PorDEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]
A consolidação da nossa independência, através de D. Pedro I, foi marcada por conflitos em diferentes províncias [2] |
Além
de alterar o cotidiano carioca, a transferência da Corte
portuguesa teve
outros efeitos bem mais profundos sobre a Colônia. O preço pago
pelo apoio inglês, não só na proteção aos navios que trouxeram a
família real, como também no combate às tropas francesas
estacionadas em Portugal, era alto. Ele implicou tratados comerciais,
nos quais d. João previa a abertura dos portos “às potências que
se conserva[ssem] em paz e harmonia com a minha real coroa”, e
ainda em tarifas alfandegárias menores para negociantes britânicos.
Se isso era desastroso para a economia portuguesa, o mesmo não pode
ser dito em relação ao Brasil. Na prática, a nova medida
significava a desativação do “exclusivo comercial”, mecanismo
através do qual a Metrópole impunha os preços – quase sempre
inferiores aos do mercado internacional – aos produtos coloniais. É
por essas razões que se costuma afirmar que nossa independência
teria ocorrido nesse momento, em 1808, e que 1822 teria representado
apenas sua consolidação.
Vejamos
o que ocorreu entre essas duas datas.
Vale
a pena lembrar que, do ponto de vista político, a vinda da Corte
teve um efeito ambíguo. Não se tratava de uma simples visita da
rainha, “d. Maria, a louca”, e de d. João, príncipe regente,
com seus demais familiares e lacaios. Longe disso, a transmigração
implicou a transferência de inúmeros funcionários régios, boa
parte deles pertencente à nata da administração e da aristocracia
portuguesas. Uma vez instalada, a nova Corte deu origem a uma
situação inusitada: o Império colonial português passa a ter duas
sedes, uma em Lisboa e outra no Rio de Janeiro. Enquanto a ameaça
napoleônica pairou sob o mundo europeu, houve justificativa para tal
situação. A partir de 1815, porém, ela deixou de existir. Essa
data marca a derrota definitiva de Napoleão e, ao mesmo tempo, o
progressivo restabelecimento dos sistemas monárquicos europeus.
Na
América, a implantação da Corte tropical coincidiu com a difusão
da produção cafeeira em larga escala. Para os servidores do regente
não era difícil conseguir a confirmação de sesmarias,
transformadas rapidamente em imensas fazendas de café. Isso para não
mencionarmos a compra de terra ou então o acesso a ela via
casamentos e sociedades com a elite local. Dessa maneira, a Corte que
acompanhou a família real foi criando raízes no território
brasileiro e formando um poderoso grupo contrário ao retorno de d.
João VI. A tensa relação entre essa elite e a que permaneceu em
Portugal culminou em 1820, quando tem início a Revolução do Porto.
Tratava-se de um movimento liberal, voltado para a convocação de
uma Assembleia Constituinte, mas que exigia o retorno imediato do
rei. Um ano após sua eclosão, d. João e uma parcela significativa
de sua Corte retornavam. No entanto, a dualidade de poder não havia
sido extinta: como regente brasileiro ficou d. Pedro e, com ele,
segmentos importantes do antigo grupo que havia fugido de Portugal. O
alvo da pressão volta-se agora para o regente: em 21 de setembro de
1821, um decreto determina seu retorno imediato, na intenção de
evitar o risco do retorno do Rio de Janeiro à condição de sede do
Império após a morte de d. João VI. Mas d. Pedro resiste a essas
pressões e, a 9 de janeiro de 1822, torna pública sua decisão de
permanecer no Brasil. Nesse mesmo mês, a metrópole portuguesa
nivela o Rio de Janeiro à condição das demais províncias, gesto a
que o regente responde com a expulsão das tropas lusitanas do Rio.
As duas cortes, dessa forma, disputam o poder, até que, em 7 de
setembro, d. Pedro rompe definitivamente com a antiga pátria-mãe,
sagrando-se imperador a 12 de outubro do mesmo ano.
