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26 de agosto de 2025

A Escatologia de Irineu e o Fundamentalismo Protestante

Por: Alcides Amorim


Há alguma similaridade entre o ensino escatológico de Irineu de Lyon (Leão) e o dos protestantes fundamentalistas? Esta pergunta tem relação com o texto sobre as setenta semanas do profeta Daniel (9) e os comentários do Dr. C. I. Scofield [1] sobre o assunto. Scofield foi um pastor protestante fundamentalista que escreveu suas ricas anotações de sua Bíblia de Referências. Nelas, ele ensina a visão escatológica futurista e dispensacionalista e, ao comentar Daniel 9.24, ele afirma que “... a interpretação que atribui a última das semanas ao fim dos tempos é dos Pais da Igreja”. E, como exemplo, ele cita Irineu e Hipólito. Resolvi, então, ver o pensamento de Irineu sobre isto, que resumiremos abaixo, e em outro momento pretendo falar sobre a posição de Hipólito.

1.    Sobre a teologia de Irineu

No tocante à vida de Irineu já falamos um pouco neste artigo. Ele era natural da Ásia Menor – provavelmente de Esmirna – onde nasceu por volta do ano de 130 e morreu em 202. Durante toda sua vida, Irineu foi um admirador fervente de seu mestre, e em seus escritos se refere repetidamente aos ensinos do mesmo, isto é, um "ancião" – o presbítero – cujo nome não menciona, mas que parece ser mesmo o bispo Policarpo. Este, que fora discípulo do apóstolo João, morreu por volta de do ano 100. Seu discípulo Policarpo, que serviu a Cristo 86 anos, talvez tenha morrido com mais de 90 anos, em 155. E Irineu, discípulo deste último, continuou sua obra. Veja que Irineu absorveu toda a tradição cristã que o aproximava aos apóstolos. Em todo caso, por razões que desconhecemos, Irineu se transladou da Ásia Memor para Lyon, no que hoje é França.

Os pontos centrais da teologia de Irineu era:

·  a unidade da apostólica transmitida pela sucessão episcopal e base para o combate às heresias;

· Cristo como Recapitulação (Anakephalaiosis), a ideia de que Cristo recapitula em si toda a história humana. Adão trouxe a queda, Cristo, o novo Adão, refaz o caminho, obedecendo onde Adão desobedeceu (cf. Rm 5.12-21; 1Co 15.22,45) e enfatiza salvação como uma restauração e renovação da humanidade em Cristo.

·  Encarnação como parte do plano de salvação: Para Irineu, a encarnação já fazia parte do propósito eterno de Deus, não apenas uma resposta ao pecado.

·  Combate à heresia gnóstica: Irineu rejeitou a ideia gnóstica de um Deus superior ao Criador; afirmou que o Deus do Antigo Testamento é o mesmo do Novo e que a criação é boa, e a redenção acontece dentro da história, não pela fuga dela.

·  Escatologia: Irineu esperava um reino futuro de Cristo na terra (inclinação milenarista, comum nos primeiros séculos); e via a história em termos de “planos” (dispensações) ou “economias” de Deus, conduzindo ao cumprimento em Cristo. Sobre este ponto falaremos mais abaixo.

Irineu é considerado pela Igreja Católica um dos grandes Padres apostólicos e apologistas; considerado em 2022, pelo Papa Francisco, “Doutor da Unidade”, por sua ênfase na unidade da fé e da Igreja contra divisões. A sua teologia da sucessão apostólica é valorizada pela Igreja Católica como base do episcopado e do magistério, assunto que também destacamos aqui.

Mas é sobre sua escatologia que queremos destacar a seguir sobretudo considerando os pontos similares com o fundamentalismo protestante.

2.    Escatologia: Irineu x Fundamentalistas

Perguntei ao Chatgpt que embora a Igreja Católica considere Irineu como “Doutor da Igreja”, pelo menos a sua escatologia diverge da doutrina católica. A Resposta da I. A. Chatgpt foi: “Sua avaliação está correta: Irineu é Doutor da Igreja, mas sua escatologia não coincide plenamente com a visão católica posterior”. E esta divergência se dá, principalmente a partir de Agostinho de Hipona, do século IV em diante. “Agostinho ensinou que o milênio de Ap 20 não é literal, mas espiritual... corresponde ao período atual da Igreja entre a primeira e a segunda vinda de Cristo... Essa interpretação se tornou a dominante (o chamado amilenarismo agostiniano)”. Mas, voltando a Irineu[2], vejamos o que ele diz sobre:

