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27 setembro 2022

Perto do Ouro e longe do Rei

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


O Ciclo do Ouro [2]

Entre fins do século XVII e início do XVIII, ocorreu o que um historiador denominou de o “ensimesmamento da América portuguesa”. A Colônia deu as costas ao litoral e começou a se entranhar sertões adentro. Com a queda do preço do açúcar, Bahia e Pernambuco não eram mais centros nevrálgicos, embora continuassem funcionando como relevantes eixos administrativos e sociais do decadente império português. Entre Olinda e Recife começam a aguçar-se as rivalidades entre a gente da terra e os reinóis. A tensão eclodiria em 1710 numa guerra civil. Enquanto no Nordeste se gestavam conflitos, nas serras e brenhas a oeste do litoral do Rio e de São Paulo ecoava o grito de “Ouro! Ouro!”. Paulistas, sertanejos do rio São Francisco e densa corrente imigratória vinda da metrópole começavam a ocupar os ermos sertões. Através de rios e córregos transformados em caminhos, homens em busca da mítica serra das esmeraldas subiam na direção do Nordeste, vasculhavam o vale do Amazonas e desciam a margem esquerda do rio da Prata. Começava sorrateiramente um dos capítulos mais emocionantes de nossa história. Vamos a ele.

Ao capitão Fernão Dias Paes escrevia, em 1664, o rei d. Afonso VI: “Eu, El Rei, vos envio muito saudar. Bem sei que não é necessário persuadir-vos a que concorrais de vossa parte com o que for necessário para o descobrimento das minas”. O monarca português rogava-lhe que devassasse os sertões do Paraná, Santa Catarina e do Rio Grande. Homens como Fernão Dias, posteriormente consagrados com exagero pela historiografia, eram muito familiarizados com os sertões. Seus antepassados já tinham se embrenhado nos matos do litoral em busca do ouro de lavagem. Alheios às exigências da Coroa, os paulistas pouco pagavam impostos e tentavam de todos os jeitos obstar o controle das autoridades sobre a mineração que praticavam. Na época em que Fernão Dias recebeu a carta real iniciou-se a rápida expansão em direção aos chapadões mineiros, goianos e mato-grossenses. De vilas e cidades como São Vicente, São Paulo e Taubaté, levas de homens começam a se deslocar em direção aos vales e serras mineiros, deixando para trás mulheres, velhos e crianças. As pequenas localidades mudavam de ritmo; os engenhos e lavouras entravam em hibernação. No comércio, no artesanato e na produção agrícola, mulheres começavam a substituí-los, tentando animar o resto de vida urbana que sobrara. Inúmeras delas ganhavam a vida e sustentavam famílias. Faziam de tudo: eram agricultoras, lavadeiras, costureiras, tintureiras, doceiras. Até a prostituição ajudava na luta pela sobrevivência.

Os bandos, organizados em bases militares, podendo ter de dez a centenas de homens, chamavam-se bandeiras. Neles se juntavam não apenas paulistas, mas estrangeiros, descontentes, desertores e fugitivos da justiça. “Espécie de bandidos e de gente libertina que vive sem governo”, no dizer de viajantes. Índios livres ou cativos eram largamente utilizados como batedores, guias, carregadores, coletores de alimentos ou guarda-costas. Longe da vistosa imagem que encontramos nas gravuras, os bandeirantes vestiam-se com um chapelão de abas largas, camisa e ceroulas. Às botas, preferiam sandálias indígenas ou caminhar descalços. Coletes de couro acolchoados, capazes de protegê-los das flechas mortíferas dos inimigos, eram a peça mais sofisticada da leve bagagem que portavam. O importante era carregar muitas armas, inclusive arcos e flechas, além de grãos, que, junto com a mandioca, eram sistematicamente plantados nas trilhas abertas.

Entre 1693 e 1695, faisqueiras mineiras foram encontradas, ao mesmo tempo, por variados grupos em trechos dos vales dos rios das Mortes e das Velhas. Para se chegar aí tomavam-se dois caminhos: o Geral do Sertão acompanhava o rio Paraíba do Sul, através da serra da Mantiqueira; o outro cobria a região norte do Rio Grande, onde afluentes desembocavam nas proximidades das terras minerais. Em poucos anos, foi aberto um atalho, entre o porto de Paraty e o alto da serra. Chamaram-no posteriormente Caminho Velho para distingui-lo do Caminho Novo. A primeira rota desembocava na trilha dos bandeirantes, que ia dar em Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Taubaté e São Paulo. Esses vários trajetos eram árduos, pedregosos e íngremes, exigindo mulas bem treinadas e pernas fortes dos que as cavalgavam ou vinham a pé. Outra estrada corria paralela ao rio São Francisco, divisa entre as capitanias da Bahia e Pernambuco. O arraial de Mathias Cardoso recebia os viandantes provenientes do sertão baiano. Entrincheirados em suas faisqueiras, os paulistas olhavam com desconfiança os aventureiros que desembocavam de tais caminhos: “gente vaga e tumultuária, pela maior parte gente vil e pouco morigerada”, na descrição do governador-geral do Brasil, d. João de Lencastre.

