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05 dezembro 2022

Motins e Rebeliões na Colônia

Por DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


Guerra dos Emboabas [2]

Muito já se disse que a história do Brasil foi escrita sem sangue e sem lágrimas. Que, entre nós, o desejo de paz sempre foi maior do que as tensões. Errado. O Brasil Colônia foi atravessado por episódios de descontentamento e revolta. Tais manifestações tinham dois focos de origem: um “externo” e outro “interno”. O primeiro nascia da exploração cada vez maior de Portugal sobre o Brasil. Neste caso, autoridades coloniais agiam com violência através de rigorosas práticas mercantilistas que se traduziam em arrocho fiscal, associadas a corrupção, nepotismo e prepotência. Razões não faltavam. O empobrecimento crescente de Portugal desde a perda de suas receitas na Ásia, as constantes invasões e guerras contra os holandeses ou espanhóis, assim como a presença de uma corte lisboeta cada vez mais parasitária eram boas desculpas para que a Metrópole extorquisse ao máximo a Colônia ou, às vezes, tentasse isso sem sucesso. Ao longo do século XVIII, tais razões se desdobraram. O enriquecimento proveniente dos negócios coloniais se configurou como uma etapa constitutiva do capitalismo moderno, que teria no Novo Mundo uma fonte quase inesgotável de recursos. Já o foco “interno”, em parte, incide sobre outras razões para tais rebeliões. Ele vem sendo afinado por historiadores debruçados sobre esse incrível palco de tensões que foram as Minas Gerais. Aí, as razões para motins e revoltas decorriam do fato de a voracidade fiscal se vincular a crises de abastecimento de alimentos. A extorsão fiscal gerou enormes tensões e a fome coletiva estimulou a mobilização popular. Não nos esqueçamos, tampouco, que nos sertões mineiros cresciam grupos de poderosos, armados até os dentes, que, apoiados em contingentes de escravos e capangas, eram capazes de fazer a lei com as próprias mãos. Questionavam, assim, a ordem e os impostos que lhes eram exigidos. Antes mesmo da expansão mineradora, o quadro de tensões já estava delineado. Quatro grandes conflitos ocorreram durante o século XVII. O primeiro deles ocorreu em São Paulo, em 1641, período em que d. João IV de Bragança restaurou o trono de Portugal. A capitania possuía um largo contingente de espanhóis, temerosos de perder terras e bens. Temia-se também interromper o ativo comércio entre o Sudeste e o rio da Prata, na figura dos chamados peruleiros. Os espanhóis Juan Rendón e Francisco Rendón de Quevedo indicaram para ser “rei” dos paulistas um outro descendente de espanhóis, Amador Bueno de Ribeira, ou simplesmente Amador Bueno. Apesar do grande prestígio que detinha na sociedade vicentina, Bueno refugiou-se no convento dos beneditinos, recusando a honraria e o temido ato separatista. Com seu apoio, as autoridades rapidamente impuseram ordem na capitania.

Vinte anos mais tarde, sob o governo de Salvador Correia de Sá e Benevides, nomeado governador pela terceira vez, foi a vez do Rio de Janeiro. O motivo foi de outra natureza. O governador, homem rico e poderoso, tinha fama de corrupto e, quando assumiu, ordenou a cobrança de novos impostos. Mal deu as costas, partindo para São Paulo, onde deveria examinar o estado da capitania, tiveram início reuniões chefiadas por Jerônimo Barbalho Bezerra em sua propriedade, na Ponta do Bravo, em São Gonçalo. Jerônimo destacara-se na luta contra os holandeses e era filho de Luís Barbalho Bezerra, governador no período de 1643 a 1644. A finalidade era depor Sá e Benevides. Essa, que ficou conhecida como Revolta da Cachaça, teve voltas e reviravoltas. Para começar, a multidão exigiu a anulação dos impostos anteriormente cobrados; impostos que deveriam aumentar as despesas com a tropa, reforçando, portanto, o controle sobre os moradores. Em seguida, o movimento canalizou insatisfações dos produtores de cachaça, proibidos de venderem o produto por concorrer com o vinho português, uma das primeiras moedas de troca no tráfico de escravos africanos.

