“Um homem corta para si cedros, toma um cipreste ou um carvalho, fazendo escolha entre as árvores do bosque; planta um pinheiro, e a chuva o faz crescer. Tais árvores servem ao homem para queimar; com parte de sua madeira se aquenta e coze o pão; e também faz um deus e se prostra diante dele, esculpe uma imagem e se ajoelha diante dela...” (Is 44.14-15)
As criações humanas como
fabricação de objetos para o cultivo da terra, instrumentos de caça e pesca,
técnicas para construções de cidades, regras de convivências, crenças,
tradições, conhecimentos em geral etc., como já destacamos,
são situações que marcam o homem após sua queda e, consequentemente,
este processo se deu a duras penas porque o homem caiu de sua posição em que
originalmente foi criado, manchando, inclusive, suas criações por causa do
pecado.
O texto bíblico acima é um
exemplo de culturas ou ações do homem em sua relação com a natureza, da qual
ele extrai (cria) objetos (cultura material) para seu próprio uso ou sobrevivência. Mas
há também no texto indicativo de sua intenção pela busca por um ente sagrado,
um “deus”, que pode ser representado por uma imagem, um símbolo, um totem, diante dos quais ele se prostra e os adora. Um
deus em forma de um objeto concreto (uma imagem, por exemplo) simboliza a
expressão de sua crença.
O bezerro de ouro[1]
As crenças
das pessoas são aspectos de sua cultura imaterial, relacionadas à sua crença ou religiosidade
socializada e aceita pelos membros de determinado grupo social. Usamos a
expressão “crença ou religiosidade socializada”, porque sabemos que um aspecto
cultural só se fará parte de seu todo cultural, pelas vias da repetição,
aprendizagem etc. pelos membros de um grupo social, sociedade, povo... Desta
forma, a religiosidade de um povo é um aspecto de sua cultura total – a soma de
seus traços comportamentais – deste povo, e representa sua busca pelo divino,
representa, também, um de seus “símbolos” fundamentais por ser a afirmação de
seu significado. Conforme destaca o professor Faustino TEIXEIRA (p. 15), a religião
serve como um “potente referencial contra
o terror da anomia”. O medo do caos social e/ou ausência de regras ou
normas levam as pessoas à busca da religião uma vez que ela
... exerce um
singular papel de integração das experiências anômicas, facultando um
significado para as crises biográficas... Diante do quadro de precariedade e
limitação que envolve a situação humana, a religião funciona como um dossel
sagrado protetor do nomos[2]...” (Ibidem, p. 15)).
A religião ocupa um lugar
importante para o homem na sociedade. O “dossel sagrado”, de BERGER (Apud TEIXEIRA, Op. Cit., p. 15), apresenta
o papel da religião como uma espécie de “edifício de representação simbólica”
que protege os homens do caos, da falta de regras e leva-os a lutar contra o
vazio.
Este pensamento que permeia
as mais diferentes culturas constitui “o
explicador mais usual e, muitas vezes, o mais acreditado” dos seres humanos
na busca pelo Sagrado e Protetor. A religião constitui uma necessidade e
interesse dos seres humanos para:
·
suportar e vencer suas dificuldades de existência;
·
buscar os deuses (ou um Deus) que os podem salvá-los dos perigos terrenos;
·
buscar proteção e esperança contra as incertezas da vida, num outro mundo;
·
falar, ser ouvido e receber os deuses em seu próprio corpo... Ou seja, a religião
constitui uma “tessitura social”, afirma TEIXEIRA (2014, p. 23).
Mas a religião, uma vez
formalizada com seus códigos, livros sagrados, ritos/mitos etc., sempre foram
acompanhados de líderes ou guias que os orientaram. Assim, desde os primórdios,
Pré-história e Antiguidade, por exemplo, as principais crenças, depois de serem
socializadas e praticadas em grupos, logo encontraram uma classe
politico-religiosa, o clero, que exercia
liderança e até domínio sobre os seus praticantes (crentes).
Em civilizações antigas como
Egito, Grécia e Roma, as formas religiosas mais populares eram as conhecidas religiões de mistério, que tinham
em seu bojo uma série de segredo e crenças, reveladas apenas aos seus iniciados
na religião, os quais buscavam a salvação e uma bem-aventurança futuras.
Surgiu, então, o conceito de “... imortalidade
[que] poderia ser obtida mediante a
iniciação numa experiência secreta que visava salvar a alma depois da morte”
(KROEGER, Op. Cit., p. 279). As principais religiões de mistérios eram as de
Elêusis, o orfismo, o pitagorismo, o culto à Ísis, o culto a Mitra e os
gnósticos, além de ter exercido influências no cristianismo e recebidas deste,
conceito como a ressurreição, por exemplo.
Mas tanto no passado quanto
no presente a religião e a cultura estão intrinsecamente relacionados e as
mesmas perguntas religiosas feitas no passado, afirma Rubem ALVES:
... se articulam
agora, travestidas, por meio de símbolos secularizados. Metamorfoseiam-se os
nomes. Persiste a mesma função religiosa. Promessas terapêuticas de paz
individual, de harmonia íntima, de liberação da angústia, esperanças de ordens
sociais fraternas e justas, de resolução das lutas entre os homens e de
harmonia com a natureza, por mais disfarçadas que estejam nas máscaras do
jargão psicanalítico/psicológico, ou da linguagem da sociologia, da política e
da economia, serão sempre expressões dos problemas individuais e sociais em
torno dos quais foram tecidas as teias religiosas. Se isto for verdade, seremos
forçados a concluir não que o nosso mundo se secularizou, mas antes que os
deuses e esperanças religiosas ganharam novos nomes e novos rótulos, e os seus
sacerdotes e profetas novas roupas, novos lugares e novos empregos (pp. 11 e
12).
