Já vimos algumas
considerações acerca do homem dos pontos de vistas teológico
e antropológico, baseadas nos relatos da criação (Gn 1 e 2) e de suas
qualidades como humano. Também vimos a relação entre a queda do homem e
o pecado, que teve origem em Gênesis 3, e partir daí permeou todas as
culturas. Neste post, queremos fazer algumas considerações sobre a diversidade
cultural e seus contrastes a partir do relato da Torre de Babel (Gn 11), cujos
construtores insistiam em manter uma cultura única, e do episódio do
Pentecostes (At 2), que cooperou para a
diversidade cultural do Único Evangelho, sob o prisma da catolicidade...
1. Babel: a tentativa de manutenção de uma única cultura
“Ora, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de
falar (...) Disseram: vinde, edifiquemos para nós uma cidade, e uma torre cujo
tope chegue até aos céus e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos
espalhados por toda a terra. Então, desceu o SENHOR para ver a cidade e a
torre, que os filhos dos homens edificavam; e o SENHOR disse: Eis que o povo é
um, e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo; agora não haverá
restrição para tudo que intentam fazer. Vinde, desçamos e confundamos ali a sua
linguagem, para que um não entenda a linguagem de outro. Destarte, o SENHOR os
dispersou dali pela superfície da terra; e cessaram de edificar a cidade”
(Gn 11.1,4-8).
Gênesis 10 relata o quadro
das nações que surgem após o Dilúvio (cap. 8 e 9) a parir dos descendentes de
Noé. E Gênesis 11 relata que numa “... planície
na terra de Sinear” (v.3), na antiga Suméria (Mesopotâmia), os que
habitaram ali resolveram, sob a liderança de Ninrode (cap. 10.8-10), construir
uma cidade, que ficou conhecida como Babel,
que em hebraico significa “portão de deus”,
embora a raiz da palavra também seja similar à bãlal, “confusão” ou “mistura”. Em Gênesis 11.9, por exemplo,
diz que o nome Babel foi dado à
cidade “... porque ali confundiu o SENHOR
a linguagem de toda a terra...”.
Num breve estudo sobre a Mesopotâmia,
vimos que naquela região tornou-se comum a construção de zigurates, espécie de templos, em forma de pirâmides e em formato
de vários andares, um sobre o outro, encimado por um templo. A chamada Torre de Babel, relatada no
referido texto de Genesis (11), era um grande zigurate, de muitos andares.
Babel tinha como objetivo a manutenção de uma única cultura, pois todos falavam
uma linguagem única, e assim seria possível a construção de um único Estado
mundial. É dito de Ninrode, que “o
princípio de seu reino foi Babel...” (Gn 10.10).
Acontece que a ideia manter
uma única cultura, como desejava Ninrode, não foi aprovada e nem era plano de
Deus. Neste caso, a diversidade cultural ou a existência de diversas culturas
era o meio para os homens ocuparem toda a terra e não tornarem-se “célebres”
num mesmo lugar, seguidos de sonhos de grandeza e de poder. “Este é o problema básico de toda cultura e
de todo empreendimento humano: a autoridade que nos foi dada para usar os
recursos da terra nos faz sonhar com um poder que chegue ao céu (GONZÁLEZ: 2011,
p. 81). O homem foi criado a “imagem”
e “semelhança” (Gn 2.26-27) de Deus.
Em relação às outras espécies ela era um deus.
Mas a serpente levou o casal Adão e Eva a desacreditar desta promessa e propõs:
“sereis como Deus” (Gn 3.5). É por
isso que os habitantes de Sinear tentam firmar sua autoridade baseada na dúvida
imposta pela serpente. Assim, por exemplo, “... os tijolos [elementos da cultura material] que deveriam ser usados para
abrigar as pessoas agora são usados para usurpar o lugar de Deus, para chegar
ao céu (...) As pessoas não acreditavam no sinal do pacto e se propõem a
construir uma torre que nenhum dilúvio possa inundar” (Ibidem: p. 81).
Mas a construção da cidade e
da torre chamou a atenção de Deus, que decidiu confundir a língua (única) do
povo para fazer cessar o seu crescimento (Gn 11.7-8). Com isto, aconteceu que a
construção que foi iniciada justamente para que não fossem espalhados pela
terra, acabaram espalhados justamente devido à sua construção. E em vez de um
único “nome" (Gn 11.4), surgem muitos nomes, pois suas línguas já não são
a mesma.
A interpretação de que Babel
foi destruída por causa da soberba de seus habitantes é apenas uma face da
moeda. A outra face é que a ação de Deus de confundir a língua deles foi uma
ação libertadora. Pois em vez de criar cultura para o bem da humanidade queriam
alcançar o céu, isto é, usurpar o poder de Deus. “De certo modo, ainda hoje a diversidade de culturas tem a mesma função.
É por isso que as culturas dominantes mostram tanta dificuldade em aceitar o
valor de outras culturas” (Ibidem: p, 82).
