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19 fevereiro 2020

Cristianismo e História (1): de sua origem ao fim do primeiro século





Procuramos destacar, no POST[1] a seguir, os primeiros anos do Cristianismo no contexto político, social e religioso do Império Romano, do início da perseguição aos cristãos e da vida e organização da Igreja Cristã até a morte do último apóstolo, isto é, cronologicamente, abrangendo os imperadores que governaram Roma, de Otávio Augusto (27 a.C. a 14 d.C.) até os primeiros anos de Trajano (98 a 117).
1.  A plenitude dos tempos

... mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. (Gálatas 4. 4-5)[2].

      O historiador e teólogo Justo González faz referência em seu primeiro volume, A era dos mártires, aos dois volumes escritos pelo médico Lucas, isto é, o Evangelho que leva o seu nome, e o livro de Atos. No primeiro volume, ele destaca a figura do imperador Otávio ou César Augusto como base para se situar a época do nascimento de Jesus Cristo, em Belém da Judeia, uma das províncias romanas, afirmando que “... naqueles dias foi publicado um decreto de César Augusto[3], convocando toda a população do império para recensear-se. Lucas 2:1 (GONZÁLEZ: 1995, p. 11). E no segundo volume, Gonzalez lembra que neste livro, que não é necessariamente “Atos dos Apóstolos”, mas “... os atos do Espírito Santo através dos apóstolos” (Ibidem: p. 12), não há uma conclusão, uma vez que os atos do Espírito continuam até hoje. Portanto,
Lucas escreve então dois livros, o primeiro sobre os atos de Jesus Cristo e o segundo sobre os atos do Espírito. O segundo livro, entretanto, quase parece haver ficado incompleto. No final de Atos, Paulo está ainda pregando em Roma, e o livro não nos diz o que aconteceu com ele ou com o resto da igreja. Isto tinha de ser assim, porque a história que Lucas está narrando, necessariamente, não há de ter um final até que o Senhor venha. (GONZÁLEZ, Op. Cit., p. 12 e 13).
E enquanto o Senhor não venha, pessoas simples e santas, mas também pecadoras, usadas pelo Espírito Santo, pregaram e estão pregando o Cristianismo que tem chegado até nós.
Mas na verdade, a “plenitude dos tempos”, destacado por Paulo em Gálatas (4.4), significa que Deus, no tempo certo, “enviou seu Filho”. E este tempo foi pleno ou oportuno por causa da contribuição dos povos: romanos, gregos e judeus[4].
·      Romanos: influência política e administrativa
Sabemos que os romanos não conseguiram dominar nem “romanizar” a todos os moradores que estavam em suas fronteiras. Além disso, havia muitas regiões fora de seu domínio. Mas, o mundo romano no início do Cristianismo incluía todas as terras que seriam alcançadas pelos cristãos, principalmente nos três primeiros séculos da nossa era. Veja o mapa a seguir:
Mapa de Roma, no auge do Império[5]
Observe que nesta época o Império Romano abrangia o Norte da África, o Oeste da Ásia, incluindo o Mediterrâneo e a Mesopotâmia, e quase toda a atual Europa. E as contribuições dos romanos, segundo NICHOLS (Op. Cit., pp. 6 e 7), estavam relacionadas, sobretudo, entre outros fatores, à “Pax Romana”, fase de relativa paz que vigorou neste período, isto é, aproximadamente nos dois primeiros séculos da era cristã, e que favoreceu a disseminação do Cristianismo, e o intercâmbio entre os vários povos do império – os cristãos, entre eles –, principalmente por causa da existência de uma rede de estradas (por terra) e de uma marinha forte (por mar).
O Mediterrâneo tinha sido transformado na época em um lago romano, daí a expressão Mare Nostrum, ou seja, “nosso mar” (mar dos romanos). E a ligação entre Roma, a capital, e as diversas províncias era garantida pela existência de uma extensa rede de estradas. Daí provém o famoso ditado: “Todos os caminhos levam a Roma”. Portanto, este contexto político romano foi muito útil para a propagação do Cristianismo que estava nascendo.
·      Gregos: influência filosófica e língua universal
Enquanto política e administrativamente a preparação para o Cristianismo deveu-se à contribuição dos romanos, culturalmente, deveu-se (e ainda deve) aos gregos.
