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07 abril 2024

Revolução dos Bichos (III)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

    Capítulo III [3]

Como eles trabalharam e suaram para colher o feno! Mas seus esforços foram recompensados, pois a colheita foi um sucesso ainda maior do que esperavam.

Às vezes o trabalho era árduo; os instrumentos tinham sido projetados para seres humanos, não para animais, e era um grande inconveniente que nenhum deles fosse capaz de usar qualquer ferramenta que envolvesse ficar de pé em suas patas traseiras. Mas os porcos eram tão espertos que podiam pensar em uma maneira de contornar cada dificuldade. Já os cavalos conheciam cada centímetro do campo e, de fato, entendiam muito mais de ceifar e arar do que Jones e seus homens. Os porcos não chegaram a trabalhar, mas gerenciavam e supervisionavam os outros. Com sua sabedoria superior, era natural que eles assumissem a liderança. Golias e Esperança se arreavam sozinhos no cortador ou no arado (não precisavam de freios ou rédeas nestes dias, é claro) e davam a volta completa ao redor do campo, com um porco os seguindo gritando “Arre, camarada!” ou “Opa, camarada!”, dependendo do caso. E todos os animais, até os mais modestos, trabalhavam para virar o feno e recolhê-lo. Até mesmo os patos e galinhas trabalhavam o dia todo debaixo do sol, carregando pequenos pedaços de feno em seus bicos. No final, eles terminaram a colheita dois dias antes do que Jones e seus homens normalmente fariam. Além disso, foi a maior colheita que a fazenda já havia visto. Não houve nenhum desperdício; as galinhas e os patos com seus olhos afiados haviam recolhido até o último talo. E nenhum animal da fazenda roubou uma bocada que fosse.

Durante todo aquele verão, o trabalho da fazenda funcionou como a engrenagem de um relógio. Os animais nunca imaginaram que seriam tão felizes. Cada bocada de comida era um enorme prazer, agora que o alimento era deles de verdade, produzido por eles para eles mesmos, e não para um mestre rancoroso. Com o desaparecimento dos seres humanos parasitas e inúteis, havia mais para comer. Eles também descansavam mais, apesar da inexperiência. Eles tiveram muitas dificuldades – por exemplo, quando colheram o milho no final do ano: tiveram que esmigalhar os grãos no estilo antigo e soprar o joio com o próprio fôlego, já que a fazenda não possuía nenhuma debulhadora – mas os porcos com sua esperteza e o Golias com seus tremendos músculos sempre davam um jeito de terminar. Todos admiravam Golias. Ele já trabalhava duro na época do Jones, mas agora parecia ter se desdobrado em três; havia dias em que todo o trabalho da fazenda parecia ser feito por ele. Ele empurrava e puxava, sempre no lugar onde o trabalho era mais difícil, do começo da manhã até o fim da noite. Tinha até feito um acordo com um dos galos para acordá-lo meia hora antes dos outros de manhã, para trabalhar voluntariamente em algo que lhe parecia necessário antes do começo da jornada normal de trabalho. Sua resposta para cada problema ou contratempo era “Vou trabalhar mais” – o que tinha adotado como lema pessoal.

Mas todos trabalhavam de acordo com sua capacidade. As galinhas e os patos, por exemplo, economizaram cinco alqueires de milho na colheita, recolhendo os grãos que se perderam pelo caminho. Ninguém roubou, ninguém resmungou por causa da quantidade de ração e as brigas, mordidas e ciúmes tão frequentes nos velhos tempos quase desapareceram. Ninguém se esquivou – ou quase ninguém. Mollie, era verdade, não gostava de acordar muito cedo, e dava um jeito de escapar do trabalho tão logo uma pedra ficasse presa em seu casco. E o comportamento da gata era um tanto peculiar. Logo se percebeu que quando havia trabalho a ser feito ninguém conseguia encontrá-la.

Ela desaparecia por horas a fio e depois reaparecia na hora das refeições, ou à noite, depois que o trabalho tivesse terminado, como se nada tivesse acontecido. Mas ela sempre dava desculpas tão boas, e miava tão carinhosamente, que era impossível não acreditar em suas boas intenções. O velho Benjamin, o burro, parecia bastante inalterado desde a Revolução. Ele fazia seu trabalho da mesma forma lenta e obstinada como sempre havia feito no tempo de Jones, nunca se esquivando do trabalho, mas também nunca se voluntariando para qualquer coisa extra. Ele também não expressava nenhuma opinião sobre a Revolução e seus resultados. Quando lhe perguntavam se ele não estava mais feliz agora que Jones tinha partido, ele dizia apenas: “Os burros vivem muito tempo. Nenhum de vocês jamais viu um burro morto”, e os outros tinham que se contentar com esta resposta enigmática.

