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02 abril 2024

Revolução dos Bichos (II)

Por: George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

    Capítulo II [3]


Três noites depois, o velho Major morreu tranquilamente durante o sono. Seu corpo foi enterrado no pomar.

Isto foi no início de março. Os três meses seguintes foram preenchidos por muita atividade secreta. O discurso de Major havia dado aos animais mais inteligentes da fazenda uma visão completamente nova da vida. Eles não sabiam quando a Revolução prevista pelo Major ocorreria e não tinham nenhuma razão para pensar que seria durante suas vidas, mas viram claramente que era seu dever se preparar para ela. O trabalho de ensinar e organizar os outros acabou recaindo naturalmente sobre os porcos, que geralmente eram reconhecidos como sendo os mais espertos dos animais. Preeminentes entre os porcos eram dois jovens javalis chamados Bola de Neve e Napoleão, que o Sr. Jones estava criando para venda. Napoleão era um javali berkshire grande, de aparência bastante feroz, o único desse tipo na fazenda. Não era muito falador, mas tinha uma reputação de conseguir tudo do seu jeito. Bola de Neve era um porco mais vivaz do que Napoleão, mais rápido na fala e mais inventivo, mas não aparentava ter a mesma profundidade de caráter. Todos os outros porcos machos da fazenda eram criados para abate. O mais conhecido entre eles era um pequeno porco gordo chamado Berro, com bochechas muito redondas, olhos cintilantes, movimentos ágeis e uma voz estridente. Ele era um falador brilhante, e quando estava discutindo algum ponto difícil tinha uma maneira de pular de um lado para o outro balançando sua cauda que de alguma forma era muito persuasiva. Diziam que Berro conseguia transformar preto em branco.

Os três tinham elaborado os ensinamentos do velho Major em um sistema completo de pensamento que chamaram de animalismo. Várias noites por semana, quando o Sr. Jones já estava dormindo, eles realizavam reuniões secretas no celeiro e expunham aos outros os princípios do animalismo. No início, eles se depararam com muita estupidez e apatia. Alguns dos animais falavam do dever de lealdade ao Sr. Jones, a quem se referiam como “Mestre”, ou faziam observações rudimentares como “o Sr. Jones nos alimenta. Se ele não estivesse aqui, morreríamos de fome”. Outros fizeram perguntas como “Por que deveríamos nos importar com o que acontece depois de estarmos mortos?” ou “Se esta Revolução vai acontecer de qualquer maneira, que diferença faz se trabalharmos nela ou não?”, e os porcos tiveram grandes dificuldades em fazê-los ver que isto era contrário ao espírito do animalismo. As perguntas mais estúpidas de todas foram feitas pela Mollie, a égua branca. A primeira pergunta que ela fez ao Bola de Neve foi: “Ainda haverá açúcar depois da Revolução?”

“Não”, disse Bola de Neve firmemente. “Não temos os meios necessários para fazer açúcar nesta fazenda. Além disso, você não precisa de açúcar. Você terá toda a aveia e feno que quiser”.

“E ainda poderei usar fitas na minha crina?” perguntou Mollie.

“Camarada”, disse Bola de Neve, “essas fitas das quais você gosta tanto são o símbolo da sua escravidão. Você não consegue entender que a liberdade vale mais do que fitas?”

Mollie concordou, mas não pareceu muito convencida.

Os porcos tiveram uma luta ainda mais difícil para contradizer as mentiras proferidas por Moisés, o corvo dócil. Moisés, animal de estimação favorito do Sr. Jones, era um espião e um mentiroso, mas também um orador esperto. Ele afirmou saber da existência de um lugar misterioso chamado Montanha Doce de Açúcar, para o qual todos os animais iriam quando morressem. Ele estava situado em algum lugar no céu, a uma pequena distância além das nuvens, disse Moisés. Na Montanha Doce de Açúcar era domingo sete dias por semana, a grama crescia o ano inteiro e torrões de açúcar e bolos de linhaça davam em árvores. Os animais odiavam Moisés porque ele só contava histórias e não trabalhava, mas alguns deles acreditavam na Montanha Doce de Açúcar, e os porcos tinham que argumentar muito para convencê-los de que tal lugar não existia.

