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24 fevereiro 2023

O Brasil como Nação

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


Misturando arqueologia com poesia, linguística com romance de folhetim, pintura com ópera, foram elaboradas, representadas, divulgadas e debatidas explicações de como o Brasil se tornou brasileiro” (idem, Nota 1, pág. 127).

 

                                  “A construção da identidade brasileira constituiu-se como um
                                    processo histórico, cultural e político desde a Independência,
                                    em 1822” [2]

Em meados do século XIX, a capital do Império viu surgir uma nova moda cultural: a de procurar vestígios de antigas civilizações que teriam existido no interior do Brasil antes da chegada de Cabral. Tais incursões, promovidas pelo prestigiado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ou, mais sucintamente, IHGB, não eram organizadas por lunáticos, mas sim por renomados intelectuais da época que contavam, inclusive, com o apoio do governo imperial. A primeira delas, realizada em 1839, teve dimensões modestas, destinando-se a buscar vestígios arqueológicos nas imediações do Rio de Janeiro, onde se acreditava existir – na Pedra da Gávea, sintomaticamente denominada Esfinge – escritas rupestres de autoria de antigos fenícios.

Embora essas suspeitas não tenham se confirmado, a esperança de novas e espetaculares descobertas não desapareceram. Tanto foi assim que, em 1840, iniciaram-se os preparativos de uma arrojada incursão ao sertão baiano com o objetivo de confirmar informações, que circulavam desde o século XVIII, a respeito das ruínas de uma cidade antiga nas remotas matas do Cincorá. Como seria de esperar, essa expedição, apesar de ter durado vários anos, não obteve sucesso.

Nem tudo, porém, era fracasso. Alguns empreendimentos científicos, embora não vinculados diretamente ao IHGB, resultaram em descobertas surpreendentes. Isso ocorreu, por exemplo, em Lagoa Santa, Minas Gerais, onde o cientista dinamarquês Peter Lund identificou, na década de 1840, fósseis humanos pré-históricos, confirmando as expectativas sobre um antiquíssimo povoamento do território brasileiro.

Animados com essas descobertas, os membros do IHGB reiniciaram as explorações arqueológicas, identificando, em várias partes do território brasileiro, sambaquis – uma espécie de depósito de lixo pré-histórico. Alguns desses depósitos alcançavam dimensões gigantescas e, no entender da época, bem que podiam esconder no seu interior construções monumentais. Foi isso pelo menos o que imaginou o erudito Francisco Freire Allemão, que, também na década de 1840, tendo por base informações de um grande sambaqui, escreveu uma monografia a respeito de uma suposta “pirâmide” localizada no Campo Ourique, no Maranhão.
Paralelamente a essa arqueologia fantástica, desenvolveu-se na capital do Império uma linguística igualmente fantástica, na qual aquele que é considerado o fundador da historiografia brasileira, Francisco Adolfo de Varnhagen, procurou demonstrar, por meio da comparação de vocábulos indígenas com os de antigas civilizações, a origem euro-asiática dos povos tupis-guaranis. Com base nesse conjunto de indícios, especulou-se a respeito da origem dos índios do Brasil, quase sempre afirmando que eram “povos decaídos”, ou seja, descendentes de altas civilizações mediterrâneas, como a dos egípcios ou fenícios, que haviam regredido ao estado de selvageria. O imperador d. Pedro II não se furtou ao debate, escrevendo, na década de 1850, aos diretores do IHGB para que procurassem responder o mais rapidamente possível: quais são os vestígios que podem provar a existência de uma civilização anterior aos portugueses?

E, mais ainda, em um rompante de etnólogo amador, o imperador sugeriu uma nova questão, interrogando: Existiram ou não as amazonas no Brasil?

Aos olhos do leitor atual, esses insólitos empreendimentos científicos podem parecer piada. Na época, porém, o tema era levado a sério. Para compreendermos a razão disso, devemos ter em mente que as buscas arqueológicas oitocentistas eram uma espécie de ponta de iceberg de outra questão fundamental da época: a da identidade nacional brasileira.

E essa será a questão de que trataremos a seguir.

Conforme mencionamos em páginas anteriores, logo após 1822 surgiram movimentos que questionavam o projeto político imperial carioca e reivindicavam o federalismo ou até a independência de suas respectivas regiões. A luta contra esses movimentos demandou extraordinários recursos humanos e financeiros. Sua evolução também esteve longe de ser linear. Em 1831, a abdicação de d. Pedro I ao trono significou uma vitória das forças descentralizadoras, havendo o que se convencionou chamar de “experiência republicana”, tendo em vista a eleição direta de regentes, uma espécie de presidente da época, como foi o caso de Diogo Feijó.

No entanto, a abdicação não diminuiu o ímpeto separatista. Ao contrário, o período que se estende até 1848 foi caracterizado pelo avanço desse segmento. A elite imperial não só ordenou o massacre dos rebeldes das províncias como também procurou criar instituições que viabilizassem o projeto monárquico. Os intelectuais vinculados a esse projeto investiram, por sua vez, no combate aos movimentos separatistas, mostrando que os brasileiros constituíam uma nacionalidade com características próprias. Em outras palavras, para ser viável, o Império deveria não só se impor através da força, como também por meio de boas instituições e de uma identidade coletiva que justificasse a razão de ser da nação que estava se formando.

Para felicidade desses intelectuais, a última questão também era enfrentada por boa parte dos países europeus, em processo de unificação, facultando-lhes assim um conjunto bastante rico de discussões a respeito da construção da identidade nacional. A instituição que centralizou tais debates foi o já referido Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838. O IHGB reuniu historiadores, romancistas, poetas, administradores públicos e políticos em torno da investigação a respeito do caráter nacional brasileiro. Em certo sentido, a estrutura dessa instituição, pelo menos enquanto projeto, reproduzia o modelo centralizador imperial. Assim, enquanto na corte localizava-se a sede, nas províncias deveria haver os respectivos institutos regionais. Estes, por sua vez, enviariam documentos e relatos regionais para a capital, onde se trataria de escrever a “história do Brasil”.

Nas discussões que se seguiram imediatamente à fundação do IHGB, a versão do que seria o elemento central da história nacional, ironicamente, foi definida por um estrangeiro. Segundo o esquema proposto por Karl von Martius, naturalista alemão, a história do Brasil resultaria da fusão de três raças: branca, negra e índia. Com certeza, nos dias de hoje tal definição não é levada a sério, pois sabemos que a história não é um subproduto das raças. Além disso, do ponto de vista cultural, os três grupos mencionados não formaram unidades homogêneas, nem muito menos mantiveram relações igualitárias no Novo Mundo, como a noção que fusão sugere. Na época, porém, a tese de Martius estava em dia com os mais avançados debates científicos que, por intermédio da análise das diferentes misturas entre anglo-saxões, francos, normandos, celtas e romanos, tentavam explicar as diferentes nacionalidades europeias. Talvez a extraordinária repercussão da interpretação adotada pelo IHGB resulte desse pretenso rigor, que encantou não só historiadores, mas também romancistas e poetas.

A “teoria” das três raças se fundindo e formando a nacionalidade apresentava ainda dois atrativos suplementares. Em primeiro lugar, mostrava que os brasileiros eram diferentes dos portugueses, sendo legítimas, portanto, as aspirações de 1822. Em segundo lugar, tal interpretação procurava esvaziar a legitimidade dos movimentos separatistas, unificando, em uma única categoria nacional, o conjunto de habitantes dispersos pelas várias regiões do Império, contribuindo assim para a formação de uma identidade brasileira diferenciada daquela do antigo colonizador.
Mas o sentimento de ser “diferente” em relação aos antigos metropolitanos era abordado pelos intelectuais de maneira contraditória. É bom ter sempre em mente que, tal qual o imperador, boa parte da elite monárquica descendia de portugueses. Como se não bastasse isso, romper totalmente com o passado significava romper com os laços europeus, laços que, segundo o ponto de vista de muitos, coloriam o passado brasileiro com tintas de civilização.

