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26 janeiro 2023

Mobilidade e diversificação

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato

Sociedade colonial [1]

Enquanto os conflitos fustigavam as distantes margens, evidenciava-se outra feição da sociedade. A Colônia se diversificara. As formas de ocupação que haviam garantido a presença portuguesa entre os séculos XVI e XVII, ou seja, o latifúndio e a monocultura, passaram a conviver crescentemente com outras atividades econômicas. No século XVIII, a mineração de ouro e diamantes só fez acentuar essa tendência. A necessidade de escravos, primeiro para o açúcar e depois para as minas, criou um grupo de homens poderosos: os negociantes de grosso trato, também chamados de comerciantes por grosso. Dominavam, ali, homens brancos de origem portuguesa que, inicialmente de Lisboa e posteriormente do Rio de Janeiro e da Bahia, negociavam com as mais diferentes praças, como Inglaterra, Alemanha, Itália e outros reinos europeus; seus agentes comerciavam desde alimentos, bebidas e escravos até mercadorias de luxo, tais como perucas e tecidos finos.

Tais comerciantes exploravam inúmeros negócios. Investiam em secos (ferramentas, tecidos, etc.) e molhados (alimentos, bebidas, etc.), priorizando, contudo, o tráfico de escravos e os empréstimos aos senhores de engenho. Muitos se tornaram correspondentes e banqueiros dos filhos dos senhores de engenho nordestinos que iam estudar na Europa. Suas lojas, espalhadas em diferentes cidades, desovavam produtos tão variados como abotoaduras, pregos, tesourinhas, cordas de viola e tabaco. Seus armarinhos distribuíam fitas, plumas, galas, toalhas e guardanapos. Muitos deles eram de origem judaica. Em Minas Gerais, por exemplo, a presença cristã-nova foi responsável pelos primeiros contratos de mineração, assim como pelos primeiros negócios e vendas de instrumentos. Estrategicamente instalados no coração da Colônia, esses mercadores compravam, vendiam, financiavam, emprestavam a juros, faziam hipotecas e negociavam, entre outros produtos, pedras preciosas e ouro, à vista ou a crédito. Aceitavam, ainda, pagamentos parcelados, sempre feitos em moedas de ouro ou em cédulas. Suas ligações iam do Peru à Europa, e lá, notadamente, Amsterdã. Houve alguns tão poderosos como Francisco Pinheiro, instalado em Salvador, com agências comerciais na Europa, África, Ásia e Américas. Sua rede comercial se estendia do Ceará à colônia de Sacramento, caminho para as colônias espanholas. Um tal poder de fogo só demonstrava que a Colônia não era passiva. As trocas comerciais internas e externas permitiam a relativa autonomia de várias regiões do Brasil.

Um intricado mundo de grandes comerciantes dominava as várias áreas da América portuguesa. Sua imensidão territorial gerou, contudo, o aparecimento de comerciantes volantes, gente acostumada a percorrer grandes distâncias levando seus produtos em uma ou outra direção. Na sua maioria, era gente branca, nascida no Brasil, e que aparece na documentação de época sob a denominação de “americano”. Em razão dos produtos que carregavam consigo, podiam também ser chamados viandantes, tratantes, comboeiros ou condutores. Os viandantes, como não precisavam de grande capital, preferiam trabalhar mediante comissão para o colega de grosso trato. Havia também os que eram contratados por terceiros e que percorriam enormes distâncias cobrando dívidas e entregando mercadorias. Ocupavam posição menos prestigiada do que a dos negociantes de grosso trato, de quem dependiam graças a um intricado sistema de débitos e créditos difícil de ser rompido. Entre os tratantes, à frente de negócios de risco, não faltaram os que colocaram a vida em perigo cobrando dívidas. Quantas vezes não eram recebidos a bala por seus devedores ou passavam por perigos como assaltos, tempestades e ataques de animais selvagens? Os camboeiros viviam basicamente de transportar escravos e iam munidos de pesados livros de contabilidade, capazes de dar conta de sua preciosa mercadoria humana. Os tropeiros, como já vimos, traziam muares e cavalos dos currais do Sul ou do Nordeste para os mercados urbanos.

