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21 março 2023

O Império Ameaçado

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


Guerra do Paraguai (1864-1870)

“5 fatos sobre a guerra do Paraguai – e por que você ainda paga por ela: 
1) Ao desafiar o Brasil, Solano López era tão doido quanto Kim Jong Un

    ameaçando os EUA. 

2) O Paraguai não era desenvolvido na época da guerra (e não é pobre

    hoje por causa dela).

3) A Inglaterra tinha uma política de ‘não intervenção’ no continente sul-

    americano. 

4) O Brasil se endividou por causa da guerra.
5) Não houve genocídio nenhum.”
 [2]


“De repente, do fundo da escarpa que a estrada contornava, irrompeu um corpo de infantaria paraguaia, que se lançou sobre a nossa linha de atiradores, atravessou-a dirigindo-se para o 1º batalhão dela distante uns cem passos... Estava o terreno coalhado de moribundos e feridos inimigos. Vários dos nossos soldados, ébrios da pólvora e do fogo, queriam acabá-los. Horrorizados, debalde esforçavam-se os nossos oficiais em lhes arrancar as vítimas às mãos, exprobrando-lhes a indignidade de semelhante chacina... Via-se, aliás, como inevitável consequência dessas cenas deploráveis, o saque desenfreado a que se entregavam os mascates e os acompanhadores do Exército também, reclamando as mulheres o seu quinhão. Eram os corpos despidos e revistados; despojos sanguinolentos passavam, de mão em mão, como mercadorias, muita vez com violência disputadas.”

Eis como Alfredo d’Escragnolle Taunay, em A Retirada da Laguna (1871), descrevia as cenas selvagens registradas durante a Guerra do Paraguai. Entre 1864 e 1870 esse conflito vitimou milhares de paraguaios, brasileiros, argentinos e uruguaios, sendo por isso considerado o conflito sul-americano mais sanguinolento – e também o de mais longa duração – ocorrido durante o século XIX.

Em relação ao Brasil, a guerra teve repercussões que foram muito além dos sofrimentos nos campos de batalha, revelando as contradições da sociedade escravista e transformando o Exército em um importante agente político. Não sem razão, Joaquim Nabuco se referiu a essa guerra como o momento de apogeu e de início do declínio do Império; afirmação que, para ser compreendida, deve ter em conta as causas remotas e imediatas da então denominada Guerra da Tríplice Aliança.

Como todos os fenômenos sociais, a Guerra do Paraguai teve raízes complexas e, por vezes, não há consenso entre os historiadores sobre seus reais motivos. De modo geral, podemos afirmar que no debate a respeito de sua origem predominam dois pontos de vista: um que enfatiza os motivos internos dos países envolvidos e outro que sublinha as raízes externas da guerra, particularmente como consequência dos interesses ingleses na região.

Desde o período colonial, a região Sul era alvo de intermináveis conflitos de fronteira. Uma vez independentes, os países que surgiram na bacia do Prata mantiveram as antigas rivalidades. O Brasil, como seria de se esperar, não estava fora dessas disputas. Durante o século XIX, uma questão central para o Império era a de impedir o aparecimento de uma potência hegemônica na região. Por um lado, temia-se que se criasse um poderoso foco de irradiação republicana, tendo em vista que os países aí surgidos na luta contra a dominação espanhola adotaram essa forma de governo. Por outro, tal posição tinha por objetivo garantir a livre circulação de embarcações nos rios Paraná, Paraguai e São Lourenço, pois, sem essa “estrada fluvial”, o acesso ao Mato Grosso tornava-se bem mais dispendioso e arriscado, em razão de os outros caminhos para essa província depararem com duas barreiras difíceis de transpor: cachoeiras e índios bravios.

Na fase de reino unido e, posteriormente, na condição de monarquia independente, o governo brasileiro temperou diplomacia com intervenção militar na bacia do Prata. Entre 1821 e 1828, por exemplo, valeu-se da força das armas, quando então incorporou a Província Cisplatina, futura República do Uruguai, ao território brasileiro. O mesmo ocorreu em 1851, quando, por meio da aliança com a província de Entre-Rios e o Uruguai, forças militares imperiais combateram o projeto expansionista de Buenos Aires. Noutros períodos, como ocorreu em 1844 e 1858, a elite política imperial reconheceu a independência do Paraguai e conseguiu, via acordos diplomáticos, de “amizade, comércio e navegação”, o livre acesso ao caminho fluvial acima mencionado. Todavia, tanto a primeira quanto a segunda solução tinham resultados de curta duração, pois a região do Prata viveu, de forma mais dramática do que o Brasil no período regencial, constantes disputas entre caudilhos locais.

