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19 março 2024

Racionalismo e fé cristã: Leibniz

Por: Alcides Amorim


Sobre o Racionalismo, corrente filosófica que argumenta ser a razão a única forma para se chegar ao verdadeiro conhecimento, já falamos dos filósofos franceses René Descartes (1596-1650) e Blaise Pascal (1623-1662) e o do holandês Baruch Spinoza (1632-1677). O último fisósofo desta série, e o menos comentado, é o alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716).

Para um estudo sobre Leibnz, veja o que escreve D. A. RAUSCH [1]:


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Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) foi filho brilhante de um professor de filosofia na Universidade de Leipzig. Leibniz inicialmente estudou Direito em Leipzig, mas em pouco tempo dirigiu sua atenção à filosofia e à matemática, interesses estes que tomariam toda sua atenção durante o restante de sua vida. De 1673 até o fim da vida, trabalhou para o Duque de Brunswick, reunindo e catalogando os vastos arquivos da Casa de Brunswick, enquanto escrevia uma história extensa da família. Sendo um homem de muitos interesses e contatos intelectuais, fundou a Academia Prussiana, em 1700, e procurou promover paz entre os teólogos protestantes e católicos romanos, bem como unir as igrejas protestantes em geral. Dedicou-se à causa da paz internacional.

Embora fosse um racionalista, Leibniz censurou a filosofia de Spinoza, denunciando-a como um ataque contra a imortalidade pessoal e por não deixar lugar para o propósito e a criatividade divinos. Ele não se satisfez com o dualismo de Descartes quanto à "substância espiritual” que misteriosamente interage com a "substância material", e não gostava do conceito mecanicista do universo, proposto por Newton. Leibniz considerava Deus como um Ser livre e racional, um Ser que poderia ter criado qualquer tipo de mundo que desejasse. Acreditava que Deus deve ter criado o melhor mundo possível, onde os homens são recompensados e castigados de acordo com a sua conduta. Deus não é responsável pelo mal. O mal é o resultado da liberdade humana. Leibniz tinha um otimismo teísta, que foi ridicularizado por Voltaire, mas que antecedeu o otimismo do Iluminismo em geral. Ele foi a primeira pessoa a empregar o termo "teodiceia" (no titulo de uma obra que publicou em 1710), explicando que a existência do mal é uma condição necessária para a existência do maior bem moral.

Em Monadologia (1720) – veja mais abaixo –, Leibniz concorda em que a matéria consiste de átomos, mas argumenta que além dos átomos físicos divisíveis, e por baixo deles, estão os átomos metafísicos indivisíveis. A estes centros espirituais de força ele chamou mônadas. Estas mônadas são independentes entre si, mas são levadas a uma organização racional mediante uma harmonia predeterminada, planejada pela mente e vontade de Deus. Seu sistema permitia que ele defendesse as provas tradicionais da existência de Deus (com modificações) e sustentasse alguns princípios escolásticos que haviam sido atacados por outros filósofos. Ele acreditava que a sua doutrina de substância podia ser harmonizada com a transubstanciação e a consubstanciação. O cristianismo, ele observou, era a soma de todas as religiões.

Leibniz é considerado o maior filósofo alemão do século XVII e uma das mentes mais universal de todos os tempos. Ele é uma indicação da grande diversidade dentro do racionalismo moderno inicial.


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Ainda sobre as ideias de Leibniz, Collin Brown [2] destaca:

  • Monadologia: principal obra de Leibniz, escrita em 1714 e publicada em 1720.

  • Mônadas: substancias simples, sem partes e sem janelas pelas quais alguma coisa pudesse entrar ou sair. São indivisíveis e sempre ativas. Cada mônada espelha a totalidade da existência.

  • As nômadas formam uma série ascendente, desde a inferior, que é quase nada, até superior, que é Deus.

  • Deus é um Ser Necessário, ou "a substância simples original, da qual todas as mônadas criadas e derivadas, são produzidas.


Notas:

  • [1] David A. Rausch (1947-2023) foi autor e professor Ph.D., na Universidade Estadual de Kent. Professor de História Eclesiástica e Estudos Judaicos no Seminário Teológico na Ashland University em Ohio, EUA… O artigo (estudo biográfico) Gottfried Wilhelm Leibniz usado (e adaptado) aqui é uma contribuição de Rausch à Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. II. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 422.
  • [2] BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 42 (texto adaptado).