Por muitos séculos antes da era cristã os gregos eram detentores da vida intelectual mais vigorosa, mais desenvolvida no mundo. Problemas sobre os quais os homens sempre cogitavam: a origem e significado do mundo, a existência de Deus e do homem, o bem e o mal, enfim, tudo quanto se relacionava com as pesquisas filosóficas foi objeto de meditação dos gregos como de nenhum outro povo (NICHOLS: 1985, p. 7).
A cultura grega, ao ser difundida pelos povos vizinhos, incluindo a Palestina, berço do Cristianismo, ao entrar em contato com as culturas destes povos, redundou no chamado helenismo, como ficou conhecida a junção da cultura grega com a dos povos orientais, como egípcios, mesopotâmicos e persas, sobretudo após a conquista destas regiões pelo macedônico Alexandre, o Grande.
A língua popular dos gregos, o koiné, tornou-se o dialeto “comum” de toda região situada às margens do Mediterrâneo e contribuiu também para que a mensagem cristã fosse pregada nesta língua, inclusive a escrita dos textos que comporiam o chamado Novo Testamento.
No século primeiro eram muitos os judeus, na Palestina, que já não usavam o antigo idioma hebreu. Mas, enquanto que na Palestina e em toda a região do oriente desse país falava-se o aramaico, os judeus que se achavam dispersos por todo o resto do Império Romano falavam o grego. Depois das conquistas de Alexandre, o grego veio a ser a língua franca da bacia oriental do Mediterrâneo. Judeus, egípcios, chipriotas, e até romanos, utilizavam o grego para comunicar-se entre si. Em algumas regiões – especialmente no Egito – os judeus perderam o uso da língua hebraica, e foi necessário traduzir suas Escrituras ao grego. (GONZÁLEZ: 1995, p. 20).
·      Judeus: monoteísmo, esperança messiânica e Antigo Testamento
Os hebreus ou judeus foram escolhidos por Deus para ser “luz” perante as nações, ou seja, uma bênção para todos os povos. E desde a escolha de Abraão, seu primeiro patriarca, eles foram ensinados a acreditar na existência e favor do único Deus que criou os céus e a Terra. “Não podemos ver como outro povo, a não ser o judeu, podia se dispor a receber, no seu início, a religião que Cristo trouxe, e estendê-la a toda a parte” (NICHOLS: 1985, p. 9). O Judaísmo, a religião monoteísta dos judeus, serviu de base para a preparação dos primeiros discípulos de Cristo. Portanto, os primeiros cristãos foram preparados no Judaísmo e esta religião tornou-se a primeira contribuição dos judeus para o Cristianismo.
Além do seu monoteísmo, uma segunda contribuição dos judeus para o Cristianismo, pode-se citar a esperança messiânica. A esperança na chegada de um Messias para redimir o seu povo, era a mais preciosa de suas possessões, apesar da concepção materialista de muitos acerca daquela promessa. Com isto, eles “... prepararam o caminho para o Cristianismo porque se constituíam uma raça que aguardava o que o Cristianismo oferecia: um salvador divino” (Ibidem: p. 10). E, por isto mesmo, os primeiros discípulos de Jesus eram judeus.
Uma terceira contribuição dos judeus para o Cristianismo foi o Antigo Testamento, primeira parte da Bíblia cristã, que compõe o livro sagrado dos judeus – o Tanakh[6] – que  serviu de legado para o início do Cristianismo. Este,
... antes de produzir seus próprios livros, encontrou, prontos para o seu uso, os antigos manuscritos que lhe foram do maior auxilio. Jesus fez uso constante do V. Testamento para nutrir a Sua própria vida e basear os Seus ensinos e, consoante Seu exemplo, as Escrituras judaicas eram lidas regularmente nas reuniões de culto dos primitivos cristãos. Todos os cristãos, judeus ou não, retiraram delas instrução e inspiração incalculáveis (Ibidem: p. 10).
Estas contribuições se tornaram favoráveis ao Cristianismo, sobretudo com o trabalho dos da Diáspora – dispersão –, que por meio de seu trabalho de proselitismo, ao propagar o monoteísmo por toda parte em que se encontravam, servia de base para pregação, além de servir como lei moral sobre a conduta humana que os diferenciava dos demais povos, fato que abriu o caminho para os cristãos que surgem na sequência.
2.  A Igreja apostólica: da escolha à morte dos apóstolos

