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22 outubro 2022

A Ascensão dos Porcos, uma fábula da floresta

Por Caio Coppola, 21/10/2022


Coppola narra o conto do JavaPorco que desbancou Tucanos, foi sucedido por uma Anta, preso por um Marreco, solto por Corvos e agora disputa o comando da Floresta com uma Garça!

O Chefe JavaPorco convocou uma grande reunião dos bichos para comunicar suas intenções de, mais uma vez,tomar o poder. Tão logo iniciou o discurso alegando inocência, uma garça enfurecida irrompeu na clareira a passos largos assustando a todos.

A Garça era um animal diferente - ela voava, como a elite dos pássaros, e também caminhava no lodo, como os animais do chão. Mas o que realmente impressionava a bicharada era outra coisa: apesar de passar o dia todo andando na sujeira do pântano, suas penas ainda eram brancas e limpas.

Após uma pausa dramática, a Garça, de asas abertas, gritou a plenos pulmões.

"... Seu porco LARÁPIO, você nunca foi rei, você não passa de uma CHEFE-DE-BANDO! Você é um CORROMPIDO e um ALIADO DA ALCATEIA que aterroriza os animais de bem. Você defende a invasão de tocas e quer liberar cogumelos tóxicos que deixam nossos filhotes vulneráveis a predadores. Você não é livre, porco... você é um DESENJALAUDO! E eu te desafio a uma votação pelo reino dessa magnífica floresta!”.

As palavras da Garça acirraram os ânimos e dividiram os bichos. Sob pretexto de manter a ordem pública, o Tribunal dos Corvos determinou que a votação fosse realizada só uma semana depois, e de tabela, proibiu que a Garça se referisse ao JavaPorco como LARÁPIO, CORROMPIDO, DESENJAULADO, CHEFE-DE-BANDO e ALIADO DE ALCATEIA.

Silenciada, a Garça foi difamada pelas gralhas e papagaios que espalhavam e repetiam mentiras a seu respeito. Na véspera do seu confronto com o JavaPorco, a esbelta ave sofreu um atentado contra sua vida e foi envenenada por uma picada de serpente encantada. A Garça sobreviveu, mas… Veja o vídeo:


21 outubro 2022

O Chefe Lula ainda fala e manda?

“… Aí o Lula, que era o presidente do Sindicato dos urubus, resolveu falar. Bateu as asas três vezes… tlec… tlec… tlec… E todos se calaram. Quando aquela porção de bicos estava toda virada para o lado dele e todos os urubus ficaram quietos, ele falou:

– “Urubuzada, atenção, por favor!...” 

Em 1992, numa aula de Sociologia, lemos na classe uma fábula chamada “A Greve dos urubus”, de autoria do ecologista José Lutzenberger (In: A greve dos urubus). Num determinado ponto do texto, o Lula, líder do sindicato dos urubus toma a palavra e faz seu discurso inflamado, depois surge a música de outro urubu chamado Gilberto Jiló enquanto os demais urubus deixaram de catar (ciscar e comer) o lixo da praia. Resolveram continuar em greve.

Lembrei-me desta fábula nesta semana, ao perceber que o Lula real ainda fala (um tanto rouco, e em meios às mentiras) e manda muito: na imprensa, na maioria dos professores e universidades, nos diversos tribunais por todo o país, no sistema eleitoral (TREs e TSE) e tem um STF para chamar de seu.

Quero só destacar apenas algumas ações do Lula que manda e não pede nestes últimos dias. Lula, seu partido, o PT e seus puxadinhos... mandam e:

Etc., etc., etc. Evitamos muitas informações aqui pois estamos em perigo…, Sabemos que a Jovem Pan e dezenas de canais já foram censurados, enquanto se ouve de milhões que apoiam o “líder do sindicato dos urubus” igualmente milhões de batidas de asas “tlec… tlec… tlec…”; e se calando, enquanto seu líder continua falando. Estes acham até uma delíca, tudo que está acontecendo

Quem sabe podemos pelo menos sugerir o vídeo do deputado Marcel Van Hattem a seguir, que fala diferente.





