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24 fevereiro 2023

O Brasil como Nação

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


Misturando arqueologia com poesia, linguística com romance de folhetim, pintura com ópera, foram elaboradas, representadas, divulgadas e debatidas explicações de como o Brasil se tornou brasileiro” (idem, Nota 1, pág. 127).

 

                                  “A construção da identidade brasileira constituiu-se como um
                                    processo histórico, cultural e político desde a Independência,
                                    em 1822” [2]

Em meados do século XIX, a capital do Império viu surgir uma nova moda cultural: a de procurar vestígios de antigas civilizações que teriam existido no interior do Brasil antes da chegada de Cabral. Tais incursões, promovidas pelo prestigiado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ou, mais sucintamente, IHGB, não eram organizadas por lunáticos, mas sim por renomados intelectuais da época que contavam, inclusive, com o apoio do governo imperial. A primeira delas, realizada em 1839, teve dimensões modestas, destinando-se a buscar vestígios arqueológicos nas imediações do Rio de Janeiro, onde se acreditava existir – na Pedra da Gávea, sintomaticamente denominada Esfinge – escritas rupestres de autoria de antigos fenícios.

Embora essas suspeitas não tenham se confirmado, a esperança de novas e espetaculares descobertas não desapareceram. Tanto foi assim que, em 1840, iniciaram-se os preparativos de uma arrojada incursão ao sertão baiano com o objetivo de confirmar informações, que circulavam desde o século XVIII, a respeito das ruínas de uma cidade antiga nas remotas matas do Cincorá. Como seria de esperar, essa expedição, apesar de ter durado vários anos, não obteve sucesso.

Nem tudo, porém, era fracasso. Alguns empreendimentos científicos, embora não vinculados diretamente ao IHGB, resultaram em descobertas surpreendentes. Isso ocorreu, por exemplo, em Lagoa Santa, Minas Gerais, onde o cientista dinamarquês Peter Lund identificou, na década de 1840, fósseis humanos pré-históricos, confirmando as expectativas sobre um antiquíssimo povoamento do território brasileiro.

Animados com essas descobertas, os membros do IHGB reiniciaram as explorações arqueológicas, identificando, em várias partes do território brasileiro, sambaquis – uma espécie de depósito de lixo pré-histórico. Alguns desses depósitos alcançavam dimensões gigantescas e, no entender da época, bem que podiam esconder no seu interior construções monumentais. Foi isso pelo menos o que imaginou o erudito Francisco Freire Allemão, que, também na década de 1840, tendo por base informações de um grande sambaqui, escreveu uma monografia a respeito de uma suposta “pirâmide” localizada no Campo Ourique, no Maranhão.
Paralelamente a essa arqueologia fantástica, desenvolveu-se na capital do Império uma linguística igualmente fantástica, na qual aquele que é considerado o fundador da historiografia brasileira, Francisco Adolfo de Varnhagen, procurou demonstrar, por meio da comparação de vocábulos indígenas com os de antigas civilizações, a origem euro-asiática dos povos tupis-guaranis. Com base nesse conjunto de indícios, especulou-se a respeito da origem dos índios do Brasil, quase sempre afirmando que eram “povos decaídos”, ou seja, descendentes de altas civilizações mediterrâneas, como a dos egípcios ou fenícios, que haviam regredido ao estado de selvageria. O imperador d. Pedro II não se furtou ao debate, escrevendo, na década de 1850, aos diretores do IHGB para que procurassem responder o mais rapidamente possível: quais são os vestígios que podem provar a existência de uma civilização anterior aos portugueses?

E, mais ainda, em um rompante de etnólogo amador, o imperador sugeriu uma nova questão, interrogando: Existiram ou não as amazonas no Brasil?

Aos olhos do leitor atual, esses insólitos empreendimentos científicos podem parecer piada. Na época, porém, o tema era levado a sério. Para compreendermos a razão disso, devemos ter em mente que as buscas arqueológicas oitocentistas eram uma espécie de ponta de iceberg de outra questão fundamental da época: a da identidade nacional brasileira.

E essa será a questão de que trataremos a seguir.

Conforme mencionamos em páginas anteriores, logo após 1822 surgiram movimentos que questionavam o projeto político imperial carioca e reivindicavam o federalismo ou até a independência de suas respectivas regiões. A luta contra esses movimentos demandou extraordinários recursos humanos e financeiros. Sua evolução também esteve longe de ser linear. Em 1831, a abdicação de d. Pedro I ao trono significou uma vitória das forças descentralizadoras, havendo o que se convencionou chamar de “experiência republicana”, tendo em vista a eleição direta de regentes, uma espécie de presidente da época, como foi o caso de Diogo Feijó.