a)   Dispensações

Como já definimos aqui “... uma dispensação é um período de tempo no qual o homem é testado na sua obediência a alguma revelação específica da vontade de Deus. Três conceitos importantes estão implícitos nesta definição: um depósito de revelação divina quanto à vontade de Deus, incorporando o que Deus exige quanto à sua conduta; a mordomia do homem desta revelação divina, na qual ele é responsável de obedecer; e um período de tempo, geralmente chamado de “século”, durante o qual esta revelação divina prevalece testando a obediência do homem a Deus[3]”.

Irineu não fala diretamente sobre dispensações, mas deixa claro que Deus implementou um plano para resgatar e restaurar a humanidade e a criação, revertendo os efeitos do pecado. Ele chama este plano de "recapitulação" (p. ex.: pág. 65) e é uma forma de a Igreja interpretar a história da salvação em diferentes "economias" ou etapas do plano de Deus. E também destaca sobre “... aquelas coisas que foram preditas pelo Criador igualmente por meio de todos os profetas Cristo cumpriu no final, ministrando à vontade de Seu Pai e completando suas dispensações [destaque meu] com relação à raça humana[4].

b)   As Setenta Semanas de Daniel

Assim como os fundamentalistas (veja aqui), Irineu interpretava as setenta semanas de Daniel  (Dn 9.24-27) como um período histórico de 490 anos literais. A última semana (7 anos) seria o tempo da tribulação, que ele vinculava com eventos que precederiam a volta de Jesus. Portanto, trata-se de um evento escatológico futuro. Ele dividia a última semana em duas partes de três anos e meio (como fazem os dispensacionalistas).   O “príncipe que há de vir” (v. 26) é o Anticristo, um governante que que fará uma aliança por uma semana (7 anos), mas na metade da semana (após 3 anos e meio) romperá o pacto, cessará o sacrifício e instaurará a abominação da desolação. Resumindo: Irineu vê a última semana como ainda não cumprida em sua totalidade, projetada para o fim da história, ligada ao governo do Anticristo.

c)   Arrebatamento da Igreja / Segunda vinda de Cristo / grande tribulação

Irineu (pág. 98) relaciona arrebatamento como a ressurreição dos mortos: “... assim também devemos esperar o tempo da nossa ressurreição, prescrito por Deus e predito pelos profetas, e assim, ressuscitando, sermos arrebatados, todos aqueles que o Senhor considerar dignos deste [privilégio]...”. também cita (Pág. 16 e 17) Enoque e Elias como exemplo de pessoas arrebatadas ou trasladadas. O arrebatamento deles apontava “... assim por antecipação a transladação dos justos”. Quando esta transladação acontecerá? Diferentemente dos fundamentalistas protestantes, que acreditam que Jesus voltará antes da grande tribulação, Irineu cria que a Igreja seria “arrebatada” (1Ts 4.17), mas no fim da última semana, na manifestação de Cristo, não antes. E também não falava de um “arrebatamento secreto” durante a tribulação. Sua visão era mais próxima do que hoje chamamos de pós-tribulacionismo milenarista: a Igreja sofre perseguição, Cristo volta, ocorre o arrebatamento/ressurreição, derrota do Anticristo e início do milênio.

d)   Milênio

O ensino de Irineu sobre o milênio coincide com a posição dos fundamentalistas. Ele ensinava um milênio literal (quiliasmo), terrestre e futuro, que ocorrerá após a volta de Cristo. Sua posição foi abandonada pela Igreja Católica a partir do século IV, como já vimos.

Com a ajuda do chatGpt, elaborei um quadro abaixo da escatologia de Irineu por ordem dos acontecimentos:

1)  Aparecimento do Anticristo

- Surge no fim da história como o “príncipe que há de vir” (Dn 9.27).

- Governa por 3 anos e meio (Dn 7.25; Ap 13.5).

- Rompe a aliança, cessa o sacrifício e instala a abominação da desolação (Dn 9.27; Mt 24.15).

- Persegue duramente os santos (Ap 13.7).

2)  Grande Tribulação da Igreja

- A Igreja não é retirada antes da tribulação, mas chamada a perseverar.

- Irineu entendia o sofrimento como prova final dos fiéis (Ap 13; Dn 12.7).

