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28 março 2024

Revolução dos Bichos (I)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

    Capítulo 1 [3]

O Sr. Jones, da Fazenda Solar, tinha trancado os galinheiros como toda a noite, mas estava bêbado demais para se lembrar de fechar as portinholas laterais. Com o círculo de luz de sua lanterna dançando de um lado para o outro, ele se arrastou pelo pátio, tirou as botas na porta dos fundos da casa, encheu um último copo de cerveja no barril da copa e subiu para a cama, onde a Sra. Jones já estava roncando.

Assim que a luz do quarto se apagou, houve uma agitação e um rebuliço em todas as instalações da fazenda. Durante o dia, havia se espalhado a notícia de que o velho Major, um porco da raça middle white magnífico, tivera um sonho estranho na noite anterior e desejava contá-lo aos outros animais. Todos combinaram que deveriam se encontrar em segurança no grande celeiro assim que o Sr. Jones estivesse fora do caminho. O velho Major (assim o chamavam, embora seu nome de exibição fosse Beleza de Willingdon) gozava de tanto respeito na fazenda que todos estavam prontos para perder uma hora de sono a fim de ouvir o que ele tinha a dizer.

O Major já estava acomodado sobre uma cama de palha em uma das extremidades do grande celeiro, em cima de uma espécie de plataforma elevada sob uma lanterna pendurada em uma viga. Ele tinha doze anos de idade e já se encontrava bastante rechonchudo, mas ainda era um porco majestoso, com uma aparência sábia e benevolente, apesar de suas presas nunca terem sido cortadas. Em pouco tempo os outros animais começaram a chegar e a se aconchegar, cada um à sua maneira. Primeiro vieram as três cachorras, Lulu, Mimi e Pipa, e depois os porcos, que se assentaram na palha imediatamente em frente à plataforma. As galinhas se empoleiraram nos parapeitos das janelas, os pombos se agitaram até as vigas, as ovelhas e as vacas se deitaram atrás dos porcos, logo começando a ruminar.

Os dois cavalos de carga, Golias e Esperança, entraram juntos, andando muito devagar e pisando com seus cascos peludos com muito cuidado para não machucar qualquer animal de pequeno porte que estivesse escondido na palha. Esperança era uma égua de criação robusta que se aproximava da meia-idade, sem ter recuperado a forma depois [de] seu quarto potro. O Golias era uma besta enorme, com mais de um metro e oitenta de altura, e tão forte quanto dois cavalos comuns juntos. Uma faixa branca em seu nariz lhe dava um ar um pouco estúpido e, de fato, ele não era tão inteligente assim, mas todos o respeitavam por conta de sua firmeza de caráter e de seu imenso talento para o trabalho. Depois dos cavalos vieram Muriel, uma cabra branca, e Benjamin, um burro. Benjamin era o animal mais velho da fazenda, e o mais mal-humorado. Raramente falava e, quando falava, geralmente era para fazer algum comentário cínico – ele dizia, por exemplo, que Deus lhe havia dado um rabo comprido para manter as moscas longe, mas que ele preferia não ter nem o rabo, nem as moscas. Solitário entre os animais da fazenda, nunca ria. Se lhe perguntassem por que, ele diria que não via graça em nada. Entretanto, sem admitir abertamente, dedicava algum tempo ao Golias. Os dois geralmente passavam seus domingos juntos no pequeno cercado além do pomar, pastando lado a lado sem falar nada. Os dois cavalos tinham acabado de se deitar quando uma ninhada de patinhos, que haviam se perdido de sua mãe, entrou no galpão, piando baixinho e vagando de um lado para o outro para encontrar algum lugar onde não corriam riscos de serem pisoteados. Esperança fez uma espécie de muro em torno deles com sua longa pata dianteira, onde os patinhos se aninharam e logo adormeceram. Mollie, a tola e linda égua branca que puxava a carroça do Sr. Jones, chegou no último instante, trotando delicadamente e mastigando um torrão de açúcar. Ela encontrou um lugar perto da frente e começou a balançar sua crina branca, na esperança de chamar a atenção para as fitas vermelhas que ornavam suas tranças. Por último veio a gata, que, como sempre, procurou o lugar mais quentinho e finalmente se espremeu entre Golias e Esperança; ela ficou lá, ronronando durante todo o discurso de Major sem ouvir uma palavra do que ele estava dizendo.

