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29 maio 2023

Ambiguidades do movimento operário

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

Aspecto de uma fábrica em São Paulo na década de 10 [2]


Na transição do Império para a República, uma nova forma de fazer política teve início no Brasil. Por essa época, começam a surgir os primeiros defensores de projetos socialistas, organizando partidos, sindicatos e jornais. Tratava-se, de fato, de uma mudança radical. Basta lembrarmos que, ao exaltar o “trabalhador” como principal elemento da sociedade, o movimento operário brasileiro rompeu com tradições seculares, herdadas da época escravista, que consideravam as atividades manuais aviltantes e indignas para os cidadãos. Inaugurava-se, assim, um novo princípio de exercício legítimo do poder que tem influência até os dias atuais.

Não por acaso, o Rio de Janeiro registrou as primeiras manifestações do movimento operário brasileiro. De fins do século XIX até os anos 1920, a capital republicana liderou o processo de industrialização, sendo posteriormente superada por São Paulo. A existência de trabalhadores em numerosas fábricas de tecidos, calçados, chapéus, cerâmicas e vidros, aliada ao próspero artesanato autônomo, como o de alfaiates e sapateiros, e a milhares de pequenos funcionários públicos abriu caminho, no meio urbano carioca, para a aceitação das novas ideias políticas. O Centro do Partido Operário, criado para disputar a eleição para a Constituinte de 1891, foi exemplo desta mudança. A plataforma por ele defendida, através do jornal Echo Popular, apresentava um conjunto de reivindicações modestas, havendo até condenação às greves. Além de aumentos salariais, defendiam-se direitos que hoje consideramos básicos – embora só tenham sido alcançados à custa de muita luta e perseguições –, tais como: proibição do trabalho infantil, jornada de trabalho de oito horas, direito a um dia de descanso semanal, aposentadoria para os idosos e inválidos, e também a criação de tribunais para arbitrar conflitos entre patrões e empregados. Apesar de defender causas de grande aceitação popular, o Centro do Partido Operário não sobreviveu muitos anos. Em 1893, por ter aderido à Revolta da Armada, a agremiação política foi extinta. No entanto, as bandeiras levantadas pelo movimento tiveram continuação; exemplos disto são o Partido Democrata Socialista, criado na capital paulista em 1896, e o Partido Operário Socialista, organizado em 1898 na cidade portuária de Santos. Os sindicatos foram outra criação da época.

No Rio de Janeiro e em São Paulo, as ligas operárias começaram a se formar nos anos 1870-80, mas só se tornaram numerosas após o advento da República. Aos poucos, acompanhando a industrialização, esse tipo de instituição espalhou-se por outras regiões brasileiras. A arma de luta sindical tinha um nome: grève; palavra escrita em francês até mesmo em jornais populares, sugerindo tratar-se de uma experiência social nova no Brasil, o que, de fato, era. Antes da década de 1890, a não ser em casos isolados de gráficos e cocheiros, não tinham sido registrados movimentos grevistas importantes no Brasil. Durante os primeiros anos republicanos, o quadro tornou-se bem diferente: na capital federal ocorreram, entre 1891 e 1894, 17 paralisações em defesa de aumento salarial ou pela jornada de oito horas, e no estado de São Paulo, 24 movimentos similares sucederam-se até 1900. Apesar de combativos, os sindicatos surgidos nesse período não conquistaram melhorias substantivas para a classe trabalhadora. Talvez por isso, no início do século XX, outra tendência política, bem mais radical, ganhou terreno no movimento operário. Tratava-se dos anarquistas. Assim, paralelamente aos grupos moderados, que continuaram a formar partidos, aliás de curta duração e sem expressão eleitoral – como o Partido Operário Brasileiro, de 1906, ou o Partido Operário Socialista, fundado três anos mais tarde –, havia agora aqueles que defendiam uma reorganização completa da sociedade, ou melhor, defendiam a revolução.

Ao contrário dos socialistas, os anarquistas não se organizavam em partidos, recusando-se a participar em parlamentos ou a aceitar cargos públicos. A teoria política que os orientava preconizava que o Estado, independentemente da classe social que estivesse no poder, era uma instituição repressiva, daí a defesa intransigente de sua substituição por associações espontâneas, tais como federações de comunas ou cooperativas de trabalhadores. As ligas operárias, obviamente, eram a forma de organização que mais se aproximava desse modelo de sociedade do futuro. Talvez por esse motivo, a época de difusão das ideias anarquistas coincida com a de expansão do movimento sindical brasileiro. Entre 1900 e 1914, por exemplo, o número de sindicatos na capital paulista aumentou de 7 para 41, e a média anual de greves se multiplicou por três. No Rio de Janeiro, os anarquistas também dão sinal de força. Em 1906, organizam um congresso e, no ano seguinte, criam a Federação Operária, congregando vários sindicatos, e levando o mérito de manterem os jornais operários de mais longa duração – como A Terra Livre – e, em 1918, de liderarem na capital republicana uma insurreição da qual participaram trabalhadores e militares.

No entanto, após esse período de expansão, o movimento anarquista entra em declínio. A primeira razão, foram os estragos causados pela repressão, e a suspeita não é infundada. Paralelamente às correntes pacifistas, havia, entre os anarquistas, os defensores da ação direta, em outras palavras, do emprego da violência contra as classes dominantes, como ficou registrado, no início do século XX, em panfletos anexados aos processos contra militantes cariocas, nos quais consta a defesa do assassinato sistemático de burgueses através do envenenamento do leite com biclorato de mercúrio. Tratava-se de uma situação aterradora, embora também seja curioso observar, por meio desse exemplo, a existência de um darwinismo social de origem popular, não voltado para a eliminação “das raças inferiores”, conforme mencionamos no capítulo anterior, mas sim para a extinção das “classes parasitárias”, identificadas às elites.

Embora minoritários entre os anarquistas, os partidários da ação direta deram margem para a organização de um eficiente sistema repressivo. Contribuía para isso o fato de muitos militantes terem nascido fora do Brasil, como nos casos registrados na capital paulista, onde, na década de 1910, entre 70% e 85% dos trabalhadores fabris, de transportes, do pequeno comércio e do artesanato eram estrangeiros. Embora a maioria dos italianos, portugueses e espanhóis fosse proveniente do meio rural, alguns deles tinham experiência sindical ou participação no movimento anarquista europeu, por isso se destacaram na fundação e liderança de sindicatos. Ora, a elite republicana levou isso em conta e, aproveitando-se de atos terroristas dos partidários da ação direta, aprovou leis favoráveis à expulsão de estrangeiros. Assim, de agentes civilizadores, como eram considerados no Império, os imigrantes europeus passaram a ser vistos como fonte de desordem e subversão política.

Todavia, a repressão não explica tudo. A forte presença de estrangeiros no movimento operário tinha ainda outras consequências negativas. Muitos homens e mulheres que aceitaram migrar para o Novo Mundo partiram na esperança de ascender socialmente. As fileiras do anarquismo, devastadas pela repressão policial, encontravam, dessa forma, dificuldades para se renovar; tanto pelo fato de os imigrantes afastarem-se do movimento assim que conseguiam melhores colocações, como pelo alto índice dos que retornavam ao país de origem, decepcionados com as condições de vida no Brasil.

As rivalidades étnicas, por outro lado, inviabilizaram a sobrevivência de muitas organizações sindicais. Um desses casos foi o da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, sindicato que reunia trabalhadores portuários do Rio de Janeiro da República Velha. Tratava-se de um dos raros casos em que a liderança era composta por negros. No entanto, a presença crescente de estivadores portugueses levou ao surgimento de conflitos internos. Em 1908 chegaram a ser registradas mortes durante as reuniões sindicais. Nos quatro anos seguintes, os resultados dos conflitos foram desastrosos. O número de filiados diminuiu de 4 mil para apenas 50; o sindicato dos pintores cariocas, por essa mesma época, enfrentou problemas similares, enquanto outras agremiações sindicais se apresentavam claramente como guetos étnicos, delimitando de antemão a nacionalidade dos filiados e militantes, como no caso dos chapeleiros paulistas, reunidos na Società Cosmopolita fra Lavoratori Cappellaio.

Além do problema étnico, havia outros. A recusa do movimento anarquista à participação política parlamentar e de dar apoio político aos partidos existentes dificultava a cristalização das reivindicações dos trabalhadores em leis. Aliado a isso, os anarquistas condenavam o futebol, o carnaval, o catolicismo e a umbanda, vendo nessas manifestações artimanhas da burguesia para alienar as massas em relação a seus reais interesses; o que de fato contribuiu, entre os militantes, para a formação de preconceitos em relação à grande maioria dos trabalhadores e levando-os muitas vezes, paradoxalmente, a assumir posturas racistas ou elitistas.