No texto elaborado por Martius, que durante décadas serviu de guia a respeito de “como se deve escrever a história do Brasil”, o tema do contato das três raças é explorado de maneira exemplar. Nele, a contribuição portuguesa para a formação da nacionalidade brasileira é associada a instituições políticas, econômicas e religiosas; em outras palavras, às formas de vida civilizadas. Já a contribuição dos negros é apresentada de maneira contraditória, havendo sucintas alusões aos conhecimentos dos africanos em relação à natureza e, ao mesmo tempo, a seus preconceitos e superstições.

Segundo tal interpretação, o que faria do Brasil uma sociedade positivamente diferente da portuguesa não seria propriamente a presença africana – esta, conforme veremos, combatida através de leis favoráveis à extinção do tráfico internacional de escravos –, mas sim a indígena. Em relação a este segmento, a posição de Martius foi a de não mencionar uma contribuição, mas sim indicar que eles eram “ruínas de povos”, ou seja, descendiam de uma antiga civilização que teria migrado para o Novo Mundo e entrado em decadência, regredindo ao estado de selvageria. Ora, essa sutil nuança em relação aos outros dois povos formadores da nacionalidade brasileira tinha importantes implicações. Se refletirmos um pouco, perceberemos que Martius transferiu para o futuro a definição do que seria a contribuição indígena; dependendo dos rumos tomados pelos estudos arqueológicos e linguísticos, mencionados no início do presente capítulo, essa contribuição poderia ser considerada tão importante quanto a dos portugueses.

Cabe lembrar ainda que, por essa época, os principais centros econômicos do Império contavam com uma população indígena residual. Tal situação abria margem para a análise desse grupo enquanto elemento já incorporado à sociedade brasileira. Haveria, assim, na química simbólica da nacionalidade brasileira, um misterioso ingrediente que, quando estudado com o devido cuidado, poderia revelar um passado monumental, rival até ao europeu.

Para os intelectuais vinculados a esse debate, a descoberta de vestígios de uma ou de várias complexas sociedades no território brasileiro era uma questão de tempo. Tal crença, por sua vez, resolvia, por assim dizer, um dilema que a muitos assustava: se os portugueses eram a única fonte de comportamento civilizado da nossa índole nacional, quais seriam, ao longo do tempo, os resultados do rompimento com a Metrópole? Haveria um retrocesso? Assumir uma identidade não branca, no mínimo, abalaria a autoestima dos súditos da nova nação. Afinal, quais seriam as razões para os brasileiros se orgulharem de ser brasileiros?!

Ora, é justamente nesse ponto que a apropriação de uma tradição indígena, baseada na existência de uma fantasiosa e ancestral “alta cultura”, desempenhou um papel central na “química” da nacionalidade. Aos índios podia ser atribuído o que, supostamente, faltava ao negro, permitindo-lhes rivalizar com os brancos. Da ótica do pequeno grupo de intelectuais que, na época, refletiu a respeito da identidade nacional brasileira, os primeiros habitantes do Brasil passaram a ser vistos como portadores de valores que até os portugueses da Época Moderna, marcados pela ânsia do lucro e do acúmulo de bens materiais, haviam perdido. Para os autores que adotaram esse tipo de concepção, o mundo indígena teria conservado a nobreza, a generosidade e a bravura do mundo antigo, valores que não existiam mais nas sociedades contemporâneas. A tradição indígena – ou a invenção dessa tradição – fornecia, por assim dizer, os ingredientes que faltavam para fazer do brasileiro um ser diferente do português, mas nem por isso inferior.

Boa parte da literatura brasileira do século XIX, como as clássicas obras produzidas por Gonçalves Dias e José de Alencar, estende raízes nesse intricado debate. A cada “ossinho” encontrado em cavernas, a cada desenho rupestre identificado, a cada novo rumor de cidades perdidas nas selvas, cresciam as expectativas a respeito das descobertas de altas civilizações indígenas que teriam existido no território brasileiro. Essas expectativas, por sua vez, devido às características da vida intelectual no Império, conquistaram um público bem mais amplo do que o restrito grupo de sócios do IHGB. Por essa época, havia no Brasil muito pouca especialização da atividade intelectual. Um indivíduo podia, ao mesmo tempo, ser magistrado, jornalista, romancista, poeta, historiador, arqueólogo, naturalista, transitando, assim, em diversas áreas de conhecimento.

Para compreendermos as consequências dessa situação, é necessário sublinhar que, nas primeiras décadas do século XIX, observamos no Brasil o florescimento do romantismo. Em linhas gerais, os românticos caracterizavam-se pelo ecletismo filosófico, propondo criar um meio-termo entre ciência e religião; estranha combinação que, pelo menos entre alguns autores da época, desdobrava-se em uma aproximação da ciência com a literatura e a poesia. O romantismo também fazia oposição à ideia de que as sociedades tinham a mesma origem, evoluindo da mesma maneira, ou ainda que a história humana fosse guiada por algum objetivo, como aquele relativo à busca do progresso ou da liberdade. Ao contrário das teorias evolucionistas do século XVIII, os românticos não classificavam as nações como atrasadas, mas sim como diferentes entre si.

Ao considerar a nacionalidade como algo a ser descoberto, o romantismo em muito contribuía para a superação intelectual da experiência colonial. Daí, inclusive, a busca pelo passado indígena. Justamente por não se saber ao certo a origem dos índios, as descobertas arqueológicas que estavam para ser feitas poderiam sugerir novas formas de entender e de valorizar a identidade nacional brasileira. Cabia aos intelectuais aprofundar os estudos e criar meios pedagógicos de sua divulgação. Misturando arqueologia com poesia, linguística com romance de folhetim, pintura com ópera, foram elaboradas, representadas, divulgadas e debatidas explicações de como o Brasil se tornou brasileiro. O leitor, caso queira confirmar isso, deve folhear os antigos números da Revista do IHGB, visitar museus que conservam quadros de Victor Meireles, ouvir um CD de Carlos Gomes, ou então correr à estante e abrir, em uma página qualquer, algum romance de José de Alencar.


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Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 123 a 127, Capítulo 17.

  • [2] Construção da identidade brasileira. Imagem disponível em: <https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/a-identidade-nacao-brasileira.htm>. Acesso em 23/02/2023.

Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

14 fevereiro 2023

A casa de Bragança no Brasil

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

“A vinda da família real foi um acontecimento iniciado em 29 de novembro de 1807, e o seu desembarque em terras brasileiras ocorreu em 22 de janeiro de 1808, na cidade de Salvador. A vinda foi consequência direta do Período Napoleônico e do desentendimento existente entre França e Portugal na questão do Bloqueio Continental. Com isso, a família real portuguesa mudou-se para o Brasil e instalou-se no Rio de Janeiro, junto à toda estrutura de governo de Portugal. Isso iniciou o Período Joanino e resultou em uma série de transformações, como a abertura dos portos brasileiros, que contribuíram para levar o Brasil na direção de seu processo de independência" [2]

Até o período em que se deu a Independência, vivia-se um cenário com algumas características invariáveis: o Brasil continuava a ser um país agrário, com produção monocultora voltada para a exportação e apoiada no braço escravo. Enquanto isso, a Europa do início do século XIX se transformara no teatro das guerras napoleônicas. Em 1807, o rei de Espanha, de joelhos, pedia apoio ao imperador francês; o rei da Prússia tinha fugido da capital ocupada pelos soldados franceses; o Stathouder holandês estava refugiado em Londres; o rei das duas Sicílias exilado em Nápoles; a Escandinávia buscava um herdeiro entre os membros da tropa de elite de Napoleão. A fragilidade portuguesa, em contraste com a robustez militar do inimigo, deixava entrever a invasão. O projeto de transferir a Corte para o Brasil tomou forma quando as tropas napoleônicas, vindas de território espanhol, avançaram sobre a capital. Embora o embarque tenha sido atropelado, a decisão de atravessar o Atlântico não foi imposta pelo pânico. Havia muito se estudava essa possibilidade. Às vésperas da partida, a esquadra portuguesa estava pronta, aparelhada com o tesouro e a biblioteca real. Apesar da ação conspiratória de alguns grupos que desejavam aderir à França, d. João foi avisado com antecedência da chegada de Junot, o general francês. Segundo vários cronistas da época, instalou-se certa confusão, com muitos fidalgos fazendo-se transportar às pressas para os navios, onde não havia mais lugar. O povo de Lisboa manifestava com lágrimas, dor e desolação seu sentimento diante da partida do príncipe. Mas, ao aportar na Bahia, não era um refugiado que chegava, e sim o chefe de um Estado nacional em funções que resolveu migrar para cá.

De acordo com vários viajantes estrangeiros que aqui estiveram, na primeira metade do século XIX a paisagem urbana brasileira era então bem modesta. Com exceção da capital, Rio de Janeiro, e de alguns centros – onde a agricultura exportadora e o ouro tinham deixado marcas, caso de Salvador, São Luís e Ouro Preto –, a maior parte das vilas e cidades não passava de pequenos burgos isolados com casario baixo e discreto, como São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. Mesmo na futura Corte, o Rio de Janeiro, as mudanças eram mais de forma do que de fundo. As notícias divulgadas pela Gazeta do Rio de Janeiro (1808-22), órgão da imprensa da época, eram tediosas. Até a inauguração do Real Teatro de São João, palco onde se exibiam companhias estrangeiras e artistas, como a “graciosa Baratinha” ou as “madames Sabini e Toussaint”, as atividades culturais cariocas não eram suficientes para quebrar a monotonia cotidiana. Além dos saraus familiares e do popular entrudo – uma espécie de carnaval –, o evento social mais importante continuava a ser a missa dominical. A capital era cortada por ruas estreitíssimas, lembrando a mouraria lisboeta, e as vivendas não tinham vislumbre de arquitetura decorativa. Os conventos eram numerosos, mas apenas habitáveis. A talha dourada das igrejas, inferior às da Bahia, provocava entre os devotos um estímulo às obras de embelezamento. Bairros como Botafogo ou Catete eram considerados arrabaldes, encerrando casas de campo que procuravam abrigo sob a frondosa vegetação. O Passeio Público representava a melhor área de lazer da população. Pelas ruas, sentados sobre barris, os aguadeiros esperavam sua vez diante dos chafarizes que traziam “a linfa mais cristalina” do Alto da Tijuca. Seus gritos se misturavam ao ruído de escravos, mendigos e ciganos. Nas noites de luar, era à beira d’água que famílias se reuniam, entoando modinhas e lundus ao som de violão.

Foi nesse Rio de Janeiro que desembarcaram, a 8 de março de 1808, o futuro monarca e a família real, trazendo em sua bagagem a prataria de uso privado e uma formosa biblioteca para encher horas mortas. O desembarque traduziu-se em imensa festa popular. Os habitantes da capital, atendendo às ordens do conde dos Arcos, receberam o príncipe regente com demonstrações de entusiasmo. As ruas estavam atapetadas de areia da praia e ervas aromáticas, colchas de Goa tremulavam nas varandas e os sinos repicavam. Sob um pálio escarlate se acomodavam o juiz de fora e os vereadores da Câmara. À medida que a Corte descia dos navios era recebida com uma chuva de flores e plantas odoríferas. Na frente da igreja do Rosário, sacerdotes paramentados com capas de seda incensavam os recém-chegados, enquanto o ar era sacudido por fanfarras, foguetes e o matraquear da artilharia. A chegada da Corte foi retratada num folheto publicado pela Imprensa Régia em 1810 (Relação das festas...) em que, sob a forma de uma carta, um narrador conta que a cidade celebrou com nove dias de luminárias a chegada de Sua Alteza Real: em pequenos vasos com óleo de baleia e pavios acesos figuravam o retrato do rei enfeitados com rosas, a África de joelhos oferecendo suas riquezas, a América oferecendo seu coração e os ditos: “América feliz tens em teu seio, do novo império o fundador sublime [...] O povo era tanto nestes nove dias de luminárias que cercava o palácio em grande multidão [...] uns iam sentar-se a bordo do cais, a contemplar o prateado dos mares, outros se entretinham a ouvir a música [...] que vinha de um coreto decentemente ornamentado [...] os louvores do grande e incomparável príncipe”. Desde a chegada de d. João, seu aniversário, no dia 13 de maio, passou a ser celebrado com festividades públicas. Em 1808, registrou-se que consistiram em uma grande parada, com audiência e beija-mão à Corte, aos membros dos tribunais e às pessoas mais condecoradas naquele ano. Em 1809, o programa de festejos manteve-se inalterado, tendo sido apenas enriquecido com a inauguração de uma fonte no Campo de Santana, cerimônia que teve “o numeroso concurso do povo”. Dez anos depois de estabelecida a família real entre nós, inovou-se a mesma festa com a introdução de um “teatro de Corte”.

Na vida da família real misturavam-se representantes da elite urbana constituída por alguns comerciantes de grosso trato como Brás Carneiro Leão, futuro barão de São Salvador de Campos. Coube à inglesa Maria Graham, em sua segunda viagem ao Brasil, em 1823, alguns registros sobre o cotidiano urbano. Os salões de Brás Carneiro Leão, por exemplo, eram decorados ao gosto francês, revestidos de papéis de parede e molduras douradas, além de móveis de origem inglesa e francesa. A neta do anfitrião, como boa filha da elite, falava bem francês e fazia progressos em inglês. Localmente, porém, o exemplo era raro, queixava-se, em 1813, John Luccock, afirmando que a maioria das mulheres costumava desnudar sua falta de educação e instrução. Saber ler – comentava, amargo –, só o livro de reza, uma vez que pais e maridos temiam o mau uso da escrita para comunicar-se com amantes. Debret, por seu turno, confirmava o despreparo intelectual das mulheres de elite. Até 1815, e malgrada a chegada da família real, a educação se restringia a recitar preces de cor e calcular de memória, sem saber escrever nem fazer as operações. A “ignorância”, segundo ele, era incentivada por pais e maridos receosos da temida correspondência amorosa. Mesmo os mais ricos não tinham maiores divertimentos. “A vida que se leva aqui é muito monótona; poucas são as distrações e quase não há reuniões”, resmungava em 1819 o prussiano Theodor von Leithold, de passagem pelo Rio de Janeiro. Resumiam-se essas reuniões nas conversas nas lojas, antes da ceia e depois de retiradas das portas as mercadorias empoeiradas, ou aos jogos de gamão ou whist. O teatro, um velho, sujo e mal ventilado casarão de Manoel Luiz Ferreira ao pé do Paço, tinha uma orquestra deficiente e levava espetáculos de gosto duvidoso. Ao seu lado, relata-nos Leithold, funcionava um café que garantia aos mais aficionados jogos clandestinos. Apesar do meio social insípido, a população fluminense era alegre, expansiva, excitável e ruidosa. Submetia-se, sem maiores resistências, à vida custosa e pouco confortável. Os aluguéis eram altíssimos e comia-se mal. A carne de vaca era de má qualidade, a boa manteiga era importada e o leite, intragável. Só as frutas e os legumes eram abundantes. Além disso, o café era quase tão caro quanto em Lisboa. “Não há cantinho do universo onde se seja pior alimentado e pior alojado por preços tão excessivos”, queixava-se o inglês John Mawe, que, a pedido do conde de Linhares, se dispusera a administrar a Real Fazenda de Santa Cruz.

Pois foi nesse “cantinho” que se instalou d. João. Primeiramente no Paço da cidade, cujo conforto deixava a desejar para a numerosa família real, seus criados e cortesãos. Depois, graças à generosidade do negociante Elias Antônio Lopes, passou a morar em sua Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão. Os coches colocados à sua disposição para o transporte na cidade eram pobres, sem adornos, “ridículos”. Para a rainha-mãe fora reservada a única carruagem vinda de Lisboa; era puxada por duas mulas ordinárias e dirigida por um lacaio de vestimenta velha e desbotada. Ia sempre acompanhada de uma dama e precedida de doze soldados mal montados e fardados de forma ainda pior. O transporte do príncipe regente era ainda mais pobre; consistia em uma carruagem antiga, com as competentes cortinas de couro. A princesa, sua esposa, não tinha carruagem; quando não ia com o esposo, contentava-se em sair a cavalo. Todos os demais indivíduos da família real, em número de dez, resignavam-se a andar a pé. Num gesto sutil de alguém incomodado com o seu entorno, um ano depois de sua chegada, d. João mandou, por decreto municipal, substituir por janelas de vidraça os antigos muxarabiês árabes e as gelosias de madeira, que, “além de serem incômodas, prejudiciais à saúde pública, interceptando a livre circulação do ar”, enfeavam a cidade. As compensações estéticas encontravam-se na capela da igreja do Carmo ou no Paço, em que o soberano, um apaixonado por música, abandonava-se às composições do pardo José Maurício ou aos acordes de Marcos Portugal. O espaço foi rapidamente transformado em sala de ópera, passando a denominar-se Capela Real. Como atividade pública e social complementar havia ainda as tertúlias – uma espécie de reunião literária – com os padres carmelitas da Lapa (entre os quais frei Pedro de Santa Maria, matemático, frei Custódio Alves Serrão, naturalista, e frei Leandro do Sacramento, botânico) ou no convento franciscano de Santo Antônio, abrigo de uma plêiade de homens cultos, como frei José Mariano da Conceição Veloso ou Mont’Alverne.

O Paço de São Cristóvão distava hora e meia da cidade. Aí instalaram-se o rei, seu filho, d. Pedro, e a infanta Maria Teresa, viúva de d. Pedro Carlos de Espanha, com um filho, menino de 8 anos, e o futuro d. Miguel, de 6 anos e vítima, segundo o prussiano Leithold, de uma voraz solitária. A rainha, por seu lado, residia com as duas outras filhas, dona Micaela Maria, de 18 anos, e dona Josefa, de 15, no Paço da cidade. Com ela, vivia também a tia do regente, viúva do príncipe d. José. O edifício tinha aprazível situação, gozando de vista sobre a cidade e o porto; de ambos os lados estendiam-se altas montanhas e vales povoados de chácaras e tinha um só andar com catorze janelas de frente. Em 1819, foram construídas alas laterais para aumentar-lhe a superfície. Antes de se chegar ao Paço, atravessava-se um extenso terraço; uma escadaria circular, com balaústres de ferro pintados de verde e ornamentados com ouro, dava acesso à porta do palácio e, através dessa, à galeria que ocupava toda a extensão da fachada. De um lado dessa modesta galeria abriam-se as ditas janelas, de outro, enfileiravam-se, na parede, pinturas a óleo representando cenas religiosas. O rei costumava sair a passeio num carro aberto e saudava os passantes com a maior amabilidade. Atrás dele seguia uma espécie de guarda de corpo uniformizada e com espadas desembainhadas. Andava pouco, pois sofria de gota. Acompanhado do pequeno infante espanhol, só se aventurava a fazer exercício quando seu estado de saúde permitia. Vivia sob dieta severa e quase não bebia vinho. Era de extrema gentileza com visitantes. Com Leithold conversou em francês, mostrando-se interessado por sua trajetória e opinião sobre o Brasil. O beija-mão, cerimônia igualmente de rigor na Espanha, tinha lugar todas as noites às oito horas, em São Cristóvão e, nas grandes cerimônias, no chamado Paço da cidade. Se não se sentisse bem, adormecesse ou se sobreviesse uma tempestade, o que lhe produzia forte impressão, o rei encerrava-se em seus aposentos e não recebia ninguém. A brilhante assembleia reunida na galeria de São Cristóvão, onde não havia nem bancos nem cadeiras, era então despedida sem nenhum acanhamento e muitas vezes depois de longa espera, conta-nos, atônito, Leithold.

Os membros da família real devem ainda ter participado de vários bailes e banquetes, muitos deles oferecidos por membros da nobreza ou diplomatas estrangeiros servindo no Brasil. No aniversário do príncipe regente da Inglaterra, por exemplo, “fez aqui o ministro daquela corte, mr. Strangford, uma função esplendíssima, ou seja, um baile e a ceia servidos pelos ingleses”, menciona o português Luís dos Santos Marrocos em sua correspondência. O visconde de Vila Nova da Rainha, por sua vez, recebeu em seu palácio em Botafogo a princesa d. Carlota com suas filhas e criadas, ao som de excelente orquestra vocal, dança e refrescos. Qualquer baile, e principalmente aqueles a que assistiam membros da família real, obedecia a um ritual claramente definido pela etiqueta da época. Tocava-se a “sinfonia de abertura” e determinadas pessoas abriam o baile. Seguiam-se minuetos, valsas e outras contradanças pela ordem estabelecida pelos mestres-salas. Cabia-lhes convidar cada senhora para cada uma dessas danças, dando-lhes os pares, que eram sempre diferentes. Evitavam-se danças de longa duração por conta de fadigas. O baile era geralmente acompanhado de um banquete, no qual homens e mulheres comiam em separado.

Os momentos de júbilo, assim como os de tristeza, vividos em público pelos Bragança, foram vivamente registrados pela pena do cônego Luís Gonçalves dos Santos, professor de gramática latina do seminário da Lapa, mais conhecido pela alcunha de padre Perereca. Bodas, aniversários e enterros, luminárias, foguetórios e pompas fúnebres por ele descritas, constituíam-se claramente num pacto social entre o rei e seus súditos. O culto ao rei e seus ritos seculares eram a expressão do simbolismo dos laços entre a monarquia portuguesa e seu povo no além-mar. Nessas circunstâncias de festas públicas, o rei orava, regozijava-se, ria e chorava, irmanado com seus súditos e funcionando como um instrumento de propaganda em causa própria. As solenidades da Corte, tais como o enlace da princesa Maria Teresa, o casamento do príncipe real, os desfiles alegóricos no Campo de Santana, a aclamação em 1818, verdadeiros restos da liturgia absolutista, traziam para a praça pública, em várias cenas teatralizadas, a ideia de que rei e reino eram uma coisa só. Em público, a personalidade do monarca configurava-se o lugar de encontro da estrutura de poder e das pressões conjunturais que esta sofria. Seus gestos em relação ao povo, sua simpatia e afabilidade para com a Corte, sua devoção religiosa perpetuavam seu poder pessoal.