Novos protestos ocorreram enquanto Bezerra cruzava a baía com outros rebeldes para exigir a deposição do governador interino, Tomé Correia de Alvarenga. Apavorado, este se refugiou no mosteiro de São Bento, enquanto o povo congregado o “removia”. Recusando-se a atender à intimação, Alvarenga respondeu por escrito que não podia convir com sua própria expulsão, pedindo ainda que não “houvesse desinquietação”. Insatisfeita, a população aclamou para governador Agostinho Barbalho Bezerra, irmão de Jerônimo e muito benquisto. Agostinho, contudo, titubeou. Temia represálias e, escondido no convento franciscano de Santo Antônio, alegava não ser a pessoa indicada para o cargo. A multidão ameaçava: se Agostinho não aceitasse, havia de morrer. “Não queriam outro governador senão a ele, enquanto Sua Majestade não mandasse o contrário”. Não se sabe se Agostinho buscava conciliação com Salvador Correia de Sá e Benevides, que oficialmente continuava a ser o governador do Rio de Janeiro. Sabe-se, porém, que o último, alimentado pelas informações trazidas por mensageiros índios dos padres jesuítas, esperou habilmente o bom momento de voltar ao Rio. Enquanto isso não acontecia, o governo instituído pelo povo e a nova Câmara eleita se esforçavam por manter a normalidade da vida na cidade. Em 1º de janeiro de 1661, a cidade acordou sob o rufar de tambores que anunciavam a leitura dos bandos – avisos – do governador. Sá e Benevides perdoou os moradores da cidade, condenando, contudo, os cabeças do movimento: Jerônimo Barbalho, Jorge Ferreira de Bulhões, Pedro Pinheiro, as autoridades nomeadas pelos insurretos, entre outros, “todos considerados inconfidentes do real serviço”. Também revogou as medidas tributárias e perdoou Agostinho Barbalho. Pacientemente, esperou mais quatro meses para que a resistência popular se dobrasse. Em abril, com a ajuda de forças militares vindas do Reino, invadiu de surpresa a cidade e, depois de pequenos combates pelas ruas, reconquistou o poder. Arrancou do convento franciscano os rebeldes e, graças a uma junta militar irregular, condenou Jerônimo, que foi enforcado, decapitado e depois esquartejado, enquanto os demais prisioneiros eram enviados a Salvador e, de lá, para a prisão do Limoeiro, em Lisboa. Aí, os revoltosos foram ouvidos pelas autoridades portuguesas: o comércio da cachaça foi liberado e não demorou muito para Sá e Benevides ser substituído por um novo governador.

A crise carioca deve ter inspirado a revolta contra o governador de Pernambuco, Jerônimo de Mendonça Furtado, apelidado de Xumbergas, pelos bigodes à la Schomberg, oficial alemão que comandara as tropas lusas na Restauração. As causas, mais uma vez, tinham origem nas inúmeras arbitrariedades praticadas entre 1664 e 1666, anos de sua administração. Ele administrava como um tirano, interferindo no Judiciário, sequestrando bens, tais como engenhos e lavouras de cana, prendendo desafetos, tudo em troca de dinheiro. Com o apoio dos dois filhos e alguns amigos, recunhou moedas, o que era um privilégio da Coroa, empossou ilegalmente um amigo no cargo de ouvidor e, para cúmulo, mancomunou-se com o marquês de Mondvergue, comandante de uma frota, para entregar a terra aos franceses. Uma terrível epidemia de bexigas – nome de época dado à varíola –, identificada pela crença popular aos fluidos exalados por Xumbergas, selou sua queda. Envolvendo importantes senhores de engenho, a conspiração tinha também por alvo escapar ao pagamento de impostos atrasados. Homens como João Fernandes Vieira e André de Barros Rego alegavam que já tinham arcado com a maior parte das despesas para expulsar os holandeses. Durante uma cerimônia religiosa, Xumbergas foi preso. A Câmara de Olinda comunicou ao governador-geral sua deposição, que foi festejada com versos populares: “O Mendonça era Furtado? Pois do Paço o furtaram; / governador governado / Para o Reino o despacharam”. Não houve retaliação da Metrópole contra os revoltosos, mas as tensões internas decorrentes dos diferentes interesses entre os grupos locais começavam a frutificar.