Seus discípulos mais fiéis eram os dois cavalos de carga, Golias e Esperança. Os dois tinham uma grande dificuldade em pensar qualquer coisa por si mesmos, mas depois de aceitarem os porcos como professores, eles absorveram tudo o que lhes foi dito, e o repassaram tudo para os outros animais com argumentos simples. Eles eram infalíveis em sua participação nas reuniões secretas no celeiro, e lideravam o canto de “Animais da Inglaterra”, com o qual as reuniões sempre terminavam.

Mas, no fim das contas, a Revolução foi alcançada muito antes e mais facilmente do que qualquer um havia esperado. Nos anos anteriores, o Sr. Jones, embora fosse um mestre duro, havia sido um fazendeiro capaz, mas, ultimamente, atravessava um mau período. Ele ficou muito desanimado depois de perder dinheiro em uma ação judicial, e tinha começado a beber mais do que devia. Ele sentava durante dias inteiros em sua cadeira de madeira na cozinha, lendo os jornais, bebendo e ocasionalmente alimentando Moisés com pedaços de casca de pão embebidas em cerveja. Seus homens eram ociosos e desonestos, os campos estavam cheios de ervas daninhas, as construções precisavam de telhados novos, as sebes estavam negligenciadas e os animais não eram bem alimentados.

Junho chegou e o feno estava quase pronto para ser cortado. Na véspera do verão, em um sábado, o Sr. Jones foi para Willingdon e ficou tão bêbado no Leão Vermelho que só voltou ao meio-dia do domingo. Os homens tinham ordenhado as vacas de manhã cedo e depois saíram para caçar lebres, sem se preocupar em alimentar os animais. Quando o Sr. Jones voltou, ele foi imediatamente dormir no sofá da sala de visitas com um jornal cobrindo seu rosto, de modo que, quando a noite chegou, os animais ainda não tinham recebido comida. Finalmente, eles não aguentaram mais. Uma das vacas quebrou a porta do celeiro com seus cornos e todos os animais começaram a se servir direto dos sacos. Foi só então que o Sr. Jones acordou. No momento seguinte, ele e seus quatro homens estavam lá com chicotes nas mãos, estalando em todas as direções. Isto era mais do que os animais famintos eram capazes de suportar. Em concordância, embora não tenham planejado nada de antemão, eles se atiraram sobre seus algozes. Jones e seus homens de repente foram agredidos e chutados de todos os lados. A situação estava completamente fora de controle. Eles nunca tinham visto animais se comportarem assim antes, e esta repentina revolta das criaturas em quem estavam acostumados a bater e maltratar como bem queriam os assustou tanto que quase perderam o juízo. Depois de alguns momentos, eles desistiram de tentar se defender e se apressaram. Um minuto depois, os cinco saíram correndo pela trilha que os levava à estrada principal, com os animais os perseguindo triunfantes.

A Sra. Jones olhou pela janela do quarto, viu o que estava acontecendo, jogou apressadamente alguns pertences em uma mala de tapeçaria e escapou da fazenda por outro caminho. Moisés saltou de seu poleiro na direção dela, corvejando ruidosamente. Enquanto isso, os animais tinham perseguido Jones e seus homens até a estrada e bateram o portão de cinco grades atrás deles. E assim, antes de se darem conta do que estava acontecendo, a Revolução havia sido levada adiante com sucesso: Jones foi expulso, e a Fazenda Solar era deles.

