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30 outubro 2020

A era dos gigantes (VII): Atanásio de Alexandria

GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos gigantes – Vol. 2. São Paulo: Vida Nova, 1995, pág. 114 a 123.

Texto e imagens adaptados

por:

Alcides Barbosa de Amorim


Artigo completo em PDF:

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28 outubro 2020

A vida de Jesus Cristo


“Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo, acerca de tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a ensinar, Até ao dia em que foi recebido em cima, depois de ter dado mandamentos, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera; Aos quais também, depois de ter padecido, se apresentou vivo, com muitas e infalíveis provas, sendo visto por eles por espaço de quarenta dias, e falando das coisas concernentes ao reino de Deus. E, estando com eles, determinou-lhes que não se ausentassem de Jerusalém, mas que esperassem a promessa do Pai, que, disse ele, de mim ouvistes (...) Os quais lhes disseram: Homens galileus, por que estais olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir” (At 1.1-4,11).

Continuando nossa série de estudos sobre doutrinas bíblicas e, especificamente, acerca de Jesus, além do post “O Senhor Jesus Cristo, por Myer Pearlman”, escrevemos também sobre Jesus, o Verbo Divino. Neste, destacaremos como o Verbo, tradução do Logos trata-se de Jesus como a Palavra, que criou todas as coisas e, portanto, existe por si mesmo, antes da criação de todas as coisas. Mas este Ser criador foi encarnado e viveu como homem. É sobre esta sua trajetória nesta terra como homem, que era, ao mesmo tempo, o Messias Salvador, que pretendemos enfatizar neste artigo (post). Para isto, queremos usar como base o texto de J. N. GELDENHUYS, conforme referência bibliográfica abaixo.

1.  Historicidade

O fato histórico de Cristo está inexoravelmente estabelecido. As tentativas que têm sido feitas para provar o contrário, durante os últimos duzentos anos, têm falhado inteiramente. Não somente o Novo Testamento inteiro está baseado sobre o Cristo histórico, mas também a elevação e o progresso da Igreja Cristã, e, de fato, o curso da história do mundo durante os últimos dezenove séculos, seriam inexplicáveis à parte do fato histórico do Cristo que viveu, morreu e ressuscitou.

O fato que registros seculares existentes até hoje, pertencentes aos primeiros cem anos depois do ministério de Cristo, contém apenas algumas poucas referências a Ele, é algo perfeitamente natural. O cristianismo foi apenas um dos muitos cultos religiosos que se originaram no Oriente, no mundo romano dos dois primeiros séculos de nossa era, e pouco havia em Cristo que atraísse o interesse dos historiadores pagãos. Somente quando o Cristianismo entrou em conflito com o estado é que se tornou digno de ser mencionado naqueles dias recuados, e os primeiros escritores pagãos a fazerem menção do mesmo, em tal contexto todos mencionam significativamente o nome de Cristo como fundador do Cristianismo.

Excetuando uma passagem duvidosa, e, quando muito, pesadamente interpolada em Josefo, Jesus não é mencionado diretamente nos escritos judaicos não-cristãos referentes àquele período. O motivo disso certamente é a hostilidade e o ressentimento que Sua memória provocava nos líderes judeus de Seu tempo. Entretanto, existem referências indiretas a Ele, nos primeiros escritos rabínicos, que fazem menção razoavelmente reconhecível obre Ele, como um transgressor em Israel, que praticava magia, zombava das palavras dos sábios, fazia o povo desviar-se, e disse que viera para fazer adições à lei, além de ter alterado a Páscoa, e cujos discípulos efetuavam curas de doentes em Seu nome.

Nos primeiros séculos d.C., nem mesmo os mais amargos inimigos do cristianismo tinham qualquer pensamento de negar que Jesus vivera e morrera na Palestina, e que realizou realmente obras maravilhosas, qualquer que fosse a explicação que davam ao poder mediante o qual Ele realizava essas coisas. Nem, nos dias atuais, qualquer historiador objetivo nega o fato histórico de Cristo. Não são os historiadores que brincam com a fantasia do mito-de-Cristo. Não apenas a Sua morte, mas também a Sua ressurreição, devem ser levadas em consideração como os mais bem confirmados fatos históricos que existem.              

2.  Fontes

Quanto aos detalhes essenciais da vida de Cristo, temos que depender inteiramente do Novo Testamento. Conforme já foi dito, não se pode aproveitar muito do estudo da literatura pagã ou judaica das primeiras décadas d.C., e, quando nos volvemos para a literatura cristã extra bíblica, pertencente ao mesmo período, encontramos bem pouco que já não esteja registrado no Novo Testamento. A maioria dos evangelhos apócrifos é tão obviamente produto da imaginação que só nos podem prestar qualquer ajuda, por meio de contraste, para provar o caráter histórico dos Evangelhos canônicos; porém, não adiciona coisa alguma ao nosso conhecimento sobre a vida de nosso Senhor.

Os Evangelhos não são biografias o sentido comum da palavra. Cada um dos quatro evangelistas tinha um propósito específico com seu livro, tendo feito uma seleção apropriada dentre a informação à sua disposição com referência à vida de nosso Senhor. Embora existam muitas diferenças quanto à ênfase, no tocante a certos aspectos de Sua vida, todos os quatro Evangelhos proclamam um só e o mesmo Cristo, como Senhor e Salvador, o perfeito Filho do homem e o Filho unigênito de Deus.

Visto que os Evangelhos não são biografias no sentido ordinário do termo, mas antes, proclamações das boas novas concernentes a Jesus como Salvador e Senhor, não devemos buscar neles um arranjo estritamente cronológico. Por outro lado, o propósito religioso dos evangelistas não os conduziu à negligência do caráter histórico da vida de Jesus. Conforme é declarado tão claramente no prefácio de nosso terceiro Evangelho, os autores sagrados estavam perfeitamente cônscios da urgente necessidade de tornar conhecida a verdade acerca de Jesus Cristo. Para eles e para seus irmãos crentes, a fé em Cristo era questão de vida e morte. Dessa maneira, não podiam permitir que sua fé repousasse sobre fantasias, mitos, ou lendas. Uma fé como a daquelas gerações iniciais de crentes cristãos exigia absoluta lealdade a Cristo – até à morte, se necessário fosse. Tal fé só podia ser edificada em face de fatos certos. Além disso, os escritores dos Evangelhos estiveram num contato tão íntimo e vivo com muitos que haviam ouvido e visto a nosso Senhor, que tiveram oportunidade sem igual de verificar esses fatos. Acresce que os fatos históricos eram conhecidos em primeira mão por tantas pessoas que não podiam arriscar-se a apresentar relatos fictícios.

Embora Lucas tenha incorporado grandes seções de Marcos em seu Evangelho, e que João bem poderia ter conhecido os três primeiros Evangelhos, a verdade é que nossos quatro Evangelhos são essencialmente quatro fontes independentes de informação no tocante à vida de nosso Senhor. Cada um desses relatos frisa certos aspectos de Sua vida e ministério mais que os demais relatos, porém, é sempre essencialmente o mesmo Cristo que encontramos em todos os quatro. Isso é verdade tanto no tocante ao livro de João como aos três Evangelhos sinóticos. O Evangelho de João suplementa os outros e, em resultado de muitos anos de reflexão, e de discernimento mais amadurecido quanto ao significado filosófico e teológico mais profundo da história do Evangelho. João se ocupa mais em ensinar o ensinamento de nosso Senhor no tocante à Sua divina Filiação; porém, até mesmo João não proclama outro Cristo além do Cristo proclamado pelos três primeiros evangelistas.

Em suma, temos nos quatro Evangelhos canônicos, as melhores e mais dignas fontes de informação referente à vida de Jesus Cristo. Embora o restante do Novo Testamento não adicione muito aos detalhes históricos do Evangelho, é importante observar que o livro de Atos, as epístolas e o livro de Apocalipse, estão todos edificados sobre o fato que Jesus viveu, ensinou, sofreu e triunfou conforme os Evangelhos afirmam. Visto que algumas das Epístolas do Novo Testamento foram escritas tão cedo como 50 d.C. (ou talvez um pouco mais cedo ainda) – 1 e 2 Tessalonicenses e Gálatas, e, possivelmente, Tiago – somos assim levados a recuar até não mais de vinte anos depois da data da crucificação de Jesus. Levando em consideração o fato que um dos primeiros escritores neotestamentário, Paulo, foi um figadal perseguidor dos seguidores de Jesus, mas convertido tão cedo como 32 ou 33 d.C., e que a epístola de Tiago foi escrita pelo irmão de Jesus, percebemos quão íntimo era o contato entre o tempo da vida de nosso Senhor sobre a terra (c. de 6/4 a.C. – 30 d.C.) e aquela geração de crentes em cuja vida os primeiros documentos do Novo Testamento foram escritos. O sumário apresentado por Paulo sobre a pregação apostólica, em 1Co 15.1-8, se reveste de grande significação: “irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que ainda perseverais... Antes de tudo vos entreguei o que também recebi; que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; e que foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia... E apareceu a Cefas, e, depois, aos doze. Depois foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a maioria sobrevive até agora, porém alguns já dormem. Depois foi visto por Tiago, mais tarde por todos os apóstolos, e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como por um nascido fora do tempo”.

Nessa passagem Paulo não somente proclama essencialmente o mesmo evangelho que o fazem os quatro evangelistas, mas também revela quão íntima era a relação entre a Igreja Cristã Primitiva e os apóstolos e outras testemunhas oculares da vida de nosso Senhor. Dessa maneira, não é surpreendente descobrir que nossos quatro Evangelhos, apesar de toda sua ênfase diferente e da escola variada de detalhes, proclamam o mesmo Cristo que veio buscar e salvar aos perdidos, o Senhor divino a Quem todo poder foi dado, no céu e na terra (Mt 11.27; 28.18; Mc 1.1; 8.29; Lc 1.32,35; 2.11; 9.35; 10.22; Jo 1.1; 10.28 etc.).

Não admira, portanto, que após mais de um século de criticismo agudo e rude, o caráter digno de confiança de nossos quatro Evangelhos canônicos tenha ficado mais firmemente estabelecido que nunca. Uma teoria após outra, e sucessivas escolas de pensamento, que têm lançado dúvidas sobre a fidelidade dos Evangelhos, têm se despedaçado perante a irrefutável historicidade da vida de Jesus que os mesmos historiam. Embora os Evangelhos façam silêncio no tocante a muitos detalhes que naturalmente gostaríamos de saber, os quatro Evangelhos, confirmando-se e suplementando-se entre si, nos fornecem todos os fatos referentes a Jesus Cristo que precisamos saber a fim de que possamos confiar nEle como “Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.31).

3.  Sem paralelo

A vida de nosso Senhor não encontra iguais em muitos particulares; um aspecto desse caráter singular é seu cumprimento de profecias específicas feitas centenas de anos antes de Seu nascimento. O próprio Jesus, por exemplo, repetidamente ensinou aos Seus discípulos que Ele, conforme a “tudo quanto está escrito por intermédio dos profetas” haveria de sofrer, morrer e ressuscitar dentre os mortos (cf. Lc 18.31-34). Depois de haver ressuscitado, igualmente, Ele declarou claramente que, em Sua vida, morte e ressurreição, as Escrituras haviam sido cumpridas (Lc 24.25-27,44-48).

Nos discursos de Pedro, de Estevão e de Paulo, registrados no livro de Atos, em praticamente todos os livros do Novo Testamento, a vida, os sofrimentos e a exaltação de Jesus são repetidamente proclamados como o cumprimento das promessas de Deus no Antigo Testamento. Nada existe na história do mundo que se possa comparar com o fato que centenas de anos antes do nascimento de Jesus, muitas coisas a respeito dEle – até mesmo o lugar de Seu nascimento (Mq 5.2) – haviam sido preditos e registrados nas Escrituras do Antigo Testamento. E, em muitos outros aspectos – desde Sua concepção sobrenatural até Sua ascensão ao céu – essa vida é sem paralelo. Somente em Sua vida vemos Deus tornando-se carne. Enquanto que as vidas de todos os outros fundadores de religiões revelam-nos homens que buscaram a verdade e se esforçaram por obter introspecção religiosa, a vida de Jesus Cristo é a única que revela o Deus de amor e justiça, que busca salvar a humanidade caída.

Todas as reivindicações feitas por Jesus referentes à Sua eterna e divina Filiação são confirmadas por Sua vida, morte, ressurreição e ascensão triunfal. Ele não tem igual entre os homens.

4.  Épocas principais

Embora não possamos refazer uma biografia detalhada ou estritamente cronológica de Jesus Cristo, os Evangelhos nos fornecem material suficiente que nos capacita a apontar as épocas mais importantes de Sua vida.

a)  Seu nascimento sobrenatural

Os autores dos Evangelhos tiveram amplas oportunidades para descobrir a verdade a respeito do nascimento de Jesus. À parte do fato que Maria, mãe de Jesus, foi deixada ao encargo do discípulo amado (cf. Jo 19.26,27), devemo-nos relembrar que Tiago, o irmão de Jesus, foi durante muitos anos um dos líderes da Igreja Cristã de Jerusalém. Depois da ressurreição e ascensão de Jesus, Maria e seus filhos ficaram livres de toda dúvida referente à Sua soberania, e passaram a viver em íntima comunhão com seus irmãos na fé, na igreja de Jerusalém (cf. At 1.14). Quando o Evangelista Lucas acompanhou Paulo a Jerusalém, em 56 ou 57 d.C., uma das pessoas a quem visitou foi Tiago, irmão do Senhor (At 21.17,18). Naquele tempo, a julgar pelo prefácio de seu Evangelho, Lucas já estava intensamente interessado nos fatos referentes à vida de Jesus. Se Lucas se encontrou pessoalmente com Maria, não o sabemos; porém, é certo que ele teve acesso a informações referentes ao nascimento de nosso Senhor, que afinal de contas, só poderiam ter sido prestadas pela própria Maria. É basicamente do ponto de vista dela que Lucas relata a história da concepção sobrenatural e do nascimento de Jesus (Lc 1.26-56; 2.1-51). Mateus, por outro lado, conta a mesma história, mas mais do ponto de vista de José. Porém, ambos os Evangelhos concordam que Jesus não era o filho de um pai humano, mas foi concebido pelo poder do Espírito Santo e nasceu como o Filho unigênito de Deus (cf. Lc 1.35; Mt 1.18-24). Em perfeita conformidade com esse fato, João dá início ao seu Evangelho com as palavras: “No princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus... E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.1-14).   

b)  Infância, meninice e crescimento até à maturidade

Por Lc 2.40,52 torna-se claro que a vida de Jesus, desde a meninice até a idade adulta ainda jovem foi normal, mas também perfeita. Em Sua vida, o ideal de Deus para uma vida humana perfeita foi cumprido em cada estágio. Embora vivesse num lar humilde com Maria, José, e diversos irmãos e irmãs mais novos, Sua vida em todas as ocasiões estava em completa concordância com a vontade de Deus (Lc 2.52), e desde tenra idade (Lc 2.49) parece que Ele tinha consciência que era o Filho de Deus num sentido todo especial. Por Lc 2.46,47 depreende-se que desde Sua meninice Ele estudara intensamente as Escrituras do Antigo Testamento; e embora José provavelmente tenha falecido cedo e que Jesus tenha sentido necessidade de trabalhar arduamente como carpinteiro, a fim de prover o necessário para Maria e seus irmãos mais novos (Mt 13.55,56), é claro eu Ele dedicava muito tempo à meditação sobre as Escrituras e à oração.

À parte os poucos detalhes dados em relação à meninice de Jesus, e às inferências que podem ser tiradas dos Evangelhos a respeito de Sua vida, que exibem-no a crescer física, mental e espiritualmente até à plena maturidade, o Novo Testamento passa em silêncio aqueles anos de preparação.

c)  Batismo e tentação

Quando Jesus (provavelmente em 27 d.C.) havia atingido o apogeu da vida (cerca de 30 anos de idade, Lc 3.23), partiu da Nazaré e foi batizado por João Batista. Fazendo isso aceitava publicamente Sua tarefa messiânica na qualidade de Filho de Deus e Salvador que, apesar de implacável em Si mesmo, deixou-se revestir pela culpa de Seu povo.

Deus Pai demonstrou Sua aprovação à ação do Seu Filho, ao identificar-se deliberadamente com Seu povo pecaminoso, mediante a descida do Espírito “como pomba, vindo sobre ele” e pela voz do céu, que dizia: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3.17). Essas palavras, que combinam Sl 2.7 com Is 32.1, reconhecem-No como o Messias, mas também indicam que Ele haveria de cumprir Sua chamada messiânica em termos do servo obediente e sofredor do Senhor.

Com essa certeza em Seu coração, Jesus foi impelido pelo Espírito para o deserto da Judeia, onde seria tentado pelo diabo (Mt 4.1). A fim de vindicar a Sua competência para ser o Salvador dos homens, Ele tinha primeiramente de provar Sua total e incondicional obediência ao Seu Pai celeste, bem como Seu poder de vencer o grande enganador. A narrativa da tentação é evidentemente situada em contraste com a história da queda, em Gn 3; dessa maneira, enquanto que Adão e Eva sucumbiram à tentação, a despeito de estarem vivendo nas condições mais favoráveis possíveis, Jesus saiu-se vencedor, ainda que tentado sob as mais difíceis circunstâncias. Depois de quarenta dias de tensão física e espiritual e de privação no deserto, foi assaltado por toda a astúcia concentrada e o poder do tentador, para que pusesse Seu Pai sob teste ou para que rejeitasse a vereda que a voz celestial havia assinalado como a vontade de Seu Pai para com Ele. Jesus, entretanto, resistiu às mais sutis tentações e permaneceu inflexivelmente obediente à vontade de Seu Pai. E assim saiu-se desse conflito espiritual como o leal Filho de Deus e como o Servo Fiel (Mt 4.1-11); Mc 1.12,13; Lc 4.1-13).

d)  Início de Seu ministério público

Tendo triunfado sobre os titânicos assaltos do diabo, Jesus deu início, ativamente, ao primeiro estágio de Seu ministério público, chamando os Seus primeiros discípulos (Jo 2.1-11), realizando milagres (Jo 2.23 e segs.), ensinando a Nicodemos verdades espirituais revolucionárias, e a salvação até mesmo aos desprezados samaritanos (Jo 4.1-42). Esse estágio de Seu ministério fora preparado por João Batista, e atingiu seu clímax quando alguns dos samaritanos confessaram, dizendo “... nós... sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo 4.42).

e)  Ensino e ministério concentrado na Galileia

O aprisionamento de João Batista foi o sinal para Jesus dar início ao Seu ministério na Galileia, com a proclamação que o tempo determinado chegara, e que o reino de Deus estava próximo (Mc 1.24 e segs.). Quando Sua reivindicação, na sinagoga de Nazaré, de que Ele era Aquele mediante Quem as promessas messiânicas seriam cumpridas, foi rejeitada pela Sua própria cidade adotiva (Lc 4.16 e seg.) Ele fez de Cafarnaum Seu novo quartel. Provavelmente durante mais de um ano Ele então trabalhou e ensinou em Cafarnaum e noutras localidades da Galileia (Mt 4.12-14.13; Mc 1.14-6.34; Lc 4.14-9.11; Jo 4.46-54 etc.), revelando Seu poder divino sobre a natureza (Mc 4.35-41; 6.34-51 etc.), sobre o mundo dos espíritos e demônios (Lc 8.26-39; 9.37-45 etc.), sobre o corpo humano e sobre as enfermidades físicas e espirituais (Mt 8.1-17; 9.1-8 etc.), e até mesmo sobre a vida e a morte (Lc 7.11-17; Mt 8.18-26). Além disso, Ele afirmou possuir autoridade final sobre o destino eterno da humanidade, e, no Sermão da Montanha e noutro ensinos, revelou Sua autoridade sem par de proclamar as leis do reino de Deus (Mt 5.1-7.29 etc.).

