Por George Orwell [1]
In: Gazeta do Povo [2]
Capítulo VII [3]
Foi um inverno amargo. As tempestades foram seguidas por chuva e neve, e depois por uma geada que não se dissipou até meados de fevereiro. Os animais continuaram a reconstrução do moinho da melhor maneira que conseguiam, bem conscientes de que o mundo exterior os observava e que os seres humanos invejosos se regozijariam e triunfariam se o moinho não fosse terminado a tempo.
Por maldade, os seres humanos fingiram não acreditar que Bola de Neve tinha destruído o moinho, dizendo que ele tinha caído porque as paredes eram muito finas. Os animais sabiam que não era o caso. Ainda assim, foi decidido construir as paredes com três metros de espessura no lugar do meio metro anterior, o que significava coletar uma quantidade muito maior de pedra. Durante muito tempo, a pedreira ficou cheia de neve e nada podia ser feito. Conseguiram avançar um pouco no clima seco e gelado que se seguiu, mas foi um trabalho cruel, e os animais não podiam se sentir tão esperançosos como se sentiam antes. Eles estavam sempre com frio, e geralmente também com fome. Somente Golias e Esperança não perderam o ânimo. Berro fez excelentes discursos sobre a alegria do serviço e a dignidade do trabalho, mas os outros animais encontraram mais inspiração na força do Golias e em seu grito infindável de “Vou trabalhar mais”!
Em janeiro, a comida ficou aquém das expectativas. A ração de milho foi drasticamente reduzida, e foi anunciado que uma ração extra de batata seria distribuída para compensá-la. Descobriu-se então que a maior parte da colheita de batata havia congelado nos sacos, que não haviam sido bem cobertos. As batatas ficaram moles e pálidas e apenas algumas eram comestíveis. Os animais tinham cada vez menos para comer, sobrando pouco além de palha e beterrabas. A inanição estava à espreita.
Era vital esconder este fato do mundo exterior. Encorajados pelo colapso do moinho de vento, os seres humanos estavam inventando novas mentiras sobre a Fazenda dos Animais. Voltaram a dizer que todos os animais estavam morrendo de fome e doenças, e que estavam continuamente lutando entre si e tinham recorrido ao canibalismo e ao infanticídio. Napoleão estava bem ciente dos maus resultados que poderiam se seguir se os fatos reais da situação alimentar fossem conhecidos, e ele decidiu fazer uso do Sr. Whymper para espalhar uma impressão contrária. Até então os animais tinham tido pouco ou nenhum contato com a Whymper em suas visitas semanais: agora, porém, alguns poucos animais selecionados, a maioria ovelhas, foram instruídos a comentar casualmente em sua presença que as rações tinham aumentado. Além disso, Napoleão ordenou que os silos quase vazios no galpão fossem enchidos quase até a borda com areia, que depois era coberta com o que restava do grão e da farinha. Sob algum pretexto adequado, Whymper foi conduzido através do galpão e permitiu que se vislumbrasse os silos. Ele foi enganado, e continuou a informar ao mundo exterior que não havia escassez de alimentos na Fazenda dos Animais.
No entanto, no final de janeiro tornou-se óbvio que seria necessário obter mais grãos de alguma maneira. Nesses dias, Napoleão raramente aparecia em público, mas passava todo seu tempo na casa, guardada em cada porta pelos cães de aparência feroz. Quando surgia, era de maneira cerimonial, com uma escolta de seis cães que o cercavam de perto e rosnavam se alguém se aproximasse demais. Com frequência, ele nem sequer aparecia nas manhãs de domingo, emitindo suas ordens através de um dos outros porcos, geralmente o Berro.
Numa manhã de domingo o Berro anunciou que as galinhas, que estavam começando a botar ovos agora, deveriam entregar cada um deles para os porcos. Napoleão havia aceitado, através da Whymper, um contrato de quatrocentos ovos por semana. O preço destes pagaria por grãos e refeições suficientes para manter a fazenda funcionando até o verão, quando a situação ficaria mais fácil.