Paralelamente às diversas formas de comércio volante, a urbanização havia, sobretudo, incrementado o mercado fixo. Este se dividia em lojas e vendas. As primeiras, grandes, encontravam-se nos centros urbanos, as segundas, menores, nas periferias. Ambas mercadejavam produtos secos e manufaturados como panos e ferramentas, além de bebidas e alimentos. Os inventários anexos aos testamentos revelam, por exemplo, que numa dessas lojas o comprador encontrava diversos produtos, tais como incenso, marmelada, canela, barris de cachaça, toucinho e sal, panelas, sabão e frascos de vinagre. Seus proprietários financiavam a atividade de comerciantes ainda menores que lhes traziam mercadorias dos portos distantes, além de manter caixeiros, escriturários e guarda-livros, encarregados de cobranças e listas de estoque. À frente desse comércio se destacavam as mulheres: brancas, mulatas ou negras, elas se instalavam nas periferias urbanas e nos caminhos mais frequentados, explorando, além de mercadorias, a venda de bebidas e a prostituição. As mulheres eram também maioria no pequeno comércio, no qual exploravam os escravos de ganho – cativos e cativas que circulavam pelas ruas oferecendo bebidas, alimentos e panos. Na escala mais baixa ficavam as “mulheres de tabuleiro”, responsáveis pela venda de pastéis, bolos, doces, mel e os quitutes regionais: em São Paulo, as saúvas tostadas, e, no Rio, o pão de ló. Esse pequeno comércio progrediu imensamente graças à intimidade que com ele possuíam mulheres de origem africana. Acostumadas aos grandes mercados a céu aberto, onde, sobre panos coloridos, as mercadoras negras expunham alimentos e produtos artesanais, dominando, de norte a sul, as ruas das cidades coloniais.

No comércio também vamos encontrar ciganos. Os primeiros a chegar, oficialmente, vieram degredados para o Maranhão, Pernambuco e Rio de Janeiro, no século XVIII. Em 1718, chegou à Bahia um grande grupo constituído por João da Costa Ramos, por alcunha João do Reino, acompanhado de mulher, filhos e parentes. As alcunhas eram corriqueiras, muitas delas degenerando em nome próprio: O Beijo, O Rola, O Catu, O Come-Pólvora, etc., ciganos célebres das Minas. Em Salvador, o grupo se alojava, segundo uma testemunha, em barracas no Campo dos Ciganos, “enorme e inculta praça que se estendia da rua do Cano até a Barreira do Senado”. Empregavam-se no trabalho de metais: eram caldeireiros, ferreiros, latoeiros; as mulheres rezavam quebranto e liam a sina. Muitas internaram-se nas matas ou pirateavam nas estradas ermas. No Rio, os calons, como eram chamados, instalaram-se primeiramente no Valongo e na grande área da Cadeia Velha; migraram depois para o campo de Sant’Ana e a rua dos Ciganos, atual da Constituição. Moravam em casas térreas de três portas que gostavam de deixar abertas dia e noite. Seu negócio era a exploração do ouro de Minas, a barganha de cavalos e o tráfico de escravos. O refugo de homens e cavalos era dado a um parente para ser vendido no interior.

A vida urbana também trouxe para a cena outros atores. Os artesãos, por exemplo. Tanoeiros, calafates, alfaiates, carpinteiros, prateiros, ourives e sapateiros espalhavam-se pelas ruas mais importantes, nelas se agrupando por atividade. No século XIX, de um desses grupos capazes de dar vida e colorido às ruas coloniais, Ferdinand Denis deixou um delicioso retrato: “Nas classes artesanais existe uma que desempenha o grande papel: é a dos barbeiros. As barbearias substituem com frequência os cafés. É ali que se relatam as notícias e muitas vezes é ali que elas se fazem”. No que arrematava outro francês, Debret: “É certo de aí encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas. Dono de mil talentos, ele tanto é capaz de consertar a malha escapada de uma meia de seda, como de executar, no violão ou na clarineta, valsas e contradanças francesas em verdade arranjadas a seu jeito”. Mulheres, da mesma forma, ofereciam em lojas seus serviços de bordadeiras, costureiras, chapeleiras e fabricantes de flores de penas, escamas ou asas. As responsáveis por tais lojas, segundo um viajante inglês, “eram geralmente mulatas”.