No então Estado do Maranhão e Grão-Pará, assim reunidos com o objetivo de melhorar as defesas da costa e dos contatos com a metrópole, temos um excelente exemplo dos efeitos das tensões internas ao mundo colonial. Aí, o imenso território amazônico e as rusgas entre jesuítas e autoridades sobre a escravização ou não dos índios tornaram-se o cenário ideal para detonar conflitos. Desde 1652, as rixas em matéria de sucessão eram permanentes. Vereadores abusavam chamando os governadores ao Senado da Câmara por “questões de somenos”. Além disso, eles tinham que lidar com a resistência das câmaras às leis de proteção aos índios, com a agravante de que muitos deles usavam “índios livres” em seus serviços. O clero não jesuíta, corrupto, quando não traficava drogas da floresta ou outras riquezas, colaborava para a sensação de desordem. Duas questões vão acelerar o processo: a lei de 10 de abril de 1680, consolidada na Junta das Missões do ano seguinte, proibindo o cativeiro dos índios e entregando a jurisdição espiritual e temporal de suas aldeias aos jesuítas. A segunda foi o monopólio trazido pela Companhia Geral de Comércio do Estado do Maranhão, em 1682. Através dela, introduzia-se grande quantidade de escravos na região e proibia-se aos particulares realizar comércio de toda uma série de mercadorias: tecidos, barras de ferro ou de cobre e até simples facas e velas de cera. Do seu lado, os produtores eram obrigados a vender todos os gêneros – baunilha, cacau, cravo de casca, cana-de-açúcar, algodão e tabaco – à Companhia. Esta ganhava ao ter o monopólio do fornecimento de escravos africanos e de artigos necessários ao consumo no Estado do Grão-Pará e Maranhão, ali vendidos por preços altíssimos. A pobreza da região suscitou registro até na pena do padre Antônio Vieira, que descreveu, sem dó, a fome que se abatia sobre a sociedade. Os privilégios concedidos à Companhia só agravavam o quadro. Quando de sua chegada a São Luís, o novo governador, Francisco de Sá e Menezes, junto com o representante da Companhia, Pascoal Pereira Jansen, foi procurado por uma comissão de representantes do povo que protestava contra o estado de coisas. Jansen, com o apoio do governador, subornou alguns vereadores, silenciando outros com ameaças de prisão e deportação. Um senhor de engenho e vereador, Manoel Beckman, também conhecido por Bequimão, particularmente atingido por não poder usar mão de obra indígena em suas terras, resolveu reunir outros prejudicados pela situação. Reuniões que contavam com o apoio dos franciscanos, dos carmelitas, do clero secular e até do bispo, que condenavam o monopólio. No dia 25 de fevereiro de 1684 teve início a revolta. Aproveitando-se da ausência do governador, instalado em Belém, os revoltosos depuseram-no e ao capitão-mor Baltazar Fernandes, expulsaram os jesuítas e decidiram pelo fim das atividades da Companhia no Maranhão. Formou-se uma Junta dos Três Estados com representantes do clero, o frade carmelita Inácio da Assunção, dos grandes proprietários – Beckman e Eugênio Maranhão –, assim como por Belquior Gonçalves e Francisco Deiró, representantes das camadas populares. Thomas Beckman, irmão de Manoel, zarpou para Lisboa para explicar o ocorrido ao rei. Tão logo chegou, foi aprisionado e embarcado de volta junto com o novo governador, Gomes Freire de Andrade. Sem encontrar resistência, Andrade abafou a rebelião. Como de hábito, prendeu e enforcou os cabeças, degredou e prendou os que sobraram. O resultado? Os jesuítas voltaram ao Maranhão, mas a Companhia foi suprimida.