O episódio que deflagrou a Guerra do Paraguai resultou de uma dessas escaramuças. Em 1863 teve início um conflito no Uruguai entre as duas facções dominantes locais, denominadas blancos e colorados. Alegando a proteção dos interesses brasileiros – calculava-se que 10% da população uruguaia era composta por gaúchos que dominavam, por sua vez, cerca de 30% das terras agricultáveis –, o governo imperial, aliado ao argentino, apoiou os colorados. Por meio de uma série de ultimatos, o Paraguai reagiu a essa intervenção, advertindo que a independência uruguaia era fundamental para o equilíbrio de poder na região. Contudo, essas ameaças de nada valeram. A intervenção brasileira prosseguiu, havendo, em outubro de 1864, atuação tanto do exército quanto da Marinha imperiais em terras uruguaias. O governo paraguaio decidiu então agir, interceptando o navio mercante Marquês de Olinda e, em seguida, ocupando territórios brasileiros e argentinos. Era dado início à guerra.

De maneira geral, esses são os argumentos daqueles que defendem os motivos regionais ou “internos” da Guerra do Paraguai. Em outras palavras, tal conflito não era de natureza muito diferente das constantes lutas registradas desde os tempos coloniais. A novidade da Guerra da Tríplice Aliança dizia respeito à magnitude do conflito, à sua longa duração e, consequentemente, aos elevados sacrifícios humanos nela registrados.

A outra corrente enfatiza as causas “externas” ou, mais precisamente, a influência do imperialismo inglês. De acordo com esse ponto de vista, a Inglaterra tinha interesse em combater o Paraguai, por ser essa uma sociedade fechada às importações britânicas e pouco vinculada ao mercado de exportação de matérias-primas. Além disso, o Paraguai oferecia um modelo caudilhesco de organização política em vez do liberal imposto pela Grã-Bretanha. A guerra teria, dessa maneira, sido promovida com o objetivo de combater uma forma alternativa de conceber a organização política e econômica na América Latina. Vários historiadores sublinharam a fragilidade desse tipo de interpretação, tanto pelo fato de o Paraguai, durante a primeira metade do século XIX, ter mantido relações comerciais regulares com a Inglaterra, quanto pela crítica à suposta alternativa econômica e social que aquele país representaria.

Para compreendermos melhor essa crítica é necessário lembrar um pouco do passado colonial. Embora fosse conhecido desde o século XVI, o território que deu origem ao Paraguai despertou pouco interesse entre os espanhóis, que concentraram seus esforços na colonização de áreas produtoras de prata, como as que deram origem aos atuais Peru e Bolívia. Devido a essa localização “periférica”, o governo metropolitano não se opôs ao estabelecimento de missões jesuíticas na região paraguaia. Os jesuítas puderam, assim, reunir sob seu comando milhares de índios guaranis, livrando essa população do extermínio, que intimava os povos das áreas vizinhas. No século XVIII, porém, tais comunidades, autossuficientes economicamente e autônomas politicamente, passaram a ser vistas com desconfiança pelo governo metropolitano. Para os absolutistas espanhóis, elas se configuravam como um “Estado dentro do Estado”. Situação inaceitável que deu origem a violentos conflitos entre o governo metropolitano e os jesuítas, resultando na expulsão destes últimos em meados do século XVIII; após serem confiscados, os territórios que correspondiam às antigas missões foram entregues a burocratas, embrião da futura classe dominante paraguaia.

Como pode ser observado, a experiência jesuítica marcou profundamente a história do Paraguai. Assim, é possível afirmar, por exemplo, que, nessa região, o sistema escravista foi residual, não havendo nem plantations nem exploração de minas. Por outro lado, devido a motivos de natureza religiosa, a população e a cultura indígenas sobreviveram, havendo inclusive a adoção do guarani como língua nacional. Os ditadores locais – a começar por José Gaspar Rodriguez de Francia, “El Supremo”, que governou o país entre 1813 e 1840 – eram, dessa forma, produtos de uma experiência singular de colonização, em que o desejo de autonomia e a presença de traços culturais e laços comunitários pré-coloniais haviam sobrevivido. Isso, porém, não significava que tais governantes estivessem vinculados a um projeto de desenvolvimento nacional alternativo ou de socialismo avant la lettre. É bem mais provável que eles procurassem reproduzir o passado colonial, gerindo o Paraguai como uma grande estância, uma grande missão laica, paternalista e comunitária. É também certo que, ao longo da primeira metade do século XIX, foram tomadas algumas medidas inovadoras, como o incentivo à metalurgia e à importação de técnicos ingleses. No entanto, isso vinculava-se à necessidade de formar um exército local, tendo em vista as tendências expansionistas de Buenos Aires e do Brasil.

