àquilo que deve fazer. Mas o indivíduo cristão não está totalmente aberto aos impulsos imediatos do amor caprichoso simplesmente por ser ele cristão. Ele confronta todas as situações com a mente e o coração já moldados pela experiência cristã, herdando (até certo grau) a longa tradição cristã daquilo que é certo, e tendo um compromisso com a fé e obediência do cristianismo. Com o exemplo de Jesus diante dos seus olhos, entra em cada nova situação tendo "a mente de Cristo". Sua norma de comportamento, portanto, embora certamente deva ser aplicada a situações variadas e sem precedentes, está, na realidade, arraigada no passado, expressa na encarnação do ideal em Cristo.
Hoje, o cristão alerta realmente enfrenta de modo renovado cada nova situação e confia na inspiração do Espírito de Jesus para saber como agir com amor; mas as diretrizes estão claras. Sua norma para todas as circunstâncias é a imitação de Cristo. Despojada de exageros e concentrada em Jesus, a ética situacional tem muita coisa para ensinar àqueles para quem a citação de textos antigos é orientação suficiente para os problemas contemporâneos...
- - - - - -
Resumindo, a ética situacional de Joseph Fletcher defende que a única lei moral absoluta é o amor (ágape), e que as decisões morais devem ser tomadas com base nas circunstâncias de cada situação, e não em regras fixas. O amor, entendido como uma ação sacrificial e não apenas como sentimento, guia a escolha do que é melhor para a situação em questão, justificando o uso de qualquer meio se o fim for amoroso... Essa abordagem nos fazer pensar no numa expressão muito falada hoje no Brasil: “governo do amor”. Pode-se, inclusive, traçar um paralelo entre ambos: a centralidade do amor como norma ética (?) e a medida de todas as decisões, além da crítica ao legalismo, à rigidez institucional, mas com o de chegar ao fim último: “o fim justifica os meios”.
Neste artigo [5] (Escola Goffs) é mencionado que embora as ideias de Joseph Fletcher “estivessem enraizadas na Bíblia, eram novas e, para alguns, chocantes!” para a época (1966) e que “... mais tarde, tornou-se ateu e participou da Associação Americana de Eutanásia e da Associação para Esterilização Voluntária...”.
Sobre uma resposta bíblica para o conceito de “ética situacional” falaremos mais em outro artigo.
Notas / Referências bibliográficas:
- [1] Imagem ilustrativa feita pelo Chat GPT, em 14/10/2025.
- [2] José Francisco Fletcher. Disponível em: https://www.encyclopedia.com/history/encyclopedias-almanacs-transcripts-and-maps/joseph-francis-fletcher. Acesso em: 14/10/2025.
- [3] Amor (Ágape): “’… boa vontade atuando em parceria com a razão” na busca do “melhor interesse do próximo, com um olhar atento a todos os fatores da situação’”. Ágape é preocupação com os outros. Fletcher usa o termo “melhor interesse”, então isso parece muito semelhante ao utilitarismo de Singer. Agimos por amor aos outros, tentando fazer o melhor para servir aos seus interesses” (Idem, Nota 5).
- [4] WHITE, R. E. Oscar. Ética situacional. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. II. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág.94 a 96 (texto adaptado).
- [5] Estudos Religiosos da Escola Goffs: Tópico 2 – Ética da Situação. Disponível em: https://goffsrs.wordpress.com/a-level-revision/topic-2-situation-ethics/. Acesso em: 15/10/2025.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário: