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26 março 2023

Lula ressentido: deu ruim

Insulto, aqui, insulto ali, insulto acolá... e Lula tem conseguido se mostrar o chefe de Estado mais irresponsável que o Brasil já teve desde a volta dos civis ao governo deste país, diz a Revista Oeste...
Lula não consegue, simplesmente, governar o Brasil com um mínimo de competência. Gastou todo o seu tempo até agora no ataque a inimigos imaginários e na produção de fumaça demagógica; não tem a mais remota ideia a respeito de como começar a resolver qualquer dos problemas que crescem todos os dias bem na sua frente, mesmo porque não entende a natureza mais elementar desses problemas. Lula, agora, também deixou de fazer nexo no que diz. A impressão é a de que temos na Presidência da República um homem que está em processo de perda acelerada do equilíbrio mental.
Veja a matéria toda em:


Como diz a Paula Marisa: "deu muito ruim para o Lula":



21 março 2023

O Império Ameaçado

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


Guerra do Paraguai (1864-1870)

“5 fatos sobre a guerra do Paraguai – e por que você ainda paga por ela: 
1) Ao desafiar o Brasil, Solano López era tão doido quanto Kim Jong Un

    ameaçando os EUA. 

2) O Paraguai não era desenvolvido na época da guerra (e não é pobre

    hoje por causa dela).

3) A Inglaterra tinha uma política de ‘não intervenção’ no continente sul-

    americano. 

4) O Brasil se endividou por causa da guerra.
5) Não houve genocídio nenhum.”
 [2]


“De repente, do fundo da escarpa que a estrada contornava, irrompeu um corpo de infantaria paraguaia, que se lançou sobre a nossa linha de atiradores, atravessou-a dirigindo-se para o 1º batalhão dela distante uns cem passos... Estava o terreno coalhado de moribundos e feridos inimigos. Vários dos nossos soldados, ébrios da pólvora e do fogo, queriam acabá-los. Horrorizados, debalde esforçavam-se os nossos oficiais em lhes arrancar as vítimas às mãos, exprobrando-lhes a indignidade de semelhante chacina... Via-se, aliás, como inevitável consequência dessas cenas deploráveis, o saque desenfreado a que se entregavam os mascates e os acompanhadores do Exército também, reclamando as mulheres o seu quinhão. Eram os corpos despidos e revistados; despojos sanguinolentos passavam, de mão em mão, como mercadorias, muita vez com violência disputadas.”

Eis como Alfredo d’Escragnolle Taunay, em A Retirada da Laguna (1871), descrevia as cenas selvagens registradas durante a Guerra do Paraguai. Entre 1864 e 1870 esse conflito vitimou milhares de paraguaios, brasileiros, argentinos e uruguaios, sendo por isso considerado o conflito sul-americano mais sanguinolento – e também o de mais longa duração – ocorrido durante o século XIX.

Em relação ao Brasil, a guerra teve repercussões que foram muito além dos sofrimentos nos campos de batalha, revelando as contradições da sociedade escravista e transformando o Exército em um importante agente político. Não sem razão, Joaquim Nabuco se referiu a essa guerra como o momento de apogeu e de início do declínio do Império; afirmação que, para ser compreendida, deve ter em conta as causas remotas e imediatas da então denominada Guerra da Tríplice Aliança.

Como todos os fenômenos sociais, a Guerra do Paraguai teve raízes complexas e, por vezes, não há consenso entre os historiadores sobre seus reais motivos. De modo geral, podemos afirmar que no debate a respeito de sua origem predominam dois pontos de vista: um que enfatiza os motivos internos dos países envolvidos e outro que sublinha as raízes externas da guerra, particularmente como consequência dos interesses ingleses na região.

Desde o período colonial, a região Sul era alvo de intermináveis conflitos de fronteira. Uma vez independentes, os países que surgiram na bacia do Prata mantiveram as antigas rivalidades. O Brasil, como seria de se esperar, não estava fora dessas disputas. Durante o século XIX, uma questão central para o Império era a de impedir o aparecimento de uma potência hegemônica na região. Por um lado, temia-se que se criasse um poderoso foco de irradiação republicana, tendo em vista que os países aí surgidos na luta contra a dominação espanhola adotaram essa forma de governo. Por outro, tal posição tinha por objetivo garantir a livre circulação de embarcações nos rios Paraná, Paraguai e São Lourenço, pois, sem essa “estrada fluvial”, o acesso ao Mato Grosso tornava-se bem mais dispendioso e arriscado, em razão de os outros caminhos para essa província depararem com duas barreiras difíceis de transpor: cachoeiras e índios bravios.

Na fase de reino unido e, posteriormente, na condição de monarquia independente, o governo brasileiro temperou diplomacia com intervenção militar na bacia do Prata. Entre 1821 e 1828, por exemplo, valeu-se da força das armas, quando então incorporou a Província Cisplatina, futura República do Uruguai, ao território brasileiro. O mesmo ocorreu em 1851, quando, por meio da aliança com a província de Entre-Rios e o Uruguai, forças militares imperiais combateram o projeto expansionista de Buenos Aires. Noutros períodos, como ocorreu em 1844 e 1858, a elite política imperial reconheceu a independência do Paraguai e conseguiu, via acordos diplomáticos, de “amizade, comércio e navegação”, o livre acesso ao caminho fluvial acima mencionado. Todavia, tanto a primeira quanto a segunda solução tinham resultados de curta duração, pois a região do Prata viveu, de forma mais dramática do que o Brasil no período regencial, constantes disputas entre caudilhos locais.

O episódio que deflagrou a Guerra do Paraguai resultou de uma dessas escaramuças. Em 1863 teve início um conflito no Uruguai entre as duas facções dominantes locais, denominadas blancos e colorados. Alegando a proteção dos interesses brasileiros – calculava-se que 10% da população uruguaia era composta por gaúchos que dominavam, por sua vez, cerca de 30% das terras agricultáveis –, o governo imperial, aliado ao argentino, apoiou os colorados. Por meio de uma série de ultimatos, o Paraguai reagiu a essa intervenção, advertindo que a independência uruguaia era fundamental para o equilíbrio de poder na região. Contudo, essas ameaças de nada valeram. A intervenção brasileira prosseguiu, havendo, em outubro de 1864, atuação tanto do exército quanto da Marinha imperiais em terras uruguaias. O governo paraguaio decidiu então agir, interceptando o navio mercante Marquês de Olinda e, em seguida, ocupando territórios brasileiros e argentinos. Era dado início à guerra.

De maneira geral, esses são os argumentos daqueles que defendem os motivos regionais ou “internos” da Guerra do Paraguai. Em outras palavras, tal conflito não era de natureza muito diferente das constantes lutas registradas desde os tempos coloniais. A novidade da Guerra da Tríplice Aliança dizia respeito à magnitude do conflito, à sua longa duração e, consequentemente, aos elevados sacrifícios humanos nela registrados.

A outra corrente enfatiza as causas “externas” ou, mais precisamente, a influência do imperialismo inglês. De acordo com esse ponto de vista, a Inglaterra tinha interesse em combater o Paraguai, por ser essa uma sociedade fechada às importações britânicas e pouco vinculada ao mercado de exportação de matérias-primas. Além disso, o Paraguai oferecia um modelo caudilhesco de organização política em vez do liberal imposto pela Grã-Bretanha. A guerra teria, dessa maneira, sido promovida com o objetivo de combater uma forma alternativa de conceber a organização política e econômica na América Latina. Vários historiadores sublinharam a fragilidade desse tipo de interpretação, tanto pelo fato de o Paraguai, durante a primeira metade do século XIX, ter mantido relações comerciais regulares com a Inglaterra, quanto pela crítica à suposta alternativa econômica e social que aquele país representaria.

Para compreendermos melhor essa crítica é necessário lembrar um pouco do passado colonial. Embora fosse conhecido desde o século XVI, o território que deu origem ao Paraguai despertou pouco interesse entre os espanhóis, que concentraram seus esforços na colonização de áreas produtoras de prata, como as que deram origem aos atuais Peru e Bolívia. Devido a essa localização “periférica”, o governo metropolitano não se opôs ao estabelecimento de missões jesuíticas na região paraguaia. Os jesuítas puderam, assim, reunir sob seu comando milhares de índios guaranis, livrando essa população do extermínio, que intimava os povos das áreas vizinhas. No século XVIII, porém, tais comunidades, autossuficientes economicamente e autônomas politicamente, passaram a ser vistas com desconfiança pelo governo metropolitano. Para os absolutistas espanhóis, elas se configuravam como um “Estado dentro do Estado”. Situação inaceitável que deu origem a violentos conflitos entre o governo metropolitano e os jesuítas, resultando na expulsão destes últimos em meados do século XVIII; após serem confiscados, os territórios que correspondiam às antigas missões foram entregues a burocratas, embrião da futura classe dominante paraguaia.

Como pode ser observado, a experiência jesuítica marcou profundamente a história do Paraguai. Assim, é possível afirmar, por exemplo, que, nessa região, o sistema escravista foi residual, não havendo nem plantations nem exploração de minas. Por outro lado, devido a motivos de natureza religiosa, a população e a cultura indígenas sobreviveram, havendo inclusive a adoção do guarani como língua nacional. Os ditadores locais – a começar por José Gaspar Rodriguez de Francia, “El Supremo”, que governou o país entre 1813 e 1840 – eram, dessa forma, produtos de uma experiência singular de colonização, em que o desejo de autonomia e a presença de traços culturais e laços comunitários pré-coloniais haviam sobrevivido. Isso, porém, não significava que tais governantes estivessem vinculados a um projeto de desenvolvimento nacional alternativo ou de socialismo avant la lettre. É bem mais provável que eles procurassem reproduzir o passado colonial, gerindo o Paraguai como uma grande estância, uma grande missão laica, paternalista e comunitária. É também certo que, ao longo da primeira metade do século XIX, foram tomadas algumas medidas inovadoras, como o incentivo à metalurgia e à importação de técnicos ingleses. No entanto, isso vinculava-se à necessidade de formar um exército local, tendo em vista as tendências expansionistas de Buenos Aires e do Brasil.

Apesar desses esforços “modernizantes”, não há indicações de empenho dos dirigentes paraguaios em romper com o mundo tradicional herdado da época colonial. Talvez a afirmação contrária seja mais próxima da realidade. Nesse sentido, a reação de Francisco Solano López, em 1864, dois anos após ter sucedido o pai no poder, é bastante esclarecedora: os ataques à parte da Argentina, assim como ao sul do Mato Grosso e ao Rio Grande do Sul, de certa maneira, devolviam aos paraguaios a área de domínio das missões jesuíticas antes da expulsão da Companhia de Jesus no século XVIII.

Portanto, a não ser do ponto de vista de retorno ao passado, é pouco provável que o Paraguai representasse um modelo alternativo para os demais países da América Latina. O que não significava que as decisões do governo local agradassem aos ingleses. Conforme vários autores sublinham, a Inglaterra sempre esteve pronta a combater tendências expansionistas na bacia do Prata, importante porta de entrada de suas mercadorias. Além disso, o Brasil era, no mundo, o terceiro maior mercado importador de produtos ingleses e tradicional cliente de empréstimos internacionais. Tornara-se fundamental para a Inglaterra manter boas relações com o governo imperial – relações, aliás, arranhadas frequentemente em razão da condenação inglesa ao tráfico de escravos –, e a guerra deu essa oportunidade.

A guerra teve início em um momento espinhoso da política imperial. Acreditava-se num embate curto, quase cirúrgico, liderado por um “rei guerreiro”: o jovem d. Pedro II, cuja barba começaria, então, a embranquecer. Enormes gastos foram mobilizados para o confronto: 614 mil contos de réis, onze vezes o orçamento governamental para o ano de 1864; abria-se um deficit que persistiu até 1889. Em torno do rio Paraguai, quatro nações limítrofes, por razões internas específicas, iriam se enfrentar. A historiografia atual não reconhece mais a tese de que a influência inglesa queria apenas garantir interesses e alianças em área estratégica. Mas entende que a guerra acabou por consolidar os Estados nacionais. A Argentina unificou-se e o poder foi centralizado em Buenos Aires. No Brasil, a guerra ajudou a derrubar a escravidão e a monarquia. Quanto ao Uruguai e o Paraguai, esses países se firmariam apenas como satélites das potências regionais.

Talvez o mais provável é que a confluência entre interesses regionais e os do Império britânico tenha contribuído para o surgimento da Guerra do Paraguai. O que de fato surpreendeu a todos foi a capacidade do Paraguai em suportar quase seis anos de ataques sucessivos. Em grande parte, isso foi possível graças ao envolvimento da quase totalidade de sua população civil, dando origem, como afirmamos, ao mais sangrento capítulo da história sul-americana.

Justamente por ter atingido essa magnitude, a Guerra da Tríplice Aliança teve repercussões igualmente não previstas. No lado brasileiro, a mais importante delas diz respeito à quebra da forma tradicional de defender a fronteira meridional. Normalmente, nas suas incursões na bacia do Prata, o governo imperial dispensava o uso das forças armadas regulares, deixando essa tarefa para as denominadas troupilhas gaúchas, comandadas por proprietários rurais e seus subordinados; bandos que atuavam desde os tempos coloniais e tinham como recompensa o gado e as terras que conquistavam do inimigo.

Por dependerem dessa forma tradicional de defesa, os dirigentes do Império não estavam preparados para enfrentar um conflito longo, como foi o da campanha do Paraguai. Na época em que a guerra foi deflagrada, o Exército brasileiro encontrava-se pouco organizado, e razões para isso não faltavam. No período posterior à independência, os oficiais – a maioria deles de origem portuguesa – eram vistos como suspeitos de participar de complôs com o objetivo de restaurar o Brasil à condição de colônia portuguesa; os soldados, por sua vez, em grande parte mercenários estrangeiros ou gente oriunda das camadas populares, eram encarados como ativos participantes de levantes urbanos, inclusive o que levou d. Pedro I a renunciar ao trono. Com a finalidade de neutralizar essa dupla ameaça, foi criada, nos anos 1830, a Guarda Nacional, uma milícia formada por “cidadãos em armas”. Em outras palavras, o governo transferiu para os civis a responsabilidade de manutenção da ordem, dando origem ao “fazendeiro coronel”, ainda presente no imaginário político brasileiro.

A Guarda Nacional fazia, dessa maneira, dos senhores de escravos, auxiliados por seus capangas, os principais elementos das forças armadas, o que permitiu ao Império implementar uma política de desmobilização e esvaziamento do Exército regular. Ora, a Guerra do Paraguai, prevista inicialmente para durar seis meses, mas que perdurou por quase seis anos, exigiu a rápida reconstituição de forças armadas regulares. Ao perceber a gravidade da situação, o governo imperial teve de improvisar um Exército, recorrendo à convocação de prisioneiros, escravos, libertos, índios e até mulheres e crianças.

Compreender as razões desse irregular processo de recrutamento é fundamental, pois em grande parte a animosidade entre o Exército e o Império teve origem na forma improvisada de organizar as forças armadas que lutaram na campanha paraguaia. A primeira medida nesse sentido foi a criação, em 7 de janeiro de 1865, do Corpo de Voluntários da Pátria. Segundo a lei que deu origem a essa forma de recrutamento, o Exército podia admitir em suas fileiras todos aqueles que se apresentassem voluntariamente. O governo acenava com algumas vantagens para quem assim procedesse, oferecendo o dobro do soldo normalmente pago aos praças, indenização para as famílias dos mortos e gratificações e terras aos sobreviventes.

Tais medidas tiveram grande repercussão. Entre os 123 mil combatentes brasileiros na Guerra do Paraguai, 54 mil serviram em batalhões de voluntários da pátria. O grande problema dessa forma de recrutamento era a ausência de prévia formação militar. Entre os voluntários havia de tudo. Muitos dos que se alistaram voluntariamente eram jovens influenciados pelo nacionalismo aristocrático de escritores românticos. Outros, porém, haviam sido coagidos pelas autoridades regionais a se alistar, dando origem a queixas a respeito dos “voluntários do pau e da corda”. Os próprios mandatários imperiais aprovaram legislação complementar à anteriormente mencionada, destinada a facilitar o recrutamento coagido. A lei de 8 de julho de 1865 foi um desses casos. Com ela criou-se uma espécie de vale-tudo do alistamento: “o governo” – afirma o texto legal – “é autorizado a preencher por merecimento, durante a guerra, todas as vagas nos Corpos da Armada e classes anexas, dispensando as regras estabelecidas na legislação...”.

A nova norma de recrutamento era uma determinação feita para abolir qualquer forma de lei. A situação que então se inaugura é a do recrutamento forçado a todo custo. Graças a essa determinação, foi possível que, entre 1864 e 1866, o Exército passasse de 18 mil para 38 mil homens em armas, reunindo no ano seguinte 57 mil soldados. Os testemunhos e documentos referentes a esse recrutamento mostram que ele teve por base as mais diferentes formas e expedientes: prisões eram esvaziadas, assim como crianças e vadios eram caçados pelas ruas das principais cidades brasileiras.

No Rio de Janeiro, por exemplo, as autoridades locais colocaram, no ano de 1864, 116 meninos menores de 16 anos à disposição da armada; um ano mais tarde, essa cifra foi de 269 recrutas. Pelo menos metade desse contingente havia sido recolhida nas ruas da capital brasileira, dando origem a centenas de ofícios nos quais as famílias solicitavam às autoridades a devolução do filho recrutado à força. Nem os meninos escravos, “propriedades” alheias, conseguiam escapar a esse furor. Eis o que registra um ofício da época, enviado ao Arsenal da Marinha carioca: “Umbelina Silveira de Jesus queixou-se de ter sido prezo seu escravo Antônio, de 13 anos, na rua atrás do Convento do Carmo [...] O escravo encontrava-se nos corpos de Aprendizes de Marinheiros, na Fortaleza de Boa Viagem e, sem a permissão de sua senhora, fora arrebanhado à força”.

Havia ainda duas outras origens dos voluntários da pátria. Uma delas dizia respeito aos escravos que assentavam praça usando nomes falsos, legitimando um projeto de fuga e garantindo casa e comida nas fileiras do Exército. A outra decorria de uma antiga prática que consistia em pagar certa quantia, ou apresentar um escravo substituto, eximindo-se assim das fileiras do Exército. Em 14 de outubro de 1865, esse tipo de procedimento foi registrado no Diário da Bahia: “Atenção. Quem precisa de uma pessoa para marchar para o Sul em seu lugar, e quiser libertar um escravo robusto, de vinte anos, que deseja incorporar-se ao Exército, declare por este jornal seu nome e morada onde possa ser procurado, e por preço cômodo achará quem lhe substitua nos contingentes destinados à guerra”.

Não é preciso muita imaginação para perceber que esses recrutas saídos direto das senzalas para o campo de batalha acabavam tendo um desempenho medíocre no front. É provável que a maioria deles não tivesse a mínima ideia de por que estava lutando, e muitos, por temerem a reescravização, desertavam na primeira oportunidade, como ocorreu durante a Retirada da Laguna, célebre batalha de 1867 em que se registrou a morte de trinta soldados, ao passo que cerca de duzentos praças “desapareceram” durante o conflito.

Não sem razão, as tropas brasileiras, em boa parte formadas por escravos, menores abandonados e criminosos, eram descritas como um bando de famintos, aventureiros e aproveitadores. Alfredo d’Escragnolle Taunay também indica a presença de mulheres nos campos de batalha, “carregando crianças de peito ou pouco mais velhas”; mulheres que traziam no rosto os estigmas do sofrimento e da extrema miséria e atendiam por nomes que as remetiam a grupos sociais de origem humilde, como o caso das Ana Preta, Ana Mamuda ou Joana Rita dos Impossíveis. Assim, enquanto os homens entregavam-se ao roubo, jogatina e comércio, suas companheiras se dedicavam ao saque, apoderando-se de mantos e ponchos de paraguaios mortos, ou sobreviviam graças à prostituição. Havia ainda casos-limite, como o de uma certa Maria Curupaiti, que, aos 13 anos, disfarçada de homem, foi aceita como voluntário da pátria, falecendo em combate.
Assim, a atuação do Exército brasileiro ficava comprometida por práticas que lembravam as irregulares forças armadas do Antigo Regime. A falta de organização também se refletia no abastecimento: os soldados acabavam tendo de se alimentar quase exclusivamente de frutas silvestres, colhidas no campo paraguaio, como o bacuri, o murici e o fruto da vagem de jatobá. Os oficiais, por sua vez, comiam carne de gado caçado no local. Rapidamente, porém, essas duas fontes de alimentos escassearam, dando origem a um quadro de fome crônica. Uma vez mais, Taunay pinta com cores fortes a penúria da guerra, afirmando que, em torno dos raros animais conseguidos, formava-se “um círculo... cada qual mais ansioso esperando o jacto de sangue; uns para o receberem num vaso e o levarem, outros para o beberem ali mesmo”. As vísceras e o couro do animal eram despedaçados e devorados mal-assados ou semicozidos, dando origem a sérios problemas de intoxicação alimentar, com efeitos devastadores entre os combatentes.

Mal alimentados, com vestimentas não preparadas para o clima local, os soldados adoeciam facilmente de beribéri, malária, varíola, cólera-morbo e pneumonia. Os estudiosos do tema chegaram até a avaliar que a fome e as doenças mataram dez vezes mais soldados brasileiros do que os conflitos abertos contra os paraguaios. Por isso, ao longo dos anos da guerra, foi se consolidando entre os oficiais a opinião de que o principal inimigo do Exército eram os políticos do Império, que haviam abandonado a instituição, substituindo-a em grande parte pela Guarda Nacional. Tal situação ficou ainda mais agravada após o término da guerra, quando então ressurgiu a tendência favorável à desmobilização e ao esvaziamento do Exército. Contra essa política, os militares se uniram e, em razão dos sacrifícios e sofrimentos vividos nos campos de batalha, construíram uma identidade positiva e até heroica da instituição a que serviam. É nesse contexto que surgiu o que se costuma denominar “oposição militar” ao Império, elemento central, como veremos, no processo de declínio e colapso do governo monárquico inaugurado em 1822.

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Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 135 a 142, Capítulo 19.

 

Fonte / Referência bibliográfica

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

13 março 2023

O Comunismo é o ópio do povo!

Por Fulton Sheen


Comprei na livraria do Luiz Camargo (https://bibliotecadoluiz.com.br), além do seu livro "Breve manual do cristão conservador", também o "O Comunismo e a consciência do Ocidente", de Fulton Sheen.

A versão do livro de Fulton Sheen, que comprei, embora tenha sido publicado em 2021 pela Editora Domine, o texto do mesmo foi produzido há mais de 70 anos.

Lendo Fulton Sheen, um bispo católico, acho que já em seu tempo ele pensava "fora da caixinha", isto é, ao contrário de muitos bispos de hoje, inclusive a CNBB e o atual papa, o papa Francisco

Senti de conhecer um pouco mais sobre o autor e já até destaquei sua concepção acerca do Anticristo, figura relacionada com o regime comunista.

Desta feita, encontrei um pequeno livro (ou caderno?) em dois capítulos, sob o título: "O Comunismo é o ópio do povo!", do qual, neste post, decidi destacar o capítulo II do mesmo.