A religião está presente também
de forma invisível ou sutil e até disfarçada em nosso cotidiano, pois o homem
como um ser cultural e também espiritual – portanto, dotado de consciência –
tem anseio pelo transcendente,
aquele que pode responder aos seus anseios e preocupações. Assim, surgiu a
religião, como uma forma de aproximação com o “sagrado”, criando para este fim
“... altares, santuários, comidas,
perfumes, lugares, capelas, templos, amuletos, colares, livros...” (Ibidem,
p. 22), e criam em torno destes símbolos uma aura misteriosa, e a partir disto,
os olhos da “fé” passam a estar voltados para os mesmos. Neste sentido, citando
Ludwig Feuerbach, Alves afirma que ‘... a
consciência de Deus é autoconsciência, conhecimento de Deus é autoconhecimento.
A religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelação dos
seus pensamentos íntimos, a confissão aberta dos seus segredos de amor’
(Ibidem, p. 13).
A religião é a expressão do
espirito humano, dotado de razão e “fé”. Esta fé (entre aspas, pois a fé tem um
significado mais abrangente do que o sentido aqui exposto) recebe alguns
questionamentos de cientistas (sociólogos, psicólogos, antropólogos,
historiadores...) e teólogos sempre no sentido de encontrar luz para este
importante tema, tendo como base a tentativa de ligar (ou não) a religião à
necessidade do espírito humano de buscar o sagrado, divino ou transcendente. As
ciências humanas, segundo Paul TILLICH,
... acentuam a
infinita diversidade de ideias e práticas religiosas, o caráter mitológico dos
conceitos religiosos e a existência de grande número de formas não religiosas
adotadas por indivíduos e grupos. Dizem, segundo Comte, que a religião
caracteriza o estágio mitológico do desenvolvimento humano, e não tem lugar na
época científica em que vivemos (Op. Cit, p. 40).
Mas reconhece Tillich que os
teólogos podem dar suas contribuições ao afirmar que “... a religião significa que recebemos alguma coisa de fora, que nos é dada
e pode voltar-se contra nós. Insistem que a relação com Deus não pode partir de
nós e que, portanto, Deus é quem toma iniciativa.” (Idem: p. 40). Por isso,
ao considerarmos a religião como esta “coisa
de fora”, isso subtende aparentemente algo além da cultura, ou seja, supra cultural,
pois não é criação do homem e sim uma “revelação” de um Ser sobrenatural. É
neste sentido, que pretendemos falar em outro momento da religião cristã como
sendo este algo de “fora” revelado ao ser humano como meio de levá-lo ao seu
Criador.
Reafirmamos que a
diversidade cultural faz parte do propósito de Deus e que a religiosidade é um
aspecto ou elemento de cada cultura, que pode variar de muitas formas: crença
em vários deuses (politeísmo ) ou um único deus (monoteísmo) e assim por
diante. Como, então, as culturas chegam ao verdadeiro conhecido da verdade
nesta diversidade de crenças? Mais à frente, no post “cultura
e evangelho”, falaremos sobre o Logos
e veremos que sua presença se faz notória em todas as culturas, preparando-as
para o recebimento das boas-novas revelados pelo Deus dos hebreus, encarnado e
que se tornou o redentor de todas as pessoas, e, consequentemente, de suas
culturas.
Portanto, podemos afirmar
que a religião é um aspecto da cultura imaterial de um povo, mas entendemos que
a revelação dada pelo próprio Deus
dos hebreus (Jeová ou yahweh), que ficou conhecida através do Judaísmo e
Cristianismo, implica, a meu ver, um aspecto “supra cultural”, incorporada à cultura
judaico-cristã e a todos que depositam sua fé na pessoa de seu Messias e
Salvador, Jesus Cristo, cuja mensagem serve para todos os seres humanos, em todas
as culturas, no tempo e no espaço.
Referências Bibliográficas:
ALVES, Rubem. O que é
religião. São Paulo: Abril Cultural / Brasiliense, 1984.
GONZÁLEZ, Justo. L. Cultura
& Religião: o lugar da cultura no plano de Deus. São Paulo: Hagnos, 2011.
KROEGER, R. C. e C.C.
Religiões de Mistério. In: Enciclopédia Histórico Teológica da Igreja
Cristã, vol. III. São Paulo: Vida Nova, 1990.
TEIXEIRA, Faustino. Cristianismo
e Diálogo Inter-religioso. São Paulo: Fonte Editorial, 2014.
TILLICH, Paul. Teologia da Cultura. São Paulo: Fonte
Editorial: 2009.
Notas:
[1] A adoração do bezerro
de ouro, por Nicolas Poussin, de I Reis
12:28-32 que retrata o reino de Israel dividido e o rei Jeroboão I,
que fica com uma parte do reino sem ser de descendência real, cria dois
bezerros para o povo adorar, e esquecer do Deus da linhagem Real. Disponível
em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Bezerro_de_ouro>. Acesso em
24/08/2018.
[2] Nomo
era um conjunto de famílias (clã) no Antigo Egito. Diversos clãs ou nomos constituíram as primeiras
divisões politicas do Egito e eram governados por príncipes chamados nomarcas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário