A greve dos urubus
Por José
Lutzenberger[1]
Charge do
Bessinha (site Conversa Afiada) [2]
A manhã estava
linda. Um sol maravilhoso, o céu, muito azul, encontrava no horizonte com o mar
que parecia um mingau de vidro. E tudo aquilo podia ser mais bonito se a praia
estivesse branquinha, como Deus inventou.
Mas não estava.
Naquele enorme areal não se podia dar um passo sem pisar em algum lixo. Era
lata de cerveja vazia, era copo usado de plástico, era pauzinho de picolé
chupado, era papel de tudo que era cor e feitio. Na beira d’água era mais
triste ainda. Pedaços de pau, manchas pretas de óleo e uma porção de peixinhos
mortos, com a barriga virada para cima.
Os banhistas ainda
não tinham começado a chegar e só os urubus é que andavam no meio daquela
lixarada, fazendo o seu serviço, limpando a praia do que havia de mais sujo e
fedorento.
Mas não demorou
muito e apareceu o primeiro. Era uma mulher, de óculos escuros e chapeuzinho de
palha. Debaixo do braço trazia uma barraca, tipo guarda-chuva e uma toalha. Na
mão, uma sacola, onde levava bronzeador, cigarro, fósforos, lápis e uma
revistinha de palavras cruzadas. Levou um tempão para arrumar aquilo tudo na
areia, sentar e começar a besuntar o corpo com uma coisa visguenta que saía da
garrafinha.
Não muito longe,
uma urubua tinha parado de ciscar na sujeira e ficou olhando para ela perder
tanto tempo, só para acabar sentando e se sujar daquele jeito. A urubua
continuou olhando para tanta esquisitice e uma porção de pensamentos subia e
descia dentro da sua cabecinha cinzenta. Um desses pensamentos era assim:
– “Todos os bichos
que existem neste mundo gostam de se aquecer no sol quando é inverno e faz
frio. Mas num dia de verão danado, como hoje, todos procuram uma sombrinha,
onde é mais fresco. Só mesmo pra procurar comida ou ir pra casa é que qualquer
um, seja de pele, pena ou pelo, é que enfrenta um calorão desses. Mas o bicho
homem é mesmo muito biruta. É o único que se mete debaixo do sol, até ficar com
a pele dolorida de tão queimada, cheia de bolha, sem ter nada de importante
para fazer ali.”
Sacudiu a cabeça
de um lado para outro, tirou com o pé um pedaço de sardinha que ficou entalado
no canto do bico e teve outro pensamento:
– “Não entendo
mesmo o que é que essa gente tem dentro da cabeça. Dizem que nós, os urubus, é
que somos uns bichos diferentes porque gostamos de porcaria. O compadre porco
gosta das mesmas coisas que nós gostamos, mas os homens até fazem criação
deles. E o que esse pessoal vem fazer numa praia imunda como esta se todos são
tão cheios de chiques e não-me-toques, torcendo o nariz por qualquer coisinha…?
Coitados… É capaz até que eles não saibam que essa água do mar, onde eles
adoram tomar banho, é tão suja como a água que sai das privadas das casas
deles. Vai ver é isso mesmo… Vou avisar aquela mulher…
A urubua não tinha
andado nem um metro na direção da banhista e levou com uma garrafa de guaraná
vazia bem no meio do pescoço. E, de quebra, uma porção de: “chô… chô… Vai
embora, bicho nojento. Fora daqui…”
Ela abriu as asas,
deu uma corridinha para pegar impulso e levantou voo. De todos os cantos da
praia, outros urubus também estavam voando porque já eram muitas as barracas
armadas e muitas as pessoas que tinham chegado, arranjando um lugarzinho no
meio daquela lixarada toda.
E como sempre
faziam, depois que comiam pela manhã, iam pousar no telhado do matadouro. Era
ali o ponto de reunião da urubuzada daquele lugar. Ali é que eles batiam papo,
contavam as novidades da família, e davam as dicas de onde podia ser encontrada
comida pro bando todo.