14 outubro 2022

O Ministério da Verdade

Por

Cristóvão Tezza [1], Gazeta do Povo


Foto disponível no artigo, ver Nota 2

 

"O Grande Irmão está vendo você..." (G. Orwell, pg.27).

 

Hoje, lendo um dos artigos de a Gazeta do Povo, Pedidos de censura do PT podem ser prenúncio sobre regulação da mídia que Lula propõe, de Leonardo Desideri, acabei me reportando ao livro presenteado também pelo mesmo Jornal, 1984, de George Orwell. Ao mesmo tempo, descobri outra matéria publicada em 2012, que trazia uma explicação de Cristóvão Tezza de como o Ministério da Verdade1 já era sentido na época. Vamos ao texto:

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No clássico 1984, de George Orwell, a pessimista distopia sobre um mundo totalitário que controla o cidadão em cada gesto, existe um ‘Ministério da Verdade’. Sua função? Mentir. O Ministério da Verdade é encarregado de modificar a história passada de modo a deixá-la de acordo com a vontade do poder. Os números antigos de jornais e revistas são sempre modificados; estatísticas alteradas; discursos omitidos; e até mesmo o sentido das palavras sofre uma aguda vigilância. A ‘novilíngua’ é uma máquina semântica de achatar significados. Bem, o Brasil não precisa se preocupar. Para quem já tem um ‘Ministério da Pesca’ [isto, em 2012], não há necessidade de alegorias complementares. E, felizmente, temos liberdade absoluta para rir, que faz bem à alma.

O assustador delírio ficcional de Orwell me veio à lembrança ao ler que um procurador do Ministério Público Federal entrou com uma ação contra... contra quem mesmo? Contra o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. O motivo: em suas acepções para a palavra ‘cigano’, o dicionário, depois de listar as definições correntes, anota as de sentido pejorativo: ‘trapaceiro’, ‘velhaco’, colocando a data (1899) em que este uso é documentado na língua pela primeira vez. Para o Ministério Público, esta definição seria ofensiva, preconceituosa, de cunho racista. Sim, e é mesmo; justo por isso, o dicionário informa o leitor de que se trata de um sentido pejorativo. É exatamente esta a função de um dicionário da língua: anotar os usos concretos da língua, em seus momentos históricos. Tanto melhor ele será quanto mais definições contemplar, e o Houaiss é um dicionário extraordinário para a cultura brasileira x é o nosso primeiro grande dicionário, elaborado com um padrão de exigência e com um ouvido para a vida real da língua como nenhum dos antecessores. Mas, para o procurador, a quinta acepção que o dicionário registra ao definir ‘cigano’ afrontaria a Constituição brasileira.

A acusação não é apenas absurda; é perigosa, pelo seu precedente de controle da linguagem. Assim, chegaremos à ‘novilíngua’ de Orwell. Se o leitor consultar no mesmo Houaiss, por exemplo, a palavra ‘polaca’, verá que ela define, pela ordem, a mulher nascida na Polônia, a dança chamada ‘polonesa’, a Constituição do Brasil promulgada em 1937 (era chamada de ‘constituição polaca’ por seguir a linha da Constituição da Polônia); e, finalmente, com a indicação de uso ‘pejorativo’ e ‘obsoleto’, o dicionário registra que ‘polaca’ pode ser ‘mulher da vida’, ‘meretriz’. Esta acepção surgiu no final do século 19, designando as vítimas (‘loiras’, daí o nome ‘polacas’) do tráfico de mulheres da Europa para o Brasil. Se a moda pega, o novo Ministério da Verdade logo vai propor varreduras semânticas e fogueiras purificadoras. O meu medo é que, de grão em grão, excomunguem A polaquinha, obra-prima de Dalton Trevisan.

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Bem, se em 2012, Cristovão Tezza já tinha percebido a ação do tal Ministério da Verdade, o que diremos, hoje, em 2022, em tempo de República Alexandrina! E por falar nisto, aproveito mais uma contribuição de outro, aliás, outra colunista da Gazeta do Povo, Cristina Graeml, com o vídeo a seguir [3], no momento em que o Ministério da Verdade ganha muitos adeptos: PT, TSE, grande imprensa (isto mesmo, outros órgãos da imprensa) etc.

