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05 setembro 2022

Religiosidades na Colônia

Por DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

 

Os jesuítas no Brasil [2]

O Brasil nasceu à sombra da cruz. Não apenas da que foi plantada na praia do litoral baiano, para atestar o domínio português, ou da que lhe deu nome – Terra de Santa Cruz –, mas da que unia Igreja e Império, religião e poder. Mais. Essa era uma época em que parecia impensável viver fora do seio de uma religião. A religião era uma forma de identidade, de inserção num grupo social – numa irmandade ou confraria, por exemplo – ou no mundo. A colonização das almas indígenas não se deu apenas porque o nativo era potencial força de trabalho a ser explorada, mas também porque não tinha “conhecimento algum do seu Criador, nem de cousa do Céu”. Isso foi fundamental para dar uma característica de missão à presença de homens da Igreja na América portuguesa. D. João III não deixou dúvidas quanto a isso ao escrever a Mem de Sá: “A principal causa que me levou a povoar o Brasil foi que a gente do Brasil se convertesse à nossa santa fé católica1”. A crença de que o apóstolo São Tomé teria saído pregando o evangelho de Cristo mundo afora estimulava os religiosos europeus a seguir seu modelo, suas pegadas. Para empurrá-los, o próprio infante d. Henrique criara, com o aval da Santa Sé, conventos no Norte da África. Os padrões, ou marcos, plantados na costa da África e da Ásia, traziam as armas reais entrelaçadas à cruz, pois missão evangelizadora e colonização se sobrepunham.

o zelo fanático em extirpar idolatrias e heresias, num momento delicado em que católicos e protestantes se digladiavam pela hegemonia religiosa no Velho Mundo, somou-se à necessidade de pregar a palavra de Deus, evangelizando, catequizando e impondo ideais. “Todos temem e todos obedecem e se fazem adeptos para receber a fé”, registrava, no século XVI, o jesuíta Antônio Blásquez. Mas como se deu tal evangelização? Quem foram os primeiros a difundir o cristianismo no ultramar?

Os primeiros religiosos a desembarcar entre nós foram oito franciscanos, membros de importante ordem estabelecida, há tempos, em Portugal. Sua presença como capelães de bordo na navegação portuguesa era comum, mas sua participação na evangelização do gentio ou nas práticas religiosas de colonos só ganhou envergadura a partir da década de 1580, com a conquista da Paraíba. A eles juntaram-se beneditinos e carmelitas. Papel bem mais relevante, contudo, teriam os jesuítas. Vindo com Mem de Sá em 1549, o primeiro grupo era composto por seis missionários da recém-fundada Companhia de Jesus, entre os quais estava Manuel da Nóbrega (1517-70). Sua primeira providência? A organização de uma escola que, como outras que se seguiriam, consistia na base da missão. Um ano mais tarde, chegaram mais padres acompanhados de “órfãos de Lisboa, moços perdidos, ladrões e maus”, que teriam papel relevante, embora anônimo, nos projetos da Companhia. Chamados meninos língua, cabia-lhes aprender o tupi-guarani, tendo como tarefa a conversão das crianças nativas. Em 1550, Leonardo Nunes instalou-se em São Vicente, litoral paulista, onde, em registro admirativo de Nóbrega, ergueu “uma grande casa e muito boa igreja”. Bahia e Rio de Janeiro tornavam-se polos de irradiação da atividade de catequese. Em 1575, inaugurou-se, em Olinda, o quarto grande colégio, onde eram ministradas aulas de “ler, escrever e algarismos” para os filhos de colonos.

