Por Alcides Amorim
O Racionalismo é entendido como a corrente filosófica que argumenta ser a razão a única forma para se chegar ao verdadeiro conhecimento. Segundo o professor Colin Brown [1], esta tentativa de julgamento de tudo através do pensamento racional se fosse concretizada liquidaria completamente o sobrenatural, o que “… não sobraria mais nada além da natureza e dos fatos crus” (BROWN: 1985, pág. 37). Mas, numa abordagem mais específica do racionalismo percebe-se que os “… racionalistas não eram tão ateus como parece” (Idem, pág 37). Ele define como época do racionalismo os séculos XVII e XVIII, os quais sucedem, no campo filosófico, os reformadores protestantes do século XVI. Mas enquanto estes eram dominados por uma preocupação com Deus, aqueles ficaram entusiasmados, não tanto com Deus, mas com o mundo. Foram cientistas, matemáticos, especialistas em geometria, lógica etc., porém “… não eram homens sem religião” (Idem, pag. 38).
Os principais racionalistas, dos quais queremos fazer um breve estudo são Descartes, Espinosa, Leibniz e Pascal. Vamos destacar a seguir o filósofo René Descartes (1596-1650), que é considerado o principal personagem do racionalismo e também fundador da filosofia moderna. Ele foi contemporâneo de Carlos da Inglaterra e de Oliver Cromwell, de Kepler, de Galileu e de Harvey. Foi educado num colégio jesuíta, fez carreira militar, servindo em vários exércitos europeus e “… sempre tomando o cuidado de transferir-se para outro lugar quando surgiam hostilidades” (Idem, pag. 38). Justo L. González complementa que Durante a Guerra dos Trinta Anos, Descartes “… esteve a serviço do príncipe de Nassau; mas, ao invés de participar ativamente do conflito que banhava de sangue a Alemanha, aproveitou seu suposto serviço militar para continuar os estudos de física e matemática que havia começado pouco antes” (GONZALEZ: 1984, pág. 126). Ao que parece Descartes trabalhava poucas horas por dia e lia pouco, embora tenha deixado grandes contribuições nos campos da geometria e da filosofia. Naquela, inventou a geometria coordenada. Nesta, foi o pioneiro do racionalismo e da dúvida cartesiana. Suas duas obras filosóficas principais foram seu Discurso sobre Método (1637) e suas Meditações (1641).
O sistema filosófico de Descartes baseava-se em uma grande confiança na razão matemática (a exemplo de Pascal), “… unida a uma desconfiança diante de tudo o que não estivesse claro e indubitavelmente comprovado. Por isso, comparava seu método ao da geometria. Nessa disciplina, somente se aceita o que se tenha mostrado matematicamente ou o que é um axioma indubitável” (Idem, pág. 126). Em resumo, em seu Discurso sobre o Método, “Descartes cria quatro preceitos lógicos:
1º) jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal, isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção;
2º) dividir cada uma das dificuldades que eu examinar em tantas parcelas quantas possíveis e necessárias fossem para melhor resolvê-las;
3º) conduzir, por ordem, meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos; e
4º) fazer, em toda parte, enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada omitir...” (In: Wikipedia - Discurso sobre o Método).
E assim nasceu o racionalismo cartesiano [2]. Como ponto de partida na aplicação desse método, Descartes adotou uma postura de dúvida universal. Ele duvidava de tudo que estava em sua mente, surgindo seu célebre axioma: Cogito ergo sum ("Penso, logo existo"). O mero fato de que estava tendo dúvidas e, portanto, pensando, significava que ele existia.
E em relação à fé ou crença em Deus, como Descartes se comportava?
Bem, segundo ainda González (O. C., pág. 128 “… naturalmente, a ideia de tomar a dúvida como ponto de partida logo lhe proporcionou inimigos entre aqueles que viam nisso a negociação da fé. O próprio Descartes era pessoa profundamente religiosa e estava convencido que sua filosofia, longe de enfraquecer a fé, a fortaleceria, pois mostraria que os princípios do cristianismo eram eminentemente racionais e não se podia colocá-los em dúvida”. Ao argumentar sobre a existência de Deus, Descartes concebia a ideia de si mesmo como ser finito que subentendia a existência de um ser infinito. E também a própria ideia de um Ser Perfeito subentendia a existência dele. Declarava que Deus é perfeito e por isto mesmo não nos enganaria. Deus não “… nos deixaria pensar que nossas ideias claras e nítidas fossem verídicas, se não o fossem. Podemos, portanto, firmar-nos na segurança de que são válidas todas as nossas deduções lógicas acerca da realidade” (BROWN: 1985, pág. 39). Descartes era um homem de firmes convicções, permaneceu católico até o fim de sua vida, e “… de fato, quando descobriu seu ‘método’ de pensamento filosófico, foi em peregrinação de gratidão ao santuário da Virgem de Loreto...” (GONZALEZ: 1984, pág. 129). Mas, nem todos viam as coisas de igual maneira. Seu método teve muitos questionamentos. Teólogos de várias universidades famosas mostravam-se firmes partidários do sistema de Aristóteles e entendiam ser o cartesianismo uma heresia, embora houve outros que viram no cartesianismo a promessa de um renascer teológico.
