O homem é a
mais importante de todas as criatura de Deus, deixado como mordomo
ou administrador de suas obras aqui na
Terra. Deus, segundo a Bíblia, criou todas as coisas do nada – isto é, criação “ex
nihilo” –, e o homem foi o responsável por cuidar das coisas criadas e, a
partir destas, inventar outras, chamadas de culturas. Mas o homem falhou, por seu próprio arbítrio, nesta
tarefa, desobedecendo ao princípio determinado por Deus, dando origem, com
isso, ao pecado. Desta forma, a cultura ou as culturas que surgem a
partir daí, são eivadas de bênçãos, por fazerem parte dos propósitos de Deus e pela
origem divina que caracteriza a natureza e a imagem do homem, mas também
carregam a mancha do pecado por causa da queda e fraqueza do homem.
No post
anterior já destacamos o evangelho como uma mensagem supra cultural a ser pregada em
todos os lugares e para todas as pessoas. Neste[1],
queremos destacar o papel da missão transcultural como um dos meios para que os
que já aceitaram o propósito redentor de Jesus levem a mesma mensagem aos
demais.
Evangelismo e missão transcultural
Sabemos que
evangelização é a proclamação do
evangelho ou boas novas da salvação em Jesus Cristo, conforme está descrito nos
evangelhos. A iniciativa de buscar o homem que se distanciou é do próprio Deus,
que mediante a regeneração do Espírito Santo leva o homem “de volta” ao seu estado
original, por intermédio de Cristo. E como “todos
pecaram” (Rm 3.23) e todos são
objetos do amor de Deus (Jo 3.16), o evangelismo tem como alvo alcançar todas
as pessoas e em todos os lugares.
Mas o
evangelismo que visa alcançar outras culturas, recebe, via de regra, o nome de
“missão transcultural”. E os missionários, preparam-se (ou deveriam) para
chegar até estas variadas culturas para anunciarem o Evangelho de Jesus Cristo,
procurando ter um conhecimento prévio da cultura onde irá trabalhar. A missiologia, “a ciência da comunicação transcultural da fé cristã”, procura levar
o melhor preparo possível a seus alunos participantes, sempre visando minimizar
o máximo possível o impacto que terão ao se confrontarem com a diversidade
cultural quando de sua prática evangelizadora. O missionário se encontra direta
e indiretamente envolvido neste processo de evangelização das pessoas e de
transformação das culturas, baseados no IDE de Jesus:
E,
chegando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: É-me dado todo o poder no céu e na
terra. Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome
do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; Ensinando-os a guardar todas as coisas
que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a
consumação dos séculos. Amém. (Mt 28.18-20)[2]
Toda cultura deve ser vista
sob a lente dupla, ou seja, a do amor e da presença de Deus, por um lado, e a
da corrupção do pecado, por outro. Toda cultura é pecaminosa, mas Deus atua nela.
E como a obra missionária consegue isto? Em primeiro lugar, ao se encontrarem
com uma nova cultura, os crentes em Jesus Cristo devem tratá-la com respeito,
como lugar sagrado no qual a autoridade de Jesus Cristo já é exercida, embora
as pessoas que estão ali não o saibam. Foi assim que os primeiros cristãos
conseguiram abrir caminho no mundo greco-romano e dar origem a uma igreja que,
sendo semita em sua origem, logo se arraigou e se encarnou nessa outra cultura.
E em segundo lugar, quem leva o evangelho de uma cultura a outra deve estar consciente
de que o leva envolto em um contexto cultural; que leva consigo não o evangelho
puro, abstrato, mas o evangelho encarnado em sua própria cultura.
Todo missionário ou
missionária, não importa sua procedência ou postura teológica, traz consigo sua
cultura. Isto é inevitável e faríamos mal se os culpássemos ou criticássemos
por isso. Eu não posso me despojar de minha cultura e não devo exigir que outra
pessoa faça o que eu não consigo. O que poderíamos, sim, fazer é estar
consciente do fato inevitável de que nossa cultura impacta o modo como
entendemos e vivemos a fé.