As cartas escritas pelos padres jesuítas a seus superiores na Europa revelam como transcorria o cotidiano nas missões onde se juntavam padres e indígenas: “Se ouvem tanger missa”, conta um inaciano, “já acodem e tudo que nos veem fazer, tudo fazem. Assentam-se de joelhos, batem nos peitos, levantam as mãos para o céu”. A clientela era feita de filhos de índios e mestiços, acrescida, de tempos em tempos, de um principal, ou seja, um chefe. As primeiras atividades religiosas consistiam em recitar, nas igrejas, ladainhas ou a Salve-Rainha. Nas sextas-feiras, disciplinavam-se em cerimônias de autoflagelação e, com o corpo coberto de sangue, saíam em procissão. Cantavam hinos como o Dominus et Creator e revezavam-se entre aulas de flauta e canto. A Gramática, feita de perguntas e respostas, era o livro básico para a instrução, além de aprenderem a escrever. Confessavam-se de oito em oito dias e saíam para caçar e pescar todas as tardes, pois não havia qualquer forma regular de aprovisionamento. A alimentação baseava-se na farinha de pau, nome dado à farinha de mandioca, e caça, “como sejam os macacos, as corças, certos animais semelhantes a lagartos, pardais e outras feras”, explicava o padre Anchieta. O pescado era considerado gostoso e o cardápio engrossado por legumes, favas, folhas de mostarda e abóbora, e “em lugar de vinho [...] milho cozido em água a que se ajunta mel”. As meninas indígenas eram ensinadas a tecer e fiar algodão, capaz de vestir os jovens nus. O tempo livre das crianças ficava por conta do banho de rio ou no “ver correr as argolinhas”, brinquedo, segundo Nóbrega, importado de Portugal: “Ensinamos-lhes jogos que usam lá os meninos do Reino. Tomam-nos tão bem e folgam tanto com eles que parece que toda a sua vida se criou nisso”, anotava o padre Rui Pereira em 1560. As atividades físicas mais simples impregnavam-se de cantos e danças nos quais a cultura indígena se impunha. Em festas nos aldeamentos, os meninos levantavam-se à noite para a seu modo cantar e dançar “com taquaras que são canos grossos que dão no chão e com o som que fazem cantam e com as maracas que são umas frutas, umas cascas como cocos furados por onde deitam pedrinhas dentro”. A sensibilidade musical do indígena fazia crer aos jesuítas que, “tocando e cantando entre eles, os ganharíamos” e que “se cá viesse um gaiteiro”, anotava Nóbrega, não haveria cacique que recusasse seus filhos à escola jesuítica. Nos batismos em grupo, os meninos índios eram vestidos com “roupas brancas, flores na cabeça e palmas na mão”, sinal da vitória que teriam alcançado contra o Demônio.

Até 1580, os jesuítas procediam como uma espécie de missionários oficiais da Coroa. A anexação de Portugal à Espanha, no período da União Ibérica (1580–1640), mudou, contudo, essa hegemonia – estimulando-se o ingresso de outras ordens religiosas ao Brasil. Os franciscanos destacaram-se por seguir a ocupação do litoral nordestino, do Rio Grande do Norte a Alagoas. Unidos aos senhores do açúcar, desenvolviam sua ação dentro das capelas de engenhos, rezando missas, realizando batismos e casamentos comunitários, abençoando as moendas e os animais. Acompanharam os bandeirantes em suas expedições de apresamento de índios e, ao contrário dos jesuítas, situaram-se mais do lado do branco do que do índio. Nas expedições oficiais para a conquista da Paraíba, por exemplo, jamais apoiaram tabajaras e potiguares e, entre 1588 e 1591, começaram a estabelecer-se em conventos, lado a lado com beneditinos e carmelitas.

Instalados ao final do século XVI em Olinda, os carmelitas ensinavam teologia e língua brasílica, ou seja, o tupi simplificado, e daí enviavam seus missionários Brasil afora. Foram vigorosos defensores dos interesses portugueses na Amazônia, logo deixando de importar-se com o caráter missionário e investindo nas relações com as populações de vilas interessadas no comércio de especiarias, como o cacau. Mais dedicados à vida contemplativa do que a qualquer outra atividade, os beneditinos pertenciam, por sua vez, a uma ordem rica, possuidora de inúmeros imóveis e fazendas sustentadas por escravos. Na Amazônia, cartas régias fixaram a atuação de cada ordem: franciscanos de Santo Antônio, as missões do cabo do Norte, Marajó e norte do rio Amazonas; Companhia de Jesus, as dos rios Tocantins, Xingu, Tapajós e Madeira; Carmo, as dos rios Negro, Branco e Solimões; franciscanos da Piedade, as do Baixo Amazonas; mercedários, as do Urubu, Uatumã e trechos do Baixo Amazonas. Já no Sudeste, os franciscanos organizavam-se em missões volantes, nas quais grupos visitavam de tempos em tempos as vilas e povoados do interior para pregar, confessar, rezar missas, apoiando com socorro espiritual os colonos.