Alguns anos depois, paulistas e emboabas – ou seja, portugueses e outros forasteiros – se defrontaram num sangrento combate por causa do ouro das Minas. Tudo começou com um pedido feito pela Câmara da vila de São Paulo à Coroa para que esta restituísse aos paulistas as regiões mineradoras. O pedido não foi atendido e os requerentes viram suas lavras invadidas. Junto com seus senhores, os escravos também tomavam partido. De um lado, índios tapuias e carijós, de outro, negros escravos. Menos endividados e mais afinados com a Metrópole, os emboabas, comandados por Manoel Nunes Viana, proclamado governador, tomaram a dianteira da ação. O Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil traz sobre esse temido personagem várias histórias: teria assassinado uma filha por sabê-la de relações com um rapaz pobre e de baixa condição; mandava afogar escravos e desafetos numa lagoa perto de sua fazenda em Januária, para serem comidos por piranhas; recolhia doentes ricos da região e apressava-lhes as mortes para ficar com suas fortunas. Nos arrais de Sabará e Cachoeira do Campo os paulistas foram derrotados, recuando para a região do Rio das Mortes. Em janeiro de 1709, as tropas do sargento-mor Bento do Amaral Coutinho cercaram dezenas de paulistas perto da futura São João del-Rei. Depois de rendidos e de depor suas armas, foram esmagados no Capão da Traição, episódio sangrento que marcou o fim dos conflitos. A consequência imediata foi a criação, em novembro de 1709, da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, com normas para a distribuição de lavras e a reintegração dos paulistas expulsos. Estabeleceu-se, também, a cobrança do quinto real sobre o ouro recolhido nas bateias, o envio de companhias de infantaria para garantir a ordem colonial e a proibição do porte de armas pelos escravos. Nesse mesmo ano, São Paulo era elevada à capital dessa nova capitania, e, em 1711, os arraiais mineiros – Ribeirão do Carmo, atual Mariana, Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto e Nossa Senhora da Conceição de Sabará – eram elevados à dignidade de vila. Inseguros nessa terra que não mais lhes pertencia, as bandeiras paulistas seguiram buscando ouro até encontrá-lo, a partir de 1719, em Goiás e Mato Grosso.

Enquanto no Sudeste as brigas giravam em torno do ouro, no Nordeste, tensões entre comerciantes e plantadores preparavam a Guerra dos Mascates – de 1710 a 1711. À sombra dos holandeses, Recife havia crescido e prosperado. Um dos grupos que mais se beneficiaram do desenvolvimento comercial que então ocorrera foi o dos mascates: uma alusão aos portugueses que viviam de mascatear, vendendo seus artigos em domicílio. A denominação pejorativa tinha sido dada pelos senhores de engenho, cuja riqueza fora em parte arruinada pela guerra contra os batavos. Em contrapartida, mascates (na verdade, muitos deles eram grandes comerciantes) os chamavam de pés-rapados. Nessa época, a concorrência antilhana só fizera piorar a situação dos antigos senhores, que passaram a endividar-se com os comerciantes. Empréstimos eram contraídos para o financiamento da produção de açúcar até a nova colheita e a venda da produção anterior. Os mascates eram credores impiedosos. Arrochavam seus devedores, que eram obrigados a pagar-lhes quando quisessem ou a entregar-lhes a mercadoria por um preço vil. Além disso, a mineração fizera subir o preço dos escravos que, em parte, desde o final do Seiscentos, eram drenados para a região das minas. Empobrecido, o grupo dos senhores de engenho só tinha um trunfo: o poder político e administrativo continuava na Câmara de Olinda, controlada por eles. Por diversas vezes, os mascates tentaram romper a legislação que subordinava Recife – onde se concentravam – a Olinda. Uma lei datada de 1705 confirmava, contudo, a proibição aos moradores de Recife de usufruir o direito invocado, alegando-se que eles não pertenciam à nobreza: não possuíam solares, nem brasões de armas, nem escravos, cavalos ou privilégios reais. Mas possuíam o poder econômico e, em nome dele, tentaram mudar as regras do jogo. Sob o governo de Francisco de Castro Morais – de 1703 a 1707 – e depois de Sebastião de Castro e Caldas, que assumiu a partir de 1707, os mascates pressionaram para obter mais poder, apoiados por grandes comerciantes metropolitanos e membros do Conselho Ultramarino. De fato, Castro e Caldas começou a favorecê-los em contratos para cobrar impostos ou no preenchimento de cargos de administração. A tensão subia. Em fevereiro de 1710, chegou a Olinda uma carta elevando Recife à categoria de vila com o nome de Santo Antônio do Recife. Cabia ao governador estabelecer seus novos limites. Ele não perdeu tempo. Mandou levantar um pelourinho – privilégio de vilas e cidades – na praça central e instalou a Câmara com dois pernambucanos e dois portugueses. A reação dos senhores de engenho não tardou: o governador sofreu um primeiro atentado do qual saiu ferido, enquanto a elite açucareira reunia lavradores livres e escravos em milícias. Um segundo atentado o fez fugir em direção a Salvador, levando consigo alguns leais mascates. O conhecido senhor de engenho Bernardo Vieira de Melo, acompanhado de alguns seguidores, sugeriu que se entregasse o poder aos “polidos franceses” em detrimento dos “malcriados e ingratíssimos mascates”. A maioria de seus pares preferiu entregar o governo ao bispo, d. Manuel Alves da Costa, hostil ao governador deposto. Um ano depois se deu a revanche dos mascates. Por sua interferência e de seus aliados metropolitanos foi indicado Félix José Machado de Mendonça Eça Castro e Vasconcellos como governador. Não satisfeitos, corromperam autoridades civis e militares em seu favor, notadamente as forças negras e indígenas, os Henriques e os Camarões, além de preparar-se, com estoques de alimentos e armas, para sitiar Olinda. Combates recrudesceram até a chegada de Vasconcellos em outubro de 1711. Dissimulado, o governador parecia manter a mesma distância dos dois grupos, mas não custou a revelar sua simpatia pelos mascates. Alegando ter descoberto uma conspiração contra sua vida, prendeu e perseguiu pés-rapados. Um bando chefiado por Manuel Gonçalves, de apelido Tundacumbe, percorreu o sertão invadindo e queimando engenhos, estuprando mulheres e assassinando moradores. Em Olinda, 150 adversários foram enviados para a fortaleza das Cinco Pontas. Bernardo Vieira de Melo e seu filho, André, foram para a prisão em Lisboa, onde tiveram morte misteriosa. Embora elevada a vila, Recife guardou o gosto amargo do sentimento antiportuguês.