Enquanto ao mesmo tempo revela Sua autoridade suprema na qualidade do prometido Cristo, Jesus, durante esse período, também revelou Seu amor e simpatia por amor àqueles que se achavam em apertos físicos e espirituais (Mt 9.1-8,18-22; Lc 8.43-48 etc.). Ele declarou repetidas vezes que viera a fim de buscar e salvar aqueles que estão perdidos, e exerceu a prerrogativa divina de perdoar pecados (Lc 5.20-26; 7.48-50).

Dentre Seu grupo bem maior de seguidores, Ele escolheu doze discípulos especiais (Mt 10.1-4; Lc 6.12-16), aos quais ensinava sistematicamente, treinando-os para serem Seus apóstolos ou enviados.

A autoridade com a qual Ele ensinava aos Seus ouvintes, e Sua recusa de deixar-se intimidar pelos inimigos, entre os governantes judeus e os fariseus, em adição aos Seus muitos milagres de cura e outras manifestações de Seu poder sobre a ordem criada (Lc 4.33-41); Mc 5.1-42 etc.), eram motivos para Jesus tornar-se intensamente popular entre as populações da Galileia (Lc 4.40-42; 5.15,26; 6.17-19). Essa popularidade atingiu seu clímax no milagre da multiplicação dos pães para os 5.000 homens (Mt 14.13-21; Mc 6.30-44; Lc 9.10-17; Jo 6.5-13), e essa prova clara de Seu caráter messiânico fez as massas resolverem coroá-Lo rei (Jo 6.145).

f)   O treinamento dos doze

Depois da recusa de Jesus de ser coroado como um messias terreno (Jo 6.26,27) as multidões e até mesmo muitos dentre Seus discípulos do círculo mais lato, abandonaram-No (Jo 6.66,67). Ele então se retirou para o território pertencente a Tiro, Sidom e Cesareia de Filipe (Mt 15.21; 16.13; Mc 7.31 etc.), porém, em realidade nunca pode escapar da atenção pública. Quando novamente voltou ara as proximidades do mar da Galileia, uma vez mais curou e ajudou a muitos indivíduos em dificuldade, e pela segunda vez alimentou miraculosamente as multidões, visto que tinha compaixão das mesmas (Mt 15.29-39). A seguir, retirando-se novamente dentre as multidões, buscou a solidão em companhia de Seus discípulos, fazendo-lhes a pergunta crucial: “... E vós quem dizeis que eu sou?” (Mt 16.15) Depois que Pedro, falando como porta-voz de todos os apóstolos, havia confessado abertamente “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, Jesus, com grande determinação, começou a preparar os Seus discípulos para o terrível choque que os aguardava em Jerusalém (Mt 6.21-26). Porém, ao mesmo tempo, Ele clara e repetidamente lhes ensinava que alcançaria finalmente a vitória (Mt 16.27,28), e que Seus seguidores, por isso mesmo, não precisavam temer coisa alguma (Lc 12.4-12,32-34).

Sua autorevelação aos Seus discípulos culminou em Sua transfiguração, no monte, quando Seus três mais íntimos seguidores viram-No em Sua divina glória (Mt 17.1-13; Mc 9.2-10; Lc 9.28-36). Visto que Ele veio cumprir tanto a Lei como os Profetas, Moisés (tipificando a lei) e Elias (representante dos profetas) apareceram juntamente com Ele, gloriosamente, antes que finalmente desse início à Sua viagem para Jerusalém, a fim de sofrer a morte visando a salvação dos homens. Uma vez mais a voz de Deus, vinda do céu, declarou que Jesus era o Seu Filho amado, ao qual todos deveriam dar ouvidos (Lc 9.35).           

g)  Antagonismo crescente

Tendo-se revelado aos Seus discípulos, e sendo reconhecido por eles como verdadeiramente o Filho de Deus (Mt 17.1-13; Mc 9.2-10; Lc 9.18-20), Jesus preparou-os em seguida, mais deliberadamente ainda, para a futura tarefa que teriam como membros fundadores de Sua Igreja. Ele lhes ensinou muitas verdades, tanto diretamente como também em forma de parábolas, e continuou a revelar Seu divino poder e autoridade mediante a cura de enfermos (Lc 14.1-6; 17.11-19), restauração da vida aos cegos (Mc 10.46-52), e alívio das mazelas alheias.

A oposição contra Ele, entre os governantes judeus e os líderes religiosos, foi crescendo cada vez mais (Lc 14.1). Todo método e esquema possível foi tentado para apanhá-Lo em alguma armadilha, para interromper Sua contínua influência sobre as massas, e para encontrar um motivo para entregá-Lo às autoridades romanas a fim de que fosse executado (Mt 19.1-3; Lc 11.53,54). Todas as Suas advertências, dirigidas contra os Seus inimigos, e todo o Seu penetrante ensinamento que visava levá-los à mudança de coração, todas as Suas obras de benevolência, curando os enfermos e até mesmo ressuscitando mortos para que voltassem à vida (Jo 11.41-45), tão somente inflamavam mais ainda os fariseus, os escribas, e outros líderes dos judeus, com um ódio ainda mais intenso contra Ele (Jo 11.46-53).