Por outro lado, embora pedir
às pessoas que cruzam fronteiras culturais que se despojem de sua cultura seja
exigir o impossível, devemos ao menos esperar que tais pessoas estejam conscientes,
pelo menos em teoria, de que seu modo de entender e viver o evangelho – por
mais ortodoxo que seja – é seu modo
de entender e viver o evangelho dentro de
sua cultura e que, ao levar essa mensagem a outra cultura, não deverão se
surpreender caso ela se encarne de formas inesperadas.
Aculturação, enculturação e autoctonia
Ademais, podemos acrescentar
que o verdadeiro processo de encarnar o evangelho em uma nova cultura tem de
ser levado a cabo não por missionários procedentes de outras culturas, mas pincipalmente
pelas pessoas que, de dentro dessa cultura e como parte dela, aceitam o
evangelho. Nesse caso vale distinguir entre aculturação e enculturação. A aculturação consiste em tentar adaptar a
apresentação do evangelho à cultura receptora, e é o que os bons missionários
tentam fazer. Eles aprendem a língua das pessoas a quem quer comunicar sua fé; descobrem,
por exemplo, que, em uma cultura há costumes muito diferentes, daí adaptam o
evangelho a essas culturas. Mas torna-se praticamente impossível para o
missionário passar da aculturação para a enculturação,
que ocorre quando um número suficiente de pessoas dentro de uma cultura se
apossa do evangelho de tal modo que começa a interpretá-lo e vivê-lo dentro de
seus padrões culturais, e não mais dentro dos padrões do missionário.
Mas apenas a aculturação e a
enculturação não são suficientes para a relação entre fé e diversidade
cultural. É preciso que haja uma absorção do evangelho na cultura alcançada
pelo missionário e, a partir daí, surgirem as comunidades cristãs. É o que alguns
estudiosos defendem. Como exemplo, Paul G. HIEBERT destaca a necessidade das
igrejas autóctones, afirmando que “...
há uma pressão cada vez maior no sentido
de que a igreja em cada ambiente cultural se torne autônoma: que sustente-se a
si mesma, que se administre e se auto propague. (...) À medida que o
evangelho se torne autóctone para elas, suas teologias (...) também irão
variar.” (In: WINTER & HAWTHORNE, op. cit., p. 461). Para Hiebert, é
possível aplicar a revelação das Escrituras numa teologia, cuja compreensão se
dá a partir da cultura local, e que vai se evoluindo da fase do questionamento
até o evangelho se encarnar nesta cultura. E os crentes que vão surgindo neste
ambiente cultural vão pouco a pouco descobrindo formas de expressar e
interpretar o evangelho em termos dessa cultura. Como diz o próprio termo – autoctonia, característica de quem é
natural da região, ou território, em que habita –, é possível existir uma
teologia também com características culturais locais, sem adulteração da
revelação das Escrituras e num ambiente cristão genuíno.
O Verbo, a diversidade cultural e a cultura do Reino
Aculturação, enculturação, autoctonia...,
caminhos utilizados pelos bons missionários cristãos. Mas como a cultura
é para o ser humano como a água para o peixe, não há o perigo de que
simplesmente tomemos o que nossa cultura nos ensina e acabamos fazendo muito
pouco para transformar seus elementos negativos? Há, sim, muitos perigos, e
González dedica várias páginas sobre isto. Mas como é preciso correr o risco,
os missionários transculturais contam com o poder dAquele que os enviou às
culturas a serem evangelizadas. E quem assim os fez foi Jesus Cristo, como já vimos no
mandamento à Grande Comissão.