No começo, os animais mal podiam acreditar em sua sorte. O primeiro ato foi galopar em conjunto ao redor dos limites da fazenda, como se quisessem ter certeza de que nenhum ser humano estava escondido por ali; então eles correram de volta para as instalações para apagar os últimos vestígios do odiado reinado de Jones. O galpão de arreio no fundo dos estábulos foi aberto; os freios, as argolas de nariz, as correntes dos cachorros e as facas cruéis usadas pelo Sr. Jones para castrar os porcos e cordeiros foram jogados no poço. As rédeas, os cabrestos, os antolhos e os degradantes bornais foram jogados na pilha de fogo que queimava no pátio. Os chicotes também. Todos os animais se alegraram quando viram os chicotes pegando fogo. O Bola de Neve também jogou no fogo as fitas com as quais as crinas e caudas dos cavalos eram decoradas nos dias de feira.

“As fitas”, disse ele, “devem ser consideradas roupas, que são a marca de um ser humano. Todos os animais devem andar nus”.

Quando Golias ouviu isto, pegou o pequeno chapéu de palha que usava no verão para manter as moscas longe de suas orelhas e o jogou no fogo com todo o resto.

Em pouco tempo, os animais tinham destruído tudo o que os lembrava do Sr. Jones. Então Napoleão os levou de volta ao celeiro e serviu uma ração dupla de milho para todos, com duas bolachas para cada um dos cães. Então cantaram “Animais da Inglaterra” de ponta a ponta sete vezes sem parar, e depois de se acomodarem para passar a noite, dormiram como nunca haviam dormido antes.

Mas eles acordaram logo ao amanhecer, como de costume, e de repente, lembrando-se do glorioso acontecimento do dia anterior, correram todos juntos para o pasto. Um pouco mais abaixo do pasto, havia um monte que permitia ver a maior parte da fazenda. Os animais correram para o topo e olharam à sua volta com a luz clara da manhã. Sim, era deles – tudo o que eles podiam ver era deles! No êxtase daquele pensamento, eles davam pulinhos de alegria de um lado para outro, atirando-se no ar em grandes saltos de emoção. Eles rolaram no orvalho, pegaram bocadas imensas da grama doce do verão, chutaram montinhos de terra negra e sentiram seu cheiro rico.

Em seguida, fizeram uma inspeção de toda a fazenda e fiscalizaram com uma silenciosa admiração a lavoura, o campo de feno, o pomar, o lago, o bosque. Era como se eles nunca tivessem visto nada disso antes, e mesmo agora eles mal podiam acreditar que era tudo deles. Em seguida, eles voltaram para a área de instalações da fazenda e pararam em silêncio do lado de fora da porta da casa. Ela também era deles, mas tinham medo de entrar. Após um momento, porém, Bola de Neve e Napoleão abriram a porta com seus ombros e os animais entraram em fila, andando com o maior cuidado por medo de perturbar qualquer coisa. Eles espiaram todos os quartos, com medo de emitir qualquer som que não fosse um sussurro e olhando com uma espécie de espanto para o luxo inacreditável, para as camas com colchões de pena, os espelhos, o sofá de crina de cavalo, o tapete estampado, a litografia da Rainha Vitória sobre a lareira da sala de visita. Eles estavam descendo as escadas quando a Mollie foi tida como desaparecida. Voltando para trás, os outros descobriram que ela tinha parado no melhor quarto. Ela havia encontrado um pedaço de fita azul na mesa de vestir da Sra. Jones, e estava segurando-o contra o ombro e admirando-se no espelho como uma boba. Os outros a reprovaram severamente, e foram para fora. Com exceção de alguns presuntos pendurados na cozinha, que foram levados para serem enterrados, e o barril de cerveja na copa, que foi amassado com um chute do casco de Golias, nada na casa foi tocado. Uma resolução de que a casa deveria ser preservada como um museu foi aprovada com unanimidade no local. Todos concordaram que nenhum animal jamais deveria viver lá.

Os animais tomaram seu café da manhã, e então Bola de Neve e Napoleão os convocaram novamente.

“Camaradas”, disse Bola de Neve, “são seis e meia e temos um longo dia pela frente. Hoje começamos a colheita do feno. Mas há outro assunto que deve ser tratado primeiro”.