 

De sorte que foram batizados os que de bom grado receberam a sua palavra; e naquele dia agregaram-se quase três mil almas, E perseveravam na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações. E em toda a alma havia temor, e muitas maravilhas e sinais se faziam pelos apóstolos. E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens, e repartiam com todos, segundo cada um havia de mister. E, perseverando unânimes todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de coração,Louvando a Deus, e caindo na graça de todo o povo. E todos os dias acrescentava o Senhor à igreja aqueles que se haviam de salvar. (At 2.41-47).

 

Jesus de Nazaré ou Jesus Cristo, como ficou conhecido na história o Nosso Salvador, nasceu numa aldeia romana chamada Palestina, durante o governo do primeiro imperador Otávio, também chamado de César Augusto, que governou Roma entre 27 a.C. e 14 d.C. Foi este imperador, que segundo o evangelista Lucas, emitiu um decreto para que todos se alistassem em sua cidade natal (Lc 2.1-7). E, ainda segundo Lucas, este decreto que levou José e Maria a se alistarem em Belém da Judeia, aconteceu quando Cirênio ou Quirino governava a Síria (Lc 2.2), numa data entre 4 ou 6 a.C.[7].
Logo no início de sua missão, Jesus escolhe alguns homens para serem seus seguidores ou discípulos. Destes, ele consagra doze que passam a ser chamados apóstolos, os quais lhe acompanham até sua crucificação, morte e ressurreição, exceto um deles, Judas Iscariotes, que o traiu e se suicidou em seguida.
No Evangelho de Mateus 10.2-4, estão registrados os nomes dos doze apóstolos: Simão, por sobrenome Pedro;  André, irmão de Pedro;  Tiago, filho de Zebedeu; João, irmão de Tiago;  FilipeBartolomeuTomé; Mateus, o publicano; Tiago, filho de Alfeu; Tadeu; Simão, o Zelote; Judas Iscariotes, o traidor.
Depois da morte e ressurreição de Jesus foi escolhido o substituto de Judas Iscariotes, chamado Matias (At 1.26). Na Bíblia, encontramos outro apóstolo fora desta lista, que é o apóstolo Paulo (At 9.13-16). Depois disto, na Bíblia, nenhum outro discípulo é conhecido pelo título de apóstolo…
Os doze apóstolos foram escolhidos por Jesus para ser participantes da missão de anunciar o Reino de Deus entre todas as nações e tornaram-se a base ou fundamento do Cristianismo, juntamente com a Cabeça ou “Pedra Angular” – Jesus Cristo (Ef 2.20 e Mt 16.18). Foram bem preparados por Jesus de modo que após sua volta aos céus, eles tornaram-se os responsáveis pela Igreja, com a assistência do Espírito Santo (At 1.8). O vocábulo igreja, em português, significa uma assembleia pública de cidadãos, neste caso, de cidadãos chamados para anunciar o Reino de Deus, “... as virtudes daquele que vos [os] chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9).
A perseguição aos cristãos tem início logo após o surgimento das primeiras comunidades cristãs e vão aumentando à medida que o número de cristãos vai crescendo. No volume A Era dos mártires de sua coleção, González destaca a questão da perseguição como sendo uma série de fatores que se iniciam com a relação entre os primeiros cristãos e as comunidades judaicas, continua com os conflitos promovidos pelo Estado romano, sobretudo por Nero[8], prossegue no segundo e terceiro séculos e segue até o Edito de Milão, já no início do século IV. Por enquanto, queremos destacar, apenas as primeiras situações de conflitos sofridas pelos cristãos até final do primeiro século, ou seja, até aproximadamente o governo do imperador romano Trajano.
A relação entre os primeiros cristãos, incluindo Jesus e seus discípulos, e o Judaísmo, era a de que, inicialmente, os cristãos não representavam uma nova religião, mas apenas uma seita herética dentro do judaísmo, seita esta que acreditava em Jesus como o Messias. Com o tempo, porém, “o sentimento nacionalista e patriótico” dos judeus coopera para um maior distanciamento entre os dois grupos (cristãos e judeus não cristãos), levando a uma dimensão que chegou a envolver a esfera do Estado romano.