À medida que a colonização, a fome e as guerras dizimavam os índios do litoral e que os negros africanos eram trazidos em massa para trabalhar nos engenhos como escravos – sem que autoridades religiosas argumentassem contra sua escravização –, os movimentos missionários se deslocavam para o interior da Colônia à procura de novas almas. Nos sertões do rio São Francisco, capuchinhos franceses, aliados das reformas propostas pelo Concílio de Trento, e oratorianos italianos, muito voltados para as práticas piedosas de orações e devoções, tiveram destacada atuação. Os laços que os ligavam diretamente à Santa Sé, em Roma, sem passar por vínculos com o governo português, lhes davam grande liberdade de ação. Suas missões lhes permitiam estar mais próximos do povo humilde que habitava, disperso e sem auxílio, as ermas vastidões do interior.

Mas havia muitos espinhos nos caminhos da evangelização. Os conflitos entre leigos e o clero se sucediam. Os mais importantes deram-se em torno da escravização dos indígenas, verdadeira pedra no sapato – ou melhor, nas alpargatas – dos padres que desejavam a catequese e a conversão do gentio. Desde o século XVI, a Companhia de Jesus conseguiu que o governo proibisse tal prática. Todavia, grupos importantes de plantadores de cana, donos de engenhos e, posteriormente, bandeirantes que obtinham grandes lucros com a escravização dos negros da terra consideravam sua proteção uma ruína para a Colônia. Eles não apenas insistiam com as autoridades do Reino para que estas lhes concedessem liberdade para usar o trabalho compulsório dos índios, como também, por meio de pressões e ameaças, retardaram o quanto puderam a supressão da escravatura dos nativos. Para fazer frente às dificuldades criadas pelos colonos, uma lei de 1639, baseada em bula papal, reafirmou a liberdade dos indígenas. A resposta não tardou: colonos revoltaram-se em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, apontando suas armas contra os portões das escolas da Companhia de Jesus. Das janelas, terços na mão, os padres os excomungavam sob uma chuva de balas. Em Belém, os colonos acusavam os jesuítas por libelos enviados diretamente a procuradores na Corte. O ódio entre um e outro grupo era tal que os jesuítas foram expulsos dessas localidades, só regressando anos depois.

Em meio a essa crise, chegou ao Brasil, em 1652, o padre Antônio Vieira, que logo no ano seguinte foi nomeado visitador das missões do Maranhão e Grão-Pará. Familiarizado com a Colônia, pois tinha morado com os pais na Bahia até entrar para o seminário, Vieira vinha com a função de evangelizar, erguer igrejas e realizar missões entre os índios do Maranhão, além de contar com o apoio do rei, que ameaçara com severas punições os que atravessassem seu caminho. Alguns de seus textos são contundentes críticas à escravidão indígena, como a Informação sobre o modo que foram tomados e sentenciados por cativos os índios no ano de 1655. Nele, Vieira afirma: “Para acudir às injustiças que em todo o estado do Brasil se usavam no cativeiro dos índios naturais da terra, tomaram por último remédio os senhores reis destes reinos declarar a todos por forros e livres”. Exceção seria feita no caso de guerra justa, ou seja, quando os nativos se recusassem à catequese, praticassem a antropofogia, cometessem latrocínio em terra ou no mar, se negassem a pagar tributos e a defender o rei ou a trabalhar para ele. Em outras palavras: quando de alguma forma resistissem à colonização.

Levados do sertão para o litoral pelos jesuítas, muitos índios eram agrupados em aldeamentos onde recebiam instrução e educação religiosa. A orientação de Vieira era, contudo, de que permanecessem no interior, evitando o confronto com os colonos gananciosos ou com outras ordens religiosas, mais incomodadas com o prestígio da Companhia do que com o destino dos índios. A pressão sobre Vieira foi tão grande que ele se viu obrigado a sair do Maranhão em 1654, retornando a Portugal. Havia tempos, na verdade, delineava-se esse quadro incendiário: entre 1632 e 1648, as populações guaranis aldeadas pelos jesuítas entre o Paraguai, o Paraná e o Rio Grande do Sul (Guairá, Itatim e Tape) haviam sido arrasadas por bandeirantes paulistas. Por essa época, numerosos grupos indígenas deslocaram-se para a margem oriental do rio Uruguai para estabelecerem-se junto dos jesuítas nos Sete Povos das Missões. Organizados para abrigar até mil famílias em moradias de terra socada, tais aldeamentos eram alvos constantes de ataques organizados por bandeirantes paulistas.