A confusão de línguas
ocorrida em Babel impediu os detentores de um poder único de continuar com seus
sonhos idolátricos de grandeza e serviu para por um freio ante as tendências
imperialistas de toda cultura. Se várias culturas trazem problemas, uma cultura
única traz problemas ainda maiores uma vez que exalta a soberba de seus líderes
como intentava Ninrode, chefe de Babel.
2. Pentecostes: o Evangelho para todas as culturas
“Ao cumprir o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar;
de repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a
casa onde estavam assentados. E apareceram, distribuídas entre eles, línguas,
como de fogo, e pousou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do
Espírito Santo, e passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes
concedia que falassem...” (Atos 2.1-4).
Ao contrário do episódio de
Babel onde havia uma única língua, mas que foi transformada em várias outras,
após a intervenção de Deus, no Pentecostes, todos os presentes falavam em
várias línguas, mas como se fossem uma única língua. E o contraste entre os
dois textos se verifica principalmente porque em Babel as pessoas tentam chegar
ao céu, enquanto no Pentecostes, Deus desce na pessoa do Espírito Santo, à
Terra. “Babel foi o cúmulo da soberba
humana, querendo se apossar do céu; Pentecostes é o momento em que Deus se
apossa dos seres humanos. Em geral, a finalidade de todas essas comparações e
contrastes é mostrar que em Babel desapareceu a unidade e surgiu a confusão de
línguas, ao passo que em Pentecostes desapareceu a confusão e é restabelecida a
comunicação entre pessoas de línguas diferentes” (Ibidem: p. 84).
Apesar dos contrastes, há
certa semelhança nos dois casos. Por exemplo, a expressão “perplexos” (ou confusos), que aparece em Gênesis 11.7 é a mesma que
aparece em Atos 2.6. Uns ficaram “confusos” por causa da confusão de sua língua
em Babel, enquanto outros ficaram “confusos” por causa do entendimento
(unidade) das várias línguas presentes em Jerusalém. Em ambas os episódios, a narrativa
passa da unidade para a diversidade.
Diferentemente de Babel,
onde o poder estava centrado nas hierarquias humanas, no Pentecostes, o
Espírito Santo se manifesta através das pessoas: “... de toda a carne...
filhos... filhas. Percebe-se, portanto, que as culturas dos povos presentes em
Jerusalém na ocasião serviram como elemento de comunicação do Evangelho. Este deve ser compartilhado,
mas a posição de autoridade dos discípulos estaria assegurada. O Evangelho é
UNO, mas as linguagens e/ou culturas que o comunicam são diversas. “Neste compartilhar, a língua materna dos
discípulos se torna simplesmente mais uma entre outras línguas em que o
evangelho é proclamado” (Ibidem: p. 86). Ao contrário da expansão islâmica,
por exemplo, que expandiu juntamente com sua cultura, o Islamismo, o
Cristianismo conseguiu se expandir em meio a uma multiplicidade de culturas.
3. A catolicidade dos Evangelhos e a diversidade cultural
“E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda a
criatura” (Marcos 16.15).
“Depois destas coisas, olhei, e eis aqui uma multidão, a qual ninguém
podia contar, de todas as nações, e tribos, e povos, e línguas, que estavam
diante do trono e perante o Cordeiro trajando vestes brancas e com palmas nas
suas mãos” (Apocalipse 7.9).
Citei “Evangelho”, no
singular, acima, no sentido de ser, Ele, a mensagem da Boa Nova de Cristo a ser
pregado a todos os povos. Mas o próprio Evangelho de Cristo demonstra as
individualidades e características de seus escritores: Mateus, Marcos, Lucas e
João. O Evangelho é de Cristo; Cristo é judeu; o evangelho deve partir (e
partiu) dos judeus para o mundo; e quem faz este papel é a Igreja de Cristo,
que por sua vez, é composta de pessoas provenientes de todas as culturas.
“A salvação vem dos judeus”, disse Jesus à mulher samaritana (Jo
4.22). Mas ela não é (felizmente) exclusiva dos judeus. E neste sentido, como a cultura deve ser
centrífuga, o mesmo princípio se aplica ao Evangelho. Surgiu dos judeus e
alcançou quase todos os povos. Uma fuga deste princípio é o que aconteceu com a
igreja ocidental, que surgiu durante o Império Romano, e 1.500 anos depois da
queda deste, ainda insistia no uso do latim em seus cultos. Como lembra
GONZÁLEZ (Op. Cit., p. 90). “Por isso,
não deve nos causar estranheza (...): que a Reforma Protestante do século 16 se
firmou principalmente em territórios que não haviam sido parte do Império
Romano e onde não se falavam línguas românicas”.