Veja também o vídeo de Mateus Salvadori:

04 março 2024

Racionalismo e fé cristã: Spinoza

 Por: Alcides Amorim

Continuando nosso estudo sobre Racionalismo e fé cristã, Já vimos um pouco sobre dois filosófos racionalistas: René Descartes (1596-1650) e Blaise Pascal (1623-1662). Desta feita, queremos descatar a vida e pensamento de Benedito (ou Baruque) de Spinoza (1632-1677).

1. Spinoza: vida e obras [1]

Spinoza nasceu em Amsterdã (Países Baixos), filho de pais judeus – expulsos da Espanha –, numa época e lugar de liberdade do pensamento, um refúgio para quem buscava os direitos de opiniões. Ainda jovem Spinoza fez pleno uso destes direitos. Embora fosse criado como judeu, seu livre pensamento resultou na sua expulsão da sinagoga. E foi, segundo registros, um pioneiro na crítica biblica. Em 1663 publicou uma exposição de Descartes disposta de forma geométrica, Renati des Cartes principiorum Philosophiae Pars I et II. More Geometrico Demonstratae per Benedictum de Spinoza. Foi o único livro seu, publicado durante sua vida, que haveria de conter seu nome no frontispicio. Foi seguido em 1670 por um tratado da política e da religião, Tractatus Theologico-Politicus. Mas a obra principal da sua vida, que foi publicada postumamente e secretamente no ano da sua morte foi sua Ética, ou Ethica Ordine Geometrico Demonstrata. Esta também foi escrita (conforme sugere o título em Latim) numa forma quase geométrica, com definições, axiomas, proposições e provas...

Spinoza tem sido descrito, de vários modos, como um ateu pavoroso e como pessoa inebriada por Deus. Na realidade, era um panteísta. Mas não era o tipo de panteísta da imaginação romântica e poética. O dele era um panteísmo racional, sobriamente calculado a partir de premissas semelhantes àquelas de Descartes. Como este último, começa com ideias claras e distintas, noções que, segundo pensa ele, são evidentemente verdadeiras em si mesmas. A veracidade delas pode ser percebida meramente ao declará-las corretamente. Sua ideia básica é a da Substância que define como "aquilo que existe por si mesmo, e que é concebido por si mesmo; ou seja, algo cuja concepção não exige qualquer outra coisa para sua formação" Diz-se que esta ideia é verdadeira pela sua evidência interna. "Se alguém disser, portanto, que tem uma ideia clara e distinta, ou seja, verdadeira, da Substância, e mesmo assim, duvida que semelhante Substância existe, é como aquele que diz que tem uma ideia verdadeira e que, mesmo assim, pensa que ela talvez seja falsa." A partir daqui, passa a argumentar que há uma só Substância, e que esta Substância pode ser considerada ou como sendo Deus ou como sendo a natureza. Pois, “Tudo quanto existe, está em Deus, e sem Deus nada pode existir, nem se pode conceber dele”.

No seu sentido literal, esta última proposição poderia ser entendida num sentido teístico cristão. Mas Spinoza logo deixa claro que ele não pensa assim. Deus, pois, não existe fora da natureza, mas, sim, dentro dela. "Deus é a causa imanente e não transiente de todas as coisas." Quer digamos "Deus", quer digamos "natureza", estamos realmente falando acerca da mesma coisa. A diferença realmente é de ênfase. Falar em Deus chama a atenção à causa, falar na natureza indica o produto acabado, por assim dizer.

O ensino de Spinoza foi desenvolvido com detalhes consideráveis. No decurso do seu argumento negava a totalidade do livre arbítrio, e também negava que Deus pudesse amar aos homens de modo pessoal. O sistema inteiro é tão impessoal e mecânico quanto um teorema. Mas, a despeito da sua forma que parece rigorosa, o argumento está longe de ser estanque. A parte das falhas no seu desenvolvimento, o sistema inteiro falha porque Spinoza não conseguiu estabelecer a validade das suas definições e procedimentos.