No campo também foram registradas mudanças. Aí vamos encontrar tanto grandes senhores de escravos quanto pequenos proprietários, que contavam apenas com a mão de obra familiar ou combinavam diversas formas de trabalho livre com a escravidão. Vários desses pequenos produtores produziam para consumo interno da Colônia. Minas Gerais, por exemplo, enfrentando a crise do ouro de meados do século XVIII, expandiu a produção de milho, feijão, queijos e carnes salgadas de porco que eram drenadas para a capital carioca. São Paulo tampouco se acanhou com o esgotamento das lavras mineiras. O ritmo crescente do aumento de sua população demandou, bem ao contrário, uma agricultura fornecedora de alimentos para novas bocas. No território paulista, a agricultura rústica ganhou impulso. Pequenas roças, abertas em clareiras de mata, produtoras de alimentos básicos para a família e com algum excedente para o mercado interno, conviviam com fazendas açucareiras voltadas para a exportação. Na maior parte das vezes, dispersos e isolados, os grupos de roceiros – denominados “caiçaras” no litoral e “caipiras” no interior – acabavam por se tornar quase uma autarquia, dependendo da vila mais próxima apenas para efetuar trocas: mandioca, feijão, bananas e laranjas por ferro, sal, instrumentos agrícolas, armas e pólvora. De maneira geral, esses roceiros se vestiam com camisas e calças de algodão e ambos os sexos cobriam a cabeça com chapéus de feltro desabado. A alimentação era a mesma, seja na cuia de caipiras ricos, seja na de pobres. Cinco ingredientes básicos compunham o cardápio diário: fubá, mandioca, feijão, toicinho e açúcar, que formavam as quatro refeições servidas tanto a senhores quanto a escravos. Os produtos dependiam da técnica disponível, que se resumia ao machado para abater árvores e preparar lenha, a enxada, a foice e o rudimentar bastão para a semeadura. As terras eram medidas com braças de cipó, enquanto a caça e a pesca baseavam-se no facão, numa arma de fogo, em anzóis e redes. Às vezes, um ou dois escravos complementavam a mão de obra familiar nessas pequenas propriedades. Um calendário agrícola, herdado dos índios, dava lógica ao ciclo de plantações: os tubérculos eram semeados no primeiro ano da roça, entre agosto e setembro, ao passo que os cereais e as leguminosas, o café e a cana, eram plantados, geralmente, no ano seguinte. Garantia-se, dessa forma, a alimentação do grupo familiar no primeiro ano. Derrubadas e queimadas eram feitas nos meses secos: julho e agosto. A dispersão desses moradores irritava as autoridades “ilustradas e fisiocratas”, que a culpavam pela “pobreza” local. O primeiro deles, chegado em 1765, Morgado de Mateus, queixava-se: “observei as povoações e achei que todas são pequenas, ainda as de maior nome, faltas de gente, e sem nenhum modo de ganhar a vida: os campos incultos, tudo coberto de mata brava, a lavoura por mau método, só se planta em mato virgem, pelo pouco que custa e pela repugnância que têm de se sujeitar ao maior trabalho de cultivarem os campos como nesse Reino. Apenas colhe cada um para seu sustento próprio, muito pouco sobeja para vender ao público. Ninguém trata de aproveitar os efeitos do país, por cuja causa se acha o povo reduzido à mais lastimosa pobreza”.

Contudo, pobreza bem maior era registrada em áreas urbanas, onde não havia a alternativa da agricultura de subsistência. Em alguns dos antigos núcleos auríferos de Minas, assombrava o número elevado de mulheres paupérrimas vivendo da prostituição. Houve mesmo pais que, desesperados, recorriam à caridade da Câmara para vestir suas filhas cobertas por andrajos e sem condições de apresentar-se em público. Os pequenos, abandonados ou órfãos, assim como os membros dos grupos menos favorecidos, não tinham a quem apelar, vivendo de esmolas e de expedientes escusos; famílias pobres amontoavam-se em cafuas espalhadas pelas encostas dos morros, cobertas com capim, tendo por chão a terra imunda e esburacada. Em 1788, por exemplo, o bispo de Mariana, Minas Gerais, referia-se aos “pobres impossibilitados [...] famílias de homens pardos, pretos, libertos, nascidos na miséria, criados na indigência e sem a menor subsistência”. Os viajantes cansaram-se de descrever a população “deploravelmente raquítica e pobre”, cujo olhar doentio resultava da alimentação miserável. Mesmo quando paravam para beber água, à beira de uma rústica choupana, o morador vinha logo lhes estender a mão em peditório. O maior cuidado desses europeus que cruzaram o litoral e o interior do Brasil era o de não ser roubados quando cozinhavam os alimentos que levavam.