3)  Segunda Vinda de Cristo

- Cristo vem em glória, derrota o Anticristo (2Ts 2.8; Ap 19.20).

- Os justos são arrebatados / ressuscitados para encontrar o Senhor (1Ts 4.16-17).

- Esse encontro marca o início do reinado milenar.

4)  Milênio literal (1.000 anos)

- Cristo reinará na terra, em Jerusalém restaurada (Ap 20.4-6).

- A criação será renovada (Is 11; 65.17-25).

- Haverá abundância e paz, cumprimento das promessas a Israel.

- Os justos reinarão com Cristo.

5)  Ressurreição final e Juízo universal

- Após os 1.000 anos, Satanás será solto e derrotado (Ap 20.7-10).

- Ocorre a segunda ressurreição: ímpios ressuscitam para o juízo.

- Cristo julga todos (Ap 20.11-15).

6)  Eternidade: Novo céu e nova terra

- Consumação definitiva da criação (Ap 21–22).

- A humanidade restaurada em Cristo habita com Deus para sempre.

Bem, sobre a escatologia dos dispensacionalistas/conservadores, estamos postando os assuntos aqui à medida que conseguimos elaborá-los. Mas quero concluir destacando alguns pontos de aproximação dela com a de Irineu.

Irineu não faz distinção entre Israel e a Igreja ao tratar o fim dos tempos, não ensina sobre um arrebatamento secreto, mas defende uma leitura futurista de Daniel e Apocalipse; entende ser a última semana de Daniel um acontecimento ainda futuro, culminando na revelação do Anticristo; divide esse período em duas metades de 3 anos e meio, conectando com Ap 11–13; afirma que o “príncipe que há de vir” (Dn 9.26-27) é o Anticristo, que perseguirá os santos; e acreditava num reino milenar terreno de Cristo após sua vinda.

Portanto, Irineu e o dispensacionalismo compartilham elementos importantes: leitura futurista de Daniel, expectativa de um Anticristo histórico e defesa de um milênio literal. Contudo, separam-se no ponto crucial do arrebatamento da Igreja. Enquanto o dispensacionalismo vê a Igreja retirada antes da tribulação, Irineu acreditava que os cristãos enfrentariam o Anticristo, sendo arrebatados somente na segunda vinda de Cristo. Assim, sua escatologia está mais próxima de um pós-tribulacionismo milenarista do que da visão pré-tribulacionista moderna.

Veja o resumo do artigo no vídeo a seguir:





Notas / Referências bibliográficas:

  • [1Cyrus Ingerson Scofield (1843–1921): “... foi um influente ministro americano. Sua Bíblia de Referência Scofield , repleta de anotações úteis sobre o texto, foi publicada em 1909 e se tornou o padrão para uma geração de cristãos fundamentalistas e popularizou a teologia dispensacionalista...”. Veja mais aqui, aqui e também aqui
  • [2IRINEU... Contras as Heresias, Livro V, Cap. 25 a 30.
  • [3SCOFIELD, Dr. C. I. Rota de Gênesis 1.28. In: A Bíblia Sagrada. São Paulo: Imprensa Batista Regular do Brasil: 1987. Texto e abreviaturas das referências adaptados.
  • [4IRINEU de Lyon. Contra as Heresias: Livro 5, p. 83 e 84), Edição do Kindle.

 


4 de agosto de 2025

Bispos e Papas (17): Ponciano

 Por: Alcides Amorim

Bispo Ponciano [1]

O próximo bispo de nossa lista (bispos e papas romanos), que queremos destacar aqui é o Bispo Ponciano.

Relembrando os bispos destacados até aqui, seguindo a ordem proposta por Eusébio de Cesareia, em História Eclesiástica (HE) [2]:

·        01) Bispo Lino (?)[3].
·        02) Bispo Anacleto (?).
·        03) Bispo Clemente de Roma (?).
·        04) Bispo Evaristo (?).
·        05) Bispo Alexandre I (?).
·        06) Bispo Sixto I (?).
·        07) Bispo Telésforo (?).
·        08) Bispo Higino (?).
·        09) Bispo Pio (?).
·        10) Bispo Aniceto (?).
·        11) Bispo Sotero (?).
·        12) Bispo Eleuterio (175 e 189).
·        13) Bispo Vitor I  (189 a 199).
·        14) Bispo Zeferino (199 a 217).
·        15) Calisto Primeiro (217 a 222).
·        16) Urbano I. (222 a 230).