Apesar disto, Spinoza continuou a fascinar os pensadores da Europa continental até mesmo quando romperam com sua filosofia específica. A ideia de um sistema que abrangia a tudo, juntando Deus e o homem, e explicando tudo em termos de uma única realidade espiritual, deslumbrava os idealistas do século XIX, assim como a Lorelei fascinava com bruxarias os navegantes no baixo Reno. Enfeitiçados pela perspectiva, precipitavam-se para a frente sem prestar atenção às rochas mal escondidas debaixo da torrente de ideias. Pouco importava se o sistema podia ser harmonizado com o cristianismo histórico e com a religião, conforme realmente eram experimentados e praticados. Tanto pior para o cristianismo histórico. Onde os fatos podiam ser encaixados, tanto melhor. Mas, senão, o sistema podia dispensar os fatos. Até hoje, a brilhante perspectiva não perdeu totalmente seus encantos. Em Honest to God, John Robinson ecoou de novo o louvor melancólico que Tillich dirigiu à ideia de Spinoza, de que Deus existe, não sobre e acima das coisas, mas dentro delas como "o fundamento criador de todos os objetos naturais".

2. O Deus de Spinoza [2]

A doutrina defendida por Spinoza era conhecida como monismo” (do grego monos, que quer dizer “um”). Inspirando-se em Descartes, Spinoza se propôs a oferecer uma interpretação da realidade baseada nos princípios do raciocínio matemático. Isto pode ver-se no próprio título de sua principal obra, Ética demonstrada segundo a ordem da geometria, que foi publicada postumamente porque seu autor sabia que as opiniões expressadas nela seriam condenadas. Com efeito, o modo como Spinoza resolve o problema da comunicação das substâncias é negando que haja na realidade mais que uma substância. A realidade é somente uma (daí o nome de “monismo”). O pensamento e a extensão não são atributos de uma substância única, como a redondeza e a cor são atributos da mesma maçã. E o mesmo pode-se dizer de Deus e o mundo, que são apenas atributos dessa mesma realidade única...

Como afirmamos em outro momento, os racionalistas não eram homens sem religião, mas obviamente, escorregavam-se no modo como interpretavam os textos bíblicos e/ou a fé cristã. E como era de se esperar, as doutrinas do racionalista Spinoza não foram bem acolhidas nos círculos religiosos, pois, de fato, negavam que existira um Deus à parte e por cima da natureza física ou que esse Deus fora criador do mundo. Tendo uma visão monista ou panteísta, o certo é que a ideia de Spinoza sobre Deus fugia muito do que os teólogos cristãos afirmam sobre o conceito de Deus nas Escrituras. Aliás, ele pregava a antiteologia.

Entendemos como falsa a ideia panteísta de Spinoza de que Deus é tudo, e tudo é Deus”. A Bíblia fala claramente de Deus como algo separado da Sua criação. Deus é Criador do mundo e tudo o que nele existe, mas o que existe, e que foi criado por Deus são coisas separadas de Deus. Veja:

“O panteísmo declara que somente Deus existe; tudo é Deus. Isso contradiz descaradamente muitos conceitos centrais apresentados na Bíblia. Deus diz explicitamente que Ele não é a mesma coisa que o homem (Números 23:19), o universo é uma coisa criada (Gênesis 1:1), o homem é feito à Sua imagem (Gênesis 1:27) e assim por diante. As Escrituras descrevem o homem e Deus falando um com o outro (Gênesis 3:9-10; Êxodo 3:4-5), Deus julgando o homem (Isaías 2:4; 33:22) e Deus separando-se de certos seres (Apocalipse 20: 12-15). Todo o conceito de oração implica que há um ‘outro’ para ouvir a oração (Mateus 6:9). É por isso que os verdadeiros panteístas não oram; eles meditam, pois o panteísmo nega que haja um ‘outro’ com quem se comunicar. (…) A Escritura é clara: Deus não é o mesmo que a Sua criação. Ele certamente não é o mesmo que o homem. Obscuro ou não, o panteísmo cristão é, em última análise, outro exemplo de má interpretação da Bíblia e de uma lógica ainda pior...” [3]

Bem, como filósofo racionalista Spinoza tentava compreender os atos humanos. Mas também tinha fé, porém acreditava num Deus panteísta do qual certamente não o compreendia verdadeiramente. De qualquer forma, sua maneira de crer em Deus serviu de referência para o grande cientista Albert Einstein. Ao ser perguntado se ele cria em Deus, Einstein disse “sim”, creio no “Deus de Spinoza” [4]. E sobre isto veja também o vídeo abaixo...