Agora todos os animais estavam presentes, exceto Moisés, o corvo dócil que dormia em um poleiro atrás da porta dos fundos. Quando Major viu que todos eles estavam confortáveis e esperavam atentos, limpou a garganta e começou:

Camaradas, vocês já ouviram falar do estranho sonho que eu tive ontem à noite. Mas chegarei ao sonho mais tarde. Tenho algo mais importante para dizer antes. Não creio, camaradas, que estarei com vocês por muitos mais tempo e, antes de morrer, sinto o dever de transmitir-lhes toda a sabedoria que adquiri. Tive uma vida longa e muito tempo para pensar enquanto estava deitado sozinho em minha baia e acho que posso dizer que compreendo a natureza da vida nesta terra, assim como de qualquer animal que está vivo sobre ela agora. É sobre isto que desejo falar com vocês.

E qual é, camaradas, a natureza desta nossa vida? Vamos encarar a verdade: nossas vidas são miseráveis, laboriosas e curtas. Nascemos, recebemos apenas a quantidade de comida necessária para manter nosso corpo respirando e aqueles de nós que são capazes são forçados a trabalhar até o último fio de nossas forças. No instante em que nossa utilidade chega ao fim, somos massacrados com uma crueldade hedionda. Nenhum animal da Inglaterra sabe o significado da felicidade ou do lazer depois do primeiro ano de vida. Nenhum animal da Inglaterra é livre. A vida de um animal é só miséria e escravidão: essa é a simples verdade.

Mas será que isto faz parte da ordem da natureza? Será que isso acontece porque nossa terra é tão pobre que não pode proporcionar uma vida decente para aqueles que nela habitam? Não, camaradas, mil vezes não! O solo da Inglaterra é fértil, seu clima é bom e capaz de fornecer alimento em abundância a um número enormemente maior de animais do que os que habitam nela hoje. Até mesmo a nossa fazenda seria capaz de sustentar uma dúzia de cavalos, vinte vacas, centenas de ovelhas – todos vivendo em um conforto e dignidade que agora estão quase além da nossa imaginação. Por que então continuamos nesta condição miserável? Porque quase todo o produto de nosso trabalho é roubado de nós pelos seres humanos. Essa, camaradas, é a resposta para todos os nossos problemas. Para resumir em uma palavra – o Homem. O Homem é o único e verdadeiro inimigo que temos. Basta remover o Homem de cena que o motivo primário da fome e do excesso de trabalho será abolido para sempre.

O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Ele não dá leite, não põe ovos, é muito fraco para puxar o arado, não consegue correr rápido o suficiente para pegar coelhos. No entanto, ele é senhor de todos os animais. Põe todos para trabalhar e devolve apenas o mínimo necessário para que não passemos fome. O resto ele guarda para si mesmo. Nosso trabalho enche o solo, nosso esterco o fertiliza, e ainda assim não há um de nós que possua mais do que sua própria pele. As vacas que vejo diante de mim: quantos milhares de galões de leite já deram neste último ano? E o que aconteceu com o leite que deveria ter criado bezerros robustos? Cada uma das gotas desceu pela garganta de nossos inimigos. E vocês galinhas, quantos ovos puseram neste último ano e quantos desses ovos já chocaram? Os demais foram todos para o mercado, para trazer dinheiro para Jones e seus homens. E você, Esperança, onde estão aqueles quatro potros que você carregou, que deveriam ser o apoio e o prazer de sua velhice? Cada um deles foi vendido com um ano de idade – e você nunca mais verá qualquer um novamente. O que você já ganhou em troca de quatro partos e de todo seu trabalho nos campos, exceto suas rações secas e uma baia?