No entanto, a abdicação não diminuiu o ímpeto separatista. Ao contrário, o período que se estende até 1848 foi caracterizado pelo avanço desse segmento. A elite imperial não só ordenou o massacre dos rebeldes das províncias como também procurou criar instituições que viabilizassem o projeto monárquico. Os intelectuais vinculados a esse projeto investiram, por sua vez, no combate aos movimentos separatistas, mostrando que os brasileiros constituíam uma nacionalidade com características próprias. Em outras palavras, para ser viável, o Império deveria não só se impor através da força, como também por meio de boas instituições e de uma identidade coletiva que justificasse a razão de ser da nação que estava se formando.

Para felicidade desses intelectuais, a última questão também era enfrentada por boa parte dos países europeus, em processo de unificação, facultando-lhes assim um conjunto bastante rico de discussões a respeito da construção da identidade nacional. A instituição que centralizou tais debates foi o já referido Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838. O IHGB reuniu historiadores, romancistas, poetas, administradores públicos e políticos em torno da investigação a respeito do caráter nacional brasileiro. Em certo sentido, a estrutura dessa instituição, pelo menos enquanto projeto, reproduzia o modelo centralizador imperial. Assim, enquanto na corte localizava-se a sede, nas províncias deveria haver os respectivos institutos regionais. Estes, por sua vez, enviariam documentos e relatos regionais para a capital, onde se trataria de escrever a “história do Brasil”.

Nas discussões que se seguiram imediatamente à fundação do IHGB, a versão do que seria o elemento central da história nacional, ironicamente, foi definida por um estrangeiro. Segundo o esquema proposto por Karl von Martius, naturalista alemão, a história do Brasil resultaria da fusão de três raças: branca, negra e índia. Com certeza, nos dias de hoje tal definição não é levada a sério, pois sabemos que a história não é um subproduto das raças. Além disso, do ponto de vista cultural, os três grupos mencionados não formaram unidades homogêneas, nem muito menos mantiveram relações igualitárias no Novo Mundo, como a noção que fusão sugere. Na época, porém, a tese de Martius estava em dia com os mais avançados debates científicos que, por intermédio da análise das diferentes misturas entre anglo-saxões, francos, normandos, celtas e romanos, tentavam explicar as diferentes nacionalidades europeias. Talvez a extraordinária repercussão da interpretação adotada pelo IHGB resulte desse pretenso rigor, que encantou não só historiadores, mas também romancistas e poetas.

A “teoria” das três raças se fundindo e formando a nacionalidade apresentava ainda dois atrativos suplementares. Em primeiro lugar, mostrava que os brasileiros eram diferentes dos portugueses, sendo legítimas, portanto, as aspirações de 1822. Em segundo lugar, tal interpretação procurava esvaziar a legitimidade dos movimentos separatistas, unificando, em uma única categoria nacional, o conjunto de habitantes dispersos pelas várias regiões do Império, contribuindo assim para a formação de uma identidade brasileira diferenciada daquela do antigo colonizador.
Mas o sentimento de ser “diferente” em relação aos antigos metropolitanos era abordado pelos intelectuais de maneira contraditória. É bom ter sempre em mente que, tal qual o imperador, boa parte da elite monárquica descendia de portugueses. Como se não bastasse isso, romper totalmente com o passado significava romper com os laços europeus, laços que, segundo o ponto de vista de muitos, coloriam o passado brasileiro com tintas de civilização.

No texto elaborado por Martius, que durante décadas serviu de guia a respeito de “como se deve escrever a história do Brasil”, o tema do contato das três raças é explorado de maneira exemplar. Nele, a contribuição portuguesa para a formação da nacionalidade brasileira é associada a instituições políticas, econômicas e religiosas; em outras palavras, às formas de vida civilizadas. Já a contribuição dos negros é apresentada de maneira contraditória, havendo sucintas alusões aos conhecimentos dos africanos em relação à natureza e, ao mesmo tempo, a seus preconceitos e superstições.

Segundo tal interpretação, o que faria do Brasil uma sociedade positivamente diferente da portuguesa não seria propriamente a presença africana – esta, conforme veremos, combatida através de leis favoráveis à extinção do tráfico internacional de escravos –, mas sim a indígena. Em relação a este segmento, a posição de Martius foi a de não mencionar uma contribuição, mas sim indicar que eles eram “ruínas de povos”, ou seja, descendiam de uma antiga civilização que teria migrado para o Novo Mundo e entrado em decadência, regredindo ao estado de selvageria. Ora, essa sutil nuança em relação aos outros dois povos formadores da nacionalidade brasileira tinha importantes implicações. Se refletirmos um pouco, perceberemos que Martius transferiu para o futuro a definição do que seria a contribuição indígena; dependendo dos rumos tomados pelos estudos arqueológicos e linguísticos, mencionados no início do presente capítulo, essa contribuição poderia ser considerada tão importante quanto a dos portugueses.