h)  A última semana em Jerusalém

Tendo entrado abertamente em Jerusalém, na qualidade de Messias, em meio à multidão aclamadora (Mc 11.1-10; Jo 12.12-19 etc.), Jesus expulsou os cambistas e traficantes com animais para os sacrifícios, tirando-o a todos do átrio externo do Templo, e assim revelou Sua reivindicação de possuir autoridade messiânica (Lc 19.45,46; Mt 21.12-16). O fim estava agora bem próximo. Jesus, incansavelmente, expunha a hipocrisia dos Seus perseguidores (Mt 23.1-39; Lc 20.45-47), ao ensinar ao átrio do Templo, durante aqueles dias importantíssimos (Mt 21.33-34; 22.1-14; Mc 12.1-12; Lc 20.9-47), e profetizou o que aconteceu ao povo da Judeia, a Jerusalém e ao Templo (Lc 21.20-24 etc.), nos tempos iminentes de desgraça. Advertiu Seus seguidores a respeito dos perigos que os aguardavam (Lc 21.9-19 etc.), predizendo o que esperava o mundo e a Igreja no futuro (Lc 21.25-27), predizendo que a história do mundo culminaria em Seu retorno, em grande majestade, para revelar Seu divino poder sobre todas as forças das trevas e para dar início ao Seu reino eterno (Mt 24.29-31; 25.31-46).

Na véspera de Sua paixão como uma preparação final para os apóstolos para a grande tarefa que os esperava, Jesus lavou os pés dos mesmos (Jo 13.1-11), ensinando-lhes uma lição urgentemente necessária sobre a humildade de uns para com os outros (Jo 13.12-17; Lc 22.24-30), anunciando que Judas haveria de traí-Lo (Mc 14.18-21; Jo 13.21-30), instituindo a Ceia do Senhor (Mt 26.26-29 etc.), e orando em prol de todos os Seus seguidores (Jo 17.1-26).

Então seguiu-se Sua final e completa auto rendição à vontade de Seu Pai no jardim do Getsêmani (Mt 26.39-46 etc.). Tendo tomado sobre Si mesmo a culpa de toda a humanidade caída permitiu-se voluntariamente ser aprisionado, maltratado, falsamente condenado e crucificado. Seu sofrimento sacrificial e expiatório atingiu seu clímax por ocasião da crucificação, quando, no fim de três horas de trevas, Ele clamou em alta voz: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46). Ele dissera aos Seus discípulos que não veio a fim de julgar ao mundo, mas antes, para dar Sua vida em resgaste a favor e muitos (Mt 26.28 etc.). Tendo-se oferecido voluntariamente como o Cordeiro e Deus (Jo 1.29; 10.11-18), sua tarefa havia agora terminado. Antes de recomendar Seu espírito às mãos do Seu Pai, anunciou triunfalmente: “Está consumado” (Jo 19.30).

i)   Sepultamento, ressurreição e ascensão 

Depois de Sua morte, não estava mais no poder de Seus inimigos. Seu corpo foi arriado da cruz (Lc 23.50-53) e foi sepultado num túmulo novo, que havia em um jardim nas proximidades do local da crucificação. Sua promessa de ressurgir dentre os mortos logo se cumpriu e, na qualidade de Cristo ressurreto e Senhor eternamente vivo, pessoalmente fez desaparecer os temores e as dúvidas de Seus seguidores (Lc 24.13-49; Jo 20.11-21.22). Durante quarenta dias apareceu-lhes repetidamente abrindo suas mentes para que pudessem entender as Escrituras do Antigo Testamento, e prometendo-lhes enviar o Espírito Santo, o qual haveria de consolá-los, guia-los e dotá-los para agirem como Suas testemunhas – a começar por Jerusalém, e paulatinamente atingindo o mundo inteiro (At 1.8). Tendo-lhes assegurado, uma vez mais, que todo o poder Lhe havia sido conferido, tanto no céu como na terra (Mt 28.18), Cristo os comissionou para que fizessem discípulos dentre todas as nações (Mt 28.19). Depois que prometeu estar com eles para sempre, até o próprio fim do mundo (Mt 28.20), Ele subiu ao céu – com as mãos levantadas, a abençoá-los (Lc 4.50).

Portanto, a vida de Jesus Cristo como Homem entre os homens, sobre este planeta, terminou triunfalmente. A reivindicação apostólica nos provê uma apropriada conclusão para Seu ministério terreno “... a este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (At 2.36).

Referência Bibliográfica:

GELDENHUYS, J. N. Vida de Jesus Cristo. In: DOUGLAS, J. D. (Editor Organizador). O Novo Dicionário da Bíblia, Vol. II. São Paulo: Vida Nova, 1979, pp. 819 a 824. Texto adaptado.

26 outubro 2020

O Senhor Jesus Cristo, por Myer Pearlman

PEARLMAN, Myer. Conhecendo as doutrinas da Bíblia. São Paulo: Vida, 1978 (7ª ed.), pp. 96 a 120.


 

Adaptado ao Novo Acordo Ortográfico 

Por

Alcides Barbosa  de Amorim


Para ter acesse ao texto completo, clique em:

O Senhor Jesus cristo, por Myer Pearlman

24 outubro 2020

Jesus, o Verbo Divino

No nosso capítulo (post) sobre a doutrina de Deus, vimos que Myer Pearlmann destaca várias referências bíblicas que enfatizam a divindade de Jesus Cristo. A linguagem dos escritores do Novo Testamento era de que Ele está “… sobre todas as coisas, Deus bendito para sempre” (Rm 9.5). Estas crença e experiência espiritual dos cristãos apoiavam estas afirmações. Ao conhecer a Jesus, conheciam-no como Deus. É neste sentido, que queremos estudar neste post, embora de forma limitada, o significado do Logos ou Verbo, tendo como referência o prólogo do Evangelho de João. Informações complementares, mas tão importantes quanto o texto principal, escrevi-as em NOTAS, as quais ajudarão um pouco mais a compreensão do assunto.

1.  O Verbo (Logos): prólogo[1] do Evangelho de João

Logos para João é uma pessoa, que comunica a realidade de Deus aos homens pela Sua encarnação e sacrifício na cruz... Servia o termo de ponte entre o mundo grego e judaico. Sendo Deus, o Logos é a perfeita expressão Deus. A revelação no A.T. era perfeita, mas incompleta. Em o N.T. é perfeita e completa ... A falta do artigo no original não quer dizer ‘um deus’ mas que o Verbo [tradução de Logos] tinha a natureza divina. ‘O Filho está destacado na Trindade, mas a Trindade toda não é o Verbo’”.[2]

“... ]    

O prólogo do Evangelho de João não é mero prefácio ou introdução, mas uma declaração do tema central e básico no ensino do Filho de Deus, a saber, a encarnação do Verbo. O evangelista pinta o pano de fundo necessário para a revelação do evento redentor, isto é, o Verbo feito carne. O prólogo é poético na sua forma e estrutura, e constitui um hino à Palavra de Deus. Vejamos o texto:

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João. Este veio para testemunho, para que testificasse da luz, para que todos cressem por ele. Não era ele a luz, mas para que testificasse da luz. Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo. Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que creem no seu nome; Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (João1.1-14).