Em relação às demais populações católicas, um importante espaço de práticas religiosas para homens e mulheres coloniais eram as irmandades ou confrarias. Associações de caráter local, tais instituições auxiliavam a ação da Igreja e promoviam a vida social, desempenhando tarefas que, muitas vezes, deveriam caber ao ausente governo português: fundação e manutenção de abrigos de meninos pobres, recolhimento de meninas órfãs e hospitais, denominados Santas Casas da Misericórdia. Sua finalidade específica era promover a devoção a um santo. Em torno de festas, do culto e da capela do santo, um grupo de pessoas, fossem brancas, mulatas ou negras, se organizava. O que caracterizava a irmandade era justamente a participação de leigos no culto católico, participação que não implicava necessariamente a constante presença de padres e religiosos. Confrarias e irmandades demonstravam toda a força por ocasião da festa do padroeiro: ruas e igrejas eram decoradas com ervas perfumadas e tapetes e iluminadas por tigelinhas de barro contendo óleo de baleia. Irmãos vestidos de capa vermelha, tocheiros à mão, abriam a procissão, que era seguida de carros alegóricos ricamente enfeitados, atrás dos quais volteavam músicos e bailarinos. A diversidade de instrumentos musicais não ficava atrás da pompa coreográfica dos cortejos. Ritmos profanos e peças sacras se mesclavam à sonoridade dos batuques africanos. Músicos negros vestidos de seda e cobertos de plumas, tocando címbalos, pífaros e trombetas misturavam-se a brancos, tocadores de clarins e charamelas. Uma imensa variedade de sons rasgava o ar, enquanto fiéis, piedosamente, desfilavam estandartes e as imagens religiosas.

Seguindo o costume português, a vida doméstica também consistia em importante espaço espiritual. Nas paredes das moradias era comum encontrarem-se cruzes de madeira, gravuras do anjo da guarda ou do santo com nome do dono da casa. Nas zonas rurais, um mastro com a bandeira do santo indicava a preferência da devoção familiar. Ao levantar-se, pela manhã, o cristão benzia-se murmurando o “Pelo sinal”. Oratórios, ou quartos de santos, eram iluminados por velas de cera que queimavam constantemente e onde as imagens eram vestidas e adornadas pelas mulheres. Flores naturais ou de papel, palhas bentas no Domingo de Ramos, medalhas milagrosas, escapulários e livros de oração compunham o arsenal do devoto na luta contra Satã. Em propriedades abastadas era comum a presença de capelas ou ermidas onde se celebravam casamentos, comunhões e batismos de senhores e escravos, homens livres e homens forros. Santos de estimação como, por exemplo, Santo Antônio, eram invocados para interceder em favor do fiel em caso de escravos fugidos, cavalos extraviados ou roubos. As solteiras costumavam invocá-lo para arranjar maridos; as casadas, em caso de desavenças conjugais. Não atendidas, penduravam-no, de cabeça para baixo, nos poços de água ou tiravam-lhe o menino Jesus do colo até terem seus desejos concedidos. Orações em que se nomeavam os santos, Jesus ou Maria eram usadas por benzedeiras e curandeiras para aliviar as dores, feridas e maleitas dos fiéis: “Deus eterno, por cujo amor Santa Apolônia sofreu que lhe tirassem os dentes [...] dai-me socorro saudável contra o incêndio dos vícios, e dai-me socorro saudável contra a dor dos dentes, por intercessão. Amém, Jesus”.

Além do catolicismo, a Colônia foi palco de outros credos, crenças e práticas religiosas. Descendentes de judeus, por exemplo, buscaram refúgio nessas terras, que lhes pareciam de promissão. O movimento migratório começara em inícios do século XVI em função de perseguições que lhes eram movidas na península Ibérica. Instalados sobretudo na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão, os recém-chegados integraram-se rapidamente à língua, aos costumes e à economia local, misturando-se aos cristãos, com quem dividiam cargos administrativos e comerciais. Os cristãos-novos detinham engenhos, escravos e terras. Para manter vivos os laços comunitários e de identificação, realizavam clandestinamente práticas e atos religiosos do judaísmo, ainda que sob a ameaça da Inquisição. Mas como é que esta se fazia presente na Colônia?