Ao estudar o Novo Testamento
devemos levar em conta, sempre, o ponto de vista de cada escritor. Dos quatro
evangelhos, três deles (Mateus, Marcos e Lucas), embora chamados sinóticos, são
diferentes, apresentam divergências entre si, mas todos apontam para o único
Evangelho de Cristo. Em se tratando destas “aparentes” divergências e ou
contradições, GONZÁLEZ (Op. Cit. pp. 93-95) destaca algumas conclusões a serem
levadas em conta em relação a isto:
· Primeira conclusão: O Evangelho de Jesus Cristo,
apresentado na roupagem de perspectivas distintas, é um testemunho quadriforme (dos quatro evangelistas) e
não se torna, por isso, mais fraco ou menos crível, mas exatamente o contrário.
A igreja antiga incluiu esses quatro livros no cânone justamente porque eram
diferentes e, assim sendo, apresentavam os depoimentos de quatro testemunhos
diferentes. Portanto, o fato de o evangelho nos ser apresentado hoje na
roupagem de culturas diferentes não deveria nos criar mais dificuldades do que
as criadas pelo fato de haver quatro evangelhos distintos dentro do cânone do
Novo Testamento.
· Segunda
conclusão: Graças a essa variedade de perspectivas de seu
testemunho quadriforme, o evangelho é sempre uma realidade soberana,
sempre ao nosso alcance. Podemos usá-lo até no bolso, no entanto, ele nunca está
sob nosso controle. Sua diversidade tem para nós uma função semelhante à que a
confusão de Babel teve outrora: impede-nos de imaginar que o céu esteja ao
alcance de nossos esforços, ou que a verdade infinita de Deus caiba em nossas
mentes finitas.
· Terceira conclusão: Do mesmo modo que, ao ler o Evangelho
de Mateus, temos de continuar respeitando o de João, por exemplo, ao viver
nossa vida cristã dentro de uma cultura e uma igreja, temos de
continuar respeitando a fé das pessoas que vivem sua vida cristã em outras
culturas e outras igrejas. Não podemos dizer que o Evangelho de João é o
verdadeiro e que isso basta. Um só evangelho não é o testemunho quadriforme do Evangelho.
· Quarta conclusão: Do mesmo modo que
perderíamos muito se só tivéssemos o Evangelho de Mateus ou o de João, perdemos
muito quando vemos a fé cristã somente encarnada em nossa própria cultura, em
nossa própria igreja e em nossas próprias tradições. Ao ler o Evangelho de
João, devo sempre ter em mente os demais evangelhos, as epístolas paulinas, os
escritos dos profetas e de todo o
restante da Bíblia. Do mesmo modo,
ao viver minha vida cristã em uma igreja e em uma cultura especificas, devo
lembrar que entre meus irmãos e irmãs estão os milhões de fiéis que a vivem em
outras culturas e igrejas, da mesma forma que os outros milhões que a viveram
em outros tempos e circunstâncias.
As várias roupagens de um
único Evangelho apontam para a catolicidade
do mesmo. Ou seja, ser católico é ser universal,
e o Evangelho de Cristo quadriforme, que apresenta uma mensagem soberana, mas
levando-se em conta o todo ou conteúdo total da Revelação da Palavra de Deus,
demonstra esta catolicidade (universalidade) que pode e deve ser anunciado em
todas as culturas. Além disso, católico
implica também diversidade. O Evangelho não pertence a uma igreja ou a outra,
mas reflete a multiplicidade de
culturas. Assim, o relato de cada evangelista tem sua autoridade canônica. Mas
nunca será católico sem o acompanhamento dos outros. E ninguém que julga
detentor da verdade pode ser católico, mesmo que atribua a si este nome, se não
levar em conta a universalidade do Evangelho.
Conclusão
Sabemos que a cultura faz
parte do plano de Deus desde a criação do homem e devia cooperar para Sua
glória. Mas, no episódio de Babel (Gn 11), os homens da época quiseram
conservar apenas uma cultura, sintetizada pelo fato de existir apenas uma
linguagem. Mas a linguagem daquele povo foi confundida e tornou-se em várias
linguagens e, consequentemente, deu lugar às várias culturas.
No episodio de Pentecostes
(Atos 2), várias culturas representadas naquele dia em Jerusalém, tiveram a
oportunidade de presenciar a mensagem de Deus, através do Espírito Santo, cada
um em sua própria língua. Vimos, então, que o sonho de grandeza e de poder dos
líderes de Babel, foi impedida por Deus, enquanto a Boa Nova da glória de Deus
está sendo difundida através das diversas línguas e culturas. Daí, o conceito
de catolicidade do Evangelho em meio à diversidade cultural, alcançando tribos,
nações e línguas enquanto Cristo não venha...
Referências bibliográficas:
DOUGLAS,
J. D. (Editor). O Novo Dicionário da
Bíblia, Vol. I. São Paulo: Vida Nova: 1979.
GONZÁLEZ,
Justo L. Cultura & Evangelho: o lugar
da cultura no plano de Deus. São Paulo: Hagnos, 2011.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Conteúdo disponível em PDF:
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Nenhum comentário:
Postar um comentário