Lembrando que esta lista não é a mesma da Igreja Católica, uma vez que a tradição católica considera o apóstolo Pedro como tendo sido o primeiro bispo romano e, por isso, o primeiro papa da igreja e, como se vê acima, Eusébio e muitos outros cristãos consideram Lino o primeiro bispo romano e não o apóstolo Pedro. 

Afirma Eusébio que o bispo Zeferino foi sucedido por Calisto, e este por Urbano (HE, 6, XXI). E que “... Urbano, que fora bispo de Roma por oito anos, foi sucedido por Ponciano” (HE, 6, XXIII).

Das informações sobre o 17° bispo de Roma, Ponciano, extraídas destas fontes católicas: (a), (b) e (c[4], descritas nas considerações bibliográficas abaixo, temos o seguinte resumo:

O Bispo ou Papa Ponciano:

  • Exerceu seu bispado/pontificado entre 230 e 235.
  • Nasceu em Roma e foi sucessor de Urbano I; foi eleito durante o cisma iniciado com Calixto I.
  • Pôs fim à heresia de seu grande opositor Hipólito (considerado um antipapa).
  • Ordenou o canto dos Salmos nas igrejas, prescreveu o Confiteor Deo, antes da missa e introduziu a fórmula "Dominus vobiscum".

No início do governo de Maximiniano (235 a 238), este aprisionou Ponciano e o deportou (em 235) para a Sardenha para cumprir trabalhos forçados nas pedreiras. Por isso, ele demitiu-se do pontificado pouco depois de ter chegado à ilha. Sua renúncia tinha o objetivo de não criar dificuldades à Igreja de Roma e permitir à Igreja eleger outro líder que estivesse presente em Roma, sendo eleito o Papa Antero.

Veja mais, sobre o São Ponciano, no vídeo de Altierez dos Santos a seguir:

Notas / Referências bibliográficas:

  • [1] Imagem (adaptada) e meramente ilustrativa. Disponível em: <https://evangelhoquotidiano.org/PT/display-saint/2d8064c9-691a-4e19-9ffe-3819ad86d250>. Acesso em: 29/07/2025.

  • [2] CESAREIA, Eusébio. História Eclesiástica: os primeiros quatro anos da Igreja Cristã. Rio de Janeiro: CPAD, 1999.

  • [3] As datas (ou não) referente aos períodos de governos dos referidos bispos, estão aqui, de acordo com as informações contidas nas Eras (10 volumes) de GONZÁLEZ, Justo L. em sua História Ilustrada do Cristianismo, publicada pela Editora Vida Nova. González entende como datas corretas apenas a partir dos bispos Eleutero ou Eleuterio...

  • [4] Bispo, Papa ou São Ponciano:

a) Disponível em: <https://www.portalsaofrancisco.com.br/historia-geral/papa-ponciano>. Acesso em: 02/08/2025.

b) Disponível em: In: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Ponciano_)>. Acesso em: 02/08/2025. 

c) Disponível em: In: <https://www.youtube.com/watch?v=MJMTydYpick>. Acesso em: 02/08/2025.

25 de julho de 2025

Dogmatismo: breve análise filosófica

Por: Alcides Amorim  


Filosofia e dogmatismo[1]

Ouça o conteúdo:

[]...

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Em posts anteriores falamos um pouco sobre ética bíblica; ética x moral, ceticismo e dogmatismo no sentido teológico. Continuando, em conexão com estes temas, queremos continuar falando sobre dogmatismo, principalmente em seu sentido filosófico.

Como já vimos, o dogmatismo, ao contrário do ceticismo, refere-se à crença em verdades absolutas e inquestionáveis, geralmente baseadas em princípios estabelecidos ou em autoridades reconhecidas e que implica na adoção de uma postura de firme convicção, sem espaço para dúvidas ou críticas.