In:

<O Comunismo é o ópio do povo!, Cap. II>

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Veja também o livro original em PDF, escrito em 1963:

<O Comunismo é o ópio do povo!>



08 março 2023

1850: Mutações

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

Rio de Janeiro, 1850

“No meio do século XIX, repleta de escravos, a capital do Império foi descrita e comparada como ‘uma grande metrópole africana, lar de um poderoso príncipe negro’” [2]



A década de 1840 não foi somente a de busca de cidades perdidas... Os dirigentes do Império tinham consciência de que, sem instituições sólidas, não seria possível construir uma nação. Em outras palavras: não bastava convencer as elites regionais de que elas eram brasileiras, era também necessário acenar com vantagens, mostrar, por exemplo, que a monarquia era um antídoto contra a guerra civil vivida no período regencial, ou então que ela era capaz de tratar da questão escravista, garantindo a transição lenta do sistema, proporcionando formas de trabalho alternativas aos fazendeiros. Daí a obsessão da época em torno da questão da ordem, preocupação que se desdobrará, por um lado, em um arranjo político conservador e, por outro, em uma transformação radical da sociedade, decorrente da vinda em massa de imigrantes europeus.

Vejamos como se desenvolveu essa combinação de conservadorismo político com mudança social.

Desde 1835 havia poderosos defensores da antecipação da ascensão de d. Pedro ao trono, prevista para 1843, quando então o futuro monarca completaria 18 anos. O denominado Golpe da Maioridade, que ocorreu em 1840, representou a vitória desse grupo e sagrou o jovem imperador – que nem mesmo havia completado 15 anos de idade – como representante da nação. O retorno de um membro da casa de Bragança ao trono foi acompanhado por uma série de medidas legais que combatiam os chefes e caudilhos locais, revigorando os dispositivos da Constituição de 1824 através do Poder Moderador, abolindo inovações regenciais, tais como a eleição de presidentes de província, que passaram a ser indicados pelo monarca, e subordinando a autoridade policial ao Ministério da Justiça. O sistema político que emergiu das lutas dos primeiros vinte anos da independência apresentava, por isso mesmo, um forte sabor centralizador: o imperador reinava, governava e administrava.

Todavia, ao mesmo tempo em que isso ocorria, os dirigentes do Império, escaldados pelas duras lutas contra as revoltas regionais, procuraram conquistar os fazendeiros, legitimando, através da mediação do Estado, a dominação que exerciam localmente. Para tanto, trataram de consolidar os partidos políticos liberal e conservador, com o objetivo de mostrar aos proprietários que na monarquia não haveria monopólio de poder nas mãos de um único grupo. Com o intuito de viabilizar essa política de cooptação, o reinado de d. Pedro II também distribuiu prodigamente títulos de nobreza. Assim, enquanto d. Pedro I concedeu de dois a cinco títulos de barão por ano, seu sucessor elevou essa média para dezoito títulos. É possível dizer, portanto, que durante o Segundo Império (1840–89), a cada dois meses tínhamos três novos barões; muitos deles mulatos endinheirados pelo café, que causavam escândalo entre viajantes europeus racistas, como o conde de Gobineau, e eram alvo do deboche popular. Risos à parte, essa sutil forma de conquistar os “mandões” locais serviu como uma maneira de compensá-los simbolicamente pela perda de parte do domínio que, sem interferência de poderes públicos, antigamente exerciam.

Contudo, a transição para um sistema político centralizado não ocorreu sem conflitos. Em 1842, oligarquias regionais, como as de Minas e São Paulo, lideraram a Revolução Liberal, pegando em armas contra o governo do Rio de Janeiro. Na combativa província de Pernambuco, durante a Revolução Praieira de 1848, os rebeldes contaram com a adesão popular, havendo até a defesa da reforma agrária, o que em muito assustou os grupos conservadores, que, talvez pela primeira vez, fazem menção à “ameaça socialista” que pairava sobre o Brasil, conforme se lê nas devassas feitas contra os insurgentes.

Ao cabo de uma década, as instituições e articulações políticas dos dirigentes do Império foram suficientemente eficazes a ponto de sufocar os revoltosos e convencer as elites locais da importância e viabilidade do projeto centralizador. Nesse sentido, 1850 representa um marco do que se planejara desde o Golpe da Maioridade. Pode-se mesmo afirmar que esse ano consolida 1822: finalmente cessam os projetos de independência “alternativa” liderados pelas elites provinciais, e a monarquia firma-se como o sistema político que garantia a manutenção da unidade territorial herdada do período colonial. Uma nova etapa da história brasileira vem à luz. A manutenção da ordem adquire, a partir de agora, uma conotação mais ampla, não exclusivamente repressiva, mas que também valoriza um projeto civilizador da sociedade através da supressão da escravidão.

A ideia, aliás, não era nova. Na malograda Constituinte de 1823, José Bonifácio a defendera, propondo a adoção de leis que gradualmente emancipassem o que então denominou “inimigos domésticos”, considerando tais medidas a única maneira de garantir a formação de uma nação civilizada. Essa proposta, contudo, não vingou. De fato, não é difícil compreender as razões desse fracasso: entre 1820 e 1840, o café expandiu-se vertiginosamente pelo interior do Rio de Janeiro, levando à necessidade cada vez maior de mão de obra, com a consequente importação em larga escala de africanos, até que, em 1850, o gabinete conservador, liderado por Eusébio de Queirós, sancionasse uma lei extinguindo o tráfico internacional de escravos. Em certo sentido, tratava-se de um paradoxo: conservadores implementaram mudanças que nem mesmo os liberais radicais tiveram coragem de propor por ocasião das revoltas do período regencial. Uma maneira de explicar essa ousadia é a de atribuí-la às pressões inglesas.

A revolução industrial valorizou a formação de mercados de consumo. Além disso, nos fins do século XVIII surgiram críticas filosóficas ao sistema escravista. Segundo tal ponto de vista, a igualdade humana é um produto natural que a civilização corrompeu, dando origem ao despotismo ou, pior ainda, à escravidão. Uma abundante literatura, sob essa inspiração, veio à luz pela pena de humanistas e publicistas europeus. Se, em termos de conselhos práticos, os intelectuais sugeriam reformas aos administradores coloniais, do ponto de vista do discurso filosófico, faziam da crítica à escravidão uma maneira de condenar o absolutismo europeu, conforme panfletos, poemas, peças de teatro e romances da época da Revolução Francesa muito bem ilustram. A rebelião escrava, nessa literatura, tornou-se sinônimo de luta contra o poder que não conhece limites, aquele que oprime impunemente e que é desumano por natureza. Em Les chaînes de l’esclavage [As cadeias da escravidão], de 1774, por exemplo, Jean-Paul Marat emprega a metáfora da “escravidão” para produzir um violentíssimo livro contra o governo monárquico da época.