Nos primeiros versículos (1 e 2) encontramos um eco claro das primeiras palavras do Velho Testamento e também uma indicação do conceito joanino do Logos – palavra grega traduzida como Verbo em nossas versões em Português – Em Gên. 1.1 encontra-se o ato criativo de Deus (berê’shiyth bârâ’ ‘elohiym ‘êth hashâmayim ve’êth hâ’ârets = No princípio criou Deus os céus e a terra[3]), porém João 1.1 (Εν αρχη ητο ο Λογος, και ο Λογος ητο παρα τω Θεω, και Θεος ητο ο Λογος[4] = No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus) revela O Verbo que existe antes da criação. O pensamento do escritor é impregnado do Velho Testamento e não devemos imaginar que o evangelista esteja tomando emprestado um termo ou conceito da filosofia grega daquela época, Ele expõe uma ideia que remonta ao ensino rabínico, concernente à Palavra de Deus. O Logos é o Ser cuja existência transcende o tempo. Sua pré-existência eterna é implícita. A preposição com (em “com Deus”, v. 1) implica relação e distinção. Usada com o acusativo significa não somente coexistência, mas intercomunicação direta. Plummer sugere “face a face com Deus”. Da expressão “O Verbo era Deus” (v. 1), não se deduz que o Verbo era Deus, no sentido exclusivo que o identifica com a totalidade da existência e atributos divinos; entretanto, significa mais do que divindade. Há uma implicação definida na reivindicação de Ele ser Deus. O substantivo theos é colocado em primeiro lugar sem o artigo, dando-lhe mais força. O logos é então identificado com Deus no sentido de que Ele é coparticipante (veja NOTA 10) da essência e natureza divinas e, em virtude de tal relação, pode ser considerado como Deus. No vers. 2, João reúne todas as três cláusulas da primeira sentença. O verbo era se usa no sentido absoluto de “existir” e não no sentido de “tornar-se”. Sua existência transcende o tempo, não sendo ele criado.

Nos primeiros versículos 3 a 5, salienta-se o fato de o Verbo “tornar-se” algo, o que corresponde ao processo criativo. O verbo é o instrumento da criação, “pois todas as coisas foram feitas por ele” (v. 3); literalmente pode-se dizer que “todas as coisas foram criadas por intermédio dele”. A origem última é o Pai, e nenhum agente intermediário teve parte no trabalho da criação, apesar da crença sustentada pelos gnósticos. “E sem ele nada do que foi feito se fez. A vida estava nEle, e a vida era a luz dos homens (vs. 3,4). É excluída a possibilidade de qualquer processo criativo à parte dele. Salienta-se o pensamento de que todas as coisas criadas são sustentadas por Ele e se coadunam através do princípio de vida emanada dEle. “A fonte de vida é necessariamente a fonte de luz” (Cambridge Bible).

O pensamento do evangelista em “A luz nas trevas” (v. 5) agora abrange a esfera espiritual. O homem recebeu iluminação espiritual. Tal revestimento emana da vida que tem seu fundamento na Palavra de Deus. A conexão entre vida e luz é apontada pelo salmista (“Porque em ti está o manancial da vida; na tua luz veremos a luz”, Sl 36.9. Ver também: “E esta é a mensagem que dele ouvimos, e vos anunciamos: que Deus é luz, e não há nele trevas nenhumas” (1Jo 1.5). A luz brilha no mundo, e ela está em conflito com as espessas trevas originadas na desobediência e ignorância do homem. Não se pode apagar o testemunho à verdade divina. A luz é inextinguível e inconquistável, “as trevas não prevaleceram contra ela”.

Nos versículos 6 a 13, pode se destacar o Verbo em relação com a História humana. Sua vinda foi proclamada por João, o Batista, “que veio para que testificasse da luz” (v. 8). “João [Batista] era a lâmpada que ardia e iluminava” (Jo 5.35), porém ele é somente um reflexo da verdadeira luz, não derivada, que veio ao mundo (v. 9). O testemunho de João Batista é parte integral do texto. Por outro lado, o evangelista insiste na subordinação de João Batista ao Verbo, que há de ocupar o primeiro lugar.

A luz criadora estava presente no mundo antes da encarnação. Ela se tinha revelado imanentemente ao mundo que fora criado por ela, entretanto o mundo não a conhecia (v. 10). Mais, ainda, Jesus, a Luz, revelou-se historicamente ao seu próprio povo, Israel, que não O recebeu (v. 11). Aqui notamos a manifestação progressiva do Verbo. “Ele estava com Deus” (v. 2)... “estava no mundo” (v. 10)... “Ele veio para o que era seu” (v. 11). Seu próprio povo recusou acolhê-Lo. A tragédia desta oposição torna-se evidente. Contudo, todos quantos o receberam entraram em uma nova relação com Deus tornando-se “filhos de Deus” (v. 12), através do renascimento espiritual. Esta nova condição, que resulta da regeneração, não se explica como fenômeno psíquico, nem como experiência espírita. Esta experiência não é devido a um processo natural, envolvendo a vontade da carne, nem a vontade do homem (v. 13). Não é alcançada por nenhuma faculdade inerente do homem, mas por meio de um novo nascimento, provindo de Deus.

No vers. 14-18, João fala do Verbo encarnado. Há uma relação notável entre a declaração fundamental do vers. 1 e a do vers. 14. O Verbo que estava no princípio com Deus tornou-se homem; o Verbo que estava com Deus tabernaculou com os homens. Aquele que era Deus estava cheio de Graça e de Verdade, mas agora este Verbo eterno é identificado com o Cristo da História. “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (v. 14). Note-se que ao mencionar “carne” exclui-se qualquer espécie de Docetismo[5] e outras noções semelhantes dos tempos modernos. Nosso Senhor assumiu um corpo humano real; ele tabernaculou entre os homens. A essência de Deus se manifesta naquele que é Graça e Verdade encarnadas. A majestade e o poder de Deus se encobriram na carne.