Quando as galinhas ouviram isto, elas levantaram um clamor terrível. Elas haviam sido advertidas anteriormente de que este sacrifício poderia ser necessário, mas não tinham acreditado que isso realmente aconteceria. Elas estavam apenas começando a preparar suas ninhadas para a primavera, e protestaram que tirar os ovos agora era assassinato. Pela primeira vez desde a expulsão de Jones, houve algo que se assemelhava a uma rebelião. Lideradas por três jovens galinhas minorcas, elas fizeram um esforço determinado para frustrar os desejos de Napoleão. Seu método era voar até o caibro para depositar seus ovos, que se desfaziam em pedaços quando chegavam ao chão. Napoleão agiu rápido e sem piedade. Ele ordenou que a ração das galinhas fosse suspensa e decretou que qualquer animal que desse um grão de milho sequer a uma galinha seria punido com a morte. Os cães ficaram de guarda para que estas ordens fossem cumpridas. Durante cinco dias as galinhas resistiram, depois capitularam e voltaram para os ninhos. Nove galinhas haviam morrido nesse meio tempo. Seus corpos foram enterrados no pomar, e foi informado que elas haviam morrido de coccidiose. Whymper não ouviu nada sobre este caso, e os ovos foram devidamente entregues em uma carroça do merceeiro, que ia até a fazenda uma vez por semana para pegá-los.
Durante todo esse tempo, Bola de Neve não foi mais visto. Corriam rumores de que ele estaria escondido em uma das fazendas vizinhas, Foxwood ou Pinchfield. Napoleão tinha então melhorado levemente seu relacionamento com os outros fazendeiros. Acontece que havia no pátio uma quantidade razoável de madeira que havia sido empilhada lá dez anos antes quando um bosque de faias foi desmatado. A madeira estava bem temperada, e Whymper havia aconselhado Napoleão a vendê-la; tanto o Sr. Pilkington quanto o Sr. Frederick estavam interessados em comprá-la. Napoleão estava hesitante entre os dois, incapaz de se decidir. Sempre que estava perto de fechar um acordo com Frederick, dizia-se que Bola de Neve estava escondido em Foxwood, quando ele se inclinava a fechar com Pilkington, dizia-se que Bola de Neve estava em Pinchfield.
De repente, no início da primavera, uma coisa alarmante foi descoberta. Bola de Neve frequentava a fazenda secretamente à noite! Os animais estavam tão perturbados que mal conseguiam dormir em seus estábulos. Todas as noites, dizia-se, ele vinha rastejando sob a escuridão e fazia todo tipo de travessuras. Roubava o milho, derrubava baldes de leite, quebrava os ovos, pisoteava canteiros, roía a casca das árvores frutíferas. Sempre que alguma coisa ruim acontecia, era atribuída a Bola de Neve. Se uma janela quebrasse ou um ralo entupisse, alguém com certeza diria que Bola de Neve tinha feito isso durante a noite, e quando a chave do galpão foi perdida, toda a fazenda estava convencida de que Bola de Neve a jogara no poço. Curiosamente, eles continuaram acreditando nisso mesmo depois que a chave mal guardada foi encontrada sob um saco de refeição. As vacas declararam unanimemente que o Bola de Neve entrou em seus estábulos e as ordenhou enquanto dormiam. Os ratos, que tinham sido problemáticos naquele inverno, supostamente estavam no time de Bola de Neve.
Napoleão decretou que haveria uma investigação completa sobre as atividades do Bola de Neve. Com a presença de seus cães, ele partiu e fez uma cuidadosa visita de inspeção nas instalações da fazenda, seguido a uma distância respeitosa pelos outros animais. De vez em quando, Napoleão parava e raspava o chão em busca de vestígios das pegadas de Bola de Neve, que, segundo ele, podia sentir pelo cheiro. Ele farejava cada canto, no celeiro, no galpão, nos galinheiros e na horta, e encontrou vestígios de Bola de Neve em quase todos os lugares. Ele colocava seu focinho no chão, dava várias fungadas profundas e exclamava com uma voz terrível: “Bola de Neve já esteve aqui! Eu posso cheirá-lo”, e quando dizia “Bola de Neve” todos os cães soltaram rosnados assustadores e mostraram seus caninos.
Os animais estavam completamente amedrontados. Parecia-lhes que Bola de Neve era uma espécie de influência invisível, pairando no ar sobre eles e ameaçando-os com todos os tipos de perigos. À noite, Berro os chamou e, com uma expressão alarmada em seu rosto, disse-lhes que tinha algumas notícias sérias a relatar.