No mesmo ano de 1710 levantou-se em São Paulo um fazendeiro irado contra o aumento abusivo do preço do sal, produto que estava nas mãos da temida aliança entre comerciantes reinóis e negociantes coloniais. A história se repetia: alvo de monopólio, o sal era também centro de manipulações que aumentavam seu preço enquanto se diminuía a quantidade de produto embarcado para ser vendido em Santos ou São Paulo. Ou, então, ele ficava lá armazenado esperando a alta dos preços. A queixa era geral. Câmaras denunciavam que os pobres e os escravos comiam, muitas vezes, sem sal, em função do seu alto preço! Proprietário de imensa escravaria e terras em Jacareí, Bartolomeu Fernandes de Faria resolveu reagir diante da omissão das autoridades. Tomou a cidade de Santos, arrombou os armazéns e vendeu o sal a preço compatível. Voltou serra acima, carregado do produto e destruindo pontes e caminhos para livrar-se do assédio das autoridades. Foi preciso uma carta de d. João V pedindo a prisão do fazendeiro, que, entrincheirado em sua propriedade e favorecido pela simpatia popular, passou doze anos driblando a justiça metropolitana. Aos 80 anos, foi levado a ferros para Salvador, de onde seria enviado a Portugal. Na capital baiana, foi vitimado por doença contagiosa e seu enterro foi custeado pela sociedade local, solidária a sua causa. Como se vê, o aumento do sal causara tensões também na capital da Colônia. Em 1711, o envolvimento da metrópole na Guerra de Sucessão da Espanha exigira gastos que foram traduzidos na América portuguesa em aumentos de impostos. A taxa sobre o sal subira de 480 para 720 réis. E não foi só; também subira o imposto cobrado sobre os escravos trazidos da Costa da Mina e de Angola, de três para seis cruzados por cabeça, além de 10% de impostos sobre qualquer mercadoria importada. Pasquins ameaçadores foram afixados nos muros e o descontentamento popular foi tão grande que suspeitos de conivência com tal aumento tiveram suas casas invadidas. Na praça de Salvador, o povo e oficiais de milícias gritavam que não queriam tributos, conta-nos o governador geral Pedro de Vasconcellos. A cobrança foi suspensa, mas voltou a ser imposta sob o governo do vice-rei d. Pedro Antônio de Noronha, marquês de Angeja.