A Colônia nunca possuiu tribunal inquisitorial, ficando subordinada ao existente em Lisboa. Bispos e até leigos – sob o título de Familiares do Santo Ofício – podiam encaminhar denúncias contra suspeitos de heresia. Essas acusações também ocorriam por ocasião de visitações. Espécie de justiça ambulante, as visitas de inquisidores – realizadas entre 1591 e 1595, 1618 e 1621 e 1627 ao Nordeste, assim como entre 1763 e 1769 ao Grão-Pará – tinham por objetivo combater as heresias e zelar pela fé e boa moral dos católicos. Nesse quadro, ritos, preceitos ou cerimônias judaicas eram alvo dos monitórios gerais, ou seja, um documento eclesiástico com aviso aos fiéis, que descrevia minuciosamente tais ritos e era afixado às portas das igrejas. Pequenos atos do cotidiano serviam para indicar judaísmo. Guardar os sábados, por exemplo, revelava-se através do hábito de vestir roupas limpas e arrumar a casa na véspera – limpar e cozer alimentos, acender candeeiros, etc. – para que não houvesse necessidade de trabalhar nesse dia. Conscientes do interesse do Santo Ofício por pessoas que cometiam essas infrações, os cristãos-novos costumavam apresentar-se às autoridades confessando seus atos. Fernando Salazar, por exemplo, compareceu perante o inquisidor Marcos Teixeira, em 1618, e declarou “vestir camisa lavada aos sábados”, justificando-se a seguir: “Por ser homem que ganha a sua vida em tratar as galinhas e papagaios e em outras cousas da terra e vir muito suado quando vem de fora”. Os jejuns eram outra prática constante daqueles que seguiam às escondidas a lei de Moisés. Havia um grande jejum em setembro, o da rainha Ester e o das segundas e quintas-feiras da semana. Nesses dias, os israelitas evitavam alimentos durante o dia e ingeriam, só à noite, carnes e sopas; passavam, ainda, o dia descalços, pedindo perdão uns aos outros. Na celebração da Páscoa judaica, comiam pães ázimos e recitavam orações judaicas, baixando e levantando a cabeça diante da parede, adornada com cordões e fitas rituais, os trancelins. Enterravam os mortos em mortalha nova e terra virgem, colocando-lhes na boca um grão de aljôfar ou uma moeda de prata para que pagassem a primeira pousada. Os meninos eram circuncidados. Mesmo não seguindo as práticas judaicas de modo inteiramente consciente, os cristãos-novos conservavam a essência de sua cultura original. Repudiavam as imagens dos santos que enfeitavam os oratórios, consideravam a religião católica uma idolatria, esquivavam-se do sacramento da confissão, alegando que: “Era melhor confessar a um pau ou a uma pedra do que a um outro pecador”.

Diferentemente dos cristãos-novos, os judeus que iriam se instalar em Pernambuco quando da invasão holandesa, de 1630 a 1654, encontraram melhores condições para exercer sua religiosidade. Concentrados numa rua de Recife, a Jodenstraat (rua dos Judeus), onde construíram a sinagoga da comunidade Kahal Zur Israel: uma casa de muitas janelas, com o térreo ocupado por duas lojas, tendo no andar de cima uma ampla sala mobiliada para utilização religiosa. Ao rabino, ou haham, Isaac Aboab da Fonseca devem-se as primeiras páginas literárias, em hebraico, escritas no Brasil: um poema que descreve os sofrimentos suportados pelos judeus em 1646, quando Recife ficou sitiado pelos luso-brasileiros.

O protestantismo teve, no Brasil colonial, dois períodos marcantes. O primeiro vai de 1555 a 1560, quando chega à baía de Guanabara o vice-almirante francês Nicolau Durand de Villegaignon para fundar no hemisfério sul uma colônia, a França Antártica, com calvinistas (huguenotes) franceses, hostilizados em sua terra. O segundo foi o da colonização holandesa no Nordeste. Com o auxílio de Gaspar de Coligny, nobre protetor dos huguenotes, Villegaignon estabeleceu-se na Guanabara com quatrocentos homens atraídos pela promessa de liberdade religiosa. Suspeitas e insegurança, porém, logo perturbariam o governo da França Antártica. Villegaignon desconfiava de seus próprios homens e dos índios tamoios, seus aliados. Os problemas ficaram maiores quando aqui chegou um contigente de 280 religiosos calvinistas vindos de Genebra, onde haviam sido ordenados. Ao que parece, os missionários recém-chegados traziam cartas de recomendação de importantes líderes religiosos e nobres, que fizeram Villegaignon temer por seu prestígio na França. Na chegada, o líder os recebeu com gestos de obediência, passando, logo depois, a criticá-los por não usarem pão comum e vinho não misturado com água na celebração da Santa Ceia.