Em Salvador, por sua vez, James Prior, chegado em 1813, comparou os miseráveis a “pobres e esquálidos objetos”, chocando-se com “as crianças seminuas suplicando caridade”. Segundo um especialista, os pobres, que haviam vivido a experiência da escravidão ou que descendiam de gente com raízes na África, constituíam a maioria da população indigente que mendigava pelas ruas da capital baiana. Agrupados nos adros de igrejas, nas ruas onde havia mais transeuntes e que levavam às praças e fontes, nos largos onde se abrigavam às portas das instituições de poder, os pedintes respondiam a verdadeiros rituais. Vestiam-se com decência para não provocar repulsa, repetiam os mesmos refrões – “uma esmola, pelo amor de Deus” –, passavam aos sábados pelas sacristias onde se distribuíam as esmolas da semana; as mulheres, no caso, levavam ao colo seus pequenos. Muitas vezes, obtinham como resposta um “Deus lhe favoreça”, sinal de que não iam obter nada, tendo, então, que emendar com um “Amém”, seguindo adiante em busca de melhor sorte. Ganhavam também ao acompanhar enterros, pois não eram poucos os fiéis que compensavam seus pecados mandando aos testadores que, uma vez falecidos, fossem transportados ou velados por mendigos. Era prova de “humildade”. Legados pios eram normalmente distribuídos entre os mais pobres.

A esses pobres, como observara Vilhena em fins do século XVIII, juntavam-se os vadios, indivíduos, segundo a legislação portuguesa, sem ocupação, sem senhor e sem moradia própria. Itinerância e ociosidade eram comportamentos julgados inadequados à ordem social, mas eram, também, a realidade de milhares de famílias que enchiam os campos e as cidades. Em tempos difíceis, essa gente metamorfoseava-se em andarilhos, mendigos e ladrões. Esses “pés leves”, “pés ligeiros” ou “gente sem eira, nem beira”, como eram conhecidos, possuíam sua lógica própria. Não se deixando explorar ou dominar pelo poder senhorial, distanciando-se da escravidão, reafirmando sua condição de livres, tornavam-se intoleráveis ao sistema. Eles violavam abertamente a premissa tão cara à sociedade patriarcal segundo a qual todo homem tinha que ter seu lugar, sua família e seu senhor. Mesmo a Igreja ajudava a patrulhar o trânsito desses “vagabundos” entre diferentes freguesias, exigindo-lhes a apresentação de papéis que comprovassem que haviam comungado pela Quaresma. Caso contrário, não obtinham licença para esmolar. A preocupação em dar-lhes utilidade era constante na correspondência das autoridades. Em 1770, d. José Luís de Menezes, conde de Valadares e governador de Minas Gerais, escrevia ao Morgado de Mateus: “De mulatos, cabras e mestiços abunda esta capitania fazendo-se muitos deles, pela sua vadiação e ociosidade, dignos de se fazerem sair desta capitania e de se empregarem com coisas úteis”.


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Veja também:

  • Sobre o papel da Igreja no período colonial, veja o capítulo 4 do meu trabalho: Fundamentalismo Protestante...Fonte / Referência bibliográfica:
    DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.
  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Fonte:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010,pp., 97 a 102, Capítulo 13.

[2]Obra de Jean-Baptiste Debret, que viveu no Brasil entre 1816 e 1831. O artista retratou a mulher, esposa e mãe no cotidiano da casa-grande ou dos assobradados das cidades coloniais.” Texto e imagem disponíveis em: <https://www.coladaweb.com/historia-do-brasil/sociedade-colonial-brasileira>. Acesso em 26/02/2023.

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