Até 1920, os resultados das lutas sindicais brasileiras foram diminutos. Os ganhos salariais alcançados não acompanharam o aumento de preço dos alimentos e do aluguel de casas. A incipiente legislação trabalhista da época restringia-se, por sua vez, a indenizações por acidentes e à restrição ao trabalho feminino ou infantil; leis tímidas e alvos de reformas retrógradas, como o decreto estadual paulista de 1911, que proibiu o trabalho de menores de 10 anos em fábricas e oficinas, abreviando em dois anos o limite determinado na legislação de 1894. Outras leis não saíram do papel, como aquela aprovada em 1917 que definia a jornada de trabalho infantil, limitando-a a cinco horas e estabelecendo a exigência de certificado médico e de atestado de frequência escolar na admissão dos pequenos operários.

A exploração desenfreada de homens, mulheres e crianças que, por vezes, tinham de suportar jornadas de trabalho superiores a doze horas, multiplicava os casos de rebeldia individual e, principalmente, de comportamentos autodestrutivos entre os operários. Em São Paulo, durante as duas primeiras décadas republicanas, as prisões por desordens aumentaram em 40%, enquanto as por embriaguez cresceram quase 400%. Paralelamente a isso, a exclusão dos egressos do cativeiro no mercado de trabalho livre acentuava a prática de furtos. Em cidades como a Campinas do início do século XX, negros e pardos representavam apenas 20% da população total, mas respondiam por cerca de metade da população carcerária. Os dados cariocas mostram, por sua vez, que imigrantes europeus nem sempre desfrutaram de melhores condições. Em 1903, cerca de uma centena de portugueses residentes na capital federal foram expulsos do Brasil sob a acusação de vadiagem e roubo. Entre 1915-18, esse segmento respondeu por 32% dos processos criminais, apesar de constituir apenas 15% da população masculina adulta do Rio de Janeiro.

Perante os riscos da miséria, a grande maioria dos trabalhadores reagia criando associações mutualistas. De maneira semelhante às outras formas de organização mencionadas anteriormente, o mutualismo não era uma invenção local, e sim uma importação europeia, mais precisamente francesa. No Brasil, as primeiras instituições desse tipo começaram a surgir em meados do século XIX. Como o próprio nome sugere, o mutualismo promovia o socorro recíproco de seus filiados. Tal qual os sindicatos, elas podiam se organizar a partir de critérios socioprofissionais, recebendo inclusive denominações referentes ao grupo que representavam, tais como: Sociedade de Beneficência dos Artistas da Construção Naval, Sociedade Protetora dos Barbeiros e Cabeleireiros, ou, ainda, Sociedade de Socorros Mútuos dos Artistas Sapateiros e Profissões Correlatas. Contudo, a semelhança entre esse tipo de associação e os sindicatos encerrava-se por aí. Enquanto os sindicatos voltavam-se para a conquista de direitos e transformações sociais, as associações mutualistas promoviam assistencialismo e conformismo social. Além disso, as mutuais, em plena época de industrialização, mantinham traços semelhantes aos das antigas irmandades e confrarias religiosas – inclusive evitando os termos “operário” ou “trabalhador”, como pode ser observado na referência a “artistas” em suas denominações. O levantamento dos estatutos também confirma as características, por assim dizer, “coloniais” dessas associações. Em São Paulo, por exemplo, 80% delas tinham como principal objetivo a realização de cerimônias religiosas por ocasião da morte dos associados, comprometendo-se a pagar os custos do carro, caixão, flores, velas, roupas do morto e também indicar o grupo de sócios que acompanharia o esquife. Em outras palavras, enquanto os socialistas e anarquistas voltavam-se para as vitórias terrenas, os mutualistas promoviam a conquista do além.

Outros traços confirmam o perfil arcaico das mutualistas. Muitas delas, apesar de contar com sócios de origem humilde, convidavam ricos comerciantes para participar da diretoria e administração da associação. De forma semelhante às confrarias coloniais, também não se importavam de se subordinar ao Estado em troca de isenção de impostos, autorização para emprestar dinheiro a juros e receber legados testamentários. Sua presença, aliás, não estava necessariamente ligada à prosperidade econômica regional. Tanto é verdade que, em 1889, o Rio Grande do Sul possuía 85 associações mutualistas, enquanto o próspero estado de São Paulo contava com apenas 23; número também inferior às 40 registradas, em fins do século XIX, na Bahia.

O surgimento dos sindicatos, por sua vez, não fazia com que o mutualismo entrasse em declínio. Em 1928, os paulistas contavam com 83 mutuais, número bem superior às 23 existentes em 1889; na capital federal, esse crescimento também foi intenso: as 171 agremiações registradas em 1883 aumentaram para 438 em 1912; por essa época, enquanto os sindicatos cariocas contavam, no máximo, com 70 mil filiados, as mutualistas possuíam cerca de 280 mil associados. Como se vê, as instituições mutualistas eram bem mais representativas que as organizações sindicais. Ao contrário dessas últimas, elas se baseavam em uma prática política avessa ao conflito de classe, ao mesmo tempo em que compartilhavam com os socialistas algumas preocupações, como as de auxílio à saúde e assistência por ocasião da velhice, ou seja, por formas variadas de previdência social. Segundo pesquisas, a partir das décadas de 1930-40, Getúlio Vargas assumirá essas bandeiras, capitalizando para si o apoio de boa parte das camadas populares.

Veja também:


Notas:

  • [1Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 165 a 169, Capítulo 24.



Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

26 maio 2023

Cristianismo e Cultura

Por W. A. Dyrness [1]


Cultura é um conceito antropológico e está relacionado a toda invenção humana, seja ela material ou imaterial. Mas por sua vez, o homem criador de cultura, é um ser que tem sua origem no processo criativo de Deus. Daí, a importância de se analisar a cultura mais do que puramente antropológica, natural ou cientificamente, também teologicamente.

A cultura foi tema de estudos (dissertações) nossos nas áreas de História e de Teologia. E é nesse sentido que também produzimos vários textos e os publicamos neste blog, por exemplo:

Continuando este assunto, resolvi transcrever o texto abaixo, de W. A. Dyrness [3], no qual ele faz uma análise entre as relações do cristianismo com a cultura, sob a cosmovisão de um teólogo protestante e com um panorama histórico muito importante.


O cristão e a cultura


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As relações entre o cristianismo e a cultura têm variado segundo as circunstâncias e os modos específicos de percepção da cultura. Embora a ciência social moderna nos tenha dado uma compreensão mais pormenorizada da cultura, basicamente nos interessamos pela maneira que a obra divina da redenção – tanto nas Escrituras quanto na História – tem confrontado e transformado a ordem social no seu contexto criado, e também pelas formas de as comunidades crentes encararem o seu meio ambiente e corresponderem a ele. A Igreja confronta estas questões sempre quando procura viver na prática a sua fé e dar um testemunho fidedigno no lugar para onde Deus a chamou.

A palavra "cultura" originalmente referia-se ao cultivo da terra, e nunca perdeu completamente esta harmonia com a produtividade natural. Embora a palavra seja bastante usada de modo mais ligado às belas-artes, a cultura é melhor entendida como o padrão total do comportamento de um povo, e é neste último sentido que a palavra será empregada neste artigo. A cultura inclui todo o comportamento que é aprendido e transmitido pelos símbolos (ritos, artefatos, linguagem etc.) de um grupo especifico, e que se concentra em certas ideias ou pressuposições que chamamos de cosmovisão.


1. Estrutura Bíblica e Teológica

a) Antigo Testamento

A Bíblia não tem palavra correspondente a "cultura" como tal, mas fica claro desde o principio que Deus criou o homem e a mulher como criaturas de cultura. Os capítulos iniciais de Gênesis apresentam a ordem criada como uma comunidade inter-relacionada em que os relacionamentos com Deus, com a terra e com os seres humanos desempenhavam o seu papel. Há uma aliança subentendida entre o homem e Deus que deve ser vivida num contexto social por um povo encaixado na criação. Fica claro que a ordem era boa (Gn 1.31) e que o processo humano de exercer domínio também era bom.

A Queda que acompanhou a rebelião de Adão e Eva contra as instruções de Deus resultou numa comunidade desordeira e numa cultura que refletia a soberba humana (Gn 11.4). A intervenção divina, desde a escolha de Abraão até a libertação do Egito, deve ser vista em termos do propósito de Deus de restaurar e renovar a ordem criada através de um povo que refletisse o Seu caráter.