A relação do regente com essa Corte feita de magistrados, funcionários, monges, visitantes estrangeiros e grandes proprietários de terra, alguns brasileiros, outros lusos, constituía-se num campo de relações clientelistas. A manipulação das tensões entre aqueles nascidos na América portuguesa, que deviam favores, ou a sua ascensão, ao rei, tais como os comerciantes de grosso trato do porto do Rio de Janeiro, cujas casas Sua Majestade frequentava, e aqueles que se orgulhavam de títulos de nobreza e que com a família real haviam transposto o Atlântico, permitiam ao monarca governar centralizando decisões. Sua preocupação era dupla: não deixar a Corte portuguesa chegar a um grau de decadência ameaçador, pois seu desaparecimento comprometeria sua própria existência e a significação de sua função. Era, contudo, preciso dominar a velha aristocracia emigrada, destituída, no Brasil, de cargos administrativos ou militares. D. João consolidou, então, um sistema fundado na desigualdade e codificado pela hierarquia, fazendo as diferenças parecerem “naturais”, chanceladas que estavam por sua presença física na Colônia. Entre um grupo e outro, o monarca manobrava. A economia de amizades e as trocas clientelares eram uma das marcas da monarquia portuguesa. Dar, receber e restituir eram atos que comandavam as relações sociais entre o monarca e seus súditos, provocando um contínuo reforço nos laços que os uniam em crescente espiral de poder; espiral subordinada a uma estratégia de ganhos simbólicos que se estruturava sob os atos de gratidão e serviços.

Um especialista no período não se furta em dizer que não conheceu despacho, reservado ou confidencial, de embaixador, ministro ou encarregado de negócios estrangeiros para seu governo que não se refira com respeito e elogios a d. João. “É curioso verificar que nenhum mesmo tenta fazê-lo, de leve que seja, ridículo”, afirma o autor. “Com justiça, nada se encontrava de burlesco neste personagem.” A lista de adjetivos que faz do personagem é longa: atencioso, benevolente, curioso, bem informado, bonacheirão, desconfiado, sensível a ponto de chorar fácil e frequentemente, como fez na morte da mãe, na partida das filhas para a Espanha ou ao abraçar o enfermo marquês de Aguiar. E, finalmente, sagaz por cercar-se de gente competente. Os adjetivos, contudo, não esclarecem seu comportamento cotidiano e doméstico. Mas, como seria, para o rei português, viver o que se entendia, na época, por “privacidade”, ou seja, o trato de si e de sua família?

Durante sua permanência no Brasil, d. João incentivou o aumento das escolas régias – equivalentes, hoje, ao ensino médio –, apoiando também o ensino de primeiras letras e as cadeiras de artes e ofícios. O príncipe regente criou, ainda, nosso primeiro estabelecimento de ensino superior, a Escola de Cirurgia, na Bahia, em 1808. No Rio, ampliava-se a Academia Militar, enquanto na Bahia e no Maranhão solidificavam-se escolas de artilharia e fortificação. Bibliotecas e tipografias começaram a funcionar, sendo a Imprensa Régia, na capital, responsável pela impressão de livros, folhetos e periódicos, nela publicados entre 1808 e 1821. Com o rei vieram, igualmente, diversos artistas portugueses de valor, entre os quais Joachim Cândido Guilhobel e Henrique José da Silva, aos quais se juntaram os brasileiros José Leandro de Carvalho e Francisco Pedro do Amaral. Em 1816, chegou a Missão Artística Francesa, chefiada por Joachim Lebreton, secretário do Instituto de Belas-Artes da França, pouco depois falecido. Eram seus componentes Nicolas-Antoine Taunay e Jean Baptiste Debret, ambos pintores; Auguste-Marie Taunay, escultor; Grandjean de Montigny, arquiteto que muito influenciou a construção civil na cidade; Charles Simon Pradier, gravador como Zéfherin Ferrez; e Marc Ferrez, ornamentista. O pintor Arnauld Julien Pallière, vindo para cá também nessa época, foi o responsável pelo palco urbanístico da Vila Real da Praia Grande, atual Niterói. Em 13 de junho de 1808, com a denominação de Jardim de Aclimação, é inaugurado o Jardim Botânico, com espécimes transplantados da Índia, das ilhas Maurícias e da Guiana Francesa: eram muscadeiras, canforeiras, cravos-da-índia, mangueiras, abacateiros, além de especiarias finas e outros produtos exóticos. Para plantar e colher as folhas do chá, vieram também chineses.

Em 1815, foi criado o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, legalizando o fim da condição colonial. O Brasil, contudo, continuava mal unificado internamente. A Corte carioca mantinha um controle rígido sobre as demais capitanias, submetendo-as a encargos fiscais e monopólios. Os colonos não se entendiam com as mudanças sugeridas pelo governo do Rio de Janeiro e acumulavam-se as críticas aos novos dominadores. O mal-estar se agravou com a queda nos preços do açúcar e do algodão depois do fim das guerras napoleônicas e com o aumento de impostos para custear a dispendiosa intervenção militar que valeu a incorporação do Uruguai ao Brasil, como Província Cisplatina. Antigos antagonismos explodirão no processo de independência, nosso próximo assunto.


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Texto complementar: O Rio de Janeiro na época de D. João.

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Veja também:


Notas:

[1]  Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de:  DEL PRIORI, Mary e
      VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora 
          Planeta do Brasil, 2010, pp., 110 a 116, Capítulo 15.

[2]  Vinda da família real para o Brasil. In: <https://www.historiadomundo.com.br/idade-                   contemporanea/vinda-da-familia-real-para-o-brasil.htm>. Acesso em 14/02/2023.


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São
          Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

13 fevereiro 2023

O Rio de Janeiro na época de D. João

Com a chegada da família real portuguesa e cerca de 15 mil acompanhantes, a vida no Rio de Janeiro sofreu grandes mudanças. É o que nos relata o texto que segue [1]

  

"É no Paço dos Governadores (chamado de Paço  dos  Vice-Reis
desde que a capital mudou de Salvador para o Rio) que a família
real se hospeda, ao chegar à cidade. Pintura guache do início do
século XIX (Crédito: Frans Josef Frühbeck)” [2]

Nessa época, a cidade oferecia poucas distrações: as famílias ricas iam a espetáculos, embora fossem de má qualidade, frequentavam bailes familiares, e os homens, reuniões de jogo. Praticamente não existia a vida noturna por causa da falta de iluminação. Nas procissões e nas festas religiosas, toda a população da cidade tomava parte. Quando foi inaugurado o Passeio Público, algumas famílias logo o transformaram em ponto de encontro entre parentes e conhecidos que lá se reuniam à tardinha para contar os fatos do dia e as últimas notícias.

Esse tipo de vida calma e aparentemente sem preocupações foi de um dia para o outro revolucionado pela chegada da família real portuguesa e toda a sua corte. Para atender às exigências, foram logo construídas novas casas e reformadas as existentes. Os balcões fechados com madeira trançada, as rótulas, começaram a ser substituídos por janelas com vidraças. Começaram a aparecer também residências isoladas, longe do centro, em meio a jardins, com muitas árvores e gramados.

Seguiu-se toda uma série de modificações introduzidas pelos comerciantes vindos sobretudo da Inglaterra e da França, após a abertura dos portos. No centro da cidade, na rua do Ouvidor, instalaram-se inúmeras lojas cheias de artigos europeus e orientais, dos mais finos. Surgiram livrarias, perfumarias, tabacarias, lojas de calcados, oficinas de costureiras e de modistas, salões de barbeiros e cabeleireiros. Tudo isso foi modificando, aos poucos, gostos, hábitos e costumes da população, introduzindo na cidade noções de conforto desconhecidas até e então.

Para assegurar o progresso material foi necessário um número maior de pedreiros, carpinteiros, ferreiros, de pessoas, em suma, especializadas em vários ofícios; daí foi surgindo aos poucos uma nova camada social, a pequena classe média, intermediária entre os escravos e os ricos e nobres.

As famílias de posses começaram a dar maior importância ao interior das casas, às peças de mobiliário, à decoração dos cômodos e, o que é importante, também aos trajes cotidianos e caseiros. Guarda-roupas e cômodas ocuparam os lugares tomados antes por arcas e baús. Consoles, pianos, poltronas, sofás, lustres, grandes espelhos foram importados da Londres e de Paris; na mesa tornou-se usual a louça inglesa, e nas residências mais ricas adotaram-se banheiras em substituição às tinas para banho.

A presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro ofereceu à população oportunidades várias de divertir-se: festas, comemorações cívicas, procissões, desfiles, espetáculos teatrais mais frequentes, concertos. A mulher pôde sair de seu isolamento, de seu mundo restrito a tarefas domésticas; nas residências particulares havia saraus com recitais de piano e canto, danças e jogos; os parentes e vizinhos começaram a visitar-se com mais frequência.

A cadeirinha foi proibida de ser usada no centro da cidade para facilitar a passagem de veículos. Nas ruas, começaram a circular carruagens puxadas por cavalos. A cidade foi se tornando, assim, mais colorida, mais alegre e mais comunicativa. (...)

Daí por diante, os filhos de senhores de engenho, dos fazendeiros e dos estancieiros vieram educar-se nos centros urbanos e, aos poucos, as capitais das províncias se modificaram sob a influência das transformações do Rio de Janeiro. Mas o Rio, como capital do império, será o pólo de atração dos grandes proprietários de terras que, após a Independência, ocuparão os cargos políticos de maior projeção.


Notas:

  • [1] HOLANDA. Sérgio Buarque de. História do Brasil. São Paulo, Nacional... p 148-50).
  • [2] O Rio de Janeiro como cenário real. In: <https://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/historia-do-brasil/rio-de-janeiro/2474-o-rio-de-janeiro-como-cenario-real>. Acesso em: 13/02/2023.

07 fevereiro 2023

A última fase colonial

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

A Inconfidência Mineira transformou-se em símbolo máximo de resistência para os mineiros, a exemplo da Guerra dos Farrapos para os gaúchos, e da Revolução Constitucionalista de 1932 para os paulistas. A Bandeira idealizada pelos inconfidentes foi adotada pelo estado de Minas Gerais" [2].


As últimas décadas do século XVIII foram marcadas por acontecimentos internacionais com reflexos no Brasil. Em 1776, as Treze Colônias romperam o domínio inglês, aprovando a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. A Inglaterra, por sua vez, desde meados do século XVIII envolvida no processo de revolução industrial, após sérios conflitos, acatou a independência e acelerou a luta contra o tráfico de escravos, abolindo-o, pioneiramente, em 1807. A essa derrota do sistema colonial moderno nas Américas seguiu-se, em 1791, a revolta dos escravos de São Domingos, com a consequente proclamação de independência do Haiti. Tal rebelião ecoava os acontecimentos da Revolução Francesa nas colônias americanas; graças a ela a escravidão foi temporariamente extinta nas colônias francesas entre 1794 e 1802. Em breve, o velho regime colonial estaria com seus dias contados. A conjuntura econômica e política agravava a situação do lado de cá do Atlântico, pois tinha início a passagem de um regime de monopólios para o de livre concorrência e do trabalho escravo para o assalariado. Livre-cambismo, igualdade civil, trabalho livre, liberdade e propriedade eram considerados direitos naturais do indivíduo. Para o nascente capital industrial, do qual a Inglaterra era o maior representante, a abertura dos mercados das colônias era urgente, tanto para comprar matérias-primas quanto para vender manufaturados.

Um dos efeitos mais imediatos da importância inglesa no cenário internacional foi a dependência cada vez maior de Portugal em relação a esse seu aliado, o que repercutia na concessão de licenças para que comerciantes ingleses se instalassem em portos brasileiros. Graças a isso, navios estrangeiros ancoravam na costa, de Belém a Paranaguá, no atual Paraná, carregando e descarregando um número bastante variado de mercadorias que iam de alimentos a ferramentas e de tecidos a aço. Partiam levando açúcar, tabaco, anil, madeira, cacau, pimenta, ouro e diamantes. Sangrava, assim, o mercantilismo, indiferente à indignação que provocavam em Lisboa ou às leis e regras monopolistas que se abatiam sobre os brasileiros. A presença britânica, em detrimento do monopólio luso, o enorme contrabando de ouro e açúcar – o mais importante produto de exportação, mais relevante do que o próprio ouro –, o incremento do comércio interno que, como vimos, aumentara o caráter deficitário das transações metropolitanas com a Colônia, acentuavam as características de uma crise do sistema, crise que foi explorada por três conspirações, todas com efeitos imediatos insignificantes, mas capazes de revelar não só a grande influência dos ideais de liberdade disseminados pela Revolução Francesa, como a ideia de que uma eventual independência da América portuguesa começava a tomar forma.

A primeira delas ocorreu em Minas Gerais, em 1788-89, sob os olhos de um governador recém-chegado de Portugal, Furtado de Mendonça. A Inconfidência Mineira registrou articulações e motivações externas e internas ao mundo colonial. Entre as primeiras, conta-se o encontro de um brasileiro, estudante em Montpellier, com Thomas Jefferson. Sob o pseudônimo de Vendek, o jovem José Joaquim Maia reuniu-se em segredo, na cidade de Nîmes, com o enviado dos Estados Unidos à França, para pedir-lhe apoio para uma insurreição. Embora falando em seu próprio nome, Jefferson respondeu-lhe que uma revolução vitoriosa não “seria desinteressante para os Estados Unidos” e, sem maiores promessas, apenas notificou as intenções de Vendeck ao Congresso: “Os brasileiros tencionam instigar uma sublevação e consideram a revolução norte-americana como um precedente para a sua; se houver uma revolução bem sucedida, será formado um governo republicano”. Se tal contato não teve maiores desdobramentos, ele revela que um número razoável de estudantes brasileiros na Europa aproximara-se das chamadas ideias iluministas. Um deles era Domingos Vidal Barbosa, proprietário de terras em Juiz de Fora, grande admirador do abade Raynal, um popularizador do ideário das Luzes. Outro estudante era José Álvares Maciel, formado em Coimbra, filho do capitão-mor de Vila Rica, suspeito de ser membro da maçonaria, sociedade secreta cujos ideais libertários inspirariam a Revolução Francesa e, em menor escala, a Inconfidência. De volta ao Brasil, Barbosa e Maciel encontraram ambiente propício às novas ideias entre sacerdotes, militares, intelectuais e moradores de Minas. A capitania, que fora durante muito tempo uma das fontes da riqueza colonial, possuía uma elite constituída por homens instruídos. Para ficar num exemplo, no ano de 1786, 12 dos 27 brasileiros matriculados em Coimbra eram mineiros. Não se tratava de uma ocorrência isolada: dos vinte e quatro envolvidos na Inconfidência Mineira, oito lá haviam estudado. Tal gente se somava aos leitores locais, possuidores de bibliotecas bem fornidas de livros proibidos e perseguidos pelo governo português por seu conteúdo libertário. O cônego Luís Vieira era leitor de Voltaire e Condillac; entre os futuros inconfidentes, como Tiradentes, circulava um exemplar da obra Recueil des lois constitutives des États-Unis de l’Amérique, publicada em Filadélfia, em 1778, contendo leis e artigos da Confederação.