… a censura do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a uma publicação da Gazeta do Povo no Twitter, atendendo a pedido da campanha do PT. O ministro do TSE, Paulo de Tarso Sanseverino, concordou com a alegação dos advogados da campanha petista de que é inverídico que Lula apoie o ditador da Nicaragua, Daniel Ortega e proibiu o post refrente à reportagem cujo título era: Ditadura apoiada por Lula tira sinal da CNN do ar.

Vejamos:

Notas:

  • [1] Cristovão Tezza “… nasceu em Lages, Santa Catarina, em 1952. Em junho de 1959, morreu seu pai; dois anos depois, a família se mudou para Curitiba, ParanáColunista da Gazeta do Povo, autor de muitíssimos artigos, incluindo este sobre o Ministério da Verdade (ou da Mentira?), publicado em 05/03/2012... Veja mais em: <http://cristovaotezza.com.br/p_biografia.htm>. Acesso em: 14/10/2022.
  • [3]  TSE censura post no Twitter da Gazeta do Povo a pedido do PT. Gazeta do Povo. Acesso em: 14/10/2022.

10 outubro 2022

O Século Sertanejo

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

Ciclo do gado [2]


Diferentemente dos intrusivos paulistas, os criadores de gado nordestinos adentraram não nas matas e alagados, mas nas vastas extensões de terra distantes do fértil litoral. Faziam-no mansamente. Faziam-no, aliás, desde a montagem dos primeiros engenhos. Em 1549, com a instalação do governo-geral, começou a lenta expansão da pecuária no Nordeste. Uma das figuras emblemáticas dessa forma de conquista do sertão foi o português Garcia d’Ávila, que, tendo recebido umas terras de pasto nos campos de Itapoã das mãos do governador Tomé de Souza, logo as estendeu até a enseada de Tatuapara, onde ergueu uma construção com traços medievais: a Casa da Torre. Em poucos anos, tornou-se um dos mais ricos homens da Bahia. Dele dizia-se ter tanto gado que “não lhe sabe o número, e só do bravo e perdido sustentou as armadas Del-Rei”. Devagarzinho, manadas baianas, imensas e silenciosas, percorreram léguas e léguas do território brasileiro, espalhando-se entre o que hoje é o Piauí e as nascentes do rio São Francisco, em Minas Gerais.

O sertão, significando na época as terras apartadas do litoral, era o palco dessa nova ocupação. A vida ali não era fácil. O cotidiano desenrolava-se sob sol ardente e em solo árido. De agosto a dezembro, a falta d’água era tanta que muitas pessoas quase não tinham o que beber. Junto com a seca vinham as crises de abastecimento. Quase nada florescia, nem crescia. A regularidade das estiagens era apavorante: anos como os de 1660, 1671, 1673 e 1735 deixaram marcas. Preocupadas, as autoridades anotavam em correspondências oficiais: “Há dois anos que se experimenta nesta capitania e em todo o Estado uma total falta de água, por cuja causa se destruíram as plantas e não produziram as safras, além do que há grande falta de carne e de farinha”. As dificuldades alimentares aparecem em outros registros, como aquele de 1697 em que um padre anotava sobre os sertanejos: “comem estes homens só carne de vaca com laticínios e algum mel que tiram pelos paus; a carne ordinariamente se come assada, porque não há panelas em que se coza. Bebem água de poços e lagoas, sempre turva e muito assalitrada. Os ares são muito grossos e pouco sadios. Desta sorte vivem esses miseráveis homens, vestindo couros e parecendo tapuias”. A pobreza sertaneja era um dado real, embora escapasse ao relato do padre europeu a luta dos homens para adaptar-se ao meio ambiente. Para ficar em poucos exemplos, que se pense no uso de fibras vegetais substituindo tecidos de vestir, nas redes de fibra de caroá, no cardápio agreste de carne de tatu ou peba e da paçoca de carne de sol pilada com farinha e rapadura.