“Camaradas!” gritou Berro, dando pequenos saltos nervosos, “uma coisa terrível foi descoberta. Bola de Neve se vendeu a Frederick da Fazenda Pinchfield, que está conspirando para nos atacar e tirar a fazenda de nós! Bola de Neve supostamente vai agir como guia quando o ataque começar. Mas fica pior. Tínhamos pensado que a rebelião de Bola de Neve era causada simplesmente por vaidade e ambição. Mas estávamos errados, camaradas. Sabem qual foi a verdadeira razão? Bola de Neve estava do lado de Jones desde o início! Era o agente secreto de Jones este tempo todo. Tudo isso foi provado por documentos que deixou para trás e acabamos de encontrar. Para mim isto explica muita coisa, camaradas. Não vimos por nós mesmos como ele tentou – por sorte sem sucesso – nos derrotar e nos destruir na Batalha do Estábulo?”
Os animais ficaram estupefatos. Esta foi uma maldade que ultrapassava de longe a destruição do moinho. Eles precisaram de alguns minutos para absorver completamente a notícia. Todos eles se lembravam, ou pensavam se lembrar, de ter visto Bola de Neve liderando a Batalha do Estábulo, como tinha se mobilizado e os encorajado a cada momento, e como ele não tinha parado nem mesmo por um instante quando os tiros da arma de Jones feriram suas costas. No início foi um pouco difícil entender como poderia estar do lado de Jones. Até mesmo Golias, que raramente fazia perguntas, ficou intrigado. Ele deitou-se, enfiou seus cascos dianteiros debaixo dele, fechou os olhos e, com um esforço duro, conseguiu formular seus pensamentos.
“Eu não acredito nisso”, disse ele. “Bola de Neve lutou bravamente na Batalha do Estábulo. Eu mesmo vi. Não lhe demos ‘Herói Animal, Primeira Classe’, logo depois?”.
“Esse foi o nosso erro, camarada. Pois sabemos agora – tudo está escrito nos documentos secretos que encontramos – que na realidade ele estava tentando nos atrair para a nossa derrota”.
“Mas ele estava ferido”, disse Golias. “Todos nós o vimos com sangue escorrendo”. “Isso era parte do arranjo”, gritou Berro. “O tiro de Jones só o acertou de raspão. Eu poderia mostrar isto por escrito, se você fosse capaz de ler. A ideia era que Bola de Neve, no momento crítico, desse o sinal de fuga para deixar o campo para o inimigo. E ele quase conseguiu – eu diria até mesmo, camaradas, ele teria conseguido se não fosse por nosso heroico líder, o camarada Napoleão. Você não se lembra como, exatamente no momento em que Jones e seus homens tinham entrado no pátio, Bola de Neve de repente virou e fugiu, e muitos animais o seguiram? E você não se lembra, também, que foi justamente naquele momento, quando o pânico se espalhava e tudo parecia perdido, que o camarada Napoleão avançou com um grito de ‘Morte à Humanidade’ e afundou seus dentes na perna de Jones? Certamente vocês se lembram disso, camaradas...” exclamou Berro, revirando-se de um lado para o outro.
Agora que Berro descreveu a cena de forma tão detalhada, parecia que os animais se lembravam dela. De qualquer forma, eles se lembraram que no momento crítico da batalha Bola de Neve havia se virado para fugir. Mas Golias ainda estava um pouco inquieto.
“Não acredito que Bola de Neve tenha sido um traidor desde o início”, disse finalmente. “O que ele tem feito desde então é diferente. Mas acredito que na Batalha do Estábulo ele era um bom camarada”.
“Nosso líder, Camarada Napoleão”, anunciou Berro, falando muito lenta e firmemente, “declarou categoricamente – categoricamente, camarada – que Bola de Neve foi o agente de Jones desde o início – sim, e desde muito antes da Revolução ter sido pensada”.
“Ah, isso é diferente”, disse Golias. “Se o camarada Napoleão diz, deve estar certo”.
“Esse é o verdadeiro espírito, camarada!” gritou Berro, mas se notou que ele lançou um olhar desconfiado para Golias com seus pequenos olhos cintilantes. Ele se virou para ir, depois fez uma pausa e acrescentou de forma impressionante: “Aviso todos os animais desta fazenda para manter seus olhos bem abertos. Pois temos razões para acreditar que alguns dos agentes secretos do Bola de Neve estão entre nós neste momento”!
Quatro dias mais tarde, no final da tarde, Napoleão ordenou que todos os animais se reunissem no pátio. Quando todos eles estavam reunidos, Napoleão emergiu da fazenda, vestindo todas as suas medalhas (pois ele havia se premiado recentemente tanto com “Herói Animal, Primeira Classe”, quanto com “Herói Animal, Segunda Classe”), e protegido por seus nove cães enormes, que emitiam rosnados que provocavam calafrios em todos os animais. Todos eles se acovardaram silenciosamente em seus lugares, parecendo saber antecipadamente que alguma coisa terrível estava prestes a acontecer.