É um erro ver a Lei como uma expressão do desejo de Deus no sentido que Seu povo tivesse um sistema cultural sem igual. Boa parte da cultura de Israel coincidia com as culturas de outras nações do antigo Oriente Próximo. É verdade que o contato com outras culturas foi proibido quando Israel entrou em Canaã (Js 6.18), mas isto era devido ao fato de aqueles povos estarem sujeitos à ira de Deus por causa das suas iniquidades não por serem estrangeiros.

De fato, os antropólogos que estudam o AT reconhecem que Israel, devido à sua geografia, estava mais exposto às influências dos povos circunvizinhos do que qualquer outra nação antiga. Os estudiosos bíblicos têm começado a apreciar como as práticas bíblicas – e.g., a ornamentação do Templo ou até mesmo a ideia da aliança – têm paralelos estreitos nas culturas vizinhas. Desta forma, no processo da revelação, Deus não Se preocupou em dar ao Seu povo uma cultura especial, mas em intervir e revelar a Sua vontade de modo que instituições e práticas já existentes pudessem ser reformadas e tornar-se veículos apropriados da Sua glória. Isto, naturalmente, importava em proibir muitas coisas dentre as culturas vizinhas, e até mesmo aquelas instituições que Israel tinha em comum com seus vizinhos – tais como o sacerdócio e a monarquia – foram transformadas sob o impacto das instruções de Deus (e.g., Dt 17.14-20).

À medida que Israel prosperou durante a monarquia, esqueceu-se de que suas instituições eram um meio de promover os propósitos de Deus e passou a vê-las como fragilidades em si mesmas, de modo que Deus teve de expulsar Israel da sua terra e mandar habitar no meio de uma cultura estranha. Mesmo ali, Deus prometeu que um Rebento do tronco de Jessé levaria a efeito a renovação de toda a criação (Is 11); enquanto isso, israelitas teriam de procurar a prosperidade da terra onde habitavam (Jr 29.5-7).

b) Novo Testamento

O desejo de Deus de redimir e restaurar os padrões culturais humanos fica subentendido no ministério de Cristo, que veio com uma nítida consciência de estar cumprindo o propósito redentor do AT. Sua obra da nova criação, que abalou a terra, concentrou-se na ressurreição, na ascensão e no Pentecoste, que eram vistos como cumprimentos das promessas veterotestamentárias para a vida e a comunidade segundo Aliança.

A repetida observação de que o NT é indiferente à cultura é aplicável somente no caso de um conceito muito estreito do termo. A experiência que os cristãos têm com Cristo era considerada cheia de grandes implicações para a cultura (cf. o conselho de Paulo a Filemom). E se for levada em conta a visão veterotestamentária da renovação da terra e da humanidade, poderá ser visto que a obra terrena de Cristo deu início a um processo de transformação que será gloriosamente completado quando Ele voltar para julgar o mundo, uma consumação da qual, mediante nossa reação favorável em fé e obediência, já recebemos um antegozo.

Como no AT, o meio ambiente da Igreja no NT era altamente cosmopolitano. A administração romana e a língua e cultura gregas favoreciam o intercâmbio de ideias. Os escritores do NT frequentemente empregavam termos familiares a um amplo espectro de pessoas: João faz uso de palavras tais como logos ou sophia para expressar a realidade transformadora do Verbo que Se fez carne; Paulo demonstra que respeita uma grande variedade de práticas culturais (1 Co 10.23-33; Rm 14; CI 2.16; 1 Tm 4.3-4) para a libertação genuína que advém de estar em Cristo. Não se quer dizer com isto que o evangelho era compatível com todo e qualquer padrão cultural. Havia choques fundamentais com os judaizantes, que insistiam numa cultura judaica para todos os crentes com os gregos, que acreditavam que a sabedoria expressava uma ordem imanente que poderia ser descoberta pela razão humana. Para estes, a vinda de Cristo era o elemento decisivo; um novo sentido foi dado ao testemunho da Lei judaica e à procura grega da sabedoria humana.

2. A Perspectiva Histórica

a) A Igreja Primitiva

A igreja nasceu no meio de tradições intelectuais importantes. Alguns, como Justino Mártir, achavam que a boa cultura era uma reflexão do Logos divino e treinamento preliminar para o evangelho. Outros concordavam com Tertuliano, que insistia em dizer que a cultura era o foco do pecado e que a salvação envolvia uma separação ética das influências circunvizinhas. Mas logo ficou claro que, se a igreja quisesse comunicar a sua fé em termos que o mundo pudesse compreender, ela também, assim como a igreja neotestamentária, deveria fazer uso de expressões contemporâneas. As ideias de infinitude e eternidade, que os gregos relutavam em aplicar a Deus, eram usadas para descrever o Deus dos cristãos; a ideia de uma fonte transcendente de todas as coisas, oriunda do Oriente Próximo, influenciou as formulações posteriores da doutrina da Criação; e o mundo inteligível de Plotino foi usado para descrever a Nova Jerusalém e formular um caminho para Deus a partir do interior. Em outros aspectos, no entanto, como nos conceitos da História e da Providência, o cristianismo rompeu nitidamente com essas influências.

A conversão do Imperador Constantino (312 d.C.) alterou a posição do cristianismo no mundo, ou até o caráter do próprio cristianismo, e tornou possível a identificação de uma civilização especifica com o cristianismo. A tentação era considerar a fé de forma institucional, ao invés de ser o poder de Deus para transformar indivíduos e comunidades. Agostinho forneceu a primeira interpretação geral da história e da cultura em Cidade de Deus. Ali, argumentou que a história envolvia uma luta contínua entre a cidade dos homens, dominada pela cupiditas (ou cobiça), e a Cidade de Deus, governada pelo amor. Com a decadência da cultura clássica, Agostinho veio a sentir certo pessimismo no tocante às realizações humanas e à necessidade de confiar na graça de Deus. A Queda, se- gundo ele acreditava, criou uma divisão dentro da consciência humana, que poderia ser sanada somente pela submissão à Igreja e pela apropriação da sua arte e liturgia como modo de se obter um conhecimento amplo de Deus. A linguagem bíblica figurada passou, então, a tomar o lugar dos Clássicos como a base de uma "cultura crista" (cf. sua Da Doutrina Cristã), lançando, assim, o alicerce para a arte e adoração medievais.

Enquanto isso, os teólogos do leste ressaltavam a terra como um veículo em potencial do Espírito de Deus e viam a redenção em termos da divinização (Atanásio), uma restauração da sua "imagem" de Deus. Esta ideia reconquistou alguns ecos do AT que tinham sido perdidos no Ocidente, e levou às ricas tradições místicas das Igrejas Ortodoxas.

b) A Idade Média

A partir de Agostinho desenvolveu-se o conceito de que tudo na terra se conformava com algum padrão celestial. Bonaventura retratava o mundo como uma estrada que levava a Deus, ao longo da qual cada objeto O revelava. Para Aquino, a cultura como uma reflexão da finalidade natural do homem deve conformar-se à lei natural. Visto que "é natural ao homem ser um animal social e politico", a vida em sociedade é preceituada pela lei natural. A graça, a boa assistência da parte de Deus, aperfeiçoa, ao invés de julgar aquilo que é naturalmente bom, visto que a nossa finalidade está implícita em nossa natureza. Esta opinião compreendia a relevância eterna da realização humana – a nossa obra "dá frutos eternos", conforme a expressão de Dante, na Divina Comédia – mesmo quando reduzia seu significado histórico e, às vezes, causava lealdade não-critica a corporificações específicas da civilização cristã.

c) A Reforma

A crítica decisiva ao conceito medieval da cultura veio com a Reforma. A revolução copernicana e as viagens de descoberta focalizavam as possibilidades da vida terrestre. A cosmovisão medieval estática foi rompida, e os reformadores começaram a definir os propósitos cristãos não em termos de imaginação de algum padrão eterno mas de concretização de um ideal futuro. João Calvino enfatizava as intervenções soberanas de Deus e a vitória definitiva de Cristo que é ressaltada pela ressurreição. A ascensão deixava subentendido que todas as coisas ficam plenas da Sua glória e, portanto, o cristão pode ser otimista no tocante a esta ordem mundial. O reino dinâmico de Cristo avança através da Igreja, a fim de colocar toda a humanidade sob o domínio do evangelho.

Martinho Lutero, por outro lado, reagindo contra as pretensões medievais da cultura cristã, enfatizava o caráter pecaminoso da obra humana e a necessidade da graça. As formas culturais, portanto, não têm valor positivo e servem somente para refrear o mal. O ato espontâneo de amor que Deus produz no crente pode ser levado a efeito em qualquer profissão e, de qualquer maneira, não ficará plenamente manifesto a não ser na volta de Cristo. A Igreja leveda a sociedade, mas sua influência é frequentemente visível somente pela fé.