Notas / Referências bibliográficas:

  • [1] BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 37 a 40 (texto adaptado).
  • [2] GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos dogmas e das dúvidas – Vol. 8. São Paulo: Vida Nova, 1984, pág. 131 a 132 (texto adaptado).
  • [3] O que é o panteísmo cristão?In: <https://www.gotquestions.org/Portugues/panteismo-cristao.html>. Acesso em: 01/03/2024.









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26 fevereiro 2024

Racionalismo e fé cristã: René Descartes

Por Alcides Amorim

O Racionalismo é entendido como a corrente filosófica que argumenta ser a razão a única forma para se chegar ao verdadeiro conhecimento. Segundo o professor Colin Brown [1], esta tentativa de julgamento de tudo através do pensamento racional se fosse concretizada liquidaria completamente o sobrenatural, o que “… não sobraria mais nada além da natureza e dos fatos crus” (BROWN: 1985, pág. 37). Mas, numa abordagem mais específica do racionalismo percebe-se que os “… racionalistas não eram tão ateus como parece” (Idem, pág 37). Ele define como época do racionalismo os séculos XVII e XVIII, os quais sucedem, no campo filosófico, os reformadores protestantes do século XVI. Mas enquanto estes eram dominados por uma preocupação com Deus, aqueles ficaram entusiasmados, não tanto com Deus, mas com o mundo. Foram cientistas, matemáticos, especialistas em geometria, lógica etc., porém “… não eram homens sem religião” (Idem, pag. 38).

Os principais racionalistas, dos quais queremos fazer um breve estudo são Descartes, Espinosa, Leibniz e Pascal. Vamos destacar a seguir o filósofo René Descartes (1596-1650), que é considerado o principal personagem do racionalismo e também fundador da filosofia moderna. Ele foi contemporâneo de Carlos da Inglaterra e de Oliver Cromwell, de Kepler, de Galileu e de Harvey. Foi educado num colégio jesuíta, fez carreira militar, servindo em vários exércitos europeus e “… sempre tomando o cuidado de transferir-se para outro lugar quando surgiam hostilidades” (Idem, pag. 38). Justo L. González complementa que Durante a Guerra dos Trinta Anos, Descartes “… esteve a serviço do príncipe de Nassau; mas, ao invés de participar ativamente do conflito que banhava de sangue a Alemanha, aproveitou seu suposto serviço militar para continuar os estudos de física e matemática que havia começado pouco antes” (GONZALEZ: 1984, pág. 126). Ao que parece Descartes trabalhava poucas horas por dia e lia pouco, embora tenha deixado grandes contribuições nos campos da geometria e da filosofia. Naquela, inventou a geometria coordenada. Nesta, foi o pioneiro do racionalismo e da dúvida cartesiana. Suas duas obras filosóficas principais foram seu Discurso sobre Método (1637) e suas Meditações (1641).

O sistema filosófico de Descartes baseava-se em uma grande confiança na razão matemática (a exemplo de Pascal), “… unida a uma desconfiança diante de tudo o que não estivesse claro e indubitavelmente comprovado. Por isso, comparava seu método ao da geometria. Nessa disciplina, somente se aceita o que se tenha mostrado matematicamente ou o que é um axioma indubitável” (Idem, pág. 126). Em resumo, em seu Discurso sobre o Método, “Descartes cria quatro preceitos lógicos:

1º) jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal, isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; 

2º) dividir cada uma das dificuldades que eu examinar em tantas parcelas quantas possíveis e necessárias fossem para melhor resolvê-las; 

3º) conduzir, por ordem, meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos; e 

4º) fazer, em toda parte, enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada omitir...” (In: Wikipedia - Discurso sobre o Método).

E assim nasceu o racionalismo cartesiano [2]. Como ponto de partida na aplicação desse método, Descartes adotou uma postura de dúvida universal. Ele duvidava de tudo que estava em sua mente, surgindo seu célebre axioma: Cogito ergo sum ("Penso, logo existo"). O mero fato de que estava tendo dúvidas e, portanto, pensando, significava que ele existia.

E em relação à ou crença em Deus, como Descartes se comportava?