Ainda sob os tacões de Vasconcellos, um novo motim estourou. Em 1711, o Rio de Janeiro foi invadido por um corsário francês, René Duguay-Trouin, em busca de ouro e de vingança de um compatriota, Jean Duclerc – pirata, também a serviço do rei da França –, assassinado nas masmorras da cidade, que tentara invadir no ano anterior. Com temor de um ataque a Salvador, um levante da população local exigiu do governador Vasconcellos a organização de uma força militar capaz de arrancar o Rio de Janeiro das mãos dos franceses. O governador alegava que, não tendo recursos, nada poderia fazer. Os patriotas, como ficaram conhecidos, ofereceram os próprios bens para custear a expedição, mas não foi preciso. Depois de receber uma fortuna em ouro e açúcar, Duguay-Trouin zarpou para a Europa antes que o exército de 300 homens partisse de Salvador. Mas, na Bahia, o governador-geral reagiu com violência. Depois de rápida devassa, condenou ao degredo em Angola, a açoites e penas pecuniárias os três cabeças da rebelião: Domingos da Costa Guimarães, Luís Chafet e Domingos Gomes. Em 1732, o Rio de Janeiro assistiu à queda de mais um governador. Luiz Vahia Monteiro aportou à capitania em janeiro de 1725. Pela truculência de suas atitudes ante os poderosos logo recebeu a alcunha de “O Onça”: “Lá vem o Onça”, “cuidado com o Onça”. Tinha duas preocupações maiores: a defesa da cidade e o combate ao contrabando do ouro, e, por conta delas, colecionou desafetos. Sua ênfase em multiplicar fortificações o fez bater de frente com os beneditinos, que tinham uma horta na ilha das Cobras, ponto militar estratégico na defesa da baía de Guanabara. Considerando essa ocupação ilegal e desejando ampliar aí uma fortaleza, expulsou os padres de São Bento, que favoreciam também o contrabando de ouro. Bateu-se com igual ferocidade contra famílias poderosas como os Pizarro e Correia de Sá, que recebiam de maneira ilegal “terras foreiras”, ou seja, grandes terrenos urbanos. Tais conchavos envolviam membros da Câmara, também insatisfeitos com a proibição de moradias em terras localizadas além do Muro da Cidade, além dos morros da Conceição, Santo Antônio e Castelo. Perseguiu igualmente os envolvidos com fundições de ouro ilegais, assim como todos os que ajudavam os descaminhos do metal amarelo. Seu zelo foi mal recompensado. Seus inimigos escreveram ao Conselho Ultramarino e, ajudados pelos membros da Câmara e pelas ordens religiosas que o detestavam, ele foi deposto em 1732. O Onça morreu de desgosto.

Após a Guerra dos Emboabas (1708-9), Minas Gerais tornou-se palco por excelência de tremenda violência coletiva. Ali, revoltas se sucederam, preparando um século de tensões. Longe dos focos do poder público, distantes dos mecanismos de controle burocrático, grupos privados colocavam em xeque as regras determinadas para mediar as relações entre a Colônia e a Metrópole. Somava-se a esse clima de instabilidade a indisciplina dos funcionários reais e as ondas de fome que varriam a região desde 1698. Mas o que saltou aos olhos e deu especificidade a Minas Gerais foram atritos entre os vários grupos da burocracia: governadores, agentes do fisco ou da justiça, funcionários e clero. Agentes da justiça gozavam de grande independência, ouvidores possuíam autonomia em relação aos governadores, punindo de maneira injusta. Os focos de poder que se viam fora do aparelho de Estado começaram a surgir dentro dele, impedindo, por conseguinte, que a autoridade e o controle portugueses se exercessem com plenitude. Um sensível equilíbrio se fazia em torno de certo “acordo de cavalheiros”: população e autoridades buscavam consenso sobre o limite da cobrança de impostos, a distribuição de terras e a garantia de abastecimento dos núcleos urbanos. A Metrópole respeitava a autonomia de setores da população inseridos em áreas de fronteira, “longe do rei”, e respeitava também os interesses dos poderosos e dos magistrados locais. Quando se rompia o acordo por aumento de impostos, falta de alimentos ou abuso de poder das autoridades, nascia um motim. Foi este, por exemplo, o caso ocorrido na Vila do Carmo em 1713. O ouvidor-geral, dr. Manoel da Costa Amorim, resolveu redistribuir algumas lavras, desalojando os mineiros que nelas trabalhavam, e teve como resposta uma revolta generalizada. O mesmo se deu em Itaverava, quando o escrivão das datas, responsável pela repartição de “algumas lavras velhas”, resolveu distribuí-las à revelia do desejo dos moradores. Em 1715, o povo das Minas se levantou contra o pagamento dos quintos por bateias, exigindo do governador, d. Brás Baltasar da Silveira, que as declarasse isentas desta forma de cobrança. As autoridades ficavam em apuros a cada vez que tentavam quebrar as regras impostas pelo uso e pelo costume.