Os porcos agora revelaram que durante os últimos três meses eles haviam aprendido a ler e escrever sozinhos a partir de um velho livro ortográfico que tinha pertencido aos filhos do Sr. Jones e que havia sido jogado em um canto. Napoleão mandou buscar potes de tinta preta e branca e conduziu o caminho até o portão de cinco grades que dava para a estrada principal. Então Bola de Neve, que sabia escrever melhor, pegou um pincel entre os dois nós de sua pata, riscou Fazenda Solar da barra superior do portão e em seu lugar pintou Fazenda dos Animais. Este era o nome da fazenda a partir de agora. Depois disso, eles voltaram às instalações, onde Bola de Neve e Napoleão mandaram buscar uma escada que foi encostada na parede da extremidade do grande celeiro. Eles explicaram que, com seus estudos dos últimos três meses, os porcos tinham conseguido reduzir os princípios do animalismo a Sete Mandamentos. Estes Sete Mandamentos estariam agora inscritos na parede; eles formariam uma lei inalterável que todos os animais da Fazenda dos Animais devem seguir para sempre. Com alguma dificuldade (pois não é fácil para um porco equilibrar-se em uma escada), Bola de Neve subiu e se pôs a trabalhar, com Berro alguns degraus abaixo dele segurando o pote de tinta. Os Mandamentos foram escritos na parede coberta de piche em grandes letras brancas que podiam ser lidas a trinta metros de distância. Eram os seguintes:

Os Sete Mandamentos

1. O que quer que ande em duas pernas é inimigo.

2. O que quer que ande sobre quatro pernas, ou que tenha asas, é um amigo.

3. Nenhum animal deve usar roupas.

4. Nenhum animal deve dormir em uma cama.

5. Nenhum animal deve beber álcool.

6. Nenhum animal matará outro animal.

7. Todos os animais são iguais.

Foi muito bem escrito, e exceto que “amigo” foi escrito “anigo” e um dos “s” foi escrito invertido, a grafia saiu correta durante toda a escrita. Bola de Neve leu a lista em voz alta para o benefício dos outros. Todos os animais acenaram com a cabeça em total concordância, e os mais espertos logo começaram a decorar os Mandamentos.

“Agora, camaradas”, gritou Bola de Neve, jogando o pincel de pintura, “para o campo de feno! Façamos da colheita um momento de honra: vamos colher mais rápido do que Jones e seus homens jamais puderam fazer”.

Mas neste momento as três vacas, que já pareciam inquietas há algum tempo, deram um grande mugido. Elas não tinham sido ordenhadas há vinte e quatro horas e suas tetas estavam quase explodindo. Depois de um pouco de reflexão, os porcos mandaram buscar baldes e ordenharam as vacas com bastante sucesso, já que suas patas pareciam adaptadas a essa tarefa. Logo, havia cinco baldes de leite cremoso espumoso, que vários animais olhavam com grande interesse.

“O que vai acontecer com aquele leite todo?” disse alguém.

“Jones às vezes misturava um pouco de leite na nossa ração”, disse uma das galinhas.

“Esqueçam o leite, camaradas!” gritou Napoleão, colocando-se na frente dos baldes. “Isso será resolvido. A colheita é mais importante. O camarada Bola de Neve vai liderar o caminho. Seguirei dentro de alguns minutos. Avante, camaradas! O feno está esperando”.

Então os animais trotaram para o campo de feno para começar a colheita e, quando voltaram à noite, notaram que o leite tinha desaparecido.

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Agora, veja o Capítulo II em audiolivro:


Notas:

  • [1] George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.

  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos?O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.

  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo II, pág. 17 a 30. Veja o livro completo aqui.

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Olá, amigo(a)s: sobre a Revolução dos Bichos, de George Orwell, já postei o capítulo I, em 28/03 (Veja a categoria Política) e hoje, o capítulo II. Os demais capítulos (III a X) virão na sequência.
    Abraços!!!

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    1. Link do capítulo I: (https://alcidesamorim.blogspot.com/2024/03/revolucao-dos-bichos-i.html)

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  3. Muito bom! Parecido com as Cartas de Nárnia que acompanho sempre que posso.

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