Uma sombra pairava sobre as tão esperadas descobertas auríferas: a multidão de aventureiros que se espalhara por serras e grotões mostrava-se criminosa e desobediente aos ditames da Coroa ou da Igreja. Carregavam consigo tantos escravos que o preço da mão de obra começara a aumentar na Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Ao longo de dez anos, a tensão entre paulistas e forasteiros, entre autoridades e mineradores, só fazia aumentar. Todas as tentativas oficiais de controle falharam: de quase nada valendo a imposição de um passaporte ou o fechamento dos caminhos. Paralelamente a isso, o contrabando de ouro e a falta de alimentos cresciam. A fome espreitava, e não faltou quem morresse brigando pelo de-comer.

Em pouco mais de dez anos de colonização das áreas produtoras de ouro percebiam-se mudanças substantivas. Nas minas circulava um grupo que adquirira forte visibilidade: o dos emboabas, os não paulistas e, sobretudo, filhos de Portugal, gente que, anos antes, chegara paupérrima e conseguira entesourar cabedais. Tornaram-se, além de mineradores, mascates. Se os primeiros possuíam índios, carijós e tapuias para ajudá-los no trabalho, os segundos tinham escravos de origem africana. Tal como seus senhores, os cativos não se “bicavam”. Esgotadas as primeiras lavras de aluvião, uma mudança se impôs: o ouro que antes estava ao alcance da mão teria, a partir de então, que ser extraído do seio das montanhas. A nova modalidade de exploração custava caro. Os emboabas, todavia, estavam perfeitamente aparelhados para a empreitada. Comerciantes lusos estabelecidos no litoral davam cobertura às operações financeiras que a mudança exigia. O único obstáculo eram os privilégios paulistas. Uma carta régia de 1705 os aboliu, abrindo caminho para a ação dos emboabas. Até 1708, eles já dominavam duas das três zonas auríferas. Muitos paulistas, empobrecidos ou humilhados, retiraram-se para o distrito do Rio das Mortes ou buscaram sorte em aluviões distantes ou em currais de gado. Os que restaram, “faca no peito e pistola à cinta”, cercados por escravos mamelucos, afrontavam seus inimigos. Foi numa dessas demonstrações de guerra que teve início o confronto que ensanguentou os rios da região. Assassinatos, conflitos, um pequeno grupo de mamelucos esmagados no Capão da Traição, enfim, a situação fervia. Conta uma testemunha de época: “O negócio das Minas há muitos dias está parado; porque andam aqueles moradores com as armas nas mãos, divididos em duas facções, sendo capitão de uma delas, que são todos os que não são paulistas, um Manuel Nunes Viana, natural daquela vila e morador no sertão da Bahia. Este se acha com mais de três mil homens armados em campanha; é homem que leva consigo muita gente por ser muito rico, facinoroso e intrépido por cujas razões é o que introduz nas minas muitas e grandes tropas da Bahia para onde vai a maior parte do ouro que elas produzem contra as outras de Sua Majestade que Deus guarde, e com grande prejuízo de sua real fazenda porque não paga quintos. [...] O governador desta praça se resolveu passar aos sertões de Minas e ver se pode a sua pessoa sossegar aqueles moradores. Queira Deus que o consiga pelo muito que importa El Rei nosso senhor”.

Manuel Nunes Viana, homens armados e suas tropas... tais assuntos nos levam além de Minas. Enquanto nos flancos da serra do Espinhaço veios auríferos faziam crescer a população, aumentar o tráfico de escravos, diversificar as atividades econômicas e, consequentemente, as pressões da Metrópole sobre a Colônia, nos distantes sertões se escrevia outra história. Esta, como dizia um historiador, bem “longe do rei”. Uma vez consolidado o povoamento da costa, o movimento de colonização empurrava os homens para as vastidões internas do continente. Na busca de pedras preciosas, índios para apresar ou tocando preguiçosas manadas de boi, homens livres e escravos ocupavam efetivamente tais ermos, fazendo jus ao princípio romano do uti possidetis (“tudo o que tens ocupado”). Portugal passava, então, a ser dono do vasto sertão, e é para lá que vamos agora...

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Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

Notas:

[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 50 a 53, Capítulo 7.

[2] O Ciclo do Ouro: “Os principais mecanismos de controle foram:
  • Quinto: 20% de toda a produção do ouro caberiam ao rei de Portugal;
  • Derrama: uma quota de aproximadamente 1.500 kg de ouro por ano que deveria ser atingida pela colônia, caso contrário, penhoravam-se os bens dos senhores de lavras;
  • Capitação: imposto pago pelo senhor de lavras por cada pessoa escravizada que trabalhava em seus lotes.” Imagem e texto disponíveis em: <https://www.todamateria.com.br/ciclo-do-ouro/>. Acesso em 27/09/2022.

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