A taxação ou carência de alimentos também ensejava distúrbios. Em setembro de 1721, a Câmara de Vila Real e o ouvidor-geral da Comarca de Rio das Velhas resolveram pôr em contrato o corte das carnes consumidas naquela vila, até então livremente comercializadas. Ao tomar conhecimento do estanco, imediatamente os moradores revoltaram-se por considerar tais contratos “odiosos e prejudiciais aos povos porque sempre [redundaram] em interesses particulares”. Naquele ano, um contrato de aguardente suscitou a mesma reação entre os moradores de São João del-Rei. Não foram poucas as vezes em que alimentos eram apreendidos e repartidos entre o povo enquanto funcionários eram postos a correr ou escapavam de atentados. O padrão, contudo, era o de atacar a propriedade daqueles que exploravam o povo, poupando-lhes a vida. Nesses motins evitava-se também questionar o domínio português. Era comum homens encapuzados, ao som de tambores, destruírem propriedades e documentos oficiais que representavam sujeição, aos gritos: “Viva el-Rei! Morte aos traidores”.

Em 1720 ocorreu uma sublevação que começou a unir as duas faces da mesma moeda. A sedição de Vila Rica nasceu quando Pedro Miguel de Almeida Portugal, conde de Assumar e governador da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, trouxe instruções para aplicar novas medidas: reforçar o poder do governador, extinguindo postos de oficiais de ordenanças e criando, em seu lugar, um Regimento de Dragões de Cavalaria, assim como estabelecer a obrigatoriedade de levar o ouro extraído, a fim de ser moldado em barras, marcado com selo real e “quintado”, às Casas de Fundição. Rumores encheram as serras. Ninguém queria viajar longas distâncias, passando por caminhos arriscados, até uma dessas referidas casas e aí ficar à mercê de funcionários inescrupulosos. Instigados pelos frades descontentes e pelos poderosos, os mineiros começaram a pegar em armas e a fazer demonstrações de desagrado a tais medidas. Os dragões intervieram e os primeiros tumultos pareciam ter arrefecido. Contudo, no dia de São Pedro, 28 de junho de 1720, em meio ao foguetório e à festa que servia para encobrir a intenção dos rebeldes, explodiu a sedição. As intenções eram claras: matar o ouvidor, expulsar o governador, anular os registros nos quais se cobravam impostos aos mineradores, suprimir o monopólio do sal, da aguardente e do fumo pela Coroa, entre outros. À frente do movimento, um rico português endividado em trinta arrobas de ouro com o governo: Pascoal da Silva Guimarães, senhor de mais de 2 mil escravos e de duas grandes fazendas. Tinha também um filho alcaguete, que o denunciou, mas em vão. As autoridades – governador e ouvidor – nada fizeram para prender os implicados no movimento. Cauteloso, o conde de Assumar preferiu reunir muitos homens com a finalidade de esmagar, de um só golpe, os sediciosos. Invadiu Vila Rica no dia 16 de julho, casas foram queimadas, ruas inteiras destruídas e prisões feitas. A mais espetacular foi a de Felipe dos Santos Freire, um português representante das camadas populares e acusado de ser o maior instigador da revolta. Teve punição exemplar. Condenado à morte, foi enforcado e seu corpo feito em pedaços. Outros envolvidos foram presos e enviados ao porto do Rio de Janeiro a fim de embarcar para Portugal. Alguns morreram na prisão – como frei Vicente Botelho –, outros foram anistiados, como ocorreu com o ouvidor Manoel Mosqueira Rosa e frei Francisco de Monte Alverne. A revolta de Vila Rica não passou em branco. Em consequência, criou-se a Capitania das Minas do Ouro, independente de São Paulo, e se protelou a criação das casas de fundição até 1725.

A partir de 1736, uma “tempestade temerosa”, como disse alguém, varreu os inóspitos sertões do rio São Francisco. Foram motins seguidos que contavam – e essa foi sua peculiaridade – com a participação ativa e violenta das camadas mais baixas da população. Mulatos, mamelucos, índios, enfim, a “gente miúda” assustou muita gente grande. O palco de tais tensões não eram mais engenhos de açúcar, como no Nordeste, ou serras escarpadas nas quais formigavam os mineiros, mas áreas agropastoris. Tropeiros e criadores tocavam seus bois, como vimos, desconhecendo limites. A descoberta de ouro em Goiás levou, em 1734, o conde de Sarzedas a ordenar um só caminho para a passagem do gado via São Paulo. Sua intenção era clara: controlar a evasão de ouro e a sonegação de impostos pelo caminho do São Francisco. Em vão. Picadas laterais deixavam passar bois, escravos e outras mercadorias necessárias em regiões de mineração, como sal e farinha. Produção e intermediação fizeram aparecer núcleos comerciais como Barra do Rio das Velhas, Brejo do Salgado ou Morrinhos, pelos quais se escoavam gêneros de subsistência. Mas essa gente pagava poucos impostos. No começo da década de 1730, o início do declínio da extração do ouro levou as autoridades a aumentar a tributação. Martinho de Mendonça de Pina e de Proença seria o governador responsável pela implementação do novo sistema. Por meio dele, senhores ficavam sujeitos ao pagamento anual de três a quatro oitavas de ouro por escravo, assim como se taxavam libertos e vendas. Os que atrasassem os pagamentos teriam os bens penhorados. Em cada distrito, um intendente subordinado ao governador controlava os moradores. A taxa de capitação não podia ser mais impopular; pagava o pobre o mesmo que o rico. Mais uma partida de dragões foi enviada ao sertão para persuadir a população.