Napoleão ficou de pé, vigiando com firmeza sua plateia; em seguida, proferiu um choramingar agudo. Imediatamente os cachorros se aproximaram, agarraram quatro porcos pela orelha. Guinchando de dor e terror, foram levados até os pés de Napoleão. As orelhas dos porcos estavam sangrando; os cães haviam provado sangue e por alguns momentos pareciam ter enlouquecido. Para o espanto de todos, três deles se atiraram sobre Golias. Ele os viu chegando e levantou seu grande casco, pegando um dos cães no ar e o prendendo ao chão. O cão gritou por misericórdia e os outros dois fugiram com o rabo entre as pernas. Golias olhou para Napoleão para saber se ele deveria esmagar o cão até a morte ou deixá-lo ir. Napoleão pareceu mudar de semblante, e ordenou com veemência que soltasse o cão, então Golias levantou o casco e o cão se afastou, machucado e uivando.
Então o tumulto acabou. Os quatro porcos esperaram, tremendo e com cara de culpados. Napoleão agora os convidava a confessar seus crimes. Eles eram os mesmos quatro porcos que haviam protestado quando Napoleão aboliu as reuniões dominicais. Sem mais, confessaram que estavam em contato secreto com Bola de Neve desde sua expulsão, que haviam colaborado com ele na destruição do moinho de vento e que haviam firmado um acordo com ele para entregar a Fazenda dos Animais ao Sr. Frederick. Acrescentaram que Bola de Neve havia admitido em particular que havia sido o agente secreto de Jones por muitos anos. Quando terminaram sua confissão, os cães prontamente arrancaram suas gargantas, e Napoleão perguntou, com uma voz terrível, se algum outro animal tinha algo a confessar.
As três galinhas que tinham sido as líderes da tentativa de rebelião dos ovos agora se apresentaram e declararam que Bola de Neve aparecera para elas em sonho e as incitara a desobedecer às ordens de Napoleão. Elas também foram massacradas. Então um ganso se apresentou e confessou ter roubado seis espigas de milho durante a colheita do ano passado e as comido durante a noite. Então uma ovelha confessou ter urinado no bebedouro – impelida, segundo ela, por Bola de Neve – e duas outras ovelhas confessaram ter assassinado um velho carneiro, um seguidor dedicado de Napoleão, perseguindo-o em volta de uma fogueira quando ele estava sofrendo de tosse. Todos eles foram mortos no local. E assim continuou a história das confissões e das execuções, até uma pilha de cadáveres se formar diante dos pés de Napoleão e o ar ficar pesado com o cheiro de sangue, que era desconhecido ali desde a expulsão de Jones.
Quando tudo acabou, os animais restantes, exceto os porcos e os cães, foram embora juntos. Eles estavam abalados e inconsoláveis. Eles não sabiam o que era mais chocante – a traição dos animais que haviam se juntado a Bola de Neve ou a cruel retribuição que haviam acabado de testemunhar. Antigamente, havia muitas cenas igualmente terríveis de derramamento de sangue, mas parecia que era muito pior agora que isso estava acontecendo entre eles. Desde que Jones havia deixado a fazenda, nenhum animal havia matado outro animal até hoje. Nem mesmo um rato havia sido morto. Eles tinham se encaminhado para o pequeno morro onde estava o moinho de vento semipronto e, em comum acordo, todos se deitaram juntos e se aconchegaram – Esperança, Muriel, Benjamin, as vacas, as ovelhas e toda a ninhada de gansos e galinhas – todos, de fato, exceto a gata, que desaparecera de repente pouco antes de Napoleão chamar a reunião. Durante algum tempo, ninguém falou. Somente Golias permaneceu de pé. Ele se agitava de um lado para o outro, balançando sua longa cauda preta contra os lados e, ocasionalmente, proferindo um pequeno gemido de surpresa. Finalmente, ele disse:
“Eu não entendo. Eu não teria acreditado que coisas assim pudessem acontecer em nossa fazenda. Isso deve ser alguma falha em nós mesmos. A solução, a meu ver, é trabalhar com mais afinco. De agora em diante, vou me levantar uma hora mais cedo”.
E ele partiu em seu trote até a pedreira. Lá, recolheu duas cargas sucessivas de pedra e as arrastou para o moinho antes de repousar para a noite.