Mas como nos primeiros anos, a maioria dos cristãos era judia, a perseguição sofrida fazia parte de um todo (povo judeu), isto é, significava alcançar a todos os judeus: cristãos e não cristãos. É o caso de uma situação ocorrida na época do imperador Cláudio em que os judeus foram expulsos de Roma (At 18.2). E González aponta o fato de que o historiador romano, Suetônio, descreve que esta expulsão ocorreu por causa da questão acerca de um certo “Cresto”, que pode ter sido uma grafia errada do próprio Cristo. “Portanto, o que sucedeu em Roma parece ter sido que, como em tantos outros lugares, a pregação cristã causou tantas desordens entre os judeus, que o imperador decidiu expulsar todos eles.” (GONZÁLEZ: Op. Cit., p. 51).
Mas os judeus também passaram a perseguir os cristãos por causa desta nova “seita”, inclusive alguns, como Saulo, que se converte – à mesma – após permitir a morte de Estêvão (At 22.20), o primeiro mártir do Cristianismo. Em Atos, encontramos também o relato da primeira morte de um dos apóstolos, Tiago Maior, irmão de João, fato ocorrido por ordem de Herodes Agripa, no ano 44.
Dos judeus para o Estado romano, neste, a perseguição sob Nero teve grande importância “... por ter sido a primeira de uma série, de crueldade sempre crescente.” (GONZÁLEZ: 1995, p. 52). E após o incêndio de Roma, em 64, a perseguição foi ainda mais intensa, pois Nero achou por bem pôr a culpa pela tragédia nos cristãos.
Tácito, historiador citado por González, embora também inimigo dos cristãos, destaca que Nero usava os cristãos para servir de diversão para o público, outros foram crucificados, outros inda foram usados como tochas para iluminar seus jardins... “Tudo isto fez com que despertasse a misericórdia do povo, mesmo contra essas pessoas que mereciam (sic) castigo exemplar, pois via-se que eles não eram destruídos para o bem público, mas para satisfazer a crueldade de uma pessoa” (Apud GONZÁLEZ, Op. Cit., p. 56). Observe que na opinião de Tácito, se fossem para o “bem público” as perseguições aos cristãos eram justificadas, mas ao contrário do imperador, para o povo romano os cristãos eram dignos de misericórdia. Entre os mártires do governo de Nero, González aponta também as (possíveis) presenças de Pedro e Paulo.
Cristãos sendo usados como tochas humanas, na perseguição sob Nero, por Henryk Siemiradzki, Museu Nacional, Cracóvia, Polônia, 1876.[9]
O Império Romano seguiu perseguindo os cristãos, merecendo destaque especial, depois disto, a perseguição da época de Domiciano, imperador que sucedera Tito, aquele que quando general de Vespasiano, no ano 70 destruiu a cidade de Jerusalém. Domiciano, ao perceber que a nova fé cristã representava uma ameaça ao Estado romano, mesmo porque o número dos cristãos “... continuava aumentando silenciosamente” (Ibidem, p. 58), passou a prossegui-los. O apóstolo João, autor do Apocalipse, deportado para a ilha de Patmos nesta época, por causa da perseguição que chegou à Ásia Menor, “... mostra uma atitude muito mais negativa contra Roma do que com o resto do Novo Testamento. (...) o vidente de Patmos descreve Roma em termos nada elogiosos, como ‘a grande rameira... ébria do sangue dos santos, e do sangue dos mártires em Jesus (Apocalipse 17.1,6)’” (Ibidem, p. 60).
No quadro abaixo, as possíveis datas da morte dos apóstolos[10]. Uns foram martirizados e outros tiveram morte natural – talvez apenas João se enquadra nesta última condição. No caso de Judas Iscariotes, que consta na lista dos apóstolos acima – do qual já falamos que foi morto antes de Jesus –, eu o tirei desta lista e adicionei o de Paulo em lugar do mesmo:
Apóstolo
Morte e Local[11]
Pedro (Simão Pedro)
Ano 67, em Roma, Itália[12]
André (irmão de Pedro)
Ano 60, em Patras, Grécia[13].
Tiago Maior (filho de Zebedeu)
Ano 44, em Jerusalém[14].
João (irmão de Tiago)
Ano 103, em Éfeso, Ásia Menor[15].
Filipe
Ano 80, Hierápolis, Frígia[16].
Bartolomeu
Ano 51, talvez na Rússia[17].
Tomé
Ano 72, próximo a Madras (Índia)[18].
Mateus (o publicano)
Ano 72, hierápolis ou Etiópia[19].
Tiago Menor (filho de Alfeu) 
Ano 62, Jerusalém[20].
Tadeu (Judas Tadeu)
Data indefinida, na Pérsia[21].
Simão (o Zelote)