Bem, segundo ainda González (O. C., pág. 128 “… naturalmente, a ideia de tomar a dúvida como ponto de partida logo lhe proporcionou inimigos entre aqueles que viam nisso a negociação da fé. O próprio Descartes era pessoa profundamente religiosa e estava convencido que sua filosofia, longe de enfraquecer a fé, a fortaleceria, pois mostraria que os princípios do cristianismo eram eminentemente racionais e não se podia colocá-los em dúvida”. Ao argumentar sobre a existência de Deus, Descartes concebia a ideia de si mesmo como ser finito que subentendia a existência de um ser infinito. E também a própria ideia de um Ser Perfeito subentendia a existência dele. Declarava que Deus é perfeito e por isto mesmo não nos enganaria. Deus não “… nos deixaria pensar que nossas ideias claras e nítidas fossem verídicas, se não o fossem. Podemos, portanto, firmar-nos na segurança de que são válidas todas as nossas deduções lógicas acerca da realidade” (BROWN: 1985, pág. 39). Descartes era um homem de firmes convicções, permaneceu católico até o fim de sua vida, e “… de fato, quando descobriu seu ‘método’ de pensamento filosófico, foi em peregrinação de gratidão ao santuário da Virgem de Loreto...” (GONZALEZ: 1984, pág. 129). Mas, nem todos viam as coisas de igual maneira. Seu método teve muitos questionamentos. Teólogos de várias universidades famosas mostravam-se firmes partidários do sistema de Aristóteles e entendiam ser o cartesianismo uma heresia, embora houve outros que viram no cartesianismo a promessa de um renascer teológico.

Merece destaque o que Brown diz sobre o Arcebispo William Temple [3], afirmando que este “… certa vez foi tentado a perguntar a si mesmo qual foi o momento mais desastroso na história da Europa. A resposta que lhe ocorreu foi: o dia em que Descartes se encerrou na sua estufa [4]. Ao dizer isto, Temple não estava pensando tanto no conceito que Descartes tinha de Deus, mas, sim, na tendência à qual deu início no pensamento europeu…”, isto é, o racionalismo, inaugurando uma tendência que foi seguida por muitos que até rejeitavam seu sistema propriamente dito, e estabelecendo a consciência individual como o critério final da verdade. O racionalismo dominou a filosofia da Europa continental até quase o fim do século XVIII.

O renascer teológico, como muitos viam as ideias de Descartes na França, foi, segundo Gonzalez, uma influência jansenista – doutrina da qual já falamos aqui –, que estava em moda naquele país. E muitos abraçaram o cartesianismo como sua contra-parte filosófica. O modo em que Descartes colocava a existência de Deus no centro de seu sistema, ainda antes de aceitar a existência de seu próprio corpo, prestava-se a uma interpretação jansenista. “Antoine Arnauld, o chefe dos jansenistas da segunda geração, estudou detidamente o pensamento cartesiano e o adaptou para o uso da polêmica jansenista. Pouco a pouco, ainda fora dos círculos jansenistas, o cartesianismo foi abrindo espaço e os debates acerca das doutrinas de Descartes perduraram por longo tempo”, afirma Gonzalez (O.C., pág. 130).

De parte de suas meditações, disse Descartes: “ocorreu-me indagar de onde havia aprendido a pensar em algo mais perfeito que eu e conheci evidentemente que devia ser em uma natureza que fora mais perfeita”. Logo, a existência de Deus se prova, não a partir de um mundo cuja realidade pode ser posta em dúvida, mas da própria ideia de Deus.

Portanto, resta tão somente a ideia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que não possa ter provindo de mim mesmo? Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são… foram criadas e produzidas… E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir, de tudo o que foi dito antes, que Deus existe… (Meditação Terceira, 22).

Concluímos então que os racionalistas, a exemplo de Descartes, tinham interesses pelo mundo da natureza e a confiança na razão, mas não eram homens “sem religião” (repito). Descartes, segundo Brown, permaneceu “católico” mesmo depois do Discurso sobre o Método e das Meditações. Ele entendia que Deus é a razão pela qual não se pode duvidar…


Veja também:


Notas:

  • [1] “O Dr. Colin Brown é professor de Teologia Sistemática no Fuller Theological Seminary, em Pasadena, Califórnia, USA. Entre outros livros, é autor de Karl Barth and the Christian Message. Editor de History, Criticism and Faith e o responsável pela edição em inglês do Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, publicado por esta Editora [Vida Nova], ao qual também contribuiu vários artigos.” (BROWN, O. C., contracapa).
  • [2Cartesianismo: nome que era dado à filosofia de Descartes, porque o nome dele em latim era Cartesio.
  • [3William Temple “… foi um um sacerdote anglicano que serviu como Bispo de Manchester, Arcebispo de York e Arcebispo de Cantuária. Filho de um arcebispo de Cantuária, teve uma educação tradicional, após a qual foi brevemente professor na Universidade de Oxford antes de se tornar diretor da Repton School, entre 1910 e 1914…”. Veja mais em: <William Temple - Wikipedia)>. Acesso em: 16/02/2024.
  • [4A estufa foi um equipamento que manteve a sala aquecida, local onde, no inverno de 1919-1920, na Alemanha, Descartes produziu sua obra: Discurso sobre o Método.