Os animais se amontoaram ao redor da Esperança sem falar nada. O monte onde estavam deitados dava-lhes uma ampla vista de toda a zona rural. A maior parte da Fazenda dos Animais estava dentro de sua visão – o longo pasto que se estendia até a estrada principal, o campo de feno, o bosque, o açude, os campos arados onde o trigo jovem crescia grosso e verde, e os telhados vermelhos dos edifícios da fazenda com a fumaça saindo das chaminés. Era uma noite clara de primavera. A grama e as cercas estavam douradas pelos raios de sol. A fazenda – e com uma espécie de surpresa eles se lembraram de que isso se tratava da sua própria fazenda, cada centímetro dela era própria propriedade dos animais – nunca pareceu mais desejável para eles. Enquanto Esperança olhava colina abaixo, seus olhos se encheram de lágrimas. Se ela pudesse expressar seu pensamento, teria dito que este não era o seu objetivo quando se propuseram, anos atrás, a trabalhar para derrubar a raça humana. Estas cenas de terror e massacre não eram o que eles esperavam naquela noite em que o velho Major os incitou pela primeira vez à rebelião. Se ela própria tinha alguma expectativa do futuro, tinha sido de uma sociedade de animais livres da fome e do chicote, todos iguais, cada um trabalhando de acordo com sua capacidade, os fortes protegendo os fracos, como ela tinha protegido a ninhada perdida de patinhos com sua perna dianteira na noite do discurso do Major. Em vez disso – ela não sabia por que – tinham chegado a um momento em que ninguém ousava falar o que pensava, em que cães bravos e ferozes vagavam por toda parte, em que se tinha que ver camaradas serem despedaçados depois de confessar crimes chocantes. Não havia nenhum pensamento de rebeldia ou desobediência em sua mente. Ela sabia que, mesmo assim, as coisas estavam muito melhor do que estavam nos dias de Jones e que o mais importante era impedir o retorno dos seres humanos. O que quer que acontecesse, ela permaneceria fiel, trabalharia duro, cumpriria as ordens que lhe foram dadas e aceitaria a liderança de Napoleão. Mas mesmo assim, não era isso que ela e os outros animais esperavam. Não era para isso que trabalhavam. Não era para isso que construíram o moinho e enfrentaram as balas da arma de Jones. Tais eram seus pensamentos, embora lhe faltassem as palavras para expressá-los.
Finalmente, acreditando que isso era um substituto para as palavras que não conseguia encontrar, ela começou a cantar “Animais da Inglaterra”. Os outros animais sentados ao seu redor pegaram a deixa e cantaram o hino três vezes – de forma afinada, mas lenta e em luto, de uma forma que nunca tinham cantado antes.
Eles tinham acabado de cantá-la pela terceira vez quando Berro, acompanhado por dois cães, se aproximou deles com cara de quem tinha algo importante a dizer. Ele anunciou que, por um decreto especial do camarada Napoleão, “Animais da Inglaterra” havia sido abolida. A partir de agora, era proibido cantá-la.
Os animais foram tomados de surpresa.
“Por quê?” gritou Muriel.
“Não é mais necessário, camarada”, disse Berro com firmeza. “’Animais da Inglaterra’ era a canção da Revolução, que já está completa. A execução dos traidores esta tarde foi o ato final. O inimigo, tanto externo quanto interno, foi derrotado. Em ‘Animais da Inglaterra’ expressamos nosso anseio por uma sociedade melhor nos dias que virão. Mas essa sociedade foi agora estabelecida. Claramente, esta canção não tem mais nenhum propósito”.
Por mais assustados que estivessem, alguns dos animais teriam protestado, mas neste momento as ovelhas emitiram seu habitual balido de “Quatro patas bom, duas patas ruim”, que durou vários minutos e pôs um fim à discussão.
Assim, “Animais da Inglaterra” não foi mais ouvida. Em seu lugar Minimus, o poeta, tinha composto outra canção que começou:
Fazenda dos Animais, Fazenda dos Animais,
Por mim não farás mal jamais!
e isto foi cantado todos os domingos de manhã após o içar da bandeira. Mas de alguma forma nem as palavras nem a melodia pareciam chegar aos pés de “Animais da Inglaterra”.
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Veja a seguir, o áudio do capítulo VII:
Notas:
- [1] George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.
- [2] O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.
- [3] ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo VII, pág. 86 a 104. Veja o livro completo aqui.
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