Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]
Na transição do Império para a República, uma nova forma de fazer política teve início no Brasil. Por essa época, começam a surgir os primeiros defensores de projetos socialistas, organizando partidos, sindicatos e jornais. Tratava-se, de fato, de uma mudança radical. Basta lembrarmos que, ao exaltar o “trabalhador” como principal elemento da sociedade, o movimento operário brasileiro rompeu com tradições seculares, herdadas da época escravista, que consideravam as atividades manuais aviltantes e indignas para os cidadãos. Inaugurava-se, assim, um novo princípio de exercício legítimo do poder que tem influência até os dias atuais.
Não por acaso, o Rio de Janeiro registrou as primeiras manifestações do movimento operário brasileiro. De fins do século XIX até os anos 1920, a capital republicana liderou o processo de industrialização, sendo posteriormente superada por São Paulo. A existência de trabalhadores em numerosas fábricas de tecidos, calçados, chapéus, cerâmicas e vidros, aliada ao próspero artesanato autônomo, como o de alfaiates e sapateiros, e a milhares de pequenos funcionários públicos abriu caminho, no meio urbano carioca, para a aceitação das novas ideias políticas. O Centro do Partido Operário, criado para disputar a eleição para a Constituinte de 1891, foi exemplo desta mudança. A plataforma por ele defendida, através do jornal Echo Popular, apresentava um conjunto de reivindicações modestas, havendo até condenação às greves. Além de aumentos salariais, defendiam-se direitos que hoje consideramos básicos – embora só tenham sido alcançados à custa de muita luta e perseguições –, tais como: proibição do trabalho infantil, jornada de trabalho de oito horas, direito a um dia de descanso semanal, aposentadoria para os idosos e inválidos, e também a criação de tribunais para arbitrar conflitos entre patrões e empregados. Apesar de defender causas de grande aceitação popular, o Centro do Partido Operário não sobreviveu muitos anos. Em 1893, por ter aderido à Revolta da Armada, a agremiação política foi extinta. No entanto, as bandeiras levantadas pelo movimento tiveram continuação; exemplos disto são o Partido Democrata Socialista, criado na capital paulista em 1896, e o Partido Operário Socialista, organizado em 1898 na cidade portuária de Santos. Os sindicatos foram outra criação da época.
No Rio de Janeiro e em São Paulo, as ligas operárias começaram a se formar nos anos 1870-80, mas só se tornaram numerosas após o advento da República. Aos poucos, acompanhando a industrialização, esse tipo de instituição espalhou-se por outras regiões brasileiras. A arma de luta sindical tinha um nome: grève; palavra escrita em francês até mesmo em jornais populares, sugerindo tratar-se de uma experiência social nova no Brasil, o que, de fato, era. Antes da década de 1890, a não ser em casos isolados de gráficos e cocheiros, não tinham sido registrados movimentos grevistas importantes no Brasil. Durante os primeiros anos republicanos, o quadro tornou-se bem diferente: na capital federal ocorreram, entre 1891 e 1894, 17 paralisações em defesa de aumento salarial ou pela jornada de oito horas, e no estado de São Paulo, 24 movimentos similares sucederam-se até 1900. Apesar de combativos, os sindicatos surgidos nesse período não conquistaram melhorias substantivas para a classe trabalhadora. Talvez por isso, no início do século XX, outra tendência política, bem mais radical, ganhou terreno no movimento operário. Tratava-se dos anarquistas. Assim, paralelamente aos grupos moderados, que continuaram a formar partidos, aliás de curta duração e sem expressão eleitoral – como o Partido Operário Brasileiro, de 1906, ou o Partido Operário Socialista, fundado três anos mais tarde –, havia agora aqueles que defendiam uma reorganização completa da sociedade, ou melhor, defendiam a revolução.
Ao contrário dos socialistas, os anarquistas não se organizavam em partidos, recusando-se a participar em parlamentos ou a aceitar cargos públicos. A teoria política que os orientava preconizava que o Estado, independentemente da classe social que estivesse no poder, era uma instituição repressiva, daí a defesa intransigente de sua substituição por associações espontâneas, tais como federações de comunas ou cooperativas de trabalhadores. As ligas operárias, obviamente, eram a forma de organização que mais se aproximava desse modelo de sociedade do futuro. Talvez por esse motivo, a época de difusão das ideias anarquistas coincida com a de expansão do movimento sindical brasileiro. Entre 1900 e 1914, por exemplo, o número de sindicatos na capital paulista aumentou de 7 para 41, e a média anual de greves se multiplicou por três. No Rio de Janeiro, os anarquistas também dão sinal de força. Em 1906, organizam um congresso e, no ano seguinte, criam a Federação Operária, congregando vários sindicatos, e levando o mérito de manterem os jornais operários de mais longa duração – como A Terra Livre – e, em 1918, de liderarem na capital republicana uma insurreição da qual participaram trabalhadores e militares.
No entanto, após esse período de expansão, o movimento anarquista entra em declínio. A primeira razão, foram os estragos causados pela repressão, e a suspeita não é infundada. Paralelamente às correntes pacifistas, havia, entre os anarquistas, os defensores da ação direta, em outras palavras, do emprego da violência contra as classes dominantes, como ficou registrado, no início do século XX, em panfletos anexados aos processos contra militantes cariocas, nos quais consta a defesa do assassinato sistemático de burgueses através do envenenamento do leite com biclorato de mercúrio. Tratava-se de uma situação aterradora, embora também seja curioso observar, por meio desse exemplo, a existência de um darwinismo social de origem popular, não voltado para a eliminação “das raças inferiores”, conforme mencionamos no capítulo anterior, mas sim para a extinção das “classes parasitárias”, identificadas às elites.
Embora minoritários entre os anarquistas, os partidários da ação direta deram margem para a organização de um eficiente sistema repressivo. Contribuía para isso o fato de muitos militantes terem nascido fora do Brasil, como nos casos registrados na capital paulista, onde, na década de 1910, entre 70% e 85% dos trabalhadores fabris, de transportes, do pequeno comércio e do artesanato eram estrangeiros. Embora a maioria dos italianos, portugueses e espanhóis fosse proveniente do meio rural, alguns deles tinham experiência sindical ou participação no movimento anarquista europeu, por isso se destacaram na fundação e liderança de sindicatos. Ora, a elite republicana levou isso em conta e, aproveitando-se de atos terroristas dos partidários da ação direta, aprovou leis favoráveis à expulsão de estrangeiros. Assim, de agentes civilizadores, como eram considerados no Império, os imigrantes europeus passaram a ser vistos como fonte de desordem e subversão política.
Todavia, a repressão não explica tudo. A forte presença de estrangeiros no movimento operário tinha ainda outras consequências negativas. Muitos homens e mulheres que aceitaram migrar para o Novo Mundo partiram na esperança de ascender socialmente. As fileiras do anarquismo, devastadas pela repressão policial, encontravam, dessa forma, dificuldades para se renovar; tanto pelo fato de os imigrantes afastarem-se do movimento assim que conseguiam melhores colocações, como pelo alto índice dos que retornavam ao país de origem, decepcionados com as condições de vida no Brasil.
As rivalidades étnicas, por outro lado, inviabilizaram a sobrevivência de muitas organizações sindicais. Um desses casos foi o da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, sindicato que reunia trabalhadores portuários do Rio de Janeiro da República Velha. Tratava-se de um dos raros casos em que a liderança era composta por negros. No entanto, a presença crescente de estivadores portugueses levou ao surgimento de conflitos internos. Em 1908 chegaram a ser registradas mortes durante as reuniões sindicais. Nos quatro anos seguintes, os resultados dos conflitos foram desastrosos. O número de filiados diminuiu de 4 mil para apenas 50; o sindicato dos pintores cariocas, por essa mesma época, enfrentou problemas similares, enquanto outras agremiações sindicais se apresentavam claramente como guetos étnicos, delimitando de antemão a nacionalidade dos filiados e militantes, como no caso dos chapeleiros paulistas, reunidos na Società Cosmopolita fra Lavoratori Cappellaio.
Além do problema étnico, havia outros. A recusa do movimento anarquista à participação política parlamentar e de dar apoio político aos partidos existentes dificultava a cristalização das reivindicações dos trabalhadores em leis. Aliado a isso, os anarquistas condenavam o futebol, o carnaval, o catolicismo e a umbanda, vendo nessas manifestações artimanhas da burguesia para alienar as massas em relação a seus reais interesses; o que de fato contribuiu, entre os militantes, para a formação de preconceitos em relação à grande maioria dos trabalhadores e levando-os muitas vezes, paradoxalmente, a assumir posturas racistas ou elitistas.
Até 1920, os resultados das lutas sindicais brasileiras foram diminutos. Os ganhos salariais alcançados não acompanharam o aumento de preço dos alimentos e do aluguel de casas. A incipiente legislação trabalhista da época restringia-se, por sua vez, a indenizações por acidentes e à restrição ao trabalho feminino ou infantil; leis tímidas e alvos de reformas retrógradas, como o decreto estadual paulista de 1911, que proibiu o trabalho de menores de 10 anos em fábricas e oficinas, abreviando em dois anos o limite determinado na legislação de 1894. Outras leis não saíram do papel, como aquela aprovada em 1917 que definia a jornada de trabalho infantil, limitando-a a cinco horas e estabelecendo a exigência de certificado médico e de atestado de frequência escolar na admissão dos pequenos operários.