Referências bibliográficas:

  • BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 37 a 40.

  • GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos dogmas e das dúvidas – Vol. 8. São Paulo: Vida Nova, 1984.


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Ainda sobre Renê Descartes, veja a seguir o vídeo de Alysson Augusto:


21 fevereiro 2024

Racionalismo: algumas considerações filosófico-teológicas

 Por Gary R. Habermas [1]

O racionalismo filosófico abrange vários aspectos do pensamento, sendo que todos eles usualmente têm em comum a convicção de que a realidade é de fato racional na sua natureza, e que fazer as deduções apropriadas é essencial para a obtenção do conhecimento. Semelhante lógica dedutiva e o emprego de processos matemáticos fornecem as ferramentas metodológicas principais. Dessa maneira, o racionalismo frequentemente tem sido considerado em contraste com o empirismo.

Formas anteriores do racionalismo encontram-se na filosofia grega, mais notavelmente em Platão, que sustentava que o uso apropriado do raciocínio e da matemática era preferível à metodologia da ciência natural. Esta última, i. é. o empirismo, não só se engana em muitas ocasiões, como também apenas consegue observar fatos neste mundo mutável. Mediante o raciocínio dedutivo, Platão acreditava ser possível Extrair o conhecimento inato que já está presente quando a pessoa nasce, conhecimento este que é derivado do mundo das formas.

O Racionalismo, no entanto, é mais frequentemente associado com os filósofos do iluminismo tais como Descartes, Spinosa e Leibniz. É essa forma do racionalismo da Europa continental o assunto principal deste artigo.

1. Ideias Inatas

Descartes enumerou vários tipos de ideias, tais como aquelas que derivam da experiência, aquelas que são extraídas da própria razão e aquelas que são raras e, portanto, são criadas por Deus na mente humana. Este último grupo era um esteio principal do pensamento racionalista.

Ideias inatas são aquelas que são os verdadeiros atributos da mente humana, que foram dadas à mente por Deus. Sendo assim essas ideias "puras” são conhecidas a prori por todos os seres humanos e, portanto, são cridas por todos. Elas eram de importância decisiva para os racionalistas, de modo que usualmente se sustinha que essas ideias eram a condição prévia para a aprendizagem de fatos adicionais. Descartes acreditava que, sem ideias natas, nenhum outro dado poderia ser conhecido.

Os empiristas1 atacavam os racionalistas neste aspecto e argumentavam que o conteúdo das ideias chamadas inatas na verdade era aprendido através da experiência das pessoas, embora elas talvez tenham refletido pouco sobre isso. Dessa maneira, aprendemos vastas quantidades de conhecimento através da nossa família, educação e sociedade, que surge bem cedo na vida e que não pode ser contado como inato.

Uma das respostas racionalistas a esse argumento empírico era indicar que havia muitos conceitos largamente usados na ciência e na matemática, que não podiam ser descobertos apenas pela experiência. Os racionalistas, portanto, concluíram que o empirismo não poderia existir sozinho, pelo contrário exigia que grandes quantidades de verdades fossem aceitas pelo uso apropriado da razão.

2. A Epistemologia

Os racionalistas tinham muito a dizer a respeito do conhecimento e de como a pessoa poderia ter certeza. Embora essa pergunta recebesse respostas algo diferentes, a maioria dos racionalistas finalmente voltou para a asserção de que Deus era a garantia definitiva do conhecimento.

Talvez o exemplo melhor dessa conclusão se encontre na filosofia de Descartes. Começando a partir da realidade da dúvida, ele resolveu não aceitar nada de que não poderia certeza. Pelo menos uma realidade, no entanto, poderia ser deduzida dessa dúvida: ele estava duvidando e, portanto, devia existir. Nas palavras do seu ditado famoso: "Penso, logo existo”.