A corrente radical da Reforma – às vezes chamada anabatismo – retomou linhas ascéticas e perfeccionistas na Igreja, e ressaltava a conversão pessoal e uma comunidade cristã separada. O conceito deles no tocante ao caráter penetrante do pecado, a ênfase na volta iminente de Cristo e, talvez, a condição minoritária fizeram com que se tornassem pessimistas no tocante às possibilidades da cultura humana.

d) O lluminismo

A consciência da Reforma e a ênfase dada pela Renascença ao presente mundo contribuíram juntas para um processo de secularização no Ocidente em que o consenso cristão da Idade Média paulatinamente cedeu lugar aos alvos do estado secular. Os ideais cristãos frequentemente eram influentes na sociedade (como continuam sendo até ao dia de hoje), mas abria-se mão da realidade cristã. Já em fins do séc XVIII, durante o período chamado Iluminismo, o mundo era considerado em terma imanentes; Deus estava distante, sem Se envolver; o homem já se tornara maior de idade. Por trás desta fé subjazia a convicção de que "a situação humana é fundamentalmente caracterizada pelo conflito com a natureza" e não pelo conflito com Deus (H Niebuhr). Além disso, havia plena confiança da vitória nesse conflito, e o caminho ficou aberto para se identificar o cristianismo com a cultura europeia ocidental (e, posteriormente, norte-americana), e para o imperialismo cultural dos séculos XIX e XX.

A ideia de Hegel sobre o desenvolvimento imanente da realidade espiritual na cultura humana marcou uma etapa final da influência do cristianismo sobre a cultura europeia. Pouco depois, Nietzsche proclamou que Deus estava morto e que todos os valores deveriam ser reformulados. Karl Löwith chama o niilismo resultante "a única crença genuína de pessoas cultas", no fim do século XIX.

e) O Período Moderno

A Primeira Guerra Mundial pareceu confirmar o cinismo de Nietzsche, bem como a ausência de todas as influências cristãs sobre a cultura, e esmagou as esperanças de alguns que tinham acreditado na possibilidade da introdução do milênio. Não é de admirar que a maioria dos cristãos adotasse atitudes negativas diante da direção tomada pela cultura ocidental e se satisfizesse em lutar em frentes muito estreitas. Numa das primeiras tentativas de julgar criticamente a cultura moderna pós-cristã, T. S. Eliot argumentou, em 1934, que a literatura moderna era dominada por secularismo e individualismo. Mais recentemente, os evangélicos Francis Schaeffer e H. R. Rookmaaker traçaram a alienação da cultura moderna à capitulação dos valores cristãos desde a Renascença. B. I. Bell e C. S. Lewis descreveram a manipulação e a desumanização que resultaram da moderna sociedade de consumo, com as "sensibilidades famintas" consequentes. De modo mais positivo, Paul Tillich indicou que as formas culturais modernas ainda expressam uma dedicação básica religiosa ou absoluta, que possibilitam uma experiência de profundidade.

A influência do máximo alcance sobre o conceito cristão da cultura desde a Segunda Guerra Mundial tem sido levada a efeito pelo impacto crescente das ciências sociais. Estes estudos nos mostraram que a cultura é mais do que uma cosmovisão intelectual; é também um complexo de símbolos – incluindo objetos, palavras e eventos – por meio dos quais um povo se orienta no mundo. O significado e, portanto, as implicações da dedicação cristã revelam que permeiam a totalidade da cultura humana, possibilitando, assim, uma nova compreensão integral do evangelho. A comunicação transcultural da tem sugerido a necessidade de se aproveitarem os recursos da cultura emissora e da cultura receptora a fim de se obter uma compreensão mais completa da verdade cristã. Em todas as comunidades, há a consciência crescente de que a Palavra de Deus, e não alguma cultura especifica, corrigirá falhas e redimirá aspectos fortes, e toda percepção cultural da verdade cristã e das Escrituras pode ser usada para enaltecer a nossa compreensão do evangelho "até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus" (Ef 4.13).

3. A Tipologia

A história do encontro entre o cristianismo e a cultura demonstra certas reações típicas que refletem várias ênfases teológicas e contingências históricas. Correndo o risco de fazer divisões arbitrárias, podemos sugerir três conceitos típicos que têm sido influentes no pensamento evangélico.

a) O Anabatista

No decurso da história da cristandade uma corrente radical e rigorosa apareceu, enfatizando a natureza decaída desta ordem mundial e a necessidade de se criarem estruturas alternativas que sigam mais de perto o modelo do Senhor crucificado da Igreja. Tal conceito, que achou sua expressão mais clara na Reforma radical, tem continuado a influenciar os cristãos através das igrejas dentro dessa tradição e dos muitos grupos pietistas que compartilham desse mesmo espírito. Uma expressão extremada desse ponto de vista está em Watchman Nee, que acreditava que a salvação envolvia a separação total entre o crente e o sistema deste mundo. O cristão vive no mundo como num ambiente estranho – como um mergulhador na água – e assim deve desenvolver uma atitude de desprendimento. A obra terrena do cristão sempre está sujeita à sentença da morte: sua única esperança é ser finalmente libertado por Deus. Um proponente mais moderado deste conceito é Jacques Ellul, que argumentava que a civilização espera numa nova obra de Deus mediante a qual a Nova Jerusalém tomará o lugar desta cidade caída. Enquanto isso, continuamos a trabalhar, conscientes de que "estamos participando de uma obra de morte que está sob a maldição". Uma expressão mais positiva e influente desta tendência é oferecida por J. H. Yoder. Segundo Yoder, Jesus veio levar a efeito uma revolução social por meio da formação de uma nova comunidade voluntária, ao invés de um encontro com as autoridades. Cristo fundou uma nova ordem com padrões alternativos de liderança e estilo de vida que acabarão condenando e substituindo a velha ordem moribunda. O caminho da cruz, Yoder acredita, é uma "alternativa tanto a insurreição quanto ao quietismo". Este conceito tem dado expressão nítida aos elementos apocalípticos e transcendentes do cristianismo, e muitos dos seus representantes têm exercido uma forte influência profética, embora tenham hesitado em ocupar-se em esforços públicos ativos para melhorar as condições existentes.

b) O Conceito Anglo-Católico

Outros cristãos têm insistido mais na distribuição entre as esferas da graça e da natureza. Continuando a tradição medieval, pensadores com esta tendência acreditam que a área da cultura humana é indiferente aos valores religiosos. J. H. Newman deu expressão clássica a este conceito há um século, quando declarou que a cultura tem valor no seu próprio nível (natural), mas não pode ser o ambiente da virtude: "O cultivo intelectual não é a causa, nem o antecedente apropriado, de qualquer coisa sobrenatural". No presente século, C. S. Lewis adotou um ponto de vista semelhante. Ele acredita que o NT é inconfundivelmente frio na sua maneira de tratar a cultura, sendo que é necessário descartá-la no momento em que entra em conflito com o serviço de Deus. O bem da cultura pode formar uma analogia com o bem cristão, mas não é a mesma coisa – Lewis confessa não saber como se pode harmonizar bens espirituais e culturais. Estes pensadores dão, com toda a razão, prioridade aos valores espirituais, mas não conseguem sugerir perspectivas criticas formadas pela verdade cristã e, portanto, tendem a apoiar o status quo cultural.

c) O Conceito Reformado

Desde Justino Mártir têm havido cristãos com a convicção de que a cultura pode ser levada cativa ao senhorio de Cristo. Enfatizando o poder criador de Deus e a obra vitoriosa de Cristo, estes pensadores tendem a ser mais otimistas no tocante às estruturas humanas, pois têm a impressão que por mais iníquas e depravadas que certas instituições talvez pareçam ser, elas não estão fora do alcance da soberania de Cristo. Calvino deu expressão clássica a esta posição, e tem sido seguido pela tradição do cristianismo reformado e presbiteriano. No início do século XX, Abraham Kuyper expressou de modo conciso este ponto de vista, que coloca a glorificação do próprio Deus no centro do pensamento cristão a respeito da cultura. Toda a labuta humana exibe coletivamente a imagem de Deus e, mediante a graça geral, é dada para honrar a Cristo, o mediador da Criação. A cultura, portanto, pode ser o meio de controle da influência do pecado e, por causa da obra de Cristo que restaura a criação dentro das suas próprias raízes, pode começar a refletir o triunfo do reino restaurado de Cristo, que será consumado na Segunda Vinda. Kuyper acredita que o desenvolvimento genuíno na sociedade transbordará para a eternidade (Ap 21.24), embora os últimos dias tenham de demonstrar uma apostasia nas coisas espirituais. Este conceito tem tido muita influência nas sociedades onde se faz presente, e exibe uma ênfase atraente ao senhorio de Cristo e à realidade do Seu reino; sua fraqueza tem sido uma tendência ao triunfalismo que subestima o poder e a extensão da iniquidade.