A urubua, depois
que alisou as penas e espreguiçou as duas asas, começou a conversar com o urubu
que estava ao seu lado. E contou como quase-quase teve o pescoço quebrado
aquela manhã, lá na praia. O urubu também lhe contou que estava ciscando
naquela areia negra e oleosa, lá no Entreposto de Pesca, quando, de repente,
olhou de banda e viu que um caixote velho vinha caindo direto em cima dele. Se
não fosse de circo e não soubesse pular numa perna só, aquela hora não estava
ali, contando o susto que levou. Não demorou muito e todos os urubus estavam
falando sobre a mesma coisa: como cada dia a vida ficava mais difícil, como
eram xingados de tudo que era nome feio e como precisavam estar sempre
preparados para não levarem pauladas, garrafadas, pedradas e tudo que era adas
que os homens podiam jogar em cima deles.
Urubu é bicho que
não canta nem faz qualquer barulho. Mas naquela manhã eram tantos, falando ao
mesmo tempo, que o zum-zum era tão forte que quem passasse na rua, olhava pra
cima pra ver o que estava acontecendo.
Aí o Lula, que era
o presidente do Sindicato dos urubus, resolveu falar. Bateu as asas três vezes…
tlec… tlec… tlec… E todos se calaram. Quando aquela porção de bicos estava toda
virada para o lado dele e todos os urubus ficaram quietos, ele falou:
– “Urubuzada,
atenção, por favor! O que todos vocês estão reclamando hoje não é nenhuma
novidade. Venho ouvindo essas queixas há muito tempo e acho que chegou a hora
da gente fazer alguma coisa”.
Todos os urubus
bateram as asas ao mesmo tempo porque esse é o jeito de urubu bater palmas.
– “Silêncio, por
favor!” – disse o Lula. E continuou quando os tlec tlec pararam.
– “Não podemos
continuar sendo humilhados assim. Cada dia que passa a quantidade de lixo que é
fabricado pelos homens vai aumentando. As praias, os rios, os monturos, estão
cada vez mais fedorentos. E somos nós que damos um jeito, catando o dia todo,
dando sumiço nas porcarias mais porcarias. A injustiça deles é tão grande que
dão o nome de porcaria para as maiores sujeiras e nunca se lembraram de
chamar urubuzaria para qualquer coisa, em homenagem ao nosso trabalho, quando
somos nós que fazemos a maior parte do serviço.”
Foi um tal de tlec
tlec em cima do telhado do matadouro que chegou até fazer um ventinho. E o Lula
foi em frente com o seu discurso:
– “Milhares de
companheiros nossos da turma que mora lá no mangue da Baía da Guanabara, foram
engaiolados para a Alemanha para serem estudados pelos cientistas que estão
querendo descobrir a cura do câncer, uma doença que dá neles e nunca dá em nós.
Desde que o mundo é mundo, o nosso trabalho é fazer que o lixo seja menos
lixoso. Antigamente, no tempo em que os urubus ainda podiam escolher as cores
de suas penas, em vez desse uniforme preto que usamos agora, éramos
respeitados. Hoje em dia os homens xingam, maltratam e até matam qualquer urubu
que não seja bastante vivo pra voar para longe, logo que um deles vai chegando
perto. Por tudo isso, pra que eles vejam como somos úteis, acho que devemos
entrar em greve geral. Não vamos mais tocar nos montes de lixo que eles fazem
em volta das suas cidades e na beira de tudo que é praia, rio ou lago. E assim
talvez as coisas mudem. Quem estiver de acordo, levante a asa direita.”
No mesmo instante,
todas as asas direitas que estavam ali, ficaram esticadas para cima. Depois
disso passaram-se dias, semanas e fazia quase um mês que nenhum urubu era visto
voando ou ciscando por onde sempre andaram. Os montes de lixo tinham crescido
uma barbaridade e ninguém aguentava mais o fedor que saía deles. Foi só aí que
os homens entenderam a falta que os urubus faziam. Mas como é que iam fazer
pros urubus voltarem?
Aí tiveram uma ideia.
Se pedissem desculpas e mostrassem que haviam compreendido que, mesmo sendo
feios e desajeitados, eles eram tão importantes como são importantes todos os
bichos que existem neste mundo, eles talvez voltassem pra fazer o que sempre
fizeram.