A partir da percepção de que duvidava, Descartes concluiu que ele era um ser dependente e finito. Passou, então, para a existência de Deus através de procedimentos dos argumentos ontológico e cosmológico. Nas Meditações III-IV das suas Meditações de Filosofia Primeira, Descartes sustentou que sua ideia de Deus como infinito independente é um argumento nítido e distinto em defesa da existência de Deus.

Descartes, na realidade, concluiu que a mente humana não é capaz de conhecer nada com mais certeza do que conhece a existência de Deus. Um ser finito não será capaz de explicar a presença da ideia de um Deus infinito à parte da Sua existência necessária.

Em seguida, Descartes concluiu que, sendo perfeito, Deus não poderia enganar seres finitos. Além disso, as próprias capacidades que Descartes tinha para julgar o mundo em seu redor lhe foram dadas por Deus, e, portanto, não o enganam. O resultado é que tudo quanto ele pode deduzir mediante o pensamento claro e nítido (tal como aquele que se acha na matemática), a respeito do mundo e de outras pessoas deve, portanto, ser verdadeiro. Sendo assim, a existência necessária de Deus no somente torna possível o conhecimento, como também garante a verdade a respeito daqueles fatos que podem ser claramente delineados. A partir da realidade da dúvida Descartes passou para a sua própria existência, Deus e o mundo físico.

Spinoza também ensinava que o universo operava segundo princípios racionas que o uso apropriado da razão revelava essas verdades, e que Deus era a garantia definitiva do conhecimento. Rejeitava, no entanto, o dualismo cartesiano, e preferiu o monismo (que alguns chamam de panteísmo), em que existia uma só substância chamada Deus ou natureza. A adoração era expressada de modo racional, de acordo com a natureza da realidade. Dos muitos atributos da substância, o pensamento e a extensão eram os mais importantes.

Spinoza utilizava metodologia geométrica para deduzir verdades epistemológicas que podiam ser tidas como fatuais. Ao limitar boa parte do conhecimento a verdades auto evidentes, reveladas pela matemática, ele acabou construindo um dos melhores exemplos da sistematização racionalista da história da filosofia.

Leibniz expôs o seu conceito de realidade na sua obra importante Monadologia. Em contraste com o conceito materialista dos átomos, as mônadas são unidades metafísicas de força sem igual, que não são afetadas pelos critérios externos. Εmbora cada mônada se desenvolva individualmente, estão inter-relacionadas através de uma "harmonia preestabelecida" lógica, que envolve uma hierarquia de mônadas, disposta por Deus e que culmina nEle, que é a Mônada das mônadas.

Para Leibniz, vários argumentos revelavam a existência de Deus, estabelecido como o responsável pela organização das mônadas num universo racional, que era “o melhor de todos os mundos possíveis". Deus era também a base para o conhecimento, e esse fato explica a existência do relacionamento epistemológico entre o pensamento e a realidade. Leibniz, portanto, voltou para um conceito de um Deus transcendente muito mais próximo da posição sustentada por Descartes e em contraste com Spinoza, embora, nem ele nem Spinoza tenham começado com o eu subjetivo, como fez Descartes.

Dessa maneira, a epistemologia era caracterizada por um processo dedutivo de argumentação, sendo que atenção especial era dada à metodologia matemática, e pela fundamentação de todo o conhecimento na natureza de Deus. O sistema de geometria euclidiana desenvolvido por Spinoza reivindicava ter demonstrado que Deus ou a natureza era a única substância da realidade. Certos estudiosos de convicções cartesianas passaram a sustentar o ocasionalismo, segundo a qual os eventos mentais e físicos correspondem entre si (assim como o barulho de uma árvore que cai corresponde ao acontecimento propriamente dito), sendo que os dois são ordenados por Deus. Leibniz utilizou uma aplicação rigorosa de cálculo para derivar, por dedução, o conjunto infinito de mônadas que culminam em Deus.

Esta metodologia racionalista, e a ênfase dada à matemática em especial, foi uma influência importante sobre a ascensão da ciência moderna durante aquele período. Galileu sustentava algumas ideias essencialmente relacionadas, especialmente no seu conceito da natureza matematicamente organizada e percebida como tal através da razão.

3. A Crítica Bíblica

Das muitas áreas em que a influência do pensamento racionalista foi sentida, a alta crítica das Escrituras é certamente uma das mais relevantes para o estudo das tendências teológicas contemporâneas. Spinoza não somente rejeitava a inerrância e a natureza proposicional da revelação especial nas Escrituras, como também era um precursor de David Hume e de alguns deístas ingleses que rejeitavam os milagres. Spinoza sustentava que os milagres, caso sejam definidos como eventos que quebram as leis da natureza, não ocorrem.