Enquanto na visão teológica cristã, o dogmatismo se refere à aceitação de dogmas ou verdades consideradas incontestáveis tendo a Bíblia como paradigma, na filosofia, o dogmatismo é entendido como o oposto do ceticismo. Enquanto o cético é descrente em muitas situações e predisposto a duvidar de tudo, o dogmático, pelo contrário, defende a possibilidade de se alcançar verdades absolutas e inquestionáveis. Mas, diferentemente do senso comum, quando ideias são aceitas como verdadeiras sem questionamento, baseadas em crenças populares ou na tradição, filosoficamente, as verdades reveladas são consideradas incontestáveis com base em estudo aprofundado e testado de determinado tema, debates, lógica, razão, ciências etc., que se tornam princípios sólidos e racionais. Por exemplo, a lógica “... é uma área do conhecimento tão exata quanto a matemática, aliás, ela explica muito do que é feito na matemática. A lógica é um campo do conhecimento que podemos chamar de dogmático, pois está fundamentada em princípios tão sólidos quanto a própria racionalidade. Dessa maneira, quando existem princípios inabaláveis que definem uma área do saber, podemos chamar essa área de dogmática[1] (In: Mundo Educação).

Bem, lógica e matemática são exemplos de disciplinas dogmáticas e/ou exatas. Mas nas áreas humanistas há também filósofos dogmáticos que, por causa de sua teoria racional bem fundamentada, resistem ao tempo e espaço, tornando-se célebres nos meios acadêmicos em geral. É possível haver rigor lógico de suas ideias e mesmo assim elas serem aprovadas pela crítica e serem aceitas como verdades ou princípios. Platão e Descartes, por exemplo, são considerados dogmáticos por acreditarem na existência de verdades eternas e imutáveis, acessíveis através da razão. O dogmatismo de Platão se manifesta em sua teoria das Ideias, onde ele postula a existência de realidades perfeitas e imutáveis, acessíveis apenas, repito, através da razão. Já Descartes, ao permear ceticismo com racionalidade, sintetizada, sobretudo em sua famosa frase "Penso, logo existo", buscava um fundamento seguro para o conhecimento através da dúvida metódica, rejeitando qualquer crença não justificada racionalmente.

·  Teoria das Ideias: A base do dogmatismo platônico reside em sua crença na existência de um mundo inteligível, separado do mundo sensível, onde residem as Ideias perfeitas e eternas. Essas Ideias, como a Beleza, a Justiça e o Bem, são consideradas modelos para as coisas do mundo material.

·  A razão como método: No chamado método cartesiano (de Descartes), investiga-se a verdade com base na dúvida metódica, com o objetivo de alcançar a certeza através da razão. Portanto, seu dogmatismo refere-se à sua abordagem filosófica que busca verdades absolutas, utilizando a razão como método para alcançar um conhecimento seguro e inquestionável. Ele acreditava ser possível alcançar verdades absolutas por meio da razão.

Voltando à Teoria das Ideias de Platão e traçando um paralelo com o conceito de dogmatismo[2], podemos afirmar que:

·   para Platão, as Ideias são verdades eternas e perfeitas;
·   o questionamento está presente no processo dialético, mas as Ideias são o fim da investigação: são tidas como certezas;
·   as Ideias não mudam. O conhecimento é alcançado quando se reconhece essas verdades imutáveis;
·   a razão pura e alma humana reconhecem as Ideias por reminiscência, pois o conhecimento não é adquirido através dos sentidos, mas sim inato e lembrado pela alma.

Portanto, o platonismo tem traços dogmáticos especialmente na crença em verdades eternas e absolutas (as Ideias). No entanto, Platão estimula o uso da razão e do diálogo filosófico (a dialética) como meio para alcançar essas verdades, diferentemente do dogmatismo fechado ao questionamento. Assim, Platão não é dogmático no método, mas o é no resultado: ele crê que há verdades definitivas a serem descobertas.

E ainda sobre Descartes: este propõe que existem ideias inatas, ou seja, ideias que não vêm da experiência, mas já estão na mente desde o nascimento. Entre essas estão, por exemplo, a ideia de Deus, de substância, de infinito e de perfeição. Ele distingue entre: Ideias adventícias, provenientes dos sentidos; Ideias factícias, criadas pela imaginação e Ideias inatas, que pertencem à própria natureza da mente racional. Ele rejeita o dogmatismo no ponto de partida, pois inicia sua filosofia duvidando de tudo — inclusive das ideias tradicionais. Porém, após esse processo, ele reconstrói o conhecimento com base em ideias inatas que ele considera absolutamente certas, como a existência do "eu pensante" e de Deus. Assim, podemos afirmar que há um paralelo entre o dogmatismo e o resultado final do pensamento cartesiano, que sustenta algumas verdades inquestionáveis, embora seu o método é essencialmente antidogmático, pois exige que todo conhecimento seja submetido à dúvida antes de ser aceito como verdadeiro.