Fatores regionais e internos, sobretudo econômicos, vieram rapidamente somar-se aos externos. O declínio da extração aurífera provocava violenta reação da população, permanentemente obrigada ao pagamento anual do imposto de 100 arrobas de ouro (1.500 quilos) à Real Fazenda. Diante da resistência dos mineiros, foi aprovada em 1750 a temida derrama, isto é, a cobrança forçada e geral das arrobas deficitárias. Informa um historiador que em 1789, ano da conspiração, o total em atraso era de 528 arrobas de ouro (quase 8 toneladas!) e, para cobrá-las, o secretário de Estado Martinho de Melo e Castro havia enviado enérgicas instruções. A essa causa, junte-se o péssimo governo que tinha tido Minas, sob a batuta de Luís da Cunha e Menezes, o Fanfarrão Minésio, contra o qual Tomás Antônio Gonzaga, ouvidor e poeta envolvido na conspiração, escreveu as Cartas chilenas. O novo governador, Luís Antônio Furtado de Mendonça, visconde de Barbacena, tornara-se malvisto não só pela expectativa da derrama que estava encarregado de lançar, como por preferir o isolamento na Fazenda da Cachoeira do Campo.

Reunidos em pequenos encontros secretos, os conjurados mais discutiam a teoria do que a prática. Falou-se sem dúvida em independência, mas havia controvérsias sobre a forma de governo a adotar; Álvares Maciel parecia republicano, enquanto o cônego Vieira era monarquista. A abolição da escravidão também gerava dúvidas: uns eram a favor e outros contra. O programa mais revelava os impulsos imediatos e, sobretudo, regionais que tinham levado esse grupo a se afastar da Coroa portuguesa. Os regulamentos da exploração diamantífera seriam abolidos. A exploração de jazidas de ferro e salitre, assim como a instalação de manufaturas, seria estimulada. Erguer-se-ia uma fábrica de pólvora e uma universidade, esta em Vila Rica, assim como se procederia transferência da capital para São João del-Rei. Todas as mulheres que tivessem certo número de filhos receberiam um prêmio do Estado. Não haveria exército permanente, mas todos os cidadãos deveriam possuir armas e, quando necessário, integrariam a milícia nacional. Cada cidade teria seu próprio parlamento subordinado ao parlamento supremo da capital. E, o mais importante: todos os devedores do Tesouro real seriam perdoados. As críticas ácidas à Metrópole podiam indicar um esboço de “nacionalismo econômico”, como já disseram historiadores. O alferes Joaquim José da Silva Xavier, por sua habilidade de dentista alcunhado Tiradentes, dizia que o Brasil era tão pobre, apesar de possuir tantas riquezas, porque “a Europa como uma esponja lhe estava chupando toda a substância, e os Exmos. Generais, de três em três anos, traziam uma quadrilha... que depois de comerem a honra, a fazenda e os ofícios que deviam ser dos habitantes, se iam rindo deles para Portugal”.

A Inconfidência Mineira teve três delatores: o português Joaquim Silvério dos Reis, que com sua denúncia obteve o perdão de importantes dívidas à Fazenda Real; o também português Basílio de Brito Malheiros do Lago e Inácio Correia Pamplona, nascido nos Açores. Quando denunciada, a conjura ainda engatinhava. Estava longe de se tornar uma rebelião incendiária. Prenderam-se os envolvidos e tiveram início os inquéritos ou as devassas. Alguns conjurados apressaram-se a escrever ao governador, revelando tudo o que sabiam, com o objetivo de se isentar de suas culpas. Depois da comutação de várias penas de morte em degredo perpétuo ou temporário, somente Tiradentes foi executado, em 1792. Silva Xavier, que, ao longo das acareações negara, a princípio, sua participação, passou depois a se inculpar assumindo uma responsabilidade superior a sua posição social e de saber. Para a defesa dos acusados, foi nomeado o advogado da Santa Casa de Misericórdia, José de Oliveira Fagundes, que habilmente procurou diminuir o crime dos réus alegando que a conspiração “não havia passado de conversas e loucas cogitações, sem que houvesse ato próximo nem remoto começo de execução”.

A 18 de abril de 1792, reuniu-se a alçada para a leitura das sentenças. Foram condenados à morte, pela forca, Tiradentes, o tenente-coronel Freire de Andrade, José Álvares Maciel, Alvarenga Peixoto, Abreu Vieira, Francisco Antônio de Oliveira Lopes, Luís Vaz de Toledo Piza, os dois Resende Costa, Amaral Gurgel e Vidal Barbosa – onze ao todo. Ao degredo perpétuo na África foram sentenciados sete réus, inclusive Gonzaga e o coronel Aires Gomes. Quanto aos eclesiásticos, sabe-se que na primeira sentença três foram condenados à morte: os padres Carlos Corrêa de Toledo e Melo, José da Silva e Oliveira Rolim e José Lopes de Oliveira; e dois a degredo perpétuo: o cônego Vieira da Silva e o padre Manuel Rodrigues da Costa. Todavia, remetidos a Lisboa, permaneceram vários anos enclausurados.

Desde 1790, a rainha d. Maria havia decidido comutar a pena de morte dos chefes da conjura em degredo perpétuo, com exceção dos que apresentassem agravantes. Estava neste caso, por sua própria vontade, o alferes Silva Xavier. Eis por que, assistido espiritualmente pelos franciscanos do Rio de Janeiro, Tiradentes preparou-se para a morte. Sua execução ocorreu no antigo largo do terreiro da Polé a 21 de abril de 1792. A caminho dela, parou na igreja da Lampadosa, frequentada por “pretos minas”, para suas últimas orações. Foi enforcado e seu corpo esquartejado, sendo suas partes exibidas nos locais onde havia feito pregação revolucionária. Nos meses seguintes, foram enviados para as possessões portuguesas na África sete condenados, dos quais apenas dois regressaram ao Brasil: José de Resende Costa Filho e o padre Manuel Rodrigues da Costa, posteriormente eleitos deputados às Cortes de Lisboa.

Mas não era só em Minas que se liam os livros proibidos de Raynal e Mably ou se discutiam as ideias de igualdade e liberdade. A capital da América portuguesa também tinha seu fórum sobre o assunto. Era a Sociedade Literária do Rio de Janeiro, fundada em 1786 por Luís de Vasconcellos e Souza, vice-rei da época, com o intuito de discutir “a filosofia em todos os seus aspectos”. Se antes da Inconfidência alguns de seus membros, baseados na confiança mútua, ousavam debruçar-se sobre assuntos como “a igualdade dos homens”, a partir de 1791, com a revolta de São Domingos, os mesmos temas passaram a inspirar profundo mal-estar: “O que sucedeu lá [na América Francesa], demonstrou o que pode acontecer-nos e Deus permita que eu nunca veja”, anotava em tom temeroso Manuel José de Novais de Almeida. O fato é que, dois anos depois da execução de Tiradentes, os membros da Sociedade Literária, por ordem do segundo conde de Resende, foram presos e submetidos a longos e exaustivos interrogatórios. Sua liberdade foi outorgada por d. Rodrigo de Souza Coutinho, futuro conde de Linhares e neto de brasileira.