Conclusão Teológica

Com base nas evidências examinadas, é possível sugerir algumas diretrizes para uma abordagem cristã à cultura? Alguns concordam com H.R Niebuhr em que as relatividades da nossa fé e da nossa posição sugerem que deixemos abertas as nossas opções. Certos parâmetros bíblicos, no entanto, podem ser oferecidos. Os evangélicos têm se preocupado, com razão, em evitar que as influências culturais não desafiem nem diluam a autoridade de Cristo e da Sua Palavra. Mas é claro que este problema não pode ser resolvido ao se evitar a cultura; é impossível dedicar-se a Cristo em isolamento da nossa cultura. Alguma medida de solidariedade com nosso meio ambiente é inevitável; somos produtos dele e, como cristãos, somos responsáveis diante dele para pensarmos sal e luz. Além disso, o pecado é a rebelião contra Deus e Sua Palavra, de modo que a luta básica na cultura não é contra a natureza, mas contra as forças do mal. Segue-se que não podemos evitar a batalha em prol da justiça na esfera cultural. Conforme Milton: "Ser ingênuo e ignorante no tocante às opções morais é uma coisa; uma outra coisa bem diferente é ter consciência das opções e escolher a obediência a Deus". A pureza visível, pois, embora provenha de Deus, não pode ser concretizada senão mediante provações, e as provações provêm daquilo que é contrário.

A necessidade básica para os cristãos no decurso das eras tem sido uma fé suficientemente grande para incluir a totalidade dos elementos bíblicos – que vê Deus como Criador e Sustentador; que honra a Cristo como Logos e Senhor; e que vê na redenção tanto a reconciliação do pecador quanto a renovação da ordem criada. Esta atitude leva um otimismo realista, porque a dedicação a Deus liberta-nos da subserviência aos princípios menos importantes e ajuda-nos a mantê-los na sua perspectiva correta. A Escritura é a norma para todos os povos e todos os tempos, mas o elemento supracultural sempre deve ser expresso em alguma forma cultural especifica, mesmo que tais formas sejam transformadas à medida que o Espirito Santo aplica a realidade do reino. Por ora, em nossas famílias e comunidades, oremos para termos o prazer da criança, que fica atônita simplesmente por existir, e a sabedoria do erudito, a fim de discernirmos a verdade e batalharmos por ela. Porque as "pequenas ações de pequenos homens e pequenas mulheres, todas incompletas e imperfeitas..., são cruciais e têm seu lugar nos grandes planos de Deus" (H. R. Rookmaaker).

Fonte:

DYRNESS, William A. Cristianismo e Cultura. Apud: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. I. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 375 a 380.

Notas:

  • [1William A. DYRNESS “… é  um teólogo americano e professor de teologia e cultura no Seminário Teológico Fuller . Ele ministra cursos de teologia, cultura e artes e é membro fundador do Brehm Center… Dyrness trabalha na interseção da teologia reformada, evangélica, global e ecumênica. Suas numerosas publicações podem ser caracterizadas como uma tentativa de lidar com o encontro dramático entre a fé e a cultura humana” (Wikipedia: William Dyrness )”. Acesso em: 25/05/2023. 
  • [3Texto copiado na íntegra, com algumas adaptações e aplicado ao Novo Acordo Ortográfico Brasileiro..

23 maio 2023

O Arrebatamento da Igreja

Por  R. G. Clouse [1]

Uma expressão usada pelos pré-milenistas para se referirem à união da Igreja com Cristo na Sua Segunda Vinda (do latim rapio, “arrebatado”). A principal passagem bíblica na qual este ensinamento é baseado é 1Ts 4.15-17: "Ora, ainda vos declaramos, por palavra do Senhor, isto: nós, os vivos, os que ficarmos até à vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que dormem. Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, os que ficarmos, seremos arrebatados juntamente com eles, entre nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor”.

As principais divisões de interpretação dos palavras de Paulo centralizam-se no relacionamento entre o tempo do arrebatamento e o período de tribulação que marca o fim de era. Os pré-tribulacionistas ensinam que a igreja será removida antes deste período de sete anos e da revelação do anticristo. Um segundo grupo, os mid-tribulacionistas, argumentam que a igreja será arrebatada durante a tribulação, depois de o anticristo ter subido ao poder, mas antes dos julgamentos severos que preparam o caminho para a volta de Cristo, que virá a fim de estabelecer o Seu reino na terra. Outra abordagem ao problema é a dos pós-tribulacionistas, que creem que a igreja continuará a existir no mundo durante a tribulação inteira, e que será removida no fim do período quando Cristo voltar em poder.

O Pré-Tribulacionismo e a Origem da Controvérsia do Arrebatamento

A despeito da tentativa dos dispensacionalistas de identificar todos os pré-milenistas com aspectos peculiares do pensamento deles, tais como o arrebatamento pré-tribulacionista, fica óbvio que, no decurso da maior parte da história da igreja, aqueles que ensinavam o pré-milenismo não tinham uma interpretação tão pormenorizada dos tempos do fim. Até o começo do século XIX, aqueles crentes que discutiam o arrebatamento acreditavam que ele ocorreria junto com a volta de Cristo no fim do período da tribulação. A contribuição de John Nelson Darby à escatologia levou muitos cristãos a ensinarem que a volta de Cristo se daria em duas etapas: uma, para buscar Seus santos no arrebatamento, e a outra, com Seus santos para controlar o mundo no fim da grande tribulação. Segundo esta interpretação das profecias bíblicas, entre estes dois eventos seria cumprida a septuagésima semana predita por Daniel (9.24-27) e o anticristo viria com poder. Com a igreja saindo de cena, Deus reativaria naquele tempo Seu tratamento com Israel.

As ideias de Darby tiveram ampla influência na Grá-Bretanha e nos Estados Unidos. Muitos evangélicos tornaram-se pré-tribulacionistas através da pregação dos evangelistas interdenominacionais nos séculos XIX e XX, A Bíblia de Scofield bem como os principais institutos bíblicos e faculdades de teologia tais como o Seminário Teológico de Dallas, o Seminário Talbot, e o Seminário Teológico "Grace" também contribuíram para a popularidade deste ponto de vista. Durante os tempos conturbados da década de sessenta, houve um reavivamento do ponto de vista pré-tribulacionista num nivel popular, através dos livros de Hal Lindsey e dos ministérios dos pregadores e ensinadores bíblicos que empregam os meios eletrônicos de comunicação.

Embora seja óbvia a influência de Darby no trabalho dos seus sucessores, é mais difícil determinar como ele chegou à compreensão do arrebatamento secreto antes da tribulação. Samuel P. Tregelles, membro do movimento Irmãos de Plymouth, assim como Darby, alegou que o dito ponto de vista teve sua origem num culto carismático dirigido por Edward Irving, em 1832. Outros estudiosos afirmam que o novo modo de entender o arrebatamento resultou de uma visão profética dada a uma jovem escocesa, Margaret MacDonald, em 1830. Ela alegava ter introspeção especial quanto à Segunda Vinda, e começou a compartilhar com outros o seu ponto de vista. Sus conduta extática e seus ensinos apocalípticos provocaram uma renovação carismática na Escócia. Impressionado pelos relatos de um novo Pentecoste, Darby visitou o cenário do reavivamento. De acordo com seu próprio testemunho dado em anos posteriores, ele conheceu Margaret MacDonald, mas rejeitou as alegações quanto a um novo derramamento do Espírito. A despeito da sua oposição à abordagem geral de MacDonald, alguns escritores acreditam que Darby aceitou o conceito dela quanto ao arrebatamento, e o adaptou ao seu sistema.

Outros estudiosos acham que devemos aceitar a explicação do próprio Derby sobre como chegou ao seu ponto de vista escatológico. Baseou-se em seu entendimento de que a igreja e Israel são entidades separadas nas Escrituras. Quando a igreja for removida do mundo, então poderão ser cumpridos os eventos proféticos que dizem respeito a Israel. O anticristo subirá ao poder por meio de promessas de paz à terra, e fará um acordo para proteger o novo Estado de Israel. Os judeus, no entanto, serão traídos pelo novo benfeitor, que repentinamente suspenderá todas as cerimônias religiosas tradicionais e exigirá que lhe prestem culto. Aqueles que não cooperarem serão perseguidos. Este holocausto final contra o povo escolhido de Deus o levará a aceitar Cristo como seu Salvador. Pragas devastarão a terra durante este período de tribulação e, finalmente, a batalha do Armagedom resultará na volta à terra, vitoriosa, pessoal e visível, de Cristo e Seus santos. O Senhor, então, amarrará Satanás durante mil anos, e reinará na terra com Seus seguidores durante o milênio. Segundo os pré-milenistas pré-tribulacionistas, todas as profecias que deveriam ter sido cumpridas quando Cristo veio pela primeira vez, serão realizadas na Sua Segunda Vinda. A rejeição de Cristo pelos judeus no século I forçou o adiamento do reino até a Segunda Vinda. O ponto de vista adotado quanto à igreja e à sua posição na profecia é crucial para a aceitação do arrebatamento pré-tribulacionista e o sistema que ele sustenta.