Aos domingos, não havia trabalho. O café da manhã era uma hora mais tarde que o habitual, e depois da refeição havia uma cerimônia que era respeitada todas as semanas sem falta. Ela começava com o hasteamento da bandeira. Bola de Neve tinha encontrado na sala de arreio uma velha toalha verde de mesa da Sra. Jones e tinha pintado nela um casco e um chifre brancos. Era hasteada no mastro da fazenda todos os domingos de manhã. A bandeira era verde, explicou Bola de Neve, para representar os campos verdes da Inglaterra, enquanto o casco e o chifre significavam a futura República dos Animais, que surgiria quando a raça humana tivesse sido finalmente deposta. Após o hasteamento da bandeira, todos os animais entravam no grande celeiro para uma assembleia geral que ficou conhecida como Reunião. Aqui o trabalho da semana seguinte era planejado e as resoluções eram apresentadas e debatidas. As resoluções sempre eram apresentadas pelos porcos. Os outros animais davam conta de votar, mas nunca conseguiam pensar em alguma resolução por conta própria. Bola de Neve e Napoleão eram, de longe, os mais ativos nos debates. Mas notava-se que os dois nunca estavam de acordo: qualquer que fosse a sugestão de um deles, o outro com certeza se oporia a ela. Mesmo quando resolveram separar o cercado atrás do pomar como um lar de descanso para animais que já tinham passado da fase de trabalhar – medida à qual ninguém se opunha – houve um debate conturbado sobre a idade correta de aposentadoria para cada classe de animais. A Reunião sempre terminava com o canto de “Animais da Inglaterra”, e a tarde era dedicada ao lazer.

Os porcos tinham reservado a sala de arreios para si próprios como sede. Era ali que, à noite, estudavam ferraria, carpintaria e outros ofícios necessários em livros que haviam trazido da casa de Jones. Bola de Neve também se ocupava em organizar os outros no que ele chamava de Comitês de Animais. Ele não se cansava. Ele formou o Comitê de Produção de Ovos para as galinhas, a Liga dos Rabos Limpos para as vacas, o Comitê de Reintegração dos Camaradas Selvagens (com objetivo de domesticar os ratos e coelhos), o Movimento da Lã Branca para as ovelhas, e vários outros, além de instituir aulas de leitura e escrita. De modo geral, estes projetos foram um fracasso. A tentativa de domar as criaturas selvagens, por exemplo, deu por água abaixo quase que imediatamente. Eles continuaram se comportando como antes e, quando tratados com generosidade, simplesmente tiraram proveito disso. A gata entrou para o Comitê de Reintegração e foi muito ativa nele durante alguns dias. Ela foi vista um dia sentada em um telhado falando com alguns pardais que estavam fora de seu alcance. Ela estava lhes dizendo que agora todos os animais eram camaradas e que qualquer pardal que quisesse poderia vir e se empoleirar em sua pata; mas os pardais mantiveram uma certa distância.

As aulas de leitura e escrita, no entanto, foram um grande sucesso. No outono, quase todos os animais da fazenda já estavam alfabetizados em algum nível.

Quanto aos porcos, eles já sabiam ler e escrever perfeitamente. Os cães aprenderam a ler bastante bem, mas não estavam interessados em ler nada além dos Sete Mandamentos. Muriel, a cabra, sabia ler um pouco melhor que os cães, e às vezes lia pedaços de jornal que ela encontrava no monte de lixo para os outros à noite. Benjamin sabia ler tão bem quanto qualquer porco, mas nunca exerceu sua faculdade. Até onde ele sabia, disse ele, não havia nada que valesse a pena ser lido. Esperança aprendeu o alfabeto inteiro, mas não conseguia juntar as palavras. Golias não podia ir além da letra D. Ele desenhava A, B, C, D na poeira com seu grande casco, e depois ficava olhando as letras com as orelhas para trás, balançando seu topete, tentando lembrar o que vinha a seguir com todas as suas forças sem sucesso. Em várias ocasiões, de fato, ele conseguiu aprender E, F, G, H, mas só para descobrir que tinha esquecido A, B, C, e D. Finalmente ele decidiu ficar satisfeito com as primeiras quatro letras, e as escrevia uma ou duas vezes por dia para refrescar sua memória. Mollie se recusou a aprender qualquer uma, exceto pelas letras do seu próprio nome. Ela conseguia escrever seu nome muito bem no chão com pedaços de galho, e depois decorava com uma flor ou duas e andava ao redor admirando sua obra.