Nas áreas menos atingidas pela seca, o gado dominava a terra. A imensidão das fazendas de gado do Nordeste já tinha chamado a atenção do jesuíta Antonil por se estenderem de Olinda à freguesia de Nossa Senhora da Vitória, no “certão do Peauhy”: “E posto que sejam muitos os currais da parte da Bahia, chegam a muito maior número os de Pernambuco, cujo sertão se estende pela costa desde a cidade de Olinda até o rio de São Francisco oitenta léguas, e continuando, da barra do rio de São Francisco até a barra do rio Iguaçu, contam-se duzentas léguas. De Olinda para o oeste até o Piauí, freguesia de Nossa Senhora da Vitória, cento e sessenta léguas, e pela parte do norte estende-se de Olinda até o Ceará Mirim oitenta léguas e daí até ao Açu trinta e cinco, e até o Ceará Grande oitenta. E por todas vem a estender-se desde Olinda até esta parte quase duzentas léguas”.

A cidade de Oeiras – primeira capital do Piauí – originou-se de uma única fazenda, denominada Cabrobó, fundada por sesmeiros dos descendentes de Garcia d’Ávila. O antigo núcleo da fazenda, seus casarões, currais e casas de moradores e agregados geraram a vila de Moxa, nome do riacho que banha a região e que serviu de primeira designação para a capital piauiense. Casas de barro cobertas de palha, currais de pedra ou madeira, pequenas roças de mandioca, feijão e milho funcionavam como âncora para o gado que se criava solto. Pastagens sem limites funcionavam como campos de engorda onde o vaqueiro só pisava para buscar bezerros novos e fazer nova choupana. Fazendas grandes agregavam tendas de ferreiro e carpinteiro, cercadas para separação de reses, reservas de pasto e lavouras de subsistência. Muitas delas ainda possuíam engenhos movidos a boi ou a água para a produção de açúcar mascavo, assim como dispunham de casas de farinhada e alpendres ou tendas com rodas de fiar algodão. Os fios eram tingidos com urucum, jenipapo ou caju. As que não tinham sal à flor da terra, compravam da barca do sal que subia e descia o Parnaíba. Na época das chuvas – anunciadas pelo desabrochar da flor do mandacaru –, aprontavam-se arreios, ferraduras e couros. Nos meses de abril e maio, conhecidos como fins d’água, floresciam juremas e magnólias a perfumar os caminhos. As campinas eram chamadas de campos mimosos. Nas noites escuras, o som agudo dos berrantes sinalizava a direção para os viajantes perdidos. Técnicas e equipamentos tão importantes nos engenhos eram substituídos pela habilidade específica do vaqueiro. Habilidade em tratar vaca parida, em cuidar de umbigo de bezerro, em evitar bicheiras, em serrar chifres pontiagudos, em marcar as ancas dos animais com ferro quente. O curral era o cenário para toda essa atividade: “Em cada fazenda”, explicava o ouvidor Durão, no século XVIII, em sua Descrição da Capitania de São José do Piauí, “deve haver pelo menos três currais que tomam diversos nomes conforme o serviço que presta. Chama curral de vaquejada àquele em que se recebe o gado que tem de ser vendido, onde se tira o leite e onde se faz o rol de porteiras; curral de apartar aquele em que se recebe todo gado indistintamente para ao depois ser distribuído pelas diferentes acomodações; curral de benefício onde se recolhem os garrotes para serem ferrados e para se fazer as partilhas dos vaqueiros”.

Um quarto dos bezerros pertencia ao vaqueiro. O tamanho dos currais variava de acordo com o rebanho e o número anual de bezerros, chegando até a mil metros quadrados. Uma fazenda de baixa produção amansava, anualmente, cem bezerros; uma grande, mil. Cercas eram feitas em aroeira, cedro, candeia, louro, jatobá, jacarandá, enfim, madeiras nobres que, então, eram abundantes. Junto aos vaqueiros livres trabalhavam escravos, homens e mulheres. Os de serviço trabalhavam nas diferentes atividades da fazenda: roçar, abrir picadas, destocar, semear, serviços domésticos, etc. Havia, contudo, escravos vaqueiros divididos, junto com os livres, por sua utilidade: vaqueiro cabeça de campo de gado ou vaqueiro cabeça de campo d’éguas. E também os curtidores e os serventes. Segundo os viajantes Spix e Martius, de passagem pelo Piauí, em 1820, para cada mil cabeças bastavam dez escravos. Casamentos ou uniões consensuais entre homens e mulheres escravos garantiam relativa estabilidade familiar nas fazendas de gado. Das crianças nascidas, a grande maioria era empurrada para o trabalho no campo desde cedo, e muitos meninos de sete anos aparecem nos documentos como pequenos vaqueiros. Outra característica da área de pecuária era o número elevado de escravos alforriados, sobretudo no século XIX.