Outro argumento oferecido em prol do arrebatamento pré-tribulacionista é que a influência constrangedora do Espirito Santo deve ser removida antes de o anticristo poder ser revelado (2 Ts 2.6-8). Porque o Espirito está especialmente associado com a igreja, segue-se que a igreja deverá estar fora de cena depois de o Espirito ter se retirado. Entre as outras razões que parecem apoiar o pré-tribulacionismo é a iminência do arrebatamento. Se ele pode ocorrer a qualquer momento, nenhum sinal prévio da tribulação, como a revelação do anticristo, a batalha do Armagedom, ou a abominação no templo, poderá anteceder o "bendito evento".

O Ponto de Vista Mid-Tribulacionista

Um dos lideres na apresentação de um ponto de vista diferente do arrebatamento foi Harold John Ockenga, um líder no movimento evangélico que se desenvolveu nos Estados Unidos depois de Segunda Guerra Mundial. Num breve testemunho pessoal em Chistan Life (“Vida Cristã”) (fev. de 1955), citou muitas dificuldades associadas com o pré-tribulacionismo. Estas incluíram o aspecto secreto do arrebatamento, o reavivamento a ser experimentado durante a tribulação, a despeto da remoção do Espirito Santo, e a redução da importância da igreja envolvida na escatologia dispensacionalista. Outros líderes evangélicos acrescentaram suas críticas à posição pré-tribulacionista. As modificações (Ap 16-18) aos primeiros três anos e meio (quarenta e dois meses) em Dn 7.9 e 12, e em Ap 11 e 12, argumentavam a favor de um período abreviado de tribulação. Como apoio deste argumento, citavam Dn 7.25 que indica que a igreja estará sujeita ao governo tirânico do anticristo durante três anos e meio. Dn 9.27 também indica que o governante mundial do fim dos tempos fará um acordo com os cristãos e os judeus, dando garantias da liberdade religiosa, mas que passará, depois, a levar a efeito a segunda etapa do seu plano, e suprimirá as observâncias religiosas. Acreditava-se que várias passagens do NT também apoiavam o mid-tribulacionismo, incluindo Ap 12,14, que prediz uma fuga da igreja para o deserto durante primeiros três anos e meio do período da tribulação. Além disso, os mid-tribulacionistas acreditavam que o ponto de vista deles se encaixa no discurso do Monte das Oliveiras (Mt 24; Mc 13; e Le 12) melhor do que a interpretação pré-tribulacionista.

Os mid-tribulacionistas declaram que o arrebatamento deve ocorrer depois de certos sinais preditos e da fase preliminar da tribulação, conforme a descrição em Mt 24.10-27. O evento não será secreto, mas sim acompanhado por uma demonstração impressionante, incluindo um alto brado e o ressoar da trombeta (1 Ts 4.16; Ap 11.15; 14.2). Este sinal dramático atrairá a atenção das pessoas não salvas e, quando estas perceberem que os cristãos desapareceram, virão para Cristo em números tão grandes que haverá um reavivamento em grande escala (Ap 7.9,14).

O Ponto de Vista Pós-Tribulacionista.

Muitos outros intérpretes não se sentiam à vontade com a forte distinção que os pré-tribulacionistas fizeram entre a Igreja e Israel. Cristo, segundo acreditavam, voltaria para arrebatar os Seus santos e para estabelecer Seu reino milenar ao mesmo tempo. Citavam numerosas passagens (Mt 24.27,29) que indicavam que a Segunda Vinda de Cristo deve ser visível, pública e posterior à tribulação. O argumento baseava-se no fato de que os conselhos dados nas Escrituras às igrejas, no tocante aos últimos dias, não fazem sentido se a igreja não tiver de passar pela tribulação. Por exemplo, a igreja é ordenada a fugir para as montanhas quando ocorrerem certos eventos, tais como o estabelecimento do abominável da desolação no lugar santo (Mt 24.15-20).

Muitos argumentos sugeridos por aqueles que defendem o ponto de vista pós-tribulacionista são declarados em oposição à posição pré-tribulacionista, que tem sido a interpretação mais geralmente sustentada entre os pré-milenistas norte-americanos do século XX. Incluídas nestas criticas há sugestões de que a volta iminente de Cristo não requer um arrebatamento pré-tribulacionista. Os pós-tribulacionistas também indicam a dificuldade em resolver quais passagens das Escrituras se aplicam a Israel, e quais delas são relevantes para a Igreja. Além disso, argumentam que há uma falta notável de ensinos explícitos no NT a respeito do arrebatamento.

Os defensores da posição pós-tribulacionista diferem entre si quanto à aplicação das Escrituras proféticas e aos pormenores da volta de Cristo. John Walvoord detectou entre eles quatro escolas de interpretação. A primeira delas, o pós-tribulacionismo clássico, é representada pela obra de J. Barton Payne, que ensinou que a igreja sempre tem estado na tribulação e, portanto, a grande tribulação já foi cumprida, na sua maior parte. O segundo grupo principal dos pós-tribulacionistas é o que mantém a posição semiclássica que se acha na obra de Alexander Reese. Entre a variedade de crenças sustentadas por estas pessoas, a mais comum é a de que todo o curso da história da igreja é uma era de tribulação, mas que, além dela, haverá um período futuro de grande tribulação. Uma terceira categoria de interpretação pós-tribulacionista é chamada futurista, e é apresentada de modo competente nos livros de George E. Ladd. Aceita um período futuro de três anos e meio, ou sete anos, de tribulação entre a presente era e a Segunda Vinda de Cristo. Foi levado a esta conclusão por uma interpretação literal de Ap 8-18. Um pré-milenista firme, ele acredita que o arrebatamento pré-tribulacionista foi um acréscimo às Escrituras que, por isso mesmo, obscureceu o evento verdadeiramente importante, o próprio aparecimento de Cristo para inaugurar o Seu reino. Um quarto ponto de vista de de Robert H. Gundry, que Walvoord chama de interpretação pós-tribulacional dispensacional. Gundry combina de modo original os argumentos pré-tribulacionistas com a aceitação do arrebatamento pós-tribulacionista.

A Interpretação do Arrebatamento Parcial

Além dos pontos de vista pré-tribulacionista, mid-tribulacionista e pós-tribulacionista do arrebatamento, tem havido aqueles que argumentam a favor de uma teoria do arrebatamento parcial. Este pequeno grupo de pré-tribulacionistas ensina que somente os que forem fiéis na igreja serão arrebatados no início da tribulação. Os demais serão arrebatados durante o período de sete anos, ou no fim dele. Segundo estes intérpretes, aqueles que forem mais leais a Cristo serão levados primeiro, e os mais mundanos serão arrebatados mais tarde. Embora este ponto de vista seja condenado pela maioria dos pré-milenistas, o respeitado G. H. Lang o defendia.

Conclusão

A interpretação do arrebatamento tem provocado algumas diferenças de opinião entre os evangélicos. Aqueles que defendem um arrebatamento pré-tribulacionista têm sido acusados de terem uma atitude severamente limitada para com a igreja e a sua missão, a cultura e a educação, e os eventos da atualidade. Embora alguns dispensacionalistas deem motivo a isto, por considerarem sua posição quase como doutrina fundamental da fé, a maioria rejeitaria a crítica acima como generalização sem base. Insistiriam que sua posição não exclui nem uma ética social altamente desenvolvida, nem uma política de rejeição do mundo, no sentido correto desta expressão.


Nota:

  • [1] CLOUSE, Robert G. Ph. D., pela Universidade de Iowa. Professor de História, Universidade do Estado de Indiana, em Terre Haute, Indiana, EUA.

Fonte:

CLOUSE, Robert G. O Arrebatamento da Igreja. Apud: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. I. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág.116 a 119.

18 maio 2023

Uma Belle Époque não tão belle

 


Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]



"Por apresentar uma visão otimista do presente e do futuro, o final do século XIX e início do XX foram caracterizados – seguindo a moda europeia – como sendo uma belle époque. Havia, contudo, uma face sombria nesse período. O início da República conviveu com crises econômicas, marcadas por inflação, desemprego e superprodução de café…” [2].