É nesse contexto intelectual que nasce o movimento abolicionista. De certa maneira, um sinal de enraizamento dos valores humanitários na sociedade europeia e também uma expressão da luta política contra as diversas formas de opressão existentes. A confluência entre a “opinião pública” abolicionista – gente que muitas vezes nunca havia visto um escravo de perto, mas nele projetava suas amarguras e sofrimentos – e os interesses econômicos da nascente revolução industrial fez surgir um poderoso movimento antiescravista em escala mundial.

A Inglaterra é, certamente, o melhor exemplo disso. Em 1807, foi abolido o tráfico de escravos em todos os territórios ingleses. Nos anos seguintes, graças à pressão diplomática sobre Portugal, são firmados tratados em 1810, 1815 e 1817, que previam, para breve, o fim do tráfico no Brasil. Após a independência, mudam apenas os negociadores. Entre 1826 e 1830 são assinados novos acordos, que transformam o tráfico em pirataria, atividade ilegal em qualquer ponto do oceano Atlântico. No ano de 1845, por decisão unilateral inglesa, é aprovado o Aberdeen Act, que permitia o ataque por parte de navios ingleses aos navios de traficantes também em portos brasileiros.

Embora se deva reconhecer a importância dessas medidas, é difícil atribuir exclusivamente a elas a razão do fim do tráfico de escravos. Aliás, cabe perguntar: se a pressão inglesa era assim tão avassaladora, por que o tráfico não foi abolido em 1810 ou em 1830?! Na verdade, o que surpreende é a capacidade de as elites brasileiras resistir ao imperialismo inglês. Talvez elas tenham finalmente cedido, extinguindo o tráfico em 1850, por temerem outro tipo de ameaça: aquela proveniente da sociedade escravista, consubstanciada nas rebeliões da senzala; temor intensificado a partir de 1835, em razão da Revolta dos Malês, em Salvador, quando então foram descobertos planos, escritos em árabe, que, entre outras coisas, previam a morte de todos os brancos imediatamente após os escravos conquistarem o poder.

Para quem vivia no Brasil dessa época, tal possibilidade estava longe de ser absurda. Se analisarmos os dados referentes à colonização da América portuguesa, veremos que havia um forte desequilíbrio entre a população livre e a cativa. Assim, por exemplo, as estimativas relativas ao período de 1500 e 1822 sugerem que, no máximo, um milhão de portugueses vieram para o Brasil, ao passo que o número referente aos africanos é da ordem de três milhões. O período imediatamente posterior à independência não corrigiu esse desequilíbrio, acentuando-o em uma escala nunca vista durante a época colonial: entre 1821 e 1830 chegavam anualmente 43 mil africanos em portos brasileiros, ao passo que a entrada de portugueses foi inferior a mil por ano. Nas duas décadas seguintes, o número destes últimos imigrantes dobrou, mas continuou ainda bastante inferior às médias de desembarques anuais de africanos. Foram registradas até 1850 as chegadas de cerca de 33 a 37 mil escravos negros por ano. Além disso, um em cada três portugueses retornava a Portugal alguns anos depois de, como se dizia na época, “fazer o Brasil”. A historiografia oficial sempre procurou esconder ou camuflar o predomínio de africanos como “povoadores forçados” do território brasileiro, mas os líderes do Império nunca deixaram de perceber e escrever amargas notas a respeito do predomínio de negros no conjunto da população, alertando por isso mesmo para o constante risco de rebelião escrava.

Talvez a expressão que melhor sintetize essas preocupações seja medo da africanização, ou seja, medo da importação de escravos, que, segundo as visões preconceituosas da época, além de ser um risco para a segurança pública, afastava o Brasil das “rotas da civilização”. Uma vez mais, essa questão é mais bem compreendida se lembrarmos os debates europeus. Dessa maneira, cabe sublinhar que, na época em que nasceu o movimento abolicionista europeu, também surgiram as primeiras teorias racistas com base na biologia.

A raça passou a ser uma condição herdada. Algo bem diferente do que ocorria no início da expansão ultramarina europeia, quando então o termo dizia respeito à religião que o indivíduo professava. O século XVIII altera radicalmente essa tradição. Mais ainda, questiona a interpretação bíblica de que todos os homens descenderiam de Adão e Eva. Postula-se, por exemplo, a origem independente dos africanos, considerados então como uma espécie humana inferior. Assim, a Europa que chora em relação aos sofrimentos dos escravos, é aquela que, como a França, sanciona leis, a partir de 1763, proibindo a entrada de negros e casamentos inter-raciais em seu território, ou a que, como a Inglaterra, funda colônias africanas, a primeira delas em Serra Leoa (1786-87), com o objetivo de deportar negros livres que moravam em Londres ou em outras importantes cidades portuárias britânicas, como Liverpol e Bristol.

No Brasil, o medo da africanização era, dessa forma, um “produto” a mais importado da civilizada Europa. Só que, no contexto da sociedade imperial, esse preconceito contava com um importante contraponto: a necessidade de trabalhadores para a agricultura. No intuito de conseguir apoio dos fazendeiros, a política adotada pelos reformistas foi a de estimular a vinda de imigrantes europeus, destinados a fazer com que a sociedade brasileira não necessitasse mais de seus “inimigos domésticos”. Uma outra vertente caminhou no sentido de reformar a escravidão, procurando de certo modo “europeizar” os trabalhadores da senzala. Não por acaso, na transição da primeira para a segunda metade do século XIX, proliferaram, entre os grandes fazendeiros, manuais esclarecendo o tratamento a ser dado aos escravos. Um exemplo: o Manual do agricultor brasileiro, de autoria de Carlos Augusto Taunay, pioneiro da cafeicultura em seu sítio na Tijuca, Rio de Janeiro. Embora considerasse a escravidão “uma violação do direito natural”, o autor julgava que era preciso defendê-la por ser importante para a economia do Império. Taunay propunha um modelo paternalista de gestão dos escravos: uniformização do tratamento, alimentos e roupas suficientes, melhoria do estado sanitário das senzalas, adequação do trabalho às habilidades dos cativos e rigorosa disciplina. Já o fazendeiro do Vale do Paraíba, grande produtor cafeeiro, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck escreveu, em 1847, uma memória dedicada ao filho, explicando-lhe usos e costumes para que pudesse assumir “a vida laboriosa” de agricultor. O escravo, explicava, não era um inimigo. Mas um aliado. Daí o gestor não poder ser “frouxo” nem “severo”, mas “justo”.