Merece destaque o que Brown diz sobre o Arcebispo William Temple [3], afirmando que este “… certa vez foi tentado a perguntar a si mesmo qual foi o momento mais desastroso na história da Europa. A resposta que lhe ocorreu foi: o dia em que Descartes se encerrou na sua estufa [4]. Ao dizer isto, Temple não estava pensando tanto no conceito que Descartes tinha de Deus, mas, sim, na tendência à qual deu início no pensamento europeu…”, isto é, o racionalismo, inaugurando uma tendência que foi seguida por muitos que até rejeitavam seu sistema propriamente dito, e estabelecendo a consciência individual como o critério final da verdade. O racionalismo dominou a filosofia da Europa continental até quase o fim do século XVIII.
O renascer teológico, como muitos viam as ideias de Descartes na França, foi, segundo Gonzalez, uma influência jansenista – doutrina da qual já falamos aqui –, que estava em moda naquele país. E muitos abraçaram o cartesianismo como sua contra-parte filosófica. O modo em que Descartes colocava a existência de Deus no centro de seu sistema, ainda antes de aceitar a existência de seu próprio corpo, prestava-se a uma interpretação jansenista. “Antoine Arnauld, o chefe dos jansenistas da segunda geração, estudou detidamente o pensamento cartesiano e o adaptou para o uso da polêmica jansenista. Pouco a pouco, ainda fora dos círculos jansenistas, o cartesianismo foi abrindo espaço e os debates acerca das doutrinas de Descartes perduraram por longo tempo”, afirma Gonzalez (O.C., pág. 130).
De parte de suas meditações, disse Descartes: “ocorreu-me indagar de onde havia aprendido a pensar em algo mais perfeito que eu e conheci evidentemente que devia ser em uma natureza que fora mais perfeita”. Logo, a existência de Deus se prova, não a partir de um mundo cuja realidade pode ser posta em dúvida, mas da própria ideia de Deus.
Portanto, resta tão somente a ideia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que não possa ter provindo de mim mesmo? Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são… foram criadas e produzidas… E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir, de tudo o que foi dito antes, que Deus existe… (Meditação Terceira, 22).
Concluímos então que os racionalistas, a exemplo de Descartes, tinham interesses pelo mundo da natureza e a confiança na razão, mas não eram homens “sem religião” (repito). Descartes, segundo Brown, permaneceu “católico” mesmo depois do Discurso sobre o Método e das Meditações. Ele entendia que Deus é a razão pela qual não se pode duvidar…
Veja também:
- A opção racionalista, por Justo Gonzalez.
- Racionalismo, por Gary R. Habermas.
Notas:
- [1] “O Dr. Colin Brown é professor de Teologia Sistemática no Fuller Theological Seminary, em Pasadena, Califórnia, USA. Entre outros livros, é autor de Karl Barth and the Christian Message. Editor de History, Criticism and Faith e o responsável pela edição em inglês do Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, publicado por esta Editora [Vida Nova], ao qual também contribuiu vários artigos.” (BROWN, O. C., contracapa).
- [2] Cartesianismo: nome que era dado à filosofia de Descartes, porque o nome dele em latim era Cartesio.
- [3] William Temple “… foi um um sacerdote anglicano que serviu como Bispo de Manchester, Arcebispo de York e Arcebispo de Cantuária. Filho de um arcebispo de Cantuária, teve uma educação tradicional, após a qual foi brevemente professor na Universidade de Oxford antes de se tornar diretor da Repton School, entre 1910 e 1914…”. Veja mais em: <William Temple - Wikipedia)>. Acesso em: 16/02/2024.
- [4] A estufa foi um equipamento que manteve a sala aquecida, local onde, no inverno de 1919-1920, na Alemanha, Descartes produziu sua obra: Discurso sobre o Método.
Referências bibliográficas:
- BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 37 a 40.
- DESCARTES, Renê. Discurso Sobre o Método. In: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Discurso_sobre_o_M%C3%A9todo>. Acesso em 15/02/2024.
- ____________, Meditações Concernentes à Primeira Filosofia. In: <https://drive.google.com/file/d/1klDSlXq-lIMx5yJqQyFbz79j0FKnCxdj/view?usp=sharing>. Acesso em: 15/02/2024.
- GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos dogmas e das dúvidas – Vol. 8. São Paulo: Vida Nova, 1984.
Ainda sobre Renê Descartes, veja a seguir o vídeo de Alysson Augusto:
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