O gado tinha várias funções: seu couro servia para o ensacamento da produção de fumo e embalagem de alimentos nas viagens ultramarinas, a fabricação de malas, bolsas, laços e redes. No engenho, os animais eram comumente usados para a lavragem das canas e para virar as pesadas rodas. Naqueles vastos territórios, quem tinha algumas reses era considerado pobre. Os animais eram utilizados até a exaustão. O gado alimentava vilas e cidades em Pernambuco e Bahia, mas também, via rio São Francisco, as populações que, no final do século XVII, se instalaram em Minas Gerais. A cidade de Juazeiro, na Bahia, por exemplo, ganhou esse nome pela quantidade de juás e tamarindeiros que abrigavam o gado na passagem do rio São Francisco. Era um antigo pouso de tropa. Fortunas imensas se constituíram na pecuária. Mas o mais importante é que o pequeno comércio de gado mantinha uma grande população de camaradas, vaqueiros, agregados, livres e forros ocupada e acumulando bens.

Tal como no Nordeste, a criação de gado, cem anos após o início da colonização, conquistou o Sul da Colônia. Nessa área, os jesuítas foram os principais responsáveis pela disseminação das reses. E o fizeram para alimentar os aldeamentos de catequese. Abatiam-se, com este propósito, milhares de reses por ano. Havia tanto gado pastando nos campos que qualquer estrangeiro tratava de registrar o fato em suas anotações: “rebanhos incontáveis de gado, inverno e verão”, como dizia o padre Antônio Sepp. Num sistema de trocas comerciais mantido com os paulistas, também permutavam reses por algodão, para vestir os índios das reduções. Nas épocas em que os preadores vindos de São Paulo abatiam-se sobre os aldeamentos, caçando indígenas, os jesuítas retaliavam abandonando seu gado à vida selvagem. A vacaria do mar, que se estende do litoral atlântico até o rio Uruguai, se formou, segundo um historiador, pela dispersão de centenas de vacas leiteiras, abandonadas pelos jesuítas em 1637. Tais vacarias multiplicaram-se e não poucas vezes foram atacadas pelos espanhóis em guerra com os portugueses. Amparados por soldados tapes, comedores de carne verde – termo referente ao gado recém- -abatido –, tais rebanhos foram alvo de constante cobiça. Em meio às tensões de suas metrópoles, lusos davam aos espanhóis licenças para vaquear. Muitos, porém, raramente se contentavam com sua cota, preferindo vagar por conta própria caçando gado.

O primeiro quartel do século XVIII encontrou as vacarias quase dizimadas. Prevenidos, os jesuítas deslocaram seu criatório para Pinhais, deixando seu gado intocado, em reprodução, por oito anos. Ao final, tinham centenas de milhares de cabeças, e nem os ataques de índios nem o consumo das missões diminuía esse ritmo de crescimento. Quando houve sua expulsão, em 1759, só na Estância Grande de Yapeyú, os inacianos possuíam mais de 500 mil cabeças de gado vacum, 4 mil cavalos e 70 mil ovelhas. Ao chegar, quinze ou vinte anos mais tarde, luso-brasileiros encontraram os campos repletos de gado. Iniciou-se, então, um processo de mão dupla: o Estado retomou os trabalhos das fazendas reais de Bojuru e Capão Comprido, existentes desde 1737, a fim de alimentar tropas e famílias de soldados que vinham concorrendo para povoar o Rio Grande. Durante a segunda metade do século XVIII, juntas, as duas fazendas chegaram a ter milhares de animais, mas a má administração logo pôs tudo a perder. A valorização do preço do couro promoveu uma verdadeira carniçaria; matavam-se milhares de animais, inclusive vacas prenhes e vitelinhas, para arrancar-lhes o precioso revestimento. Inúmeros vice-reis protestaram. Denúncias, como a feita por um certo Sebastião Francisco Betamio, em 1780, contra capatazes negligentes em relação à diminuição do rebanho, ou insensíveis aos maus-tratos impostos a vacas leiteiras e cavalos, somavam-se à necessidade de um regulamento sólido, como o que quis aplicar o vice-rei Luís de Vasconcellos. Tudo em vão. O Estado gastava uma fortuna para alimentar com carne e farinha os soldados e moradores de Sacramento, enquanto seus próprios criatórios se arruinavam, vítimas de roubos e descaso.