A Estação da Luz em São Paulo (foto), marca o auge do período do café. A cidade de São Paulo, durante a República Velha (1889-1930), “… salta de ao redor de 70 mil habitantes em 1890 para 240 mil em 1900 a 580 mil em 1920...” [3].


Os anos posteriores à proclamação da República foram marcados por um turbilhão de mudanças. A europeização, antes restrita ao ambiente doméstico, transforma-se agora em objetivo – melhor seria dizer “obsessão” – de políticas públicas. Tal qual na maior parte do mundo ocidental, cidades, prisões, escolas e hospitais brasileiros passam por um processo de mudança radical, em nome do controle e da aplicação de métodos científicos; crença que também se relacionava com a certeza de que a humanidade teria entrado em uma nova etapa de desenvolvimento material marcada pelo progresso ilimitado.
Por apresentar uma visão otimista do presente e do futuro, o final do século XIX e início do XX foram caracterizados – seguindo a moda europeia – como sendo uma belle époque. Havia, contudo, uma face sombria nesse período. O início da República conviveu com crises econômicas, marcadas por inflação, desemprego e superprodução de café. Tal situação, aliada à concentração de terras e à ausência de um sistema escolar abrangente, fez que a maioria dos escravos recém-libertos passasse a viver em estado de quase completo abandono. Além dos sofrimentos da pobreza, tiveram de enfrentar uma série de preconceitos cristalizados em instituições e leis, feitas para estigmatizá-los como subcidadãos, elementos sem direito a voz na sociedade brasileira.
Nesse sentido, é possível afirmar que a importação do ideário da belle époque esteve longe de ser ingênuo. A ciência europeia da época, que passou a ser vista como critério definidor das sociedades civilizadas, era marcada por visões racistas, na qual os brancos ocupavam o primeiro lugar do desenvolvimento humano, e os negros, o último.
Mas o que era o racismo naquela época? É no século XIX, com o conde de Gobineau, autor de um Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, que a noção de raça, associada às características físicas e a um passado comum, ganhou força. Gobineau andou pelo Brasil a convite de d. Pedro II e, na mesma época, despontou uma disciplina encarregada de estudar o problema: a antropologia designava, então, a arte de avaliar a cor da pele, medir crânios e definir raças. Um debate antigo agitava a área: a origem da espécie humana seria única ou múltipla?
No Brasil, tais concepções chegaram tarde. A simples introdução da categoria “cor” nos censos do Império gerou protestos, e apenas em fins do século é que intelectuais brasileiros se interessaram pelo tema. E diante da questão da mistura étnica que marcou a nossa formação, o que fazer? Raimundo Nina Rodrigues e Silvio Romero buscaram mapear as contribuições da raça negra à nossa formação. No entanto, muitos intelectuais inverteram as interpretações que previam a degeneração da raça como resultado da mestiçagem, apostando, ao contrário, que, graças à imigração europeia, o branqueamento seria a solução. Se essas conclusões fortaleceram preconceitos num momento em que os últimos escravos estavam sendo libertados, elas não estabeleceram fronteiras raciais nítidas entre as pessoas, pois valorizavam a miscigenação como uma forma eficiente de convívio. Isso não evitou, contudo, a hierarquização das raças.
Asiáticos, e especialmente os chineses, chamados “chins”, também eram vistos como o fim da linha civilizatória, equiparando-se aos africanos. A ideia de substituir os segundos pelos primeiros, proposta pelo visconde de Mauá, por exemplo, foi violentamente recusada, sob a alegação de que eles teriam os piores vícios, além de ser “preguiçosos e desobedientes”.
Nesse contexto, a importação das ideias racistas tinha objetivos claros: após o 13 de Maio deixava de existir a instituição que definia quem era pobre e rico, preto e branco, na sociedade brasileira. O racismo emergia assim como uma forma de controle, uma maneira de definir os papéis sociais e de reenquadrar, após a abolição da escravidão, os segmentos da população não identificados à tradição europeia.
Registravam-se, contudo, significativas diferenciações no interior das teorias racistas importadas. Para uns, como os médicos higienistas, era possível remediar as debilidades de africanos e mestiços, ao passo que, para certas correntes, próximas ao darwinismo social, tal mudança era impossível de ser realizada. Dessa forma, enquanto o primeiro grupo propunha a difusão da educação, principalmente em escolas agrícolas, controle da saúde pública, vacinação em massa e reforma dos hábitos higiênicos, o segundo defendia a noção de “sobrevivência do mais forte”, chegando a ver na pobreza um elemento purificador da sociedade brasileira. Ela se encarregaria de eliminar os elementos tidos como inferiores, ou seja, os egressos do cativeiro que não conseguiam se inserir no mercado de trabalho. Um exemplo desse racismo ficou registrado no livro de Francisco Oliveira Vianna, Populações meridionais do Brasil, publicado em 1918: “Os preconceitos de cor e sangue” – afirma o mais famoso sociólogo da belle époque brasileira –, “que reinam tão soberanamente na sociedade [...] têm, destarte, uma função verdadeiramente providencial. São admiráveis aparelhos seletivos que impedem a ascensão até as classes dirigentes desses mestiços inferiores, que formigam nas subcamadas da população [...]”.
Com certeza, essa última postura nem sempre era expressa de forma tão cruel, mas sim de maneira fragmentada, sob a capa de liberalismo ortodoxo ou por intermédio de decisões políticas. Um exemplo foi o diminuto empenho das autoridades públicas da Primeira República diante da tuberculose, principal causa de morte entre os negros e mestiços nas mais importantes cidades brasileiras. Por outro lado, os higienistas não eram isentos de racismo; a medicina legal, que surge no período, obcecada pela noção de raça, é um desses casos. A criminologia da belle époque rompe com a tradição jurídica inaugurada no século XVIII, que tinha como princípio a igualdade dos homens perante os delitos e as penas, considerando a partir de agora os delinquentes quase como um gênero humano singular, uma manifestação de formas biológicas inferiores; daí discutir-se, como fez o médico baiano Nina Rodrigues, a necessidade de legislações específicas de acordo com as raças: “A civilização ariana” – afirma o estudioso – “está representada no Brasil por uma fraca minoria da raça branca a quem ficou o encargo de defendê-la, não só contra os atos antissociais – os crimes – dos seus próprios representantes, como ainda contra os atos antissocias das raças inferiores”.
Vinda de um cientista negro, tal opinião revela que, quase sem distinção, a elite brasileira estava tomada por essa forma de pensar. Tal perspectiva, de desconfiança contra mestiços e negros como criminosos em potencial, também levou à ampliação dos poderes da polícia e à edificação de penitenciárias públicas, muito mais atentas do que as instituições repressivas do Império aos crimes cometidos por descendentes de africanos. Nem as crianças escaparam ao preconceito. Assim, em fins do século XIX, quando as instituições de caridade brasileiras registravam um crescimento vertiginoso do abandono de meninos e meninas negras, temos também o início da mudança do status jurídico da infância carente. Se até então os meninos e as meninas sem família eram vistos como anjinhos a ser socorridos por instituições misericordiosas, eles passam a ser encarados como “menores abandonados”, membros mirins das “classes perigosas”, que deveriam ser isolados do convívio social, em asilos destinados a esse fim.
A política higienista da belle époque desdobrou-se ainda no espaço urbano. Após 1889, em diferentes cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, Belém e Fortaleza, foi dado início ao que ficou conhecido como a era do “bota-abaixo”. O espaço urbano colonial, fruto de uma experiência secular de adaptação da arquitetura portuguesa aos trópicos, cede lugar a projetos de reurbanização, orientados pela abertura de largas avenidas e pela imitação de prédios europeus; decisão levada a cabo pelos poderes públicos e que implicava desalojar milhares de famílias pobres – a maior parte delas de negros e mulatos –, expulsando-as de áreas centrais, onde estavam os cortiços, para locais de difícil edificação. Dessa maneira, a mesma cidade que se embelezava era também aquela que inventava a favela, termo que nasce na época, aliás, concomitante com a expressão pivette (erva daninha) – designação em francês, a língua da moda, para criança de rua.
O racismo dos tempos iniciais da República voltou-se também ao combate de tradições culturais. A capoeira e as várias formas de religiosidade africanas tornam-se, segundo o Código Penal de 1890, práticas criminosas, enquanto a culinária dos antigos escravos sofre severa condenação médica. Nem as festas escapam ao furor anti-africano. Em pleno Salvador, os batuques, afoxés e candomblés são colocados na ilegalidade. Enquanto isso, em diversas outras cidades, o entrudo, comemoração pública na qual os negros participavam como coadjuvantes, nas festas de Momo ou na condição de alvo das brincadeiras com água de cheiro, começa a perder adeptos entre a elite, que passa a frequentar carnavais em bailes de salão, com serpentina e confete, à moda veneziana.