Reuniões no
Ministério não sei do que, comissões de estudo na Secretaria do não sei que
mais, mesa-redonda do isso-mais-aquilo e finalmente encontraram uma solução.
Eles deviam organizar uma campanha em todo o país para que o povo entendesse
como os urubus deviam ser tratados com respeito, como os urubus eram úteis,
quanto os urubus ajudaram para se conhecer as correntes de ar, chamadas
ascendentes e descendentes. E uma porção de outras coisas desse tipo.
Como nenhum bicho
desse planeta consegue elogiar e puxar saco melhor que o bicho homem, a tal
campanha foi um sucesso. Fizeram até uma musiquinha que tocava no rádio em
todos os intervalos de propaganda.
Vamos todos bater
palmas
Pro nosso amigo
urubu
Pleft… pleft…
É preciso que ele
ouça
Nosso recado do
amor
I love you… I alove you…
Pleft… pleft…
Não é um amor
passageiro
Pra esse grande
lixeiro
Que acaba com o
fedor
Pleft… pleft…
Um cantor muito na
moda, o Gilberto Jiló, inventou a “Dança do urubu”, para aproveitar a onda de um
assunto que andava na boca de toda gente. Ele aparecia no palco vestido de
penas pretas e com uma lata de lixo amarrada na cabeça. Como tudo que ele
cantava era muito admirado por todos os rapazes e moças, por todos os
estudantes universitários, logo apareceram as camisetas com o desenho de um
urubu dizendo: “Help me”.
Na televisão,
depois daquele plic plic que avisa que é hora das pessoas saírem da sala para
irem até o banheiro ou até a cozinha para beber água, aparecia um filmezinho
lindo, sobre a vida dos urubus. Era tão bem-feito que nem dava pra desconfiar
que era sobre urubus. Aparecia um deles voando mais bonito que uma águia e de
um jeito que a sua cor preta virou prateada. Urubu não canta nem em Dia de
Finados, mas vendo aquele filme qualquer um ficava com vontade de ter um urubu
em casa, só pra ouvir uns gorjeios mais bonitos do que sabiá cantando no meio
do mato.
Isso, sem falar
nas reportagens que saíram em tudo que era tipo de revista. E nos cartazes
coloridos, pregados nos muros de todas as cidades, com o retrato de um urubu
sorrindo e segurando uma flauta. Em baixo, em letras bem grandes, a frase:
“Ponha um urubu em sua vida! Ele merece!” Em todas as casas de discos não se
encontravam mais nada que falasse de urubu. Esgotada a música do Gilberto Jiló
e esgotada uma outra, dos tempos em que o almirante era cantor famoso e cantava
um maxixe que dizia assim:
Urubu veio de cima
Com fama de
cantador
Urubu chegou na
festa
Tirou dama e não
dançou
Ora dança urubu
Eu não sinhô
Tira a dama, doutô
Não sou doutô…
Não precisa dizer
que em todas as escolas, os mais famosos urubuzólogos fizeram uma porção de conferências.
E que para completar a série, o governo instituiu o “Dia Nacional do Urubu”.
Quem é que pode
resistir uma badalação dessas, não é mesmo? Aos pouquinhos os urubus foram
voltando. E estão novamente por aí, ciscando o lixo, como fizeram sempre.
- LUTZENBERGER, José. A Greve dos urubus. São Paulo: Brasiliense (?)…
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Veja também:
- Não Seja Como Um Urubu, por Anderson C. Santos.
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- [1] O gaúcho José Antonio Lutzenberger (1926-2002) “... foi um agrônomo, escritor, filósofo, paisagista e ambientalista brasileiro que participou ativamente na luta pela preservação ambiental...” (Wikipédia). A fábula acima foi parte de uma aula de Sociologia que tive em 1992 e ainda parece atual, pois o Urubu-Mor ainda está dando suas cartas, enquanto se ouve um bando de tlec... tlec... tlec... quando ele grasna...
- [2] Imagem que ilustra o texto “PT está usando de todos os meios, no Supremo, para livrar Lula da prisão”, texto escrito em setembro de 2018. In: http://www.tribunadainternet.com.br/pt-esta-usando-de-todos-os-meios-no-supremo-para-livrar-lula-da-prisao/. E a mensagem da fábula continua atual...
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