E vimos a sua glória” (v. 14). João, o Evangelista, está falando como testemunha ocular da glória de Deus. O conceito deve ser tomado subjetivamente. “Este conceito é moral e espiritualmente grandioso” (Plummer). Esta “glória” se define como a “glória do Unigênito do Pai” (v. 14), exclusividade de sua filiação com o Pai e, conforme a palavra “como” (v. 14) sugere, a filiação de Jesus é diferente de qualquer outra espécie de filiação.

Como vimos, Gênesis 1.1 inicia-se com a criação do mundo (céus e a terra), enquanto em João 1.1, vimos que o Logos (Verbo) existe antes da criação mencionada em Gênesis e foi Ele também o criador do mundo. O Verbo “estava com Deus”, “o Verbo era Deus”, “todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (cf. vs. 1 a 3). A expressão Logos, na Septuaginta[6], tem sido usada para traduzir a palavra hebraica Dabhar (Palavra = Palavra de Deus). Mas outros sentidos também estão envolvidos no Logos, como “afirmação”, “declaração”, “discurso”, “assunto”, “doutrina”, “questão”, “razão”, “causa”, “motivo” etc.

Como afirma Pearlman[7], a palavra do homem é aquela por meio da qual ele se expressa e se comunica com os seus semelhantes. Por sua palavra ele dá a conhecer seus pensamentos e sentimentos, e por sua palavra ele manda e executa a sua vontade. A palavra com que se expressa está impregnada de seu pensamento e de seu caráter. Pela expressão verbal de um homem até um cego pode conhecê-lo perfeitamente. Embora se veja uma pessoa e dela se tenha informações, não se conhecerá o suficiente enquanto ela não falar. A palavra do homem é a expressão de seu caráter. Da mesma maneira, a "Palavra de Deus" é o veiculo mediante o qual Deus se comunica com outros seres, e é o meio pelo qual Deus expressa o seu poder, a sua inteligência e a sua vontade. Cristo é a Palavra ou Verbo, porque por meio dele, Deus revelou sua atividade, sua vontade e propósito, e por meio dele tem contato com o mundo. Nós nos expressamos por meio de palavras; o eterno Deus se expressa a si mesmo por meio do seu Filho, o qual "é a expressa imagem da sua pessoa" (Hb 1.3). Cristo é a Palavra de Deus, demonstrando-o em pessoa. Ele não somente traz a mensagem de Deus — ele é a mensagem de Deus.

O homem anelava por uma resposta mais clara à seguinte pergunta: como é Deus? Para responder a esta pergunta, surgiu o evento mais significativo da história — "E o Verbo se fez carne" (Jo 1.14). O Verbo eterno de Deus tomou sobre si mesmo a natureza humana e se tornou homem, a fim de revelar o eterno Deus por meio de uma personalidade humana. "Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho" (Hb 1.1,2). De modo que à pergunta "como é Deus?", o cristão responde: Deus é como Cristo, porque Cristo é o Verbo — a ideia que Deus tem de si mesmo. Isto é, ele é "a expressa imagem da sua pessoa" (Hb 1.3), "a imagem do Deus invisível" (Cl 1.5).

2.  A cristologia do Logos (Verbo)

“Uma palavra é um meio pelo qual os pensamentos são expressos, e a aplicação dessa palavra [Logos] ao Filho eterno nos leva a crer que a auto expressão é inerente à Divindade, que Deus está sempre procurando falar com a sua criação...”[8] 

Continuando, quero destacar o que J. N. BIRDSALL[9] fala sobre como foi conceituada a cristologia do Logos. A Palavra de Deus é a autorevelação do Logos. Ela possui um poder semelhante ao de Deus, o qual a profere (cf. Is 55.11, “Assim será a minha palavra, que sair da minha boca; ela não voltará para mim vazia, antes fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a enviei”) e efetua Sua vontade sem qualquer resistência. Por conseguinte o termo pode referir-se à palavra criadora de Deus. Na literatura de Sabedoria e poder criador de Deus é referido como a Sua sabedoria, e, em certo número de passagens é referida como uma hipóstase[10] distinta de Deus (p. ex. Pv 8.22-30).

Influenciado tanto pelo Antigo Testamento como pelo pensamento helênico, Filo[11] fez uso frequente do termo Logos, ao qual deu um significado altamente desenvolvido e um lugar central em seu esquema teológico. Ele deriva o termo de fontes estoicas e de conformidade com sua descoberta do pensamento grego nas escrituras hebraicas, fez uso do mesmo sobre a base de passagens tais como Salmo 33.6 (“Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo espírito da sua boca”), para expressar os meios mediante os quais o Deus transcendental podia ser o Criador do universo e o revelador de Si mesmo a Moisés e aos patriarcas. Pelo lado grego, Filo equiparou o Logos com conceito platônico do Mundo de Ideias, pelo que se torna tanto o plano de Deus como o poder de Deus na criação. Pelo lado da exegese bíblica, Filo identificou o Logos com o Anjo do Senhor e com o Nome de Deus, o qual é descrito através de uma variedade de termos, como Sumo-Sacerdote, Capitão e Guia, Advogado (Paracletos) e Filho de Deus. O Logos é chamado então de um segundo Deus, e, por outro lado, é descrito como o Homem Ideal, o Padrão da criação terrena do homem por parte de Deus. A despeito de toda essa terminologia de personificação, entretanto, o termo permanece – inevitavelmente, em vista do inquebrantável Judaísmo de Filo (pelo menos quanto à intenção) – como um termo e instrumento filosófico e teológico.

Um outro possível fator determinante do uso do Logos, nas passagens que precisamos examinar, é o emprego desse termo para significar a mensagem evangélica[12]. O termo é usado de modo absoluto (exemplo, pregar a Palavra) e com certo número de genitivos (a Palavra de Deus, de Cristo, da cruz, da reconciliação, da vida etc.). Esses genitivos mostram que a história evangélica é encarnada no Novo Testamento essencialmente como uma apresentação do próprio Jesus; Ele é a Palavra que é pregada. Mas isso de forma alguma é sempre implícito na frase.

Birdsall destaca os três lugares na Bíblia, onde o uso do Logos aparece em sentido técnico: João 1.1 e 14, 1João 1.1-3 e Apocalipse 19.13 (todas as passagens do mesmo autor: João). Só queremos destacar, ainda, sobre João 1.1, o que Filo fala a respeito. Para ele, neste texto, há um esquema claramente teológico em que a Palavra possui uma unidade semelhante com Deus e uma semelhante distinção entre si mesma e Deus, e na qual tanto a atividade criativa como a atividade sustentadora do universo e a atividade revelatória para com o homem se atribuem ao Logos. Além disso, o conceito necessariamente sem paralelo da encarnação é, não obstante, um desenvolvimento apropriado da identificação do Logos com o Homem Ideal.