O meio-termo entre o ceticismo  e o dogmatismo é o chamado escrutínio crítico. O dogmatismo e o escrutínio crítico representam atitudes opostas diante do conhecimento, da verdade e das crenças. Daí, podemos concluir com uma pergunta: é possível um código de ética que concilia – filosoficamente – dogmatismo e escrutínio crítico? Um código de ética dogmática parte do princípio de que os valores estão dados, são absolutos, inquestionáveis e vêm de uma fonte superior (Deus, tradição, razão pura, etc.). Já o escrutínio crítico exige liberdade de questionamento, inclusive sobre os fundamentos dos próprios valores éticos. Portanto, do ponto de vista crítico, um código dogmático pode ser visto como autoritário ou ingênuo. Mas há também uma relação indireta ou dialética. Assim, o escrutínio crítico não precisa destruir o dogma, mas pode oferecer uma via de renovação e aprofundamento...

Veja também o meu vídeo sobre o assunto a seguir:


Notas / Referências bibliográficas:

  • [1] Imagem meramente ilustrativa, feita pelo I.A. Chat Gpt.

14 de julho de 2025

Dogma e dogmatismo: breve análise teológica

Por: Alcides Amorim

Tribunal de dogmas [1]

Já falamos um pouco sobre ética bíblica; ética x moral e ceticismo, que entendemos ser assuntos interrelacionados. Mais um tema correlacionado a estes é o conceito de dogmatismo.

O dogmatismo, ao contrário do ceticismo, refere-se à crença em verdades absolutas e inquestionáveis, geralmente baseadas em princípios estabelecidos ou em autoridades reconhecidas. Implica na adoção de uma postura de firme convicção, sem espaço para dúvidas ou críticas. Sua fundamentação tem conexão principalmente com os contextos religioso e filosófico/jurídico/cultural. Por isso, quero destacar este assunto em duas partes: neste artigo, destacando o conceito teológico-cristão, ou seja, o dogmatismo e sua relação com a ética e a fé, e num outro momento, o seu conceito filosófico em conexão com a ética: ética dogmática.

1.    Dogma

No Novo Testamento, a palavra dogma (do grego, δόγμα) refere-se a um decreto, ordenança, decisão ou mandamento sagrado (divino) e/ou de autoridades civis. Por exemplo, em Lucas 2.1, o termo “dogma” é usado como “decreto” de César Augusto para que todos fossem recenseados; em Atos 16.4, "dogma" é usado para descrever as decisões tomadas pelos apóstolos e anciãos em Jerusalém para que os gentios não precisassem se circuncidar, mas apenas se abstivessem de idolatria, fornicação e sangue; em Efésios 2.15, Paulo fala sobre a "lei dos mandamentos expressos em ordenanças" (dogmas em algumas traduções), que Jesus removeu ao abolir a lei cerimonial judaica; em Colossenses 2.14, “dogma” é utilizada como “ordenanças” ou dívidas que foram pagas por Cristo na cruz e assim por diante.

No breve resumo teológico sobre dogma, Donald K. McKIM [2] destaca que na filosofia grega posterior, o uso legal do termo “dogma” era abrangido como proposições doutrinárias que expressavam o ponto de vista oficial de um mestre ou escola filosófica em particular.

A teologia cristã primitiva finalmente veio a usar o termo da mesma maneira. Basílio Magno, em meados do século IV, distinguiu entre o kërygma [3] e os dogmas cristãos no sentido das proposições de fé. A primeira aprovação que a igreja deu a declarações "dogmáticas" ocorreu em 325, no Concilio de Nicéia, onde a consubstancialidade do Filho com o Pai foi declarada como uma confissão de fé.

Na Idade Média, a Igreja Católica Romana desenvolveu o conceito do depositum fidel ("depósito de fé") [4], segundo o qual considerava-se que à igreja era confiado um certo depósito de verdades cujas ramificações podiam ser licitamente desenvolvidas pela igreja. Finalmente, através do Concilio de Trento (1545-63) e o Primeiro Concilio Vaticano (1870), os pronunciamentos dogmáticos da Igreja Católica passaram a ser considerados infalíveis. Assim, o dogma era visto no catolicismo romano, até mesmo antes da Reforma, como uma verdade cujo conteúdo objetivo é revelado por Deus e definido pela igreja. Isto é feito mediante um concilio eclesiástico, por um papa ou através da propagação geral do dogma nos ensinos da igreja.