E mesmo essas vidas miseráveis que levamos não têm permissão de chegar ao fim em seu tempo natural. Não resmungo por mim, pois sou um dos sortudos. Tenho doze anos de idade e tive mais de quatrocentos filhos. Assim é a vida natural de um porco. Mas nenhum animal escapa da cruel faca no final. Vocês, jovens porcos que estão sentados à minha frente, cada um de vocês vai gritar por suas vidas dentro de um ano. Esse horror eventualmente encontra todos nós – vacas, porcos, galinhas, ovelhas, todos. Nem os cavalos e os cães têm um destino melhor. Você, Golias, no mesmo dia em que esses seus grandes músculos perderem seu poder, será vendido por Jones para o abatedouro, onde vão cortar sua garganta e te transformar em comida de cão de caça. Quando os cães estiverem velhos e sem dentes, Jones amarrará um tijolo aos seus pescoços e os afogará na lagoa mais próxima.

Então não é óbvio, camaradas, que todos os males desta nossa vida brotam da tirania dos seres humanos? Livrem-se apenas do Homem, e os produtos de nosso trabalho seriam nossos. Quase da noite para o dia poderíamos ficar ricos e livres. O que devemos fazer? Trabalhar noite e dia, de corpo e alma, para depor a raça humana! Esta é a minha mensagem para vocês, camaradas: Revolução! Não sei quando essa Revolução chegará, pode ser daqui a uma semana ou daqui a cem anos, mas sei, tão certo quanto vejo esta palha debaixo dos meus pés, que mais cedo ou mais tarde será feita justiça. Fixem seus olhos nisso, camaradas, durante o tempo restante de suas vidas! E acima de tudo, passem esta minha mensagem àqueles que vierem depois de vocês, para que as gerações futuras continuem a luta até encontrarem a vitória.

E lembrem-se, camaradas, seu ímpeto nunca deve vacilar. Nenhum argumento deve levá-los ao engano. Nunca escutem quando lhes disserem que o Homem e os animais têm interesses em comum, que a prosperidade de um é a prosperidade dos outros. Tudo isso é mentira. O Homem não serve aos interesses de nenhuma criatura, exceto dele mesmo. E entre nós, animais, que haja perfeita unidade, perfeita camaradagem na luta. Todos os Homens são inimigos. Todos os animais são camaradas”.

Neste momento, houve um tremendo tumulto. Enquanto o Major falava, quatro grandes ratos haviam saído de seus buracos e estavam sentados em seus traseiros, ouvindo-o. Os cães de repente os viram e os ratos só se salvaram porque correram de volta para seus buracos. O Major levantou sua pata para pedir silêncio.

Camaradas”, disse ele, “aqui está um assunto que deve ser resolvido. As criaturas selvagens, como ratos e coelhos, são nossos amigos ou nossos inimigos? Vamos colocar o tema em votação. Proponho esta pergunta para os reunidos:

Os ratos são camaradas?” A votação foi realizada imediatamente, e foi acordado por uma maioria esmagadora que os ratos eram camaradas. Havia apenas quatro dissidentes, os três cães e a gata, que depois descobriu-se que tinha votado de ambos os lados. O Major continuou: “Estou chegando no fim da minha fala. Apenas repito, lembrem-se sempre de seu dever de inimizade para com o Homem e seus costumes. O que quer que ande sobre duas pernas é um inimigo. O que quer que ande sobre quatro patas, ou que tenha asas, é um amigo. E lembrem-se também que na luta contra os seres humanos, não devemos nos tornar parecidos com eles. Mesmo quando o derrotarem, não adotem seus vícios. Nenhum animal jamais deve viver em uma casa, dormir em uma cama, usar roupas, beber álcool, fumar tabaco, usar dinheiro ou se envolver em comércio. Todos os hábitos do Homem são maus. E, acima de tudo, nenhum animal deve jamais tiranizar sobre sua própria espécie. Fracos ou fortes, espertos ou simples, todos somos irmãos. Nenhum animal deve jamais matar nenhum outro animal. Todos os animais são iguais.