Na outra mão, ou seja, contrariando o processo de decadência, em várias áreas o rebanho se multiplicava. Nas estâncias, sobretudo as instaladas nas cercanias do rio Pardo, abrigavam-se moradores ricos e senhores de milhares de cabeças de gado. Currais constituídos por cercados de madeiras e gravetos, isolados nos pampas, funcionavam não como centro de engorda, mas de domesticação dos rebanhos. Impunha-se a lei da querência: as reses passando pelo rodeio, sujeitando-se à sua ação centralizadora e não mais se dispersando. A lança, o laço e a boleadeira, instrumentos de adestramento e captura dos animais, eram magnificamente manejados pelos grupos de solitários campeadores, conhecidos como bombeiros. O estancieiro, diferentemente do preador ou do traficante, era homem plantado em terra própria. Terra com casas grandes, pomares e campos de trigo. Invernadeiro, ele comprava gado do preador para vendê-lo ao comprador – com seus tropeiros e tropas – ou ao traficante, abrigado temporariamente sob tendas de couro. Esses dois grupos, pilhadores de cavalos e matadores de bois, por suas arriadas – roubo de gado –, eram o tormento das autoridades. Eram pejorativamente chamados de intrusos. Por outro lado, foi graças a eles que a planície platina foi varrida de espanhóis e índios. Em multidão surda e difusa, se espalhavam pelas fronteiras, empurrando-as. Estabelecidos em falsas querências com o fim único de revendê-las aos colonizadores, chegavam a apossar-se de pedaços das estâncias reais. Uma cultura singular nascia na Cisplatina: a valorização do cavalo bom, cantado em prosa e verso, a forma de arriar o pingo com ornamentos em prata, rosas, estrelas e corações, enfim, aperos para cabeçadas, testeiras e peitorais. O campeador gaúcho, o autêntico guasca, se caracteriza, então, por seu amor ao pago e à querência, o hábito da carneagem – esfolar a rês –, do churrasco, do mogango com leite, do sombreiro de feltro, das botas de couro com vistosas chilenas de prata, do agudo punhal de cabo floreado.

O contínuo movimento de comércio com os paulistas, iniciado no começo do século XVIII, tornava possível essa civilização gaúcha. Entre 1724 e 1726 – relata um historiador –, a importação paulista anual foi de mil muares, dobrando até 1750. Daí até 1780, passou a 5 mil e, de 1780 a 1800, dobrou mais uma vez. De 1826 a 1845, estava acima de 30 mil animais. Se os muares equivaliam a 49,8% dos animais drenados para São Paulo, os bois correspondiam a 28,2% das importações e os cavalos a 22%. Na outra ponta desse lucrativo comércio encontramos os tropeiros. Mas quem eram?