Morreu com 120 anos (?)[22].
Paulo (Saulo de Tarso)
Ano 67, em Roma[23].
Citamos as datas e locais acima, como acontecimentos possíveis, mas o mais prudente, no entanto, é reconhecer, como nos informa González que “... desde datas muito antigas começaram a aparecer tradições que afirmam que tal apóstolo havia sofrido martírio de uma forma ou de outra. Muitas destas tradições são indubitavelmente o resultado do desejo por parte de cada igreja em cada cidade de poder afirmar sua origem apostólica” (GONZÁLEZ, Op. Cit., p. 40). São estas buscas por uma “origem diretamente apostólica” que dão origens às lendas e imaginações, principalmente em igrejas orientais, e serão parte também de algumas heresias que surgirão posteriormente, exigindo uma busca por uma unidade eclesiástica e uma igreja dita “universal e apostólica”, como veremos em outro momento.
3.  Vida da Igreja: cultos, escritos e governo
Que fareis pois, irmãos? Quando vos ajuntais, cada um de vós tem salmo, tem doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação. Faça-se tudo para edificação. (1Co. 14.26)
Ao que parece, todos os apóstolos morreram ainda no primeiro século. E por esta época, apenas os principais dogmas e forma de liturgia da Igreja estavam definidos. A Igreja Cristã, que segundo o Novo Testamento pode ser conceituada através de uma série de ilustrações (Corpo de Cisto, Coluna e Firmeza da Verdade, Família de Deus, Povo de Deus etc.), não recebeu de Jesus nenhum modelo de organização ou plano de governo, nenhum credo e forma de culto proscritos, apenas algumas orientações acerca do batismo com água e a Ceia do Senhor. Jesus prometeu vitalidade aos seus discípulos e “...deixou a Igreja livre para escolher as formas de organização, de culto, afirmações de crença, métodos de trabalho etc. O propósito de Cristo era que a vida da Sua Igreja, isto é, a vida do Salvador latente em Seus seguidores, se expressasse pelos modos que lhes parecessem mais apropriados para a consecução do grande objetivo em vista“ (NICHOLS: 1985, p. 18).
Sobre os cultos da Igreja Cristã no primeiro século, Nichols (Op. Cit., pp. 22-23) destaca que neste período, além das reuniões nas casas – pois ainda os cristãos não possuíam templos – havia dois principais tipos de cultos. Um deles era uma espécie de reunião ou culto de oração, do qual participavam também outras pessoas – não cristãs e/ou não batizadas. Além das orações, havia também testemunhos, ensinamentos, cânticos de Salmos, surgem os primeiros hinos cristãos, leituras e explicações das Escrituras do Velho Testamento.
O outro tipo de culto era a Festa do Amor ou Fraternidade, uma refeição comum, muito alegre, da qual participavam apenas os cristãos batizados. Durante as refeições, celebrava-se a Ceia do Senhor com parte do pão servido na Festa e também vinho. Este culto era realizado no primeiro dia da semana para comemorar a ressurreição de Cristo. Daí, este dia – o primeiro da semana – ser chamado domingo ou Dia do Senhor, desde o primeiro século.
Em relação aos seus escritos, os cristãos, em princípio, como já dissemos, faziam uso do Antigo Testamento. Com o tempo, os 27 livros que formaram o chamado Novo Testamento foram sendo escritos ainda no primeiro século. Depois de pronto, como afirma Oscar Cullmann “... o Novo Testamento não somente foi a regra de fé dos cristãos, não somente inspirou e ainda inspira vidas heroicas, célebres ou desconhecidas, como também determinou civilizações inteiras em sua ética, individual e social, em sua literatura e sua arte“ (CULMANN: 1984, p. 5). Abaixo, as possíveis datas[24] da escrita dos mesmos:
Livro
Data
Livro
Data
Mateus
c. de 50
1ª Timóteo
c. de 64
Marcos
c. de 68
2ª Timóteo
c. de 67
Lucas
c. de 60
Tito
c. de 65
João
85 a 90
Filemom
c. de 60
Atos
c. de 60
Hebreus
c. de 68
Romanos
56
Tiago
45 a 50
1ª Coríntios
c. de 56
1ªPedro
c. de 65
2ª Coríntios
c. de 57
2ª Pedro
c. de 66
Gálatas
49 a 52
1ª João
c. de 85
Efésios
c. de 60
2ª João
c. de 85
Filipenses
c. de 60
3ª João
c. de 85
Colossenses
c. de 60
Judas
c. de 68
1ª Tessalonicenses
c. de 51
Apocalipse
c. de 95
2ª Tessalonicenses
c. de 51