Nenhum outro animal da fazenda conseguiu passar da letra A. Também descobriram que os animais mais estúpidos, como as ovelhas, as galinhas e os patos, eram incapazes de decorar os Sete Mandamentos. Depois de pensar muito, Bola de Neve declarou que os Sete Mandamentos poderiam ser reduzidos a uma máxima única, ou seja: “Quatro patas bom, duas patas ruim”. Essa frase, disse ele, continha o princípio essencial do animalismo. Quem o tivesse compreendido a fundo, estaria a salvo das influências humanas. As aves a princípio se opuseram, já que lhes parecia que também tinham duas patas, mas Bola de Neve lhes provou que não era bem assim.

“A asa de uma ave, camaradas”, disse ele, “é um órgão de propulsão, não de manipulação. Portanto, deve ser considerada como uma perna. A marca distintiva do homem é a MÃO, o instrumento com o qual ele perpetua toda sua maldade”.

As aves não entenderam as longas palavras de Bola de Neve, mas aceitaram sua explicação, e todos os animais mais modestos se puseram a trabalhar para decorar a nova máxima. Quatro patas bom, duas patas ruim, estava inscrita na parede final do celeiro, acima dos Sete Mandamentos e em letras maiores. Depois que conseguiram decorar, as ovelhas desenvolveram uma grande simpatia por esta máxima e muitas vezes, quando estavam no campo, todas começavam a balir “Quatro patas bom, duas patas ruim! Quatro patas bom, duas patas ruim!” e continuavam por horas a fio, sem nunca se cansar dela.

Napoleão não se interessou pelos comitês do Bola de Neve. Ele disse que a educação dos jovens era mais importante do que qualquer coisa que pudesse ser feita por aqueles que já eram adultos. Aconteceu que tanto Mimi quanto Lulu tinham parido logo após a colheita de feno, dando à luz nove filhotes robustos de cachorro. Assim que foram desmamados, Napoleão os tirou de suas mães, dizendo que ele se tornaria responsável pela educação deles. Ele os levou para um pombal que só podia ser alcançado por uma escada na sala de arreio, e lá os manteve em tal reclusão que o resto da fazenda logo se esqueceu de sua existência.

O mistério de para onde ia o leite foi logo esclarecido. Ele era misturado todos os dias no purê dos porcos. As primeiras maçãs estavam agora amadurecendo, e a grama do pomar estava repleta de frutos. Os animais imaginaram, naturalmente, que elas seriam distribuídas igualmente; um dia, no entanto, foi ordenado que todos os animais coletassem as maçãs e as levassem para a sala de arreios para consumo dos porcos. Alguns animais murmuraram, mas isso não serviu para nada. Todos os porcos estavam de comum acordo, até mesmo Bola de Neve e Napoleão. Berro foi o mensageiro das explicações.

“Camaradas!” gritou ele. “Vocês não imaginam, espero eu, que nós, porcos, estamos fazendo isso com espírito de egoísmo e privilégio, certo? Muitos de nós não gostam tanto assim de leite e maçãs. Eu mesmo não gosto muito. Nosso único objetivo ao tomar posse dessas coisas é preservar nossa saúde. O leite e as maçãs (isto foi provado pela Ciência, camaradas) contêm substâncias absolutamente necessárias para o bem-estar de um porco. Nós, porcos, somos trabalhadores do cérebro. Toda a administração e organização da fazenda depende de nós. Dia e noite. Estamos zelando pelo seu bem-estar dia e noite. É por sua causa que nós bebemos esse leite e comemos essas maçãs. Você sabe o que aconteceria se nós, porcos, falhássemos em nosso dever? Jones voltaria! Sim, Jones voltaria! Certamente, camaradas”, gritou Berro quase que suplicando, pulando de um lado para o outro e balançando sua cauda, “e certamente não há ninguém entre vocês que queira ver Jones voltar”…

Agora, se havia alguma coisa de que os animais estavam certos é de que não queriam Jones de volta. Quando a situação foi apresentada a eles sob esta luz, eles não tinham mais nada a dizer. A importância de manter os porcos em boa saúde era muito óbvia. Portanto, foi acordado, sem mais argumentos, que o leite e as maçãs que se soltaram das árvores (e também a safra principal de maçãs, quando amadurecessem) deveriam ser reservados apenas para os porcos.

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Veja também a leitura do capítulo 3 do livro em:


Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.
  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.
  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo I, pág. 32 a 42. Veja o livro completo aqui.

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