A exploração desenfreada de homens, mulheres e crianças que, por vezes, tinham de suportar jornadas de trabalho superiores a doze horas, multiplicava os casos de rebeldia individual e, principalmente, de comportamentos autodestrutivos entre os operários. Em São Paulo, durante as duas primeiras décadas republicanas, as prisões por desordens aumentaram em 40%, enquanto as por embriaguez cresceram quase 400%. Paralelamente a isso, a exclusão dos egressos do cativeiro no mercado de trabalho livre acentuava a prática de furtos. Em cidades como a Campinas do início do século XX, negros e pardos representavam apenas 20% da população total, mas respondiam por cerca de metade da população carcerária. Os dados cariocas mostram, por sua vez, que imigrantes europeus nem sempre desfrutaram de melhores condições. Em 1903, cerca de uma centena de portugueses residentes na capital federal foram expulsos do Brasil sob a acusação de vadiagem e roubo. Entre 1915-18, esse segmento respondeu por 32% dos processos criminais, apesar de constituir apenas 15% da população masculina adulta do Rio de Janeiro.
Perante os riscos da miséria, a grande maioria dos trabalhadores reagia criando associações mutualistas. De maneira semelhante às outras formas de organização mencionadas anteriormente, o mutualismo não era uma invenção local, e sim uma importação europeia, mais precisamente francesa. No Brasil, as primeiras instituições desse tipo começaram a surgir em meados do século XIX. Como o próprio nome sugere, o mutualismo promovia o socorro recíproco de seus filiados. Tal qual os sindicatos, elas podiam se organizar a partir de critérios socioprofissionais, recebendo inclusive denominações referentes ao grupo que representavam, tais como: Sociedade de Beneficência dos Artistas da Construção Naval, Sociedade Protetora dos Barbeiros e Cabeleireiros, ou, ainda, Sociedade de Socorros Mútuos dos Artistas Sapateiros e Profissões Correlatas. Contudo, a semelhança entre esse tipo de associação e os sindicatos encerrava-se por aí. Enquanto os sindicatos voltavam-se para a conquista de direitos e transformações sociais, as associações mutualistas promoviam assistencialismo e conformismo social. Além disso, as mutuais, em plena época de industrialização, mantinham traços semelhantes aos das antigas irmandades e confrarias religiosas – inclusive evitando os termos “operário” ou “trabalhador”, como pode ser observado na referência a “artistas” em suas denominações. O levantamento dos estatutos também confirma as características, por assim dizer, “coloniais” dessas associações. Em São Paulo, por exemplo, 80% delas tinham como principal objetivo a realização de cerimônias religiosas por ocasião da morte dos associados, comprometendo-se a pagar os custos do carro, caixão, flores, velas, roupas do morto e também indicar o grupo de sócios que acompanharia o esquife. Em outras palavras, enquanto os socialistas e anarquistas voltavam-se para as vitórias terrenas, os mutualistas promoviam a conquista do além.
Outros traços confirmam o perfil arcaico das mutualistas. Muitas delas, apesar de contar com sócios de origem humilde, convidavam ricos comerciantes para participar da diretoria e administração da associação. De forma semelhante às confrarias coloniais, também não se importavam de se subordinar ao Estado em troca de isenção de impostos, autorização para emprestar dinheiro a juros e receber legados testamentários. Sua presença, aliás, não estava necessariamente ligada à prosperidade econômica regional. Tanto é verdade que, em 1889, o Rio Grande do Sul possuía 85 associações mutualistas, enquanto o próspero estado de São Paulo contava com apenas 23; número também inferior às 40 registradas, em fins do século XIX, na Bahia.
O surgimento dos sindicatos, por sua vez, não fazia com que o mutualismo entrasse em declínio. Em 1928, os paulistas contavam com 83 mutuais, número bem superior às 23 existentes em 1889; na capital federal, esse crescimento também foi intenso: as 171 agremiações registradas em 1883 aumentaram para 438 em 1912; por essa época, enquanto os sindicatos cariocas contavam, no máximo, com 70 mil filiados, as mutualistas possuíam cerca de 280 mil associados. Como se vê, as instituições mutualistas eram bem mais representativas que as organizações sindicais. Ao contrário dessas últimas, elas se baseavam em uma prática política avessa ao conflito de classe, ao mesmo tempo em que compartilhavam com os socialistas algumas preocupações, como as de auxílio à saúde e assistência por ocasião da velhice, ou seja, por formas variadas de previdência social. Segundo pesquisas, a partir das décadas de 1930-40, Getúlio Vargas assumirá essas bandeiras, capitalizando para si o apoio de boa parte das camadas populares.
Veja também:
- [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 165 a 169, Capítulo 24.
- [2] Imagem disponível em: <Greve Geral - 1917>. Acesso em: 29/05/2023.
- DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.