Desde a Reforma, o protestantismo tem rejeitado a associação entre o dogma e os pronunciamentos eclesiásticos infalíveis. Segundo o pensamento da Reforma, todos os dogmas devem ser testados em comparação com a revelação de Deus nas Sagradas Escrituras. Conforme observou Karl Barth: "A Palavra de Deus está tão acima do dogma quanto os céus estão acima da terra" (In: Dogmática Eclesiástica...). Além disso, para os reformadores, a fé é confiança pessoal em Deus e relacionamento com Ele mediante Jesus Cristo, não basicamente a anuência àquilo que a igreja ordena que seja crido. "Dogma" veio a significar uma expressão de verdade doutrinária que obteve o "status" eclesiástico, porém sem reivindicações à infalibilidade.

A obra escrita em 1845 por John Henry Newman, An Essay on the Development of Christian Doctrine (Um Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Crista), foi uma contribuição seminal para o surgimento de questões a respeito das tradições, dos desenvolvimentos e das ligações das ideias cristãs. Os estudiosos alemães tais como Ferdinand Christian Baur e Adolf Harnack submeteram os desenvolvimentos históricos dos dogmas e doutrinas cristãos ao escrutínio crítico [5]. De pontos de vista diferentes, a mesma coisa foi feita por três teólogos escoceses: William Cunningham, Robert Raimy e James Orr.

Karl Barth reinterpretou o antigo uso católico-romano no protestantismo moderno ao definir o dogma como "a concordância entre a proclamação feita pela igreja e a revelação atestada nas Sagradas Escrituras" (Dogmática Eclesiástica...). Os dogmas são as formas nas quais o dogma aparece. O dogma torna-se, em última análise, um "conceito escatológico", visto que nenhuma formulação humana chegará a concordar completamente com a Palavra de Deus antes do reino final de Deus, segundo diz Barth. A pesquisa dogmática, no entanto, pode estar livre para trabalhar com dogmas individuais e apreciá-los como tentativas de se expressar a verdade da revelação.

2.    Dogmática e/ou Teologia Sistemática

A dogmática é o ramo da teologia que procura expressar as crenças e doutrinas (dogmas) da fé cristã – demonstrar "todo o desígnio de Deus" (At 20.27) de um modo organizado ou sistemático. Visto que nenhum teólogo dogmático trata somente dos "dogmas" da igreja, esta disciplina atualmente é mais conhecida por "teologia sistemática" ou simplesmente "teologia".

Os teólogos dogmáticos ou sistemáticos geralmente ocupam-se das fontes bíblicas e do apoio às doutrinas da fé, da história do desenvolvimento de tais doutrinas, dos dogmas contrastantes de outras comunidades da fé e das opiniões de outros teólogos que tratam de tais doutrinas. Pelo fato de esta disciplina aplicar-se à totalidade, e não somente a doutrinas específicas, a teologia sistemática sempre reflete uma comunidade específica da fé católico-romana, a ortodoxia oriental, a luterana, a reformada, a liberal, a neo-ortodoxa, a existencialista, etc.

Bem, num sentido mais didático, a teologia dogmática [6] recebe esse nome da palavra grega e latina dogma, a qual, ao se referir à teologia, simplesmente significa "uma doutrina ou corpo de doutrinas formalmente e autoritariamente afirmada". Basicamente, a teologia dogmática refere-se à teologia oficial ou "dogmática" como reconhecida por uma certa igreja, como a Igreja Católica Romana, Igreja Reformada Holandesa, etc.

Enquanto se pensa que o termo teologia dogmática tenha aparecido pela primeira vez em 1659 no título de um livro de L. Reinhardt, o termo se tornou mais amplamente utilizado após a Reforma e foi usado para designar os artigos de fé que a igreja tinha formulado oficialmente. Um bom exemplo de teologia dogmática encontra-se nas declarações ou dogmas doutrinários que foram formulados pelos primeiros conselhos da igreja que procuraram resolver problemas teológicos e tomar uma posição contra o ensino herético. Os credos ou dogmas que vieram desses conselhos foram considerados autoritários e vinculativos para todos os cristãos porque a igreja os afirmara oficialmente. Um dos propósitos da teologia dogmática é permitir que uma igreja formule e comunique a doutrina que é considerada essencial para o Cristianismo e que, se negada, constituiria heresia.