Embora escritos no primeiro século, o cânone, processo de escolha dos livros considerados sagrados, só aconteceu em meio a um número muito grande de textos considerados apócrifos, assunto para outro momento. Por ora, é importante destacar que “a elaboração do cânone do Novo Testamento foi, portanto, o fruto de um processo que, até a fixação final, estendeu-se sobre vários séculos. Mas o fato decisivo é a aparição da ideia do cânone. Este momento importante situa-se nas proximidades dos anos 140-150” (CULMANN: Op. Cit., p. 115). Ou seja, a ideia de cânone surgiu em meados do século segundo, mas acerca de livros já escritos no século anterior. Apenas a morte de João, como vimos, ocorreu no início do segundo século.
Sobre o governo da igreja no século em destaque, embora houvesse já a afirmação de uma “... Única Igreja Universal, (...) nenhuma organização de caráter geral exercia controle sobre as inúmeras igrejas espalhadas por toda a parte” (NICHOLS: 1985, pp. 23 e 24). Mas, de maneira geral, podemos destacar:
·      O ministério da pregação e do ensino, formado pelos apóstolos (quando ainda vivos), profetas, mestres ou doutores. Estes demonstravam habilidades especiais e espirituais, como resultados dos dons do Espírito Santo para o exercícios de tais ofícios. Nichols faz menção também a algumas mulheres que faziam parte deste ministério de pregação e ensino. Posso mencionar, aqui, o exemplo de Priscila (At 18.26).
·      O ministério dos negócios da igreja, formado por anciãos, presbíteros ou bispos, que eram superintendentes. Abaixo, vinham os diáconos, que cuidavam da beneficência, um serviço especial de assistência às pessoas, principalmente as questões materiais.
Esses oficiais eram “escolhidos pelo povo” que via neles os dons e a vocação do Espírito Santo para tal tarefa. Mas parecem que havia outros modelos de governo e consequentemente outras formas de escolhas de oficiais para estes mesmos trabalhos, como modelos congregacionais e/ou centralizados nas mãos de um só indivíduo.
No segundo século, há a preocupação de associar os bispos como sendo resultado de sucessão do apostolado e a afirmação de uma igreja essencialmente apostólica e universal, assunto do qual nos ocuparemos em outro momento.
4.  Cronologia / principais fatos
Usamos como base para uma breve cronologia dos principais acontecimentos da igreja no primeiro século, a referência aos governos dos imperadores romanos, uma vez que a igreja vivia no contexto de dominação daquele grande império, o Império Romano.
Imperador
Acontecimentos:
Otávio Augusto
(27 a.C – 14 d.C.)
  • Início da Pax Romana.
  • Nascimento de Jesus.
  • Ressurreição de Jesus.
Tibério (14-37)
  • Escolha dos primeiros discípulos e apóstolos.
  • Morte: Jesus e Diácono Estevão (?), primeiro mártir cristão.
Calígula (37-41)