Várias tendências no deísmo inglês refletem a influência do racionalismo da Europa continental e semelhanças com ele; o mesmo pode ser dito sobre a influência do empirismo britânico e as similaridades com ele. Além da aceitação do conhecimento inato disponível a todos os homens, e da dedução de proposições a partir desses conhecimentos gerais, os deístas como Matthew Tindal, Anthony Collins e Thomas Woolston procuravam rejeitar os milagres e as profecias cumpridas como evidências a favor da revelação especial. Na realidade, o deísmo como um todo era geralmente caracterizado como uma tentativa de encontrar uma religião natural à parte da revelação especial. Muitas dessas tendências tiveram efeitos marcantes na alta critica contemporânea.

Avaliação

Embora o racionalismo fosse bastante influente de muitas maneiras, também era fortemente criticado pelos estudiosos que notaram vários pontos fracos.

Em primeiro lugar, Locke, Hume e os empiristas nunca se cansavam de atacar o conceito das ideias inatas. Asseveravam que as crianças pequenas davam pouca indicação, ou até mesmo nenhuma, de alguma quantidade vital de conhecimentos Inatos, Pelo contrário, os empiristas não hesitavam em indicar a experiência dos sentidos como o principal mestre, mesmo na infância.

Em segundo lugar, os empiristas também asseveravam que a razão não poderia ser o único (e nem sequer o principal) meio de se conseguir o conhecimento considerando que uma quantidade tão grande dele é captada pelos sentidos. Embora seja verdade que boa parte do conhecimento não pode ser reduzida à experiência dos sentidos, esse fato não indica que seja o meio principal de se adquirir conhecimento.

Em terceiro lugar, tem sido frequentemente indicado que, isoladamente, a razão leva para um número por demais grande de contradições metafisicas e de outras espécies. Por exemplo, o dualismo de Descartes, o monismo de Spinoza e a monadologia de Leibniz, todos têm sido declarados absolutamente conhecíveis, em nome do racionalismo. Se uma ou mais destas opções forem incorretas, o que se deve dizer a respeito das demais?

Em quarto lugar, refutações da alta critica racionalista e deísta apareceram rapidamente, escritas por estudiosos capazes como John Locke, Thomas Sherlock Joseph Butler e William Paley. A revelação especial e os milagres foram especialmente defendidos contra os ataques. Analogy of Religion (Analogia da Religilo") de Butter em especial, era tão devastador que muitos têm concluido que a obra não é apenas uma das apologéticas mais poderosas a favor da té crista, mas também a razão principal do desfalecimento do deísmo.


Notas / Referências bibliográficas:

  • [1] Gary Robert Habermas “… é um estudioso e teólogo americano do Novo Testamento que frequentemente escreve e dá palestras sobre a ressurreição de Jesus. Ele se especializou em catalogar e comunicar tendências entre estudiosos no campo do Jesus histórico e dos estudos do Novo Testamento”. In: <Gary Habermas>. O artigo – Racionalismo – usado (e adaptado) aqui é uma contribuição de Habermas à Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. III. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 225 a 228.

  • [2] Sobre o empirismo: “… embora tudo isto tenha sucedido no continente europeu, na Grã-Bretanha a filosofia tomava um caminho muito distinto. Esse caminho era o do ‘empirismo’ (de uma palavra grega que significa “experiência”). Seu fundador foi o professor de Oxford, João Locke, que em 1690 publicou seu Ensaio sobre o entendimento humano. Locke havia lido as obras de Descartes e estava tão convencido como o filósofo francês de que a ordem do mundo corresponde a ordem do pensamento. Mas não cria que houvesse tal cousa como ideias inatas. Segundo ele, todo conhecimento procede da experiência. Essa experiência pode ser tanto a que nos dão os sentidos como a que nos dá nossa mente ao conhecer-se a si mesma (o que ele chama “sentido interno”). Mas na mente não existe ideia alguma antes que a experiência nos conduza a ela. Isto quer dizer ainda que o único conhecimento certo é o que se baseia na experiência. Não em qualquer experiência passada, mas unicamente na experiência atual.” (Veja aqui, pág., 8).

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