Apesar desses esforços “modernizantes”, não há indicações de empenho dos dirigentes paraguaios em romper com o mundo tradicional herdado da época colonial. Talvez a afirmação contrária seja mais próxima da realidade. Nesse sentido, a reação de Francisco Solano López, em 1864, dois anos após ter sucedido o pai no poder, é bastante esclarecedora: os ataques à parte da Argentina, assim como ao sul do Mato Grosso e ao Rio Grande do Sul, de certa maneira, devolviam aos paraguaios a área de domínio das missões jesuíticas antes da expulsão da Companhia de Jesus no século XVIII.

Portanto, a não ser do ponto de vista de retorno ao passado, é pouco provável que o Paraguai representasse um modelo alternativo para os demais países da América Latina. O que não significava que as decisões do governo local agradassem aos ingleses. Conforme vários autores sublinham, a Inglaterra sempre esteve pronta a combater tendências expansionistas na bacia do Prata, importante porta de entrada de suas mercadorias. Além disso, o Brasil era, no mundo, o terceiro maior mercado importador de produtos ingleses e tradicional cliente de empréstimos internacionais. Tornara-se fundamental para a Inglaterra manter boas relações com o governo imperial – relações, aliás, arranhadas frequentemente em razão da condenação inglesa ao tráfico de escravos –, e a guerra deu essa oportunidade.

A guerra teve início em um momento espinhoso da política imperial. Acreditava-se num embate curto, quase cirúrgico, liderado por um “rei guerreiro”: o jovem d. Pedro II, cuja barba começaria, então, a embranquecer. Enormes gastos foram mobilizados para o confronto: 614 mil contos de réis, onze vezes o orçamento governamental para o ano de 1864; abria-se um deficit que persistiu até 1889. Em torno do rio Paraguai, quatro nações limítrofes, por razões internas específicas, iriam se enfrentar. A historiografia atual não reconhece mais a tese de que a influência inglesa queria apenas garantir interesses e alianças em área estratégica. Mas entende que a guerra acabou por consolidar os Estados nacionais. A Argentina unificou-se e o poder foi centralizado em Buenos Aires. No Brasil, a guerra ajudou a derrubar a escravidão e a monarquia. Quanto ao Uruguai e o Paraguai, esses países se firmariam apenas como satélites das potências regionais.

Talvez o mais provável é que a confluência entre interesses regionais e os do Império britânico tenha contribuído para o surgimento da Guerra do Paraguai. O que de fato surpreendeu a todos foi a capacidade do Paraguai em suportar quase seis anos de ataques sucessivos. Em grande parte, isso foi possível graças ao envolvimento da quase totalidade de sua população civil, dando origem, como afirmamos, ao mais sangrento capítulo da história sul-americana.

Justamente por ter atingido essa magnitude, a Guerra da Tríplice Aliança teve repercussões igualmente não previstas. No lado brasileiro, a mais importante delas diz respeito à quebra da forma tradicional de defender a fronteira meridional. Normalmente, nas suas incursões na bacia do Prata, o governo imperial dispensava o uso das forças armadas regulares, deixando essa tarefa para as denominadas troupilhas gaúchas, comandadas por proprietários rurais e seus subordinados; bandos que atuavam desde os tempos coloniais e tinham como recompensa o gado e as terras que conquistavam do inimigo.