Cláudio (41-54)
  • Expulsão dos judeus (incluindo os cristãos) de Roma.
  • Escritos: Evangelho de Mateus e Epístolas aos Gálatas, 1ª e 2ª Tessalonicenses e Tiago.
  • Mortes: Tiago Maior e Bartolomeu.
Nero (54-68)
  • Mortes: André, Tiago Menor, Pedro e Paulo.
Galba, Oto e Vitélio (68-69)

Vespasiano
(69-79)
  • Mortes: Mateus e Tomé.
Tito (79-81)
  • Morte: Filipe.
Domiciano
(81-96)
  • Exílio do apóstolo João na ilha de Patmos.
  • Escritos: 1ª, 2ª e 3ª João, Evangelho de João e Apocalipse.
Nerva (96-98)

Trajano (98-117)
  • Morte: Apóstolo João.

Conclusão
Procuramos resumir os principais fatos que marcaram a origem do Cristianismo no contexto politico (romano), cultural (grego) e religioso (judeu), a temporalidade e historicidades da pessoa do Salvador, Jesus Cristo, a escolha e trabalho dos apóstolos, a perseguição dos primeiros cristãos, a vida da igreja, seu credo, formas de culto e governo.
Destacamos para efeito de fé e história, a importância do Cristianismo e sua base, o colegiado apostólico e a fé dos primeiros cristãos que iniciaram a propagação do Reino de Deus, começando por Jerusalém, seguiram-se pela Palestina e cuja mensagem alcançou todo o Império Romano e chegou até os dias de hoje.
Muitas mudanças e ataques sofreram o Cristianismo no decorrer dos tempos, mas o trabalho dos primeiros cristãos, ou da Igreja Primitiva, como é chamada a igreja daqueles dias, serve ainda como base fundamental e exemplo para a Igreja e os cristãos hoje. 
Referencias bibliográficas
CULLMANN, A formação do Novo Testamento. São Leopoldo (RS): Sinodal, 1984.
DOUGLAS, J. D. (Org.). O novo dicionário da Bíblia. Vol. I, II e III. São Paulo: Vida Nova, 1979.
GONZALEZ, Justo L. E até os confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo, Vol. 1, A era dos mártires. São Paulo: Vida Nova, 1995.
NICHOLS, Robert Hastings. História da Igreja Cristã. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana: 1985.
SCOFIELD, Dr. C. I. A Bíblia Sagrada – Edição Revista e Atualizada no Brasil: São Paulo: Imprensa Batista Regular, 1987.


Notas:

  • [1] Neste e nos demais artigos, as principais fontes consultadas são as obras de Justo L GOZÁLEZ, Robert Hastings NICHOLS, Bengt HÄGGLUND, Oscar CULLMANN e outras, citadas como referências bibliográficas no final deste trabalho.
  • [2]  Esta e outras referências bíblicas são extraídas da versão on-line da Bíblia Sagrada, ARC, Almeida, Revista e Corrigida, 1995.
  • [3] César Augusto governava o Império Romano quando Jesus nasceu. Seu verdadeiro nome era Otávio, porém, no ano 27 a.C., o senado romano conferiu-lhe o título honorífico de "Augusto", pelo qual é conhecido até hoje.” (GOZALEZ: 1995, p. 10).
  • [4]  Adaptado de NICHOLS: 1985, Op. Cit., pp. 5 a 11.   
  • [5] Imagem disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Muralha_de_Adriano#/media/File:RomanEmpi re_117-pt.svg>. Acesso em 27/01/2015.
  • [6] Aprendi, desde que comecei a estudar Teologia, que o nosso Antigo Testamento corresponde ao Torah ou Torá dos hebreus. Mas Torah corresponde apenas à Lei ou os cinco primeiros livros do nosso Antigo Testamento. Na verdade, o livro sagrado hebraico é o Tanakh ou Tanach “... um acrônimo utilizado dentro do judaísmo para denominar seu conjunto principal de livros sagrados, sendo o mais próximo do que se pode chamar de uma Bíblia judaica. O conteúdo do Tanakh é equivalente ao Antigo Testamento cristão, porém com outra divisão. De acordo com a tradição judaica, o Tanakh consiste de vinte e quatro livros.” (Texto disponível em: <http://bibliotecaortodoxadobrasil.blogspot.com.br/search/label/Tanach>). Acesso em 29/01/2016.
  • [7] Frederick Fyvie BRUCE destaca que Quirino foi legado imperial da Síria-Cilícia, entre 6 e 9 d.C., e que no seu governo foi feito um recenseamento, que o autor relaciona, com base em Flávio Josefo (Antiguidades XViii. 1.1), com o referido em Atos 5.37. Embora Lucas também escreveu o livro de Atos, seu Segundo Tratado (o Evangelho que leva seu nome foi o primeiro), no seu evangelho, ele cita “Quirino, governador da Síria”. Mas Bruce afirma também sobre a existência de outros recenseamentos sob seus auspícios. Com isto, “... o recenseamento referido em Lucas 2.1 e segs., entretanto, deve ter ocorrido pelo menos nove anos antes.” (BRUCE, F.F. O Novo Dicionário da Bíblia, Vol. III. São Paulo: Vida Nova, 1979. p. 1360). Considerando, então, estas importantes informações, podemos concluir, portanto que Jesus nasceu entre estas datas que mencionei acima. Esta informação está também em consonância com o texto A vida de Jesus Cristo, em O Novo Dicionário da Bíblia. Vol. I, onde J. N. Geldenhuys fala do Jesus Histórico que viveu “... entre o tempo da vida de nosso Senhor sobre a terra (c. de 6/4 A.C. – 30 D.C)”, p. 820.
  • [8] No governo de Nero, também, segundo o Dr. Scofield, surge a maior parte dos escritos no Novo Testamento, conforme quadro abaixo.
  • [9] Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Persegui%C3%A7%C3%A3o_aos_crist%C3%A3os#Persegui.C3.A7.C3.A3o_sob_o_Imp.C3.A9rio_Romano>. Acesso em 23/11/2016.
  • [10] Conforme informações de datas constantes em: O Novo Dicionário da Bíblia (Op. Cit., Vol. I, II e III).
  • [11] As datas das mortes dos apóstolos citadas na tabela são aproximadas, bem como seus locais, considerando as possíveis presenças dos mesmos nestas regiões.
  • [12] Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Pedro>. Acesso em: 19/11/2016.
  • [13] Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Santo_Andr%C3%A9>. Acesso em: 19/11/2016.
  • [14] Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Santiago_Maior>. Acesso em: 19/11/2016.
  • [15] Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o,_o_Evangelista>. Acesso em: 19/11/2016 
  • [16] Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Filipe_(ap%C3%B3stolo)>. Acesso em: 19/11/2016.
  • [17] Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Bartolomeu>. Acesso em: 19/11/2016.
  • [18] Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Tom%C3%A9>. Acesso em: 19/11/2016.
  • [19] Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Mateus_(evangelista)>. Acesso em: 19/11/2016.
  • [20] Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Santiago_Menor>. Acesso em: 19/11/2016.
  • [21] Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Judas_Tadeu>. Acesso em: 19/11/2016. Nesta fonte cita apenas como data da morte de Judas Tadeu, o “século I d.C.”.
  • [22]Segundo o cronista cristão Hegésipo, Simão [o Zelote] encontrou o martírio nos tempos do imperador Trajano, quando contava com, aproximadamente, 120 anos de idade.” Disponível em: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Sim%C3%A3o,_o_Zelote>. Acesso em: 19/11/2016.
  • [23] González faz referência à perseguição de Nero a partir de 64 (como já dissemos acima) e aponta o ano 69, como a data da morte de Nero. Desta forma, podemos ficar com o que disse Eusébio de Cesareia, “... que escreveu no século IV d.C., [ele] afirma que Paulo foi decapitado durante o reino do imperador romano Nero (...). Este evento tem sido datado ou no ano de 64 d.C., quando Roma foi devastada por um incêndio, ou alguns anos depois, em 67 d.C.”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_de_Tarso#Pris.C3.A3o_e_morte>. Acesso em 19/11/2016.
  • [24] As datas acima expostas foram extraídas de A Bíblia Sagrada, com referências e anotações de Dr. C. I. SCOFIELD. Com exceção da Epístola aos Romanos, todas as datas dos demais livros são acompanhadas com “c. de” (cerca de), isto é, datas prováveis ou aproximadas.

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