As polêmicas se multiplicaram. Villegaignon questionava as posições calvinistas sobre a transubstanciação, ou seja, a mudança da hóstia em corpo de Deus, a invocação dos santos, o Purgatório. Por fim, proibiu Pierre Richier, um dos pastores credenciados por Calvino, de pregar. Diante de tantos conflitos, Richier partiu para a Europa com seus auxiliares. Devido às más condições da travessia marítima, alguns resolveram voltar. Foram recebidos por um desconfiado Villegaignon que rejeitara publicamente o calvinismo. Obrigados a redigir uma declaração sobre alguns pontos doutrinários – intitulada Confessio Fluminensis –, caíram numa armadilha; acusados de traição, foram condenados e executados. Tornaram-se os primeiros mártires do credo protestante na América.

Enfraquecido e já sem a proteção de Coligny, Villegaignon retornou à França em 1558, pouco antes de os portugueses recuperarem a Guanabara. Por tensões político-religiosas, fracassava a tentativa de implantar uma colônia calvinista no Centro-Sul do Brasil colonial. Ela seria repetida, igualmente sem sucesso, no começo do século XVII, em São Luís do Maranhão, com a França Equinocial.

Conforme mencionamos, outro período de significativa atividade protestante foi o da colonização holandesa no Nordeste. Sob a regência de Maurício de Nassau, o domínio holandês estendeu-se temporariamente do Maranhão até abaixo do rio São Francisco. Nesse governo, a liberdade religiosa era para todos. Católicos eram livres para exercer seu culto e manter relações com a sede episcopal da Bahia. Sinagogas e escolas hebraicas funcionavam no Recife e foram as primeiras da América. O protestantismo, considerado a verdadeira religião, lutava para instalar-se no Brasil. A chave para sua compreensão era a subordinação de todos os aspectos da vida aos sagrados mandamentos. A formação de paróquias protestantes estendeu-se pelas conquistas territoriais, com a catequese e o ensino ocupando muitos pregadores.

Os africanos também trouxeram seus credos para a América portuguesa. Com eles, cerimônias religiosas como o acotundá e o calundu, além de cultos envolvendo os mortos, que eram corriqueiramente praticados. Em casas humildes, cobertas de capim, de paredes de barro, preferencialmente à beira de um córrego ou fonte, celebrava-se a dança de tunda, ou acotundá. Altares com banquetas de ferro onde se misturavam ordenadamente cabaças, panelas e recipientes variados de barro e imagens antropomorfas sinalizavam o espaço sagrado. O som de tambores e atabaques, cantos no dialeto courá, da Costa da Mina, enchiam a noite. Vindas das camarinhas, mulheres vestidas com panos brancos, que com frequência lhes cobriam a cabeça, dançavam e cantavam, por vezes misturando palavras extraídas de textos católicos e africanos. Muitos dos elementos rituais que se encontram hoje no candomblé baiano e xangôs do Nordeste já estavam presentes nesses rituais: o emprego de galos e galinhas nos sacrifícios de animais, a predominância feminina, o destaque de uma das dançantes identificada ao líder cerimonial, a possessão e o transe ao som de atabaques.

Havia ainda outras formas de religiosidade africana na Colônia. Vindas do Daomé, atual Benin, na costa ocidental da África, rituais de origem jeje conhecidos como calundus eram conduzidos por um vodunô, líder espiritual, com o auxílio de vodúnsis, membros do culto; o ritual consistia em danças e cantos na língua jeje, ao som de ferrinhos (agogôs e gans) e atabaques. O centro do cerimonial abrigava ervas, búzios e aguardente. Folhas de diversas plantas serviam na preparação de alimentos oferecidos às divindades, os ebós, mas também em ritos de iniciação e limpeza do corpo. Um sentido para a vida, segurança e proteção contra um mundo hostil, espaço para sociabilidades e solidariedades eram as funções desses rituais religiosos. Dessa maneira, a Colônia crescia à sombra da cruz e de vários credos que ainda hoje hidratam nossa cultura.


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

[1] Texto copiado na íntegra de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 19 a 27. 

[2] Foto meramente ilustrativa. Disponível em: <https://www.estudokids.com.br/jesuitas-no-brasil-colonia/>. Acesso em 05/09/2022.

[3] Veja mais sobre este assunto no capítulo 4 de minha monografia “Fundamentalismo protestante: dificuldades de interação e diálogo com a cultura brasileira”. In: <https://monografias.brasilescola.uol.com.br/historia/fundamentalismo-protestante-dificuldades-interacao-dialogo-com-cultura-brasileira.htm>. Acesso em 05/09/2022.

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