Vista
sob esse ângulo, a independência do Brasil pode ser definida como
um movimento bastante elitista, quase uma disputa entre aristocratas
portugueses. Uma imagem que não deixa de ser interessante, embora
incompleta. Para compreendermos a especificidade de nosso processo de
independência, é necessário lembrarmos que ele conviveu com outros
projetos alternativos, pois, há muito, uma parte da elite colonial
aspirava à ruptura com Portugal. Tais propostas de independência,
contudo, tinham uma forte marca regional, como fica claro na
denominação de duas delas: a Inconfidência Mineira e a Revolução
Pernambucana (ocorrida em 1817).
Entre
1820 e 1822, as elites regionais tiveram dúvidas em relação a qual
projeto político deveriam seguir. Paradoxalmente, mais do que a
“independência” liderada por d. Pedro, o movimento português de
1820 parecia atender ao anseio de autonomia regional. De caráter
liberal e constitucional, a Revolução do Porto contou com
representantes coloniais, eleitos nas diversas províncias. Essas,
por sua vez, passaram a ser beneficiadas pelo direito de eleger suas
respectivas juntas governativas. A medida agradava em muito às
elites regionais, pois, a partir de então, elas passavam a ter
controle sobre o sistema político e as rendas internas das
ex-capitanias.
A
partir de 1821, a tendência, portanto, era de que a maior parte das
classes dominantes coloniais apoiasse o governo português, deixando
de obedecer às ordens emitidas pelo Rio de Janeiro. Isso, de fato,
ocorreu, mas contou com um importante contraponto: o movimento
constitucionalista brasileiro. O sucesso inicial da independência se
deve à adesão de várias províncias à convocação da Assembleia
Constituinte e Legislativa do Brasil, sugestão acatada pelo regente
em 3 de junho de 1822.
A
posição de d. Pedro, no entanto, era ambígua. O apoio que dava ao
movimento constitucionalista era marcado por ressalvas do tipo: “a
Constituição deve ser digna do meu poder”, e assim por diante.
Não é de se estranhar, portanto, que, após o 7 de Setembro, as
elites regionais ficassem divididas. Apoiar as cortes portuguesas
significava submeter-se a um governo liberal, ao passo que acatar ao
imperador implicava o risco de retorno ao absolutismo. Além disso,
havia divisões nas tropas estacionadas nas diversas províncias,
umas fiéis à Corte portuguesa e outras à carioca. Por isso, a
independência foi seguida por uma série de guerras. No Norte e
Nordeste, o processo de ruptura com Portugal esteve longe de ser
tranquilo. Entre março e maio de 1823, Belém registra levantes
pró-Lisboa. O mesmo ocorre no Maranhão, Piauí e Ceará, onde os
conflitos armados estendem-se de outubro de 1822 a janeiro de 1823.
Na Bahia, as lutas desdobram-se por quase um ano. Tais embates não
pararam por aí. Na verdade, tiveram desdobramentos bem mais sérios
em outras regiões, e punham em xeque a dominação das duas cortes.
A
reengenharia política da independência implicava esvaziar a
influência das Cortes legislativas portuguesas, criando uma similar
nacional. A medida deu certo e foi auxiliada por algumas iniciativas
recolonizadoras dos constituintes portugueses. A elas deve em grande
parte ser atribuído o sucesso do Grito do Ipiranga, gesto que, se
não contasse com o inestimável apoio das elites do Rio de Janeiro,
Minas Gerais e São Paulo, passaria para a história como mais um
berro inconsequente do autoritário d. Pedro. A independência,
porém, pregou uma peça nessas elites. Um ano após ser convocada, a
Assembleia Constituinte foi dissolvida e, em seu lugar, o imperador
designou um pequeno grupo para redigir uma Constituição “digna
dele”, ou seja, que lhe garantisse poderes semelhantes aos dos reis
absolutistas. Um exemplo disso foi a criação do Poder Moderador,
através do qual o monarca reservava para si, entre outras
prerrogativas, o direito de nomear senadores, convocar e dissolver
assembleias legislativas, sancionar decretos, suspender resoluções
dos conselhos provinciais, nomear livremente ministros de Estado,
indicar presidentes de província e suspender magistrados.