Jesus é o Verbo de Deus ou o Logos que conhece a cada palmo do planeta Terra, objeto de seu amor
(Jo 3.16). E sua ordem para evangelizar estende-se à toda ela ou “todo o mundo” (Mc 16.15), para usar o
termo bíblico. Portanto, maior do que os interesses dos missionários é o de
Jesus pelas pessoas de todas as partes do mundo. Além disso, antes que os
missionários cheguem a estes lugares, Jesus já está lá. Ele é Senhor de todos
os lugares, mesmo os mais longínquos da Terra. E por conta disso, as culturas
ali existentes, já possuem algo de bom ou positivo, por causa da presença de
Jesus ali, embora não saibam disso. E se os cristãos missionários tiverem esta
convicção, seu trabalho se torna menos penoso e mais produtivo.
Mas as culturas, embora parte delas seja rica em beleza e bondade, precisa
ser transformada ou santificada pelo Evangelho, por estarem manchadas pelo pecado e parte dela ser até de inspiração demoníaca[3]. Por
isso, na questão da relação entre a fé e a cultura o que se
coloca não é como fazer para que nossa fé seja compatível com nossa cultura,
mas como nos certificar de que essa fé pronuncia os “juízos corretos” sobre
essa cultura. Só que também as culturas precisam conhecer os “juízos corretos”
ou valores do Evangelho do reino ou da catolicidade
– universalidade ou conforme o todo – de sua mensagem. O evangelho de Cristo
(p. ex., Mt 9.35) é acompanhado de sinais e ao
ser recebido pelas pessoas, estas se deparam com a proposta de uma outra
cultura, a “cultura do reino”. Esta proposta é de quem veio salvar as pessoas,
portanto está baseada em sua Palavra, a Bíblia Sagrada. Ela apresenta a
mensagem deste reino e serve de parâmetro para as culturas. Assim, todo o
conjunto de cultura imaterial como conhecimentos, artes, costumes, crenças,
leis, moral etc., manchado pelo pecado, pode ser influenciado – ou até redimido
– pela “cultura do reino”, extraída da verdade maior, o Evangelho.
Porém, os missionários que
de alguma forma leva a posição de sua igreja a qual pertence à cultura a ser
evangelizada precisa evitar o perigo da imposição cultural da mesma. Assim como
a grande variedade
de culturas tem uma função libertadora e que
essa função consiste em livrar toda cultura da ilusão de que são absolutas, os
missionários devem atentar para isto quando se deparam com estas diversas
culturas.
A verdadeira catolicidade
não é uniformidade, mas, muito pelo contrário, é uma variedade tal que toda a
igreja em todas as partes do mundo como um único corpo com vários membros,
mantém-se em comunicação para o bem de todo o corpo, conforme podemos deduzir
de 1Corintios 12.12-13. E o modo como a igreja emprega para se assegurar de sua
própria identidade perante as culturas, é o culto, do qual nos ocuparemos depois
e também destacaremos num outro momento, sobre a posição cristã na cultura
brasileira.
Referências bibliográficas:
ELWELL, Walter A. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja
Cristã, Vol. II. São Paulo: Vida Nova, 1990 (1ª ed.).
GONZÁLEZ, Justo L. Cultura & Evangelho: o lugar da cultura
do plano de Deus. São Paulo: Hagnos, 2011.
WINTER, Ralph D.
& HAWTHORNE, Steven C. Missões
transculturais: uma perspectiva cultural. São Paulo: Mundo Novo, 1987 (1ª
ed.).
Notas:
[1] O texto a seguir é um resumo
indicativo do livro Cultura &
Evangelho, de Justo L. González (q.v.), com inserções de outras fontes,
constantes nas referências bibliográficas.
[2] Este e
outros textos bíblicos, mencionados no texto foram extraídos da Bíblia Online, versão Almeida Corrigida Fiel.
Disponível em: <https://www.biblia online.com.br/> e outros links.
[3] Conforme afirma o Pacto de Lausanne, § 10. In. O EVANGELHO e a Cultura. Série Lausanne e
Visão Mundial. São Paulo: ABU Editora, 1985.
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Nenhum comentário:
Postar um comentário