Basicamente, eram homens que viviam de tropear, ou seja, de comprar e vender diversos tipos de produtos. Podia ser gente do Nordeste ou do Sudeste. Enfocaremos, aqui, o papel dos tropeiros paulistas, responsáveis, junto com tropeiros mineiros, pelo enorme desenvolvimento da sociedade gaúcha. Denominavam-se paulistas os nativos da capitania, mas também portugueses e espanhóis que ali viviam. Os paulistas, dizia um cronista colonial, depois que lhes tiraram os terrenos auríferos, se voltaram em grande parte para o negócio e a criação de gados, aproveitando assim os muitos campos naturais da capitania e os feitais – campos feitos em detrimento da agricultura. Dedicaram-se também a comprar gados na capitania de São Pedro ou em Curitiba e, conduzindo-os por terra a essa capitania, vão vendê-las às outras. Tinham razão: os gados baianos que desciam o São Francisco não davam mais conta de alimentar as necessidades das populações nas áreas mineradoras. Além disso, o prodigioso desenvolvimento das correntes de circulação humana, durante o século XVIII, ensejava meios rápidos e abundantes de comunicação. Esses meios seriam cavalos e mulas. O problema de transporte desses grossos rebanhos foi assim resolvido: traziam as reses até Laguna e para galgar o paredão da Serra Geral, de maneira a oferecer-lhes o pasto que ia de Lages a Curitiba, abriram caminho acompanhando o rio Araranguá. O itinerário da cidade de São Paulo para o Continente do Viamão dá a medida da tremenda viagem das tropas: “Partiam de Sorocaba, seguiam na direção de Itapetininga, atravessavam o rio Itararé, tocavam em Ponta Grossa e nas proximidades de Curitiba e em seus campos povoados de currais; cortavam o vale do rio Negro, penetravam as florestas da serra do Espigão, entravam nas vastas regiões de Campos Novos Curitibanos e Lages. De lá, prosseguiam através dos rios das Canoas e das Caveiras até o estreito desfiladeiro do caudaloso Pelotas. Depois da garganta do Pelotas abriam-se os campos de Vacaria, na serra rio-grandense. Desciam cortando os rios das Antas e das Camisas até a verdejante planície do Guaíba. Por toda parte, de Sorocaba a Viamão, avistavam-se fazendas e currais de gado”.

Ao longo da estrada, pousos: pequenos núcleos de civilização e comércio. O milho, básico ao gado, era fonte de lucro. Aos domingos, um vigário rezava missa para locais e forasteiros. Nos ranchos – longos telheiros cobertos com varanda –, os tropeiros descarregavam, faziam-se fogueira e, num tripé à moda cigana, preparavam o de-comer: feijão com carne seca e angu de milho. A cachaça era usada em confraternizações ou como remédio. Grandes cestos ou bancos de madeira eram feitos de cama. Descarregados de seus fardos, os animais eram raspados com facão para tirar o pó e o suor. Prevalecia a regra da solidariedade: quem chegasse primeiro deixava lugar para as mulas de outras tropas, ajudando a descarregá-las quando necessário. Cargas eram arrumadas dentro do rancho com cuidados para não se misturar. As cangalhas secavam ao sol e eram depois empilhadas. Nas vendas encontrava-se um pouco de tudo para enfrentar a estrada: aguardente, doces, velas, livros de reza. Pelo chão, mantas de toucinho, pequenos barris de açúcar grosso e sal, espingardas e munição.

As mulas vindas do Sul eram comercializadas, grosso modo, na feira de Sorocaba. A dezoito léguas de São Paulo, a cidade foi o cenário das mais importantes feiras de muares dos séculos XVIII e XIX. Os animais partiam do Sul nos meses de chuva, quando as pastagens começam a verdejar. Uns preferiam vir direto, chegando entre janeiro e março, outros estacionavam nos campos de Lages, ao sul de Santa Catarina, para que os animais se refizessem. As tropas não eram trazidas para dentro da vila, estacionando nas imediações, nos currais dos campos d’El Rei. Tinha lugar para a engorda preparatória para a festa, além da domesticação dos burros, na qual os sorocabanos eram mestres. Uma escola de peões evoluiu junto com as feiras. Aprendia-se a domar mulas para a sela ou para a cangalha. No primeiro caso, exigia-se elegância no andar; no segundo, resistência e força. Junto aos animais, os peões e capatazes erguiam suas barracas. De dia, eram os exercícios de doma, a alimentação de milho e sal, o preparo de rédeas e correias. À noite, acendia-se o fogo, preparava-se o quentão, gemia a viola. Ali juntavam-se caboclos, peões e camaradas, nomes genéricos dos que não eram patrões. Os tropeiros iam para a cidade. Muito provavelmente detinham-se a examinar arreios e apetrechos que se vendiam nessas ocasiões: as sacadas, ou selas de madeira chapeadas a prata, facões, redes, ponchos, caronas de pele de onça e mantas sorocabanas. Pois é com essa aparatosa indumentária que Charles Landseer os pintou, orgulhosos e elegantes num rancho, em 1825. Seus lucros se perdiam em grossas apostas nas patas dos cavalos, pois não faltavam corridas nas raias de areia. Algumas ruas na saída da vila concentravam as “perdidas” nas casas de alcouce. Nelas, sexo, jogo e bebida se misturavam.

Uma vez vendidas, as mulas serviam para tudo. Carregavam gente, pedras ou produtos de subsistência, como cereais, carne, sal, açúcar. Portavam todos os instrumentos de trabalho utilizados na mineração ou nos engenhos. Levavam os produtos que, dos portos litorâneos, partiam para mercados no exterior: fumo, aguardente, açúcar, anil, algodão e, no início do século XIX, café. Transportavam pólvora e armamento e artigos de necessidade no cotidiano, como vestimentas, móveis, arreios, utensílios de casa. Levavam também artigos de luxo, como cravos – por assim dizer, o avô do piano – e livros franceses proibidos, por exemplo, os de Rousseau.

A importância econômica e social desse século sertanejo não deixa dúvidas. Sertanejos, guascas e tropeiros estiveram por trás do funcionamento de engenhos de açúcar, do desenvolvimento das atividades mineiras e do abastecimento do interior do Brasil. A circulação interna da Colônia, assim como o transporte de produtos e bens só podia ser feito em lombo de mula. O abastecimento de Minas e dos grupos militares estacionados no Sul dependia da carne bovina. A fazenda de gado do Nordeste criou uma massa de pequenos e médios proprietários. O mesmo se deu no Sul e no Sudeste. Aí, particularmente, essa gente alargou nossas fronteiras. Funcionando como uma verdadeira correia transmissora de negócios, valores e informações, tropas e tropeiros carregavam informações, cartas e recados, ligando as pessoas nos pontos mais diversos da Colônia. No século XVIII, as tropas de mulas foram responsáveis pela profunda animação que tomou conta do pequeno e do grande comércio, assim como da sociedade que começava a nascer nos sertões, antes tão ermos e tão longe do rei. Inúmeros registros dão conta da presença das tropas pelos caminhos. Em 1717, em viagem de São Paulo a Minas, o governador d. Pedro de Almeida observava ter cruzado com mais de mil animais em seu caminho, fora os oitocentos que vira arranchados em Guaratinguetá. Cem anos mais tarde, um cronista registrava tropas de cinquenta animais que viajavam, sem cessar, entre São João del-Rei e Rio de Janeiro. Em 1858, o tráfico entre Rio e São Paulo era feito no lombo de dezenas de milhares de bestas. A dívida do sertão em relação aos tropeiros estendeu-se até a chegada do trem na segunda metade do século XIX.

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Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 54 a 60, Capítulo 8.
  • [2] Imagem disponível em: <https://www.resumoescolar.com.br/historia-do-brasil/pecuaria-no-brasil-colonial/>. Acesso em 28/09/2022.


04 outubro 2022

A Noite de São Bartolomeu

Qual a relação entre a religião e a política? Por que as pessoas fazem guerra em nome de sua religião, uma vez que – espera-se – as religiões pregam a paz?

Toda ação religiosa, se for coletiva, é, necessariamente, uma ação política também. E, no caso da França, como veremos, as guerras religiosas entre protestantes e católicos foram um somatório de interesses pelo poder, mais do que religiosos.

O fatídico casamento ocorrido na famosa Noite de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572, representava apenas uma face do que foi a longa e sangrenta luta político-religiosa na França...

A Noite de São Bartolomeu, quadro de François Dubois (1529-1584)

 

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Acesse o texto completo em: A Noite de São Bartolomeu

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