Não
é de se estranhar, portanto, que, lá pelos idos de 1824, parte das
elites provinciais encarasse a independência como um retrocesso em
relação às conquistas da Revolução do Porto. Tal
descontentamento, porém, não significava a luta pela “restauração”,
até porque Portugal, por aquela época, também dava uma guinada
rumo ao absolutismo. Em vez de voltar a obedecer a Lisboa ou
continuar obedecendo ao Rio de Janeiro, a palavra de ordem agora era
de independência local e proclamação da República. E é isso que
ocorrerá, em Pernambuco, no ano de 1824, quando então é deflagrada
a Confederação do Equador, um movimento republicano e de cunho
separatista, ou federalista, que contou com a adesão de fazendeiros,
homens simples e também de numerosos padres. A rápida difusão da
revolta e a violenta repressão que se seguiu dimensionam o grau de
descontentamento reinante. Nada mais do que seis províncias apoiam a
rebelião contra o despotismo carioca; três delas, Paraíba, Ceará
e Rio Grande do Norte, chegam a fornecer tropas para combater ao lado
dos pernambucanos. A repressão, por sua vez, foi violentíssima,
deixando com saldo centenas de mortos e dezessete condenados à
forca, inclusive clérigos, como Frei Caneca.
Nos
anos seguintes, o imperador recua e convoca a primeira Assembleia
Legislativa, empossando-a em 1826. O federalismo, almejado pelas
elites regionais, continuou, porém, a ser um sonho distante. Para
complicar ainda mais o quadro político, d. Pedro, entre 1825 e 1828,
enfrenta outro movimento separatista, envolvendo a Província
Cisplatina. Essa rebelião, uma vez vitoriosa, dá origem ao Uruguai.
A guerra torra grande quantidade de recursos públicos, sendo
inclusive uma das causas da falência do Banco do Brasil em 1829. A
crise financeira instala-se com o aumento vertiginoso da emissão de
moedas para cobrir os gastos públicos, resultando uma inflação
igualmente vertiginosa. No Rio de Janeiro, por exemplo, o preço de
alimentos básicos da população pobre e dos escravos, como a
farinha de mandioca e o charque, dobram em um espaço de poucos anos.
O imperador torna-se cada vez mais impopular. Paralelamente a isso, o
Exército, ampliado às pressas em razão das lutas contra as tropas
portuguesas e grupos separatistas, foge ao controle das autoridades.
Compostas em grande parte por mercenários estrangeiros, oriundos das
guerras napoleônicas, e homens pobres, muitos deles pardos e negros
livres, as forças armadas aliam-se às demais camadas populares nos
ataques a comerciantes portugueses. Estes eram odiados por ser
considerados responsáveis pela elevação dos preços dos alimentos
no meio urbano.
No
início da década de 1830, o clima é de guerra civil. Rio de
Janeiro, Ceará, Bahia, Pernambuco e Alagoas são palco de levantes
armados em que fazendeiros, tropas, pequenos proprietários, índios
e escravos se ombreiam, ora contra a centralização do poder, ora
como expressão de revolta diante da pobreza e da escravidão. É
nesse contexto que d. Pedro I, a 7 de abril de 1831, renuncia ao
trono brasileiro. Junto ao medo de ser deposto, havia outro motivo
para o gesto: em 1826, com a morte de d. João VI, o imperador
tornou-se o virtual sucessor da Coroa portuguesa. Ciente do risco que
a ameaça de restauração representava, como munição para
movimentos separatistas, d. Pedro renuncia ao trono lusitano em nome
da filha, sob o título de d. Maria II. Tal gesto, porém, não é
acatado por seu irmão, d. Miguel, lançando Portugal em uma guerra
de sucessão dinástica até 1834, na qual, entre os combatentes,
estava d. Pedro I – aliás, d. Pedro IV para os portugueses.