Mas na resposta à pergunta O que é a teologia dogmática?, o Ministério Got Questions difere teologia dogmática de teologia sistemática. A teologia dogmática às vezes é confundida com a teologia sistemática, e os dois termos são às vezes utilizados de forma intercambiável. No entanto, existem diferenças sutis, mas importantes, entre os dois. Para entender a diferença entre a teologia sistemática e teologia dogmática, é importante notar que o termo "dogma" enfatiza não apenas as afirmações da Escritura, mas também a afirmação eclesiástica e autoritária dessas declarações. A diferença fundamental entre a teologia sistemática e a teologia dogmática é que a teologia sistemática não requer sanção ou aprovação oficial por parte de uma igreja ou de um corpo eclesiástico, enquanto que a teologia dogmática está diretamente ligada a um determinado corpo ou denominação da igreja. A teologia dogmática normalmente discute as mesmas doutrinas e muitas vezes usa o mesmo esboço e estrutura que a teologia sistemática, mas faz isso de uma posição teológica particular, afiliada a uma denominação ou igreja específica.

Também podemos diferenciar dogma de doutrina e, nesse caso, fazer uma correlação – sob o enfoque cristão protestante – entre teologia, dogma e doutrina:

·  Teologia sistemática, esforço organizado de compreender, de forma lógica e coerente, as verdades reveladas nas Escrituras sobre Deus, o ser humano, a salvação, a igreja e os eventos futuros. Ela busca reunir todos os ensinamentos bíblicos em um sistema unificado.

·   Dogmas: verdades centrais e inegociáveis da fé cristã, como a Trindade, a divindade de Cristo e a ressurreição. São verdades inquestionáveis inseridas nas doutrinas oficialmente reconhecidas pelas igrejas como essenciais para a salvação e identidade cristã.

·   Doutrinas: ensinamentos derivados das Escrituras que instruem a vida e a prática da fé, podendo variar entre tradições denominacionais. No caso específico dos protestantes, no entanto, as Escrituras têm a autoridade final sobre a definição dogmática de um ponto ou item de um conjunto de doutrinas. Toda doutrina pode ser parte da teologia sistemática, mas nem toda doutrina é dogma. Assim, a teologia sistemática organiza as doutrinas e reconhece os dogmas, formando uma base sólida para a fé e a vida cristã.

Concluindo, por aqui, como foi nossa intenção neste post, tentamos analisar o dogma como uma verdade estabelecida como fundamental e indiscutível dentro de um sistema religioso, especialmente no cristianismo, e dogmatismo, como a atitude de aceitar ou impor ideias como absolutas e inquestionáveis, sem admitir questionamento ou debate. Enquanto o dogma pode ter base revelada e reconhecida por uma tradição, o dogmatismo é mais uma postura rígida e fechada ao diálogo, que pode ocorrer tanto na religião quanto em outras áreas, como a política ou a filosofia. Resumindo: dogma é o conteúdo (o que se crê); dogmatismo é a postura (como se crê e se defende).

Veja também:

·        Ética bíblica.
·        Ética x moral.
·        O depósito da fé.


Notas:

  • [1] Tribunal de dogmas: Imagem ilustrativa feita por Inteligência do Artificial do chatgpt, em 12/07/2025.
  • [2] McKIM, Donald K. Dogma (texto adaptado). R.B.
  • [3] Dogma x kerygma: “Em termos simples, o kerygma é o anúncio inicial do Evangelho, a mensagem central de Jesus Cristo, enquanto dogma é uma verdade de fé definida pela Igreja como revelada por Deus e obrigatória para todos os fiéis. O kerygma é o ponto de partida, a proclamação da Boa Nova, enquanto o dogma é uma formulação clara e definitiva dessa fé“. Veja mais este resumo (Kerygma x Dogma), muito bem feito por I. A. do Google. Veja também: kerygma.
  • [5] Escrutínio crítico: “... refere-se à análise detalhada e avaliativa de algo, com o objetivo de identificar pontos fortes, fracos, erros ou inconsistências. Envolve uma investigação cuidadosa e questionadora, indo além de uma simples observação. Pode ser aplicado a diversos contextos, como textos, ideias, ações, políticas ou até mesmo pessoas...” (I.A., Google).


Referências Bibliográficas:

GOT QUESTIONS. O que é teologia dogmática? Disponível em: teologia dogmática. Acesso em: 11/07/2025.

KLOOSTER, Fred H. Dogmática. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. I. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 493 e 494.

MCKIM, Donald K. Dogma. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. I. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 490 e 491.