Como seria de esperar, essas várias formas de intervenção no mundo tradicional da população negra e mestiça deram origem a tipos variados de reações. Algumas delas podiam assumir formas não violentas, como a reação diante da proibição das festas negras. Embora as mudanças promovidas pela elite tivessem por objetivo “desafricanizar” o carnaval, tais medidas acabaram – pelo menos em algumas cidades brasileiras – sendo assimiladas pelas camadas populares. Exemplo disso foi o surgimento do desfile de carnaval na capital republicana. Além do confete e da serpentina, outra importação da belle époque carioca foi a do corso europeu. Nessa festa, os elementos mais distintos e ricos da sociedade desfilavam em carros alegóricos, competindo no brilho e luxo das fantasias. Empresas ofereciam prêmios e jornais acirravam a disputa. Aos pobres cabia assistir passivamente à festa das calçadas; lentamente, porém, eles começaram a se organizar. Na década de 1920, por exemplo, era fundado o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira, liderada por sambistas e passistas de origem humilde. Dessa forma, o corso da elite foi dando lugar ao desfile popular de escolas de samba, organizadas nas favelas e bairros periféricos do Rio de Janeiro.
No esporte é possível identificar outro exemplo dessa incorporação popular de inovações elitistas. Importado como um lazer fino e aristocrático, o futebol acabou assimilando o gingado da capoeira e do samba, dando origem a um estilo, definido por Gilberto Freyre, como “dionisíaco” de jogar, um “futebol-dança” que permitiu aos grupos populares vinculados às tradições africanas se sobressaírem.
O cinema também contou com adesão espontânea, servindo de poderoso aliado na difusão de costumes estrangeiros, como a substituição, nos rituais amorosos, dos tradicionais beliscões portugueses pelos beijos. Salas destinadas ao cinematógrafo lumière foram primeiramente inauguradas no Rio de Janeiro. Em 15 de novembro de 1897, o jornal A Notícia registra detalhes da projeção de um filme: “quase se sente medo de que as ondas do mar, ultrapassando os limites do quadro, invadam o elegante salão”. A novidade não demora a conquistar público e, ainda em 1897, projeções de películas são registradas em outras cidades brasileiras, associando-se eventualmente a circos e grupos de teatro. No entanto, nem todas as transformações ocorridas na belle époque foram assimiladas ou aceitas com tranquilidade. Tanto nas cidades quanto no meio rural, as intervenções do poder governamental deram origem a importantes levantes coletivos. Aos olhos do leitor atual, essas revoltas podem parecer sem sentido ou fruto da ignorância. Mas, no fundo, elas traduziam uma reação cultural violenta diante das rápidas e autoritárias transformações ocorridas no período, transformações que não levavam em conta as formas de vida tradicionais da maioria da população – atitude, aliás, que teve início no período monárquico. Assim, em 1871, antes da proclamação da República, mas já no clima de europeização que reinava então, teve início na capital do Império uma dessas insurreições. O motivo, aparentemente, era surpreendente: a população carioca voltava-se contra a adoção do novo sistema métrico, inspirado, como seria de se esperar, no modelo francês, baseado em medidas lineares de volume e de peso. Tal movimento ficou conhecido pelo revelador nome de Quebra-Quilos, estendendo-se, em 1874, pelo interior nordestino, atingindo Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Norte.
Pode parecer estranho que a substituição oficial de medidas lineares, como côvado ou jarda, pelo metro, ou de medidas de peso, tais como onça ou libra, por quilo, tenha revoltado tanta gente. No entanto, é preciso ter em mente que essa determinação legal, além de ocorrer no auge da “questão religiosa” e de sugerir a preparação do terreno para a introdução de novos impostos, rompia de uma hora para outra com tradições culturais de vários séculos na forma de organizar o mundo das camadas populares. Por isso, o levante denominado Quebra-Quilos pode ser considerado uma revolta social contra a pobreza e uma manifestação contra a europeização forçada. Tanto foi assim que, além de atacarem ricos comerciantes e fazendeiros e queimarem a documentação de cartórios e câmaras, os revoltosos nunca deixaram de destruir, nas feiras e nos estabelecimentos por onde passavam, os novos pesos e medidas impostos pelo governo imperial.
Bem mais conhecida e com efeitos mais profundos foi a revolta de Canudos. Seu líder, Antônio Conselheiro, desde os anos 1870 pregava pelo sertão nordestino. Em 1893, em uma velha fazenda arruinada no interior baiano, Conselheiro abandona a vida errante e cria a comunidade de Belo Monte, onde chegou a reunir 25 mil seguidores. Quem o acompanhava era a gente pobre do sertão, prostitutas e criminosos arrependidos, assim como muitos ex-escravos que não conseguiram se inserir na sociedade baiana pós-abolição. No mesmo ano em que é fundada a comunidade de Canudos tem início um conflito entre Antônio Conselheiro e os poderes republicanos. Os desentendimentos iniciais decorriam da criação de impostos municipais, autorizados pelo novo regime. Rapidamente a condenação a essa medida estende-se a outras, como a separação entre Igreja e Estado e a instituição do casamento civil, em contraposição ao modelo tradicional do matrimônio religioso. Dessa maneira, os conflitos evoluem para um confronto entre o mundo tradicional do sertão e a República.
No Rio de Janeiro da mesma época, cabe lembrar, o novo regime lutava contra a Revolta da Armada e organizava expedições para combater os federalistas do Sul. Embora a maior parte dos envolvidos nesses movimentos expressasse mais descontentamento ante os rumos tomados pelos republicanos do que simpatias monárquicas, eles, em razão da insegurança do governo de então, foram acusados de ser restauradores. Por razões fáceis de compreender, tal acusação foi estendida aos conselheiristas. Professando um vago saudosismo monárquico, bem diferente do laico e intelectualizado das elites, e esperançoso do mítico retorno de d. Sebastião – rei português renascentista que desapareceu combatendo os mouros –, Antônio Conselheiro deu margem para ser acusado de conspiração e de ser, no sertão, o braço armado dos monarquistas. Por isso, a comunidade de Belo Monte tornou-se alvo de uma implacável perseguição, conseguindo resistir a várias campanhas militares até, finalmente, em 1897, ser derrotada e massacrada.
Alguns anos mais tarde, foi a vez de a população carioca levantar a bandeira contra a modernidade imposta de cima para baixo. Em 1904, um levante envolvendo milhares de pessoas, que deixou como saldo 23 mortos e 90 feridos, tomou conta da capital republicana. O motivo dos revoltosos: protestar contra a vacinação antivaríola obrigatória. Uma vez mais, o levante popular apresenta características ambíguas, sendo ao mesmo tempo uma manifestação contra a pobreza urbana – o movimento ocorre após alguns anos de crise econômica no Rio de Janeiro – e uma resistência aos projetos autoritários liderados por higienistas que subestimavam os temores populares de um possível contágio com outras doenças, como a sífilis, ou que a vacina em si fosse um meio de propagação da varíola.
Nem mesmo para quem estava escondido no meio do mato a belle époque deixou boas lembranças. Na Amazônia, observa-se, ao longo do século XIX, o renascimento da escravidão indígena, enquanto, nas áreas do Centro-Sul, a ampliação das estradas de ferro possibilitou a incorporação de terras afastadas do litoral à agricultura de exportação. No estado de São Paulo, em razão da expansão da fronteira oeste, registram-se, nas proximidades de Bauru, sucessivos massacres dos caingangues, o mesmo ocorrendo em Santa Catarina, onde os xokleng entram em processo acelerado de extinção; fenômeno que estava longe de representar casos isolados e que levou, nas primeiras décadas do século XX, à quase extinção das populações indígenas brasileiras.
Como veremos a seguir [cap. 24], paralelamente às rebeliões datadas desse período e ao trágico destino dos grupos indígenas, havia outro movimento social em formação na belle époque que, nos centros urbanos mais desenvolvidos economicamente, dará muita dor de cabeça à elite. Seu nome: anarquismo. Seu objetivo: destruir o mundo capitalista e burguês em processo de formação no Brasil.

Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 159 a 164, Capítulo 23. 
  • [2] DEL PRIORI. Idem, Nota 1. Pág. 159. 
  • [3] WIKIPEDIA. Belle Époque brasileira. In: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Belle_%C3%89poque_brasileira>. Acesso em: 18/05/2023.


Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


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