O ano de 1850 foi, nesses debates, um marco divisor de águas. Embora, após a extinção oficial do tráfico, tenham sido registrados alguns desembarques clandestinos de africanos, estes foram em pequeno número e, dez anos após a promulgação da referida lei, o Brasil havia definitivamente deixado de ser um país importador de escravos. Cresce, então, o tráfico interno, deslocando milhares de cativos das regiões açucareiras em crise para as fazendas de café do Sudeste. Registra-se, também, a progressiva chegada de proletários da Europa, vindos nos antigos navios negreiros, reaproveitados pelas companhias de colonização.

Paralelamente à vinda de europeus, assistiremos a uma migração de costumes. De 1840 a 1889, em todos os aspectos do cotidiano brasileiro procurou-se imprimir a marca europeia. No café da manhã, por exemplo, o pão “francês” substitui a mandioca cozida, enquanto no almoço a cerveja começa a ser registrada e, na sobremesa, os sorvetes disputam, palmo a palmo, com os centenários doces, cujas receitas foram transmitidas de geração a geração nas fazendas açucareiras coloniais. As formas de tratamento também não ficam imunes a essas mudanças: expressões tradicionais, portuguesas ou resultados da influência africana, como dona, sinhá ou iaiá dão lugar a denominações afrancesadas, como mademoiselle ou, mais popularmente, madame. No vestuário, apesar do clima tropical, adota-se a lã e o veludo como padrão, em roupas sobrepostas, como no caso das saias compostas por três camadas de panos. As cores vivas, comuns a essas roupas e aos objetos de uso diário colonial, também tendem a ser substituídas pela sisuda e puritana cor preta – quase luto fechado, conforme sublinha Gilberto Freyre. Na moda, a influência do famoso costureiro parisienese Paul Poiret vai desfolhar os grandes vestidos rodados, elegendo a imagem da mulher-sílfide, longilínea e magra, em oposição às curvilíneas do final do Império. Na vida literária, a influência também foi grande: em livrarias como a Garnier, a Laemmert ou a Briguiet, os intelectuais da época compravam traduções de Balzac, Maupassant, Rimbaud, Verlaine, Baudelaire, Victor Hugo, Jean Lorrain e Huysmans. Na Biblioteca Nacional, os volumes mais consultados eram Alexandre Dumas, Verlaine e Victor Hugo. Mais tarde, no jornalismo, o cronista João do Rio toma emprestado de Zola expressões, como bas-fond, para caracterizar a vida dos trabalhadores pobres. Hábitos e leituras abriam caminho para o romantismo francês – que vai atingir sua expressão mais forte por volta de 1840 – na voz de poetas, escritores e dramaturgos. Se, na época, a literatura deixava de ser um reflexo das letras portuguesas, fazendo-se lugar para os assuntos nacionais, continuava-se a ler e a admirar Victor Hugo, Lamartine e Musset. Razão pela qual certa mademoiselle Edet, certamente uma secrétaire, anunciava que o Cabinet de Lecture instalado na rua do Ouvidor, nº 118, Rio de Janeiro, recebera um rico sortimento de “romances novos dos melhores autores”: entre os conhecidos, certo Charles Paul de Kock, então afamado escritor de dramas românticos, alguns com títulos picantes para a época, A mulher, o marido e o amante, por exemplo.

Em 1844 eram dez as livrarias e doze as tipografias cariocas, encarregadas de atualizar o gosto literário afrancesado. Dez anos mais tarde, o casal imperial dava exemplo aos membros da Corte. A imperatriz Teresa Cristina recebia de Paris caixotes de livros enviados pela duquesa de Berry. E para o imperador, d. Pedro II, vinham os exemplares da Revue des Deux Mondes. Mas não era só através da literatura que a França se fazia presente. O teatro e a confeitaria foram outras duas modas que “pegaram”. O diretor da Sociedade Dramática Francesa, que se apresentava ativamente no palco do Théatre Français, avisava aos leitores dos jornais que os ingressos para a “soirée qui aura lieu demain Dimanche 10 mai, 1845, seront distribués aujourd’hui” [evento que acontecerá amanhã, domingo, 10 de maio, serão distribuídos hoje]. Ao final da peça, os espectadores corriam à Déroche para tomar sorvetes, cognacs ou uma coupe de champagne. Na década de 1850, o vaudeville, gênero de comédias ligeiras, desembarcou entre nós e o público teve a oportunidade de aplaudir as peças de Octave Feuillet, uma delas com um título muito atual: La Crise!

A arquitetura também registra mutações. Nas cidades, os antigos sobrados e casas-grandes dão lugar a chalés ou a construções de inspiração neoclássica, enquanto nos jardins substituem-se as antigas espécies nativas por exuberantes roseiras, ao fundo acompanhadas não mais por canários-da-terra, mas sim por seus rivais belgas... Nem o submundo da prostituição escapou a esse afã de ser europeu, sendo ao final do século XIX organizado um “tráfico” de “polacas”, russas, austríacas, francesas e italianas; “mulheres de má nota” no dizer da época, que, independentemente da nacionalidade, eram cobiçadas por serem brancas.