Por dependerem dessa forma tradicional de defesa, os dirigentes do Império não estavam preparados para enfrentar um conflito longo, como foi o da campanha do Paraguai. Na época em que a guerra foi deflagrada, o Exército brasileiro encontrava-se pouco organizado, e razões para isso não faltavam. No período posterior à independência, os oficiais – a maioria deles de origem portuguesa – eram vistos como suspeitos de participar de complôs com o objetivo de restaurar o Brasil à condição de colônia portuguesa; os soldados, por sua vez, em grande parte mercenários estrangeiros ou gente oriunda das camadas populares, eram encarados como ativos participantes de levantes urbanos, inclusive o que levou d. Pedro I a renunciar ao trono. Com a finalidade de neutralizar essa dupla ameaça, foi criada, nos anos 1830, a Guarda Nacional, uma milícia formada por “cidadãos em armas”. Em outras palavras, o governo transferiu para os civis a responsabilidade de manutenção da ordem, dando origem ao “fazendeiro coronel”, ainda presente no imaginário político brasileiro.

A Guarda Nacional fazia, dessa maneira, dos senhores de escravos, auxiliados por seus capangas, os principais elementos das forças armadas, o que permitiu ao Império implementar uma política de desmobilização e esvaziamento do Exército regular. Ora, a Guerra do Paraguai, prevista inicialmente para durar seis meses, mas que perdurou por quase seis anos, exigiu a rápida reconstituição de forças armadas regulares. Ao perceber a gravidade da situação, o governo imperial teve de improvisar um Exército, recorrendo à convocação de prisioneiros, escravos, libertos, índios e até mulheres e crianças.

Compreender as razões desse irregular processo de recrutamento é fundamental, pois em grande parte a animosidade entre o Exército e o Império teve origem na forma improvisada de organizar as forças armadas que lutaram na campanha paraguaia. A primeira medida nesse sentido foi a criação, em 7 de janeiro de 1865, do Corpo de Voluntários da Pátria. Segundo a lei que deu origem a essa forma de recrutamento, o Exército podia admitir em suas fileiras todos aqueles que se apresentassem voluntariamente. O governo acenava com algumas vantagens para quem assim procedesse, oferecendo o dobro do soldo normalmente pago aos praças, indenização para as famílias dos mortos e gratificações e terras aos sobreviventes.

Tais medidas tiveram grande repercussão. Entre os 123 mil combatentes brasileiros na Guerra do Paraguai, 54 mil serviram em batalhões de voluntários da pátria. O grande problema dessa forma de recrutamento era a ausência de prévia formação militar. Entre os voluntários havia de tudo. Muitos dos que se alistaram voluntariamente eram jovens influenciados pelo nacionalismo aristocrático de escritores românticos. Outros, porém, haviam sido coagidos pelas autoridades regionais a se alistar, dando origem a queixas a respeito dos “voluntários do pau e da corda”. Os próprios mandatários imperiais aprovaram legislação complementar à anteriormente mencionada, destinada a facilitar o recrutamento coagido. A lei de 8 de julho de 1865 foi um desses casos. Com ela criou-se uma espécie de vale-tudo do alistamento: “o governo” – afirma o texto legal – “é autorizado a preencher por merecimento, durante a guerra, todas as vagas nos Corpos da Armada e classes anexas, dispensando as regras estabelecidas na legislação...”.

A nova norma de recrutamento era uma determinação feita para abolir qualquer forma de lei. A situação que então se inaugura é a do recrutamento forçado a todo custo. Graças a essa determinação, foi possível que, entre 1864 e 1866, o Exército passasse de 18 mil para 38 mil homens em armas, reunindo no ano seguinte 57 mil soldados. Os testemunhos e documentos referentes a esse recrutamento mostram que ele teve por base as mais diferentes formas e expedientes: prisões eram esvaziadas, assim como crianças e vadios eram caçados pelas ruas das principais cidades brasileiras.

No Rio de Janeiro, por exemplo, as autoridades locais colocaram, no ano de 1864, 116 meninos menores de 16 anos à disposição da armada; um ano mais tarde, essa cifra foi de 269 recrutas. Pelo menos metade desse contingente havia sido recolhida nas ruas da capital brasileira, dando origem a centenas de ofícios nos quais as famílias solicitavam às autoridades a devolução do filho recrutado à força. Nem os meninos escravos, “propriedades” alheias, conseguiam escapar a esse furor. Eis o que registra um ofício da época, enviado ao Arsenal da Marinha carioca: “Umbelina Silveira de Jesus queixou-se de ter sido prezo seu escravo Antônio, de 13 anos, na rua atrás do Convento do Carmo [...] O escravo encontrava-se nos corpos de Aprendizes de Marinheiros, na Fortaleza de Boa Viagem e, sem a permissão de sua senhora, fora arrebanhado à força”.