Cabe lembrar ainda que, por essa época, os principais centros econômicos do Império contavam com uma população indígena residual. Tal situação abria margem para a análise desse grupo enquanto elemento já incorporado à sociedade brasileira. Haveria, assim, na química simbólica da nacionalidade brasileira, um misterioso ingrediente que, quando estudado com o devido cuidado, poderia revelar um passado monumental, rival até ao europeu.

Para os intelectuais vinculados a esse debate, a descoberta de vestígios de uma ou de várias complexas sociedades no território brasileiro era uma questão de tempo. Tal crença, por sua vez, resolvia, por assim dizer, um dilema que a muitos assustava: se os portugueses eram a única fonte de comportamento civilizado da nossa índole nacional, quais seriam, ao longo do tempo, os resultados do rompimento com a Metrópole? Haveria um retrocesso? Assumir uma identidade não branca, no mínimo, abalaria a autoestima dos súditos da nova nação. Afinal, quais seriam as razões para os brasileiros se orgulharem de ser brasileiros?!

Ora, é justamente nesse ponto que a apropriação de uma tradição indígena, baseada na existência de uma fantasiosa e ancestral “alta cultura”, desempenhou um papel central na “química” da nacionalidade. Aos índios podia ser atribuído o que, supostamente, faltava ao negro, permitindo-lhes rivalizar com os brancos. Da ótica do pequeno grupo de intelectuais que, na época, refletiu a respeito da identidade nacional brasileira, os primeiros habitantes do Brasil passaram a ser vistos como portadores de valores que até os portugueses da Época Moderna, marcados pela ânsia do lucro e do acúmulo de bens materiais, haviam perdido. Para os autores que adotaram esse tipo de concepção, o mundo indígena teria conservado a nobreza, a generosidade e a bravura do mundo antigo, valores que não existiam mais nas sociedades contemporâneas. A tradição indígena – ou a invenção dessa tradição – fornecia, por assim dizer, os ingredientes que faltavam para fazer do brasileiro um ser diferente do português, mas nem por isso inferior.

Boa parte da literatura brasileira do século XIX, como as clássicas obras produzidas por Gonçalves Dias e José de Alencar, estende raízes nesse intricado debate. A cada “ossinho” encontrado em cavernas, a cada desenho rupestre identificado, a cada novo rumor de cidades perdidas nas selvas, cresciam as expectativas a respeito das descobertas de altas civilizações indígenas que teriam existido no território brasileiro. Essas expectativas, por sua vez, devido às características da vida intelectual no Império, conquistaram um público bem mais amplo do que o restrito grupo de sócios do IHGB. Por essa época, havia no Brasil muito pouca especialização da atividade intelectual. Um indivíduo podia, ao mesmo tempo, ser magistrado, jornalista, romancista, poeta, historiador, arqueólogo, naturalista, transitando, assim, em diversas áreas de conhecimento.

Para compreendermos as consequências dessa situação, é necessário sublinhar que, nas primeiras décadas do século XIX, observamos no Brasil o florescimento do romantismo. Em linhas gerais, os românticos caracterizavam-se pelo ecletismo filosófico, propondo criar um meio-termo entre ciência e religião; estranha combinação que, pelo menos entre alguns autores da época, desdobrava-se em uma aproximação da ciência com a literatura e a poesia. O romantismo também fazia oposição à ideia de que as sociedades tinham a mesma origem, evoluindo da mesma maneira, ou ainda que a história humana fosse guiada por algum objetivo, como aquele relativo à busca do progresso ou da liberdade. Ao contrário das teorias evolucionistas do século XVIII, os românticos não classificavam as nações como atrasadas, mas sim como diferentes entre si.

Ao considerar a nacionalidade como algo a ser descoberto, o romantismo em muito contribuía para a superação intelectual da experiência colonial. Daí, inclusive, a busca pelo passado indígena. Justamente por não se saber ao certo a origem dos índios, as descobertas arqueológicas que estavam para ser feitas poderiam sugerir novas formas de entender e de valorizar a identidade nacional brasileira. Cabia aos intelectuais aprofundar os estudos e criar meios pedagógicos de sua divulgação. Misturando arqueologia com poesia, linguística com romance de folhetim, pintura com ópera, foram elaboradas, representadas, divulgadas e debatidas explicações de como o Brasil se tornou brasileiro. O leitor, caso queira confirmar isso, deve folhear os antigos números da Revista do IHGB, visitar museus que conservam quadros de Victor Meireles, ouvir um CD de Carlos Gomes, ou então correr à estante e abrir, em uma página qualquer, algum romance de José de Alencar.


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Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 123 a 127, Capítulo 17.

  • [2] Construção da identidade brasileira. Imagem disponível em: <https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/a-identidade-nacao-brasileira.htm>. Acesso em 23/02/2023.

Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

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