Na Bahia, por sua vez, os mesmos ideais eram discutidos numa loja maçônica, os Cavaleiros da Luz, sediada nos arrabaldes da Barra. O fato de ter num francês, Antoine René Larcher, seu fundador, e de o porto de Salvador receber constantemente a visita de navios que descarregavam, em segredo, gazetas e livros provenientes do Velho Continente, acentuava entre os maçons o interesse pelos ideais da Revolução Francesa. Tal clima, favorável às ideias libertárias, assim como a notícia da participação dos sans-culottes – nome que se dava, durante a Revolução Francesa, aos republicanos oriundos das camadas populares – na derrubada da monarquia, acabou por inspirar, em Salvador, outra conjuração: a dos Alfaiates. Distintamente do que houve em Minas, na Bahia levantaram-se representantes dos grupos mais humildes: artífices, soldados, mestres-escolas, assalariados, em grande maioria mulatos, gente exasperada contra a dominação portuguesa e a riqueza dos brasileiros. Seu ideal era a construção de uma sociedade igualitária e democrática em que as diferenças de raça não estorvassem as oportunidades de emprego nem de mobilidade social. Tal como na França, reproduziu-se aqui, também, um profundo sentimento anticlerical. Os discípulos dos chamados “francesismos” não respeitavam os dias de festa religiosa que exigiam jejum de carne, apedrejavam os nichos de imagens sacras nas esquinas das ruas, onde era hábito rezar o terço, atacavam publicamente os dogmas da Igreja, afirmando que não havia Juízo Final, Inferno ou Céu. Conta um observador contemporâneo aos fatos que eles não hesitavam em dizer, ainda, “que as mulheres casadas não eram obrigadas à fidelidade conjugal”, ou que “Cristo Sr. Nosso não estava real e perfeitamente no sacramento da Eucaristia, sim num pedaço de pão”.

Governava então a Bahia d. Fernando José de Portugal e Castro, futuro vicerei, ministro, conde e marquês de Aguiar, quando na manhã de 12 de agosto de 1798 começaram a aparecer pela cidade, em lugares públicos e igrejas, pasquins manuscritos tornando pública a sedição. Eram os Avisos ao povo bahianense. Dirigidos ao “povo republicano da Bahia” em nome do Supremo Tribunal da Democracia Baiana, o papel – como se chamava esse tipo de pasquim – clamava pelo fim do “detestável jugo metropolitano de Portugal”. “Todos os cidadãos e, em especial, os mulatos e negros” eram informados de que “não haverá diferenças, haverá liberdade, igualdade e fraternidade”. Quanto à escravidão, os sediciosos baianos, diferentemente dos mineiros, não tinham dúvidas: “todos os negros e castanhos serão libertados para que não exista escravidão de tipo nenhum”. “Democrático, livre e independente” deveria ser o governo, enquanto os membros do clero que pregavam contra a liberdade eram ameaçados. Concluía, exclamando que “a época feliz da nossa liberdade está prestes a chegar; será o tempo em que serão irmãos, o tempo em que todos serão iguais”. Um desses papéis, em forma de carta ao prior dos carmelitas descalços da Bahia, proclamava-o “futuro geral em chefe da Igreja baianense”. Outro, dirigido ao próprio governador, informava-o de que, num plebiscito do dia 19, fora ele invocado como “presidente do Supremo Tribunal da Democracia Baianense”.

Também nessa ocasião, a conspiração, que contaria com seiscentos adeptos, foi denunciada e esmagada antes de propriamente começar. Como não estivesse disfarçada a letra desses escritos, os mesmos foram confrontados com requerimentos existentes na Secretaria do Governo da capitania, apurando-se parecerem de autoria de certo Domingos da Silva Lisboa, português, alferes de milícias. Como, entretanto, depois de sua prisão continuassem a aparecer outros pasquins, prendeu-se como seu autor o soldado Luís Gonzaga das Virgens. Completando esses indícios, um capitão de milícias, um soldado e um ferrador fizeram denúncias ao governador, comunicando-lhe que reuniões suspeitas vinham sendo realizadas no campo do Dique do Desterro, próximo ao convento do mesmo nome. Delas participavam soldados, alfaiates, pardos forros, escravos, etc. As reuniões começaram a ser vigiadas e não foi difícil identificar os principais frequentadores. Dois soldados e dois alfaiates se achavam gravemente comprometidos. Eram eles: o citado Luís das Virgens, autor dos pasquins, ex-desertor das milícias, pardo de 36 anos; Lucas Dantas do Amorim Torres, que se justificou por querer dar baixa do serviço militar, sem conseguir; João de Deus do Nascimento, alfaiate, pardo de 28 anos, partidário das ideias francesas de “igualdade e abundância” para todos, e Manuel Faustino dos Santos, alcunhado o Lira, pardo de 23 anos de idade. Além deles, envolveram-se mais 31 sediciosos, destacando-se o cirurgião formado em Coimbra, Cipriano José Barata de Almeida, posteriormente um dos mais ativos jornalistas políticos do Primeiro Reinado. Seguiam-no, na hierarquia social, dois tenentes, um cirurgião prático, também pardo, Sá Couto, o professor de gramática latina do Rio de Contas Francisco Moniz Barreto, e o militar Hermógenes Francisco de Aguilar Pantoja, possuidor de notas sobre as “ideias francesas”. A maior parte dos acusados era, contudo, composta por gente humilde, inclusive escravos.

As ideias francesas eram vagamente conhecidas por gente de parca instrução. Associavam-nas à garantia de liberdade e igualdade, o que os atraía, pois eram oprimidos por uma conjuntura econômica nefasta que elevava os preços e abaixava salários, alimentando o mal-estar popular. Durante os inquéritos, apurou-se que os conjurados projetavam realizar o saque da cidade para distribuir bens entre todos; se o governador não aderisse ao movimento, seria morto; as portas dos mosteiros e prisões seriam abertas liberando quem quisesse deixar suas celas. A originalidade do movimento consistia na defesa da abolição dos preconceitos de cor e da abertura comercial do porto de Salvador para navios de todas as nacionalidades. Em dezembro de 1798, o príncipe regente d. João determinou que os acusados fossem sentenciados pelo Tribunal da Relação da Bahia. O advogado José Barbosa de Oliveira defendeu-os brilhantemente, alegando que os réus não estavam à altura do crime que lhes era imputado. A sentença foi dada a 7 de novembro de 1799 e, no dia seguinte, foram “exemplarmente” enforcados e esquartejados os soldados Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas e os alfaiates João de Deus e Manuel Faustino. Sete outros réus, entre eles cinco pardos, inclusive Sá Couto, foram degredados para a África. José Raimundo Barata de Almeida foi degredado por três anos para a ilha de Fernando de Noronha. Seu irmão Cipriano Barata e o tenente Hermógenes, absolvidos. Os escravos envolvidos na revolta receberam açoites e seus senhores foram obrigados a vendê-los para fora da capitania. Os representantes da elite branca, pouco à vontade num movimento radical, receberam penas leves. A mão da justiça colonial batia pesadamente, mais uma vez, sobre as camadas populares que ousavam se levantar contra o regime.


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Veja também:


Notas:

[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO,
     Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 104
     a 109, Capítulo 14.

[2] Texto e imagem disponíveis em: <https://www.sohistoria.com.br/ef2/inconfidencia/>.
      Acesso em 07/02/2023.


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São
        Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

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