O certo é que, como afirma B. Hägglund[13], a cristologia do Logos visa responder a questão mais difícil da fé cristã na linguagem da época. Os apologistas [defensores da fé, principalmente do segundo século] escolheram um conceito da filosofia contemporânea e usaram para descrever o que para a mentalidade grega era absurdo – que Cristo é Deus, mas que, com isso, a unidade da Divindade não é negada. Se Cristo é apresentado como Logos, a razão divina, é natural considerar sua obra principalmente em termos pedagógicos. Ele nos transmite o verdadeiro conhecimento de Deus e nos instrui na nova lei, que nos guia ao caminho da vida. Considera-se do ponto de vista do desenvolvimento histórico do dogma, que a principal contribuição dos apologistas foi sua tentativa de correlacionar o cristianismo com a erudição grega, tentativa que encontrou sua expressão mais marcante na doutrina do Logos e sua aplicação à cristologia.

Bem, ao contrário de Mateus e Lucas que se ocupam da linhagem humana de Jesus, o evangelista e apóstolo João começa seu Evangelho falando do Verbo (Logos), o Cristo Deus e Criador, que É (existe) antes de qualquer criatura e mesmo porque sem Ele “nada do que foi feito se fez”. E João testifica que suas “... mãos tocaram da Palavra da Vida” (1Jo 1.1), porque “... o nome pelo qual se chama é a Palavra de Deus” ( Ap 19.13). O Logos que era tema de preocupação filosófica nos dias de João, depois dele serviu de ponte entre a filosofia e o cristianismo, como também para a elucidação dos dogmas da encarnação do Verbo e da Trindade pelos apologistas cristãos.

Veja mais sobre este assunto, acessando o link abaixo:

Link: <https://www.youtube.com/watch?v=tbF2OxmVi08>


Referências bibliográficas:


ELWELL, Walter. A. (Editor). Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. II. São Paulo. Vida Nova, 1990.

HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre: Concórdia: 2003.

PEARLMAN, Myer. Conhecendo as doutrinas da Bíblia. São Paulo: Vida, 1978 (7ª ed.).

SHEDD, Dr. Russell P. (Editor). O Novo Comentário da Bíblia, Vol. II. São Paulo: Vida Nova, 1983 (reimpressão).


Notas:

[1] Texto resumido do Prólogo no Comentário sobre o Evangelho de João por A. J. MACLEOD. In: SHEDD: 1983, pp. 1063 e 1064.

[2] SHEDD, Russell P. (Editor Responsável). Nota de João 1.1. A Bíblia Vida Nova. São Paulo: Vida Nova, (?).

[3] Texto transliterado  e  traduzido, disponível em: <http://hebraico.top/biblia-hebraica-online-transliterada/geneses-bereshit-completo-%D7%91%D6%BC%D6%B0%D7%A8%D6%B5%D7%90%D7% A9%D7%81%D6%B4%D7%99%D7%AA-hebraico-portugues-e-transliterado/bereshit-geneses-capitulo-01-%D7%91%D7%A8%D7%90%D7%A9%D7%99%D7%AA-portugues-hebraico-transliterado/>. Acesso em 30/05/2019.

[4] Texto  de  João 1.1,  em grego,   disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/greek/jo/1>. Acesso em: 30/05/2019.

[5] Em linhas gerais, o Docetismo era uma corrente doutrinária que afirmava que o corpo de Jesus era apenas uma ilusão, e que sua crucificação teria sido apenas aparente. Os docetistas afirmavam “... que Jesus tão-somente parecia existir em forma humana, que apenas parecia ter sofrido na cruz e que depois da ressurreição retornou a uma existência espiritual incorpórea” (HÄGGLUND: 2003, p. 18). Esta doutrina desconsiderava o fato de que “o Verbo se fez carne”, ou seja, Jesus Cristo humanizou-se, mediante a Encarnação.

[6] Septuaginta ou Setenta (LXX) foi uma tradução dos livros judaicos para o grego feita no século III a.C., durante o reinado de Ptolomeu Filadelfo (285-245 a.C.), para a sua biblioteca em Alexandria, no Egito. Esta versão recebeu este nome por causa da quantidade de tradutores, um tanto inexata, que era de setenta e dois anciãos, e foi feita também para atender a conveniência de alguns judeus de fala grega, que por causa da influência do helenismo desconheciam sua própria língua. Veja mais sobre isto em: <As Escrituras (2): formação do cânon e outras considerações>.

[7] PEARLMAN: 1978, pp. 100 e 101 (Op. Cit.).

[8] TOZER, A. W. Nota sobre João 1.1.

[9] BIRDSALL, J. N. Logos. In: SHEDD: 1983, pp. 958-60 – Texto parcial e adaptado conforme o Novo Acordo Ortográfico Brasileiro.

[10] Hipóstase é um termo grego que pode se referir à natureza de algo, de uma pessoa, com personalidade própria, individual e distinta. “... Teologicamente foi desenvolvida como o termo para descrever qualquer das três substâncias reais e distintas na única substancia ou essência indivisíveis de Deus, e especialmente a única personalidade unificada de Cristo, o Filho, em Suas duas naturezas, a humana e a divina...” (WARD, W. E. Hipóstase. In: ELWELL: 1990, p. 252.

[11] Filo ou Filon de Alexandria (10 a.C - 50 d.C)  “... foi um dos mais renomados filósofos do judaísmo helênico, interpretou a bíblia utilizando elementos da filosofia de Platão, para ele o Demiurgo de Platão é o Deus criador dos hebreus... Para ele existe um Deus único, incorpóreo e que não tem princípio. Deus criou o Logos, que é a atividade intelectiva de Deus, e ao Logos devemos a criação do mundo. O Logos é o que está entre Deus e os homens, é o intermediário da relação entre os dois. O Logos é o ser mais antigo, o primeiro a ser criado por Deus e é também a sua imagem...” (Disponível em: <http://www.filosofia.com.br/historia_show.php?id=39>. Acesso em: 04/06/2019.

[12] Veja meu artigo Cultura e Evangelho, principalmente no capítulo onde destaco “o Logos e a catolicidade dos Evangelhos para e nas culturas”.

[13] HÄGGLUND: 2003, pp. 23 e 24.

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