Espíritos mais lúcidos não se deixaram levar pela moda de “ser europeu”, ou pelo menos se posicionaram diante dela. Machado de Assis escreve, com grandes pitadas de ironia, um pequeno guia de como se comportar nos bondes, ridicularizando o refinamento artificial da época: “Os encatarroados” – afirma o escritor – “podem entrar nos bondes com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro”. Às vésperas da proclamação da República, Olavo Bilac torna-se um defensor do aristocrático e europeu duelo, em substituição ao bem brasileiro emprego de capoeiras e capangas por quem quisesse “lavar a honra”.

As mutações de 1850 tiveram, porém, repercussões não previstas por seus idealizadores. A imigração europeia e a importação de modas que a acompanhou tenderam a se concentrar em áreas economicamente mais desenvolvidas. O resultado disso foi o aumento das diferenças culturais entre o Norte e o Sul do país, assim como entre cidade e campo, entre litoral e sertão. Era como se a história tivesse sofrido uma “aceleração” em algumas regiões, enquanto noutras continuasse a reproduzir o modelo de vida herdado do período colonial. O surgimento dessa diferença, por sua vez, alimentará uma nova faceta da europeização: aquela relativa à crença na ciência como um meio de reformar a sociedade, postura que encontrou no Exército os seus mais ardorosos defensores e que fez nascer uma nova onda de críticas ao governo monárquico.

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Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de:DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 128 a 134, Capítulo 18.


Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


06 março 2023

O Anticristo na concepção de Fulton J. Sheen

O Anticristo não terá esse nome, senão ele não teria seguidores. Ele não vestirá um collant vermelho, não vomitará enxofre, não portará um tridente, nem terá um rabo com flecha como o Mefistófeles no Fausto...” (O.C., p. 25).

Segundo o Arcebispo Fulton Sheen (1895 – 1979) [1]:

* * *

Nós estamos vivendo os dias do Apocalipse [2] – os últimos dias da nossa era. As duas grandes forças – do Corpo Místico de Cristo e do Corpo Místico do Anticristo – começam a desenhar as linhas de batalha para o embate final.

O Falso Profeta terá uma religião sem a Cruz. Uma religião sem um mundo vindouro. Uma religião para destruir as religiões. A Igreja de Cristo será uma delas. Haverá uma falsa igreja. E o falso profeta vai criar uma outra. A falsa igreja é mundana, ecumênica e global. Vai ser uma federação de igrejas.

E as religiões irão formar um tipo de associação global. Um Parlamento Mundial das Igrejas. [A Igreja verdadeira] será esvaziada de todo o conteúdo divino e será o corpo místico do Anticristo. O corpo místico hoje na Terra terá o seu Judas Iscariotes e o falso profeta. Satanás o recrutará dentre os nossos bispos.

O Anticristo não será chamado assim, porque, se o fosse, não teria seguidores. Ele não usará roupas vermelhas, nem vomitará enxofre ou usará um tridente ou terá uma cauda, como Mefistófeles em Fausto. De fato, tais coisas mascararam e ajudaram o diabo a convencer os homens de que ele não existe. Quanto mais o desconhecem como realmente é, mais poderoso ele se torna. Deus se definiu como "Eu Sou Quem Eu Sou" e o diabo como "Eu sou quem eu não sou".

Em nenhuma passagem das Escrituras encontramos defesa para a descrição popular do diabo como um palhaço vestido de vermelho. Pelo contrário, ele é descrito como um anjo caído do Céu, como "o príncipe deste mundo", cujo legado é nos convencer que não existe outro mundo.

Sua lógica é simples: se não há o Céu, também não há Inferno; se não há Inferno, então não há pecado; se não há pecado, então não há Juiz, e se não há nenhum Julgamento, então o mal é o bem e o bem é o mal.

Mas, acima de todas essas descrições, Nosso Senhor nos diz que o diabo será tão parecido com Ele mesmo que seria capaz de enganar até os escolhidos, e certamente nenhum diabo descrito pelas imagens humanas seria capaz de enganar os escolhidos. Então, como ele vai vir nesta nova era para ganhar seguidores para a sua religião?

A crença da Rússia pré-comunista é que ele virá disfarçado como um grande humanista; vai falar de paz, de prosperidade e de abundância; não como meios para levar-nos a Deus, mas como fins em si mesmos.

A terceira tentação, com a qual Satanás pediu a Cristo para adorá-lo em troca de todos os reinos do mundo, irá tornar-se a tentação de se ter uma nova religião sem a Cruz e sem liturgia, sem um mundo futuro, uma religião para destruir a Religião, ou uma política que é uma religião – que também dá a César até mesmo as coisas que são de Deus.

No meio de todo o seu amor aparente pela humanidade e do seu discurso simplista de liberdade e de igualdade, o Anticristo ocultará um grande segredo que não será revelado a ninguém: ele não acredita em Deus, porque a sua religião será uma fraternidade sem a paternidade de Deus, e ele vai querer enganar até os escolhidos. Ele vai estabelecer no mundo uma contra-igreja como falsa cópia da Santa Igreja, porque ele, o diabo, é o macaqueador de Deus.

Essa falsa igreja terá todos os aspectos e as características da Igreja de Cristo, mas em sentido inverso e esvaziada do seu conteúdo divino. Terá um corpo místico de Anticristo que exteriormente vai imitar o Corpo Místico de Cristo. Mas o século XX vai se juntar a esta contra-igreja com a alegação de que ela será infalível quando sua cabeça visível falar ex cathedra (...) sobre temas como economia e política e como pastor-chefe do comunismo mundial.

* * *

Achei importante ver a posição deste autor católico, Fulton Sheen, uma vez que suas ideias se diferem em muito da posição do papa Francisco e da CNBB, por exemplo, que defendem o Comunismo enquanto o autor supracitado o condenava. Sheen afirmava, inclusive, que o Anticristo virá deste sistema que misturará religião com “… uma política que será ela mesma uma religião, que dará a César até as coisas que pertencem a Deus”.

Veja também o vídeo a seguir, de Marcelo Fernandes Ferreira [3]...


Notas:

  • [1SHEEN, Fulton J. O Comunismo e a consciência do Ocidente. Trad. Guilherme Ferreira Araújo. São José dos Campos/SP. Domine, 2021, pp. 24-28.