Havia ainda duas outras origens dos voluntários da pátria. Uma delas dizia respeito aos escravos que assentavam praça usando nomes falsos, legitimando um projeto de fuga e garantindo casa e comida nas fileiras do Exército. A outra decorria de uma antiga prática que consistia em pagar certa quantia, ou apresentar um escravo substituto, eximindo-se assim das fileiras do Exército. Em 14 de outubro de 1865, esse tipo de procedimento foi registrado no Diário da Bahia: “Atenção. Quem precisa de uma pessoa para marchar para o Sul em seu lugar, e quiser libertar um escravo robusto, de vinte anos, que deseja incorporar-se ao Exército, declare por este jornal seu nome e morada onde possa ser procurado, e por preço cômodo achará quem lhe substitua nos contingentes destinados à guerra”.

Não é preciso muita imaginação para perceber que esses recrutas saídos direto das senzalas para o campo de batalha acabavam tendo um desempenho medíocre no front. É provável que a maioria deles não tivesse a mínima ideia de por que estava lutando, e muitos, por temerem a reescravização, desertavam na primeira oportunidade, como ocorreu durante a Retirada da Laguna, célebre batalha de 1867 em que se registrou a morte de trinta soldados, ao passo que cerca de duzentos praças “desapareceram” durante o conflito.

Não sem razão, as tropas brasileiras, em boa parte formadas por escravos, menores abandonados e criminosos, eram descritas como um bando de famintos, aventureiros e aproveitadores. Alfredo d’Escragnolle Taunay também indica a presença de mulheres nos campos de batalha, “carregando crianças de peito ou pouco mais velhas”; mulheres que traziam no rosto os estigmas do sofrimento e da extrema miséria e atendiam por nomes que as remetiam a grupos sociais de origem humilde, como o caso das Ana Preta, Ana Mamuda ou Joana Rita dos Impossíveis. Assim, enquanto os homens entregavam-se ao roubo, jogatina e comércio, suas companheiras se dedicavam ao saque, apoderando-se de mantos e ponchos de paraguaios mortos, ou sobreviviam graças à prostituição. Havia ainda casos-limite, como o de uma certa Maria Curupaiti, que, aos 13 anos, disfarçada de homem, foi aceita como voluntário da pátria, falecendo em combate.
Assim, a atuação do Exército brasileiro ficava comprometida por práticas que lembravam as irregulares forças armadas do Antigo Regime. A falta de organização também se refletia no abastecimento: os soldados acabavam tendo de se alimentar quase exclusivamente de frutas silvestres, colhidas no campo paraguaio, como o bacuri, o murici e o fruto da vagem de jatobá. Os oficiais, por sua vez, comiam carne de gado caçado no local. Rapidamente, porém, essas duas fontes de alimentos escassearam, dando origem a um quadro de fome crônica. Uma vez mais, Taunay pinta com cores fortes a penúria da guerra, afirmando que, em torno dos raros animais conseguidos, formava-se “um círculo... cada qual mais ansioso esperando o jacto de sangue; uns para o receberem num vaso e o levarem, outros para o beberem ali mesmo”. As vísceras e o couro do animal eram despedaçados e devorados mal-assados ou semicozidos, dando origem a sérios problemas de intoxicação alimentar, com efeitos devastadores entre os combatentes.

Mal alimentados, com vestimentas não preparadas para o clima local, os soldados adoeciam facilmente de beribéri, malária, varíola, cólera-morbo e pneumonia. Os estudiosos do tema chegaram até a avaliar que a fome e as doenças mataram dez vezes mais soldados brasileiros do que os conflitos abertos contra os paraguaios. Por isso, ao longo dos anos da guerra, foi se consolidando entre os oficiais a opinião de que o principal inimigo do Exército eram os políticos do Império, que haviam abandonado a instituição, substituindo-a em grande parte pela Guarda Nacional. Tal situação ficou ainda mais agravada após o término da guerra, quando então ressurgiu a tendência favorável à desmobilização e ao esvaziamento do Exército. Contra essa política, os militares se uniram e, em razão dos sacrifícios e sofrimentos vividos nos campos de batalha, construíram uma identidade positiva e até heroica da instituição a que serviam. É nesse contexto que surgiu o que se costuma denominar “oposição militar” ao Império, elemento central, como veremos, no processo de declínio e colapso do governo monárquico inaugurado em 1822.

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Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 135 a 142, Capítulo 19.

 

Fonte / Referência bibliográfica

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

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