E agora, camaradas, vou lhes contar sobre meu sonho de ontem à noite. Não sou capaz de descrever esse sonho para vocês. Foi um sonho de como a Terra será quando o Homem tiver desaparecido. Mas isso me fez lembrar de algo que há muito tempo eu havia esquecido. Há muitos anos, quando eu era um porquinho, minha mãe e as outras porcas costumavam cantar uma velha canção da qual só conheciam a melodia e as três primeiras palavras. Eu já conhecia essa canção na minha infância, mas há muito tempo ela havia se perdido na minha cabeça. Na noite passada, no entanto, ela voltou para mim em meu sonho. E, mais ainda, as palavras da canção também voltaram, tenho certeza, palavras que foram cantadas pelos animais de muito tempo atrás e que se perderam na memória por gerações. Agora vou cantar essa canção, camaradas. Estou velho e minha voz está rouca, mas quando eu vos ensinar a melodia, vocês poderão cantá-la melhor vocês mesmos. Ela se chama ‘Animais da Inglaterra’”.

O velho Major limpou a garganta e começou a cantar. Como ele havia dito, sua voz era rouca, mas cantou suficientemente bem. Era uma melodia agitada, algo entre ‘Clementine’ e ‘La Cucaracha’. As palavras correram:

Animais da Inglaterra e da Irlanda
Animais daqui ou de acolá
Ouçam a notícia de esperança
Do notável tempo que vir
Cedo ou tarde o dia está chegando,
Em que o tirano cairá ao chão,
E nos férteis solos da Inglaterra
Somente os animais passearão.
Sem mais argolas em nossas ventas,
Sem novos pesos a carregar,
Freios e esporas enferrujando
E chicotes sem mais estralar.
Com mais fartura que em nossos sonhos:
Trigo e cevada, feno praiano,
Aveia, feijão e beterraba
Serão o nosso cotidiano.
Brilharão os campos da Inglaterra,
Com águas das mais puras matizes,
Mais doce ainda serão suas brisas
No momento em que estivermos livres.
Lutemos todos por esse dia
Mesmo que ao custo de nossa vida
Vacas, perus, porcos e cavalos
É a liberdade a nossa lida
Animais da Inglaterra e da Irlanda
Animais daqui ou de acolá
Ouçam a notícia de esperança
Do notável tempo que virá

Cantar esta canção deixou os animais selvagemente excitados. Quase antes de Major ter chegado ao fim, eles já começaram a cantá-la sozinhos. Mesmo os menos espertos já haviam captado a melodia e algumas das palavras, enquanto os mais espertos, como os porcos e cães, tinham decorado a canção inteira em poucos minutos. E então, após algumas tentativas preliminares, toda a fazenda se pôs a cantar “Animais da Inglaterra” em uníssono. As vacas mugiram, os cães uivaram, as ovelhas baliram, os cavalos relincharam, os patos grasnaram. Eles ficaram tão encantados com a canção que a cantaram cinco vezes seguidas, e poderiam ter continuado cantando a noite toda se não tivessem sido interrompidos.

Infelizmente, o alvoroço despertou o Sr. Jones, que saltou da cama, certo de que havia uma raposa no pátio. Ele pegou a arma que sempre estava em um canto de seu quarto, e atirou para a escuridão. As balas se enterraram na parede do celeiro e a reunião se desfez rapidamente. Todos fugiram para seu próprio abrigo. Os pássaros saltaram para seus poleiros, os animais se assentaram na palha e, de repente, toda a fazenda estava dormindo.

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Veja também o vídeo a seguir:



Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.

  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos?O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.

  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo I, pág. 2 a 15. Veja o livro completo aqui.

Um comentário:

  1. Por ora, post referente o capítulo I. Os demais capítulos (II a X) virão na sequência. Aguardem!!!.

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