O primeiro motim eclodiu em março de 1736 em Capela das Almas, seguido do ocorrido no sítio de Montes Claros. Em julho do mesmo ano, novecentos homens, sendo que “mais de quinhentos arcos e flechas”, uns a pé, outros a cavalo, se manifestaram em São Romão, futura sede das inquietações. A demanda era só uma: o “alívio da capitação”. Faziam-na, segundo uma testemunha, com “ajuntamentos, armas e gritos”. Espiões espalhados pela região davam notícia aos revoltosos dos movimentos feitos pelas autoridades e suas tropas. Em Capela das Almas e na Barra do Rio das Velhas, os amotinados, avisados com antecedência, fugiram em suas canoas quando de sua aproximação. Apesar de entender a resistência desses a quem chamava de “pés-rapados, mulatos, filhos de homens livres que eram muito, muito pobres”, o governador pedia a seus imediatos que deles se cobrassem os impostos. Em Pitangui, 3 mil homens ameaçaram o governador, intendentes e ministros. Em fins de 1737, circulavam rumores de uma sedição em Vila do Carmo – atual cidade de Mariana – que seria um desdobramento dos motins do sertão.

Motins, rebeliões e sedições também podiam ser fruto da rebeldia militar. Na Bahia, em 1728, levantou-se a tropa do chamado Terço Velho – terço era a denominação de um corpo de tropa composto por dez companhias de 250 homens – contra o soldo baixo e pago com irregularidade. Terminou-se com o enforcamento dos cabeças: o cabo de esquadra mulato Antônio Pereira, de alcunha Barriga de Areia, e o soldado Anastácio Pereira. Quartos de seus corpos foram pendurados às portas de São Bento, Carmo e do Arsenal da Marinha, emblemas do castigo exemplar aplicado a membros de uma força que deveria garantir a paz, e não quebrá-la. Enfim, como afirmavam as autoridades portuguesas: sujeitar “gente tão intratável” era tarefa difícil. Desafio que irá se acentuar na segunda metade do século, quando o antagonismo entre reinóis – portugueses que exerciam cargos dirigentes na administração, na justiça, na Igreja e nos comandos militares – e os nascidos na Colônia atinge grandes proporções. Em fins do século XVIII, autoridades portuguesas observavam, cada vez mais apreensivas, choques entre garimpeiros e oficiais nas regiões das Minas. Várias décadas de fiscalismo abusivo por parte da Metrópole multiplicaram as desavenças entre colonos e autoridades administrativas. Uma luta surda opunha governantes e governados, populações locais e agentes da Metrópole. A situação, como veremos adiante, começava a tornar-se explosiva.

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Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 79 a 89, Capítulo 11.

[2] "… No século XVIII, os paulistas (Bandeirantes) descobriram ouro na região que passou a se chamar Minas, logo após a divulgação da presença do ouro no interior do Brasil, a ‘corrida’ e a disputa pelo metal precioso iniciou; várias pessoas e aventureiros vieram das capitanias nordestinas e de Portugal em busca do enriquecimento. Tal ambição trouxe conflitos e destruição. Quando chegaram às regiões auríferas, nordestinos e portugueses foram denominados pelos paulistas de ‘emboabas’, denominação pejorativa que se referia aos forasteiros que invadiram a região, em tupi a palavra emboaba significa ‘pássaros de penas emplumadas’”. Veja mais sobre ‘Guerra dos Emboabas’ em: <https://brasilescola.uol.com.br/guerras/guerra-dos-emboabas.htm>. Acesso em 05/12/2022.

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