Em
1831, a segunda renúncia do imperador buscava apaziguar os ânimos
no Brasil. Tal efeito não é difícil de ser compreendido: como
herdeiro do trono ficou uma criança – o futuro d. Pedro II –,
que nem ao menos havia completado os 5 anos de idade. Na prática,
portanto, a abdicação significava a transferência do poder para as
elites regionais, tendo em vista que o cargo máximo do governo –
inicialmente na forma de regência trina (ou seja, composto por três
regentes) e, depois, na forma da escolha de um único regente, como
foi Diogo Feijó (1835-37) e Araújo Lima (1837-40) –, passou a ser
definido via eleição. A descentralização,
porém, ao contrário do imaginado, acentuou ainda mais as tendências
separatistas. Como vimos, até o imperador, que desfrutava de uma
certa legitimidade decorrente do fato de descender de uma casa
reinante europeia e de ter comandado o vitorioso processo de
independência, viu seu poder contestado. O que dizer então de um
regente? Os grupos dominantes derrotados nas eleições mostravam seu
descontentamento através das armas. Por volta de 1835, tais levantes
assumiram um perfil claramente separatista. No Pará, uma revolta
política lança a província em uma violenta guerra civil, que se
estende por cinco anos. A independência local chega a ser decretada,
mas os rebeldes, autointitulados cabanos, são violentamente
esmagados, deixando como saldo cerca de 30 mil mortos, ou seja, cerca
de 20% da população provincial. No extremo sul do país, a
Farroupilha tem melhor sorte. A independência do Rio Grande do Sul é
alcançada e, durante os anos 1835-45, a então denominada República
do Piratini mantém-se separada do Brasil.
Em
várias outras províncias, os movimentos separatistas ou
federalistas se sucedem, assumindo designações que lembravam o mês
de sua ocorrência – Abrilada, Novembrada – ou o nome de seus
líderes, como no caso da Sabinada. Vez por outra, porém, tais
movimentos fugiam ao controle da elite, tornando-se levantes
populares. As chances de esses grupos alimentarem seus projetos de
independência eram grandes, pois, nos embates com as tropas
oficiais, os fazendeiros armavam os cativos e homens pobres. Além
disso, os movimentos separatistas criavam divisões no interior das
elites, como era o caso dos liberais exaltados se contrapondo aos
grupos que procuravam se alinhar ao governo regencial. Ora, a divisão
entre os senhores dava maior eficácia aos movimentos de contestação
escravistas, arriscando todo o sistema a sucumbir em razão da luta
de classes. Essa possibilidade foi registrada em 1835, quando da
descoberta de planos de um levante de escravos muçulmanos em
Salvador. Detalhe da Revolta dos Malês: os cativos pretendiam matar
todos os brancos e decretar uma monarquia islâmica na Bahia. O
Maranhão também apresentou um movimento rebelde com características
populares. Iniciada em 1838, entre as elites, essa revolta escapou ao
controle delas, passando a ser liderada por um escravo fugido e por
um fazedor de balaios (cestos produzidos com talas de palmeiras ou de
cipó). A então denominada Balaiada chegou a reunir um exército de
11 mil revoltosos, espalhando terror entre as elites maranhenses e de
províncias vizinhas. Nesse contexto de risco de os pobres e escravos
assumirem o controle do poder, reproduzindo em grande escala o
ocorrido no Haiti em fins do século XVIII, é que se articula entre
1837-40 o retorno dos mecanismos centralizadores do Primeiro Império.
O regresso conservador abrirá caminho para a repressão eficaz aos
movimentos separatistas e aos levantes de escravos, assim como
articulará um projeto nacional que manterá intacto o território
brasileiro herdado do período colonial. Contudo, não foram poucos
os obstáculos enfrentados por esse projeto. Desde a época da
independência, vários testemunhos registraram a ausência de uma
identidade nacional brasileira e o desafio de construí-la.
Pressentindo as resistências regionais à centralização, o
viajante francês SaintHilaire constatou, em 1820, no Rio Grande do
Sul: “Nesta capitania até os cães latem de um modo diferente”.
Veja
também: Brasil,
rumo à sua Independência.
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.
Notas:
- [1] Texto copiado na íntegra de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 117 a 128.
- [2] Imagem ilustrativa. Disponível em:<https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/as-guerras-independencia-brasil.htm>. Acesso em 06/09/2022.
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