Irineu de Leão1
“Irineu de Leão escreveu toda a sua teologia desde uma perspectiva bíblica e pastoral. Através dele podemos descobrir muito do que foi o pensamento teológico de seus mestres, porque Irineu não trata de inovar, mas de expor a fé que recebeu de Policarpo e de seus outros mestres”2.
Irineu
era natural da Ásia Menor – provavelmente de Esmirna – onde
nasceu por volta do ano de 130 e onde foi também discípulo do bispo
Policarpo, acerca de cujo martírio falamos em um capítulo anterior.
Durante toda sua vida, Irineu foi um admirador fervente de seu mestre
Policarpo, e em seus escritos se refere repetidamente aos ensinos de
um "ancião" – o presbítero – cujo nome não menciona,
mas que parece ser Policarpo. Em todo caso, por razões que
desconhecemos, Irineu se transladou a Leão, no que hoje é França.
Ali chegou a ser presbítero da igreja, que o enviou a Roma com uma
carta para o bispo dessa cidade. Irineu estava em Roma quando houve
uma perseguição em Leão e Viena que já discutimos anteriormente.
Nessa perseguição, o bispo Fotino [ou Potínio] entregou sua vida
como mártir e, portanto, quando Irineu regressou a Leão ficou
encarregado da direção espiritual da igreja, que o elegeu para que
fosse seu bispo.
Irineu
era antes de tudo um pastor. Seu interesse não estava na especulação
filosófica, nem em descobrir recônditos secretos, até então
desconhecidos, mas em dirigir a sua grei na sã doutrina e na vida
correta. Portanto, seus escritos não intentam elevar-se em altos
voos especulativos, mas pretendem simplesmente refutar os hereges e
instruir os crentes. Ainda que Irineu compusesse outros escritos, são
duas as obras dele que seconservam: "A
demonstração da fé apostólica" e "A
refutação da falsa gnosis", esta última melhor
conhecida como "Contra as Heresias". Na primeira
destas obras, Irineu está tratando de instruir sua grei sobre alguns
pontos da fé cristã. Na segunda refuta aos gnósticos. Em ambas,
Irineu se limita a expor a fé que recebeu de seus mestres, sem
tratar de adorná-la com especulações de sua própria lavra.
Portanto, muito mais do que qualquer dos outros teólogos que
estudaremos aqui, Irineu nos mostra qual era a doutrina comum da
igreja até os fins do século segundo.
Irineu é antes de mais nada pastor, desse modo ele mesmo concebe a Deus como um pastor. Deus é um ser amante que cria o mundo e a humanidade, não por necessidade nem por erro – como pretendiam os gnósticos – mas por causa de seu próprio desejo de ter uma criação a qual amar e a qual dirigir, como o pastor dirige o seu rebanho ao redil. À luz desta perspectiva, toda a história aparece como o processo mediante o qual o divino pastor vai dirigindo sua criação em direção à consumação final.
A coroa da criação de Deus é a criatura humana. O ser humano foi criado desde o princípio como um ser livre e, portanto, responsável. Essa liberdade é tal, que mediante ela podemos conformar-nos mais e mais à vontade e à natureza divina, e gozar de uma comunhão sempre crescente com nosso criador. Mas, por outra parte, a criatura humana não foi criada desde um princípio em toda sua perfeição. Como pastor que é, Deus colocou o primeiro casal no paraíso, não em um estado de perfeição, mas "como meninos" (ou "como crianças"). O que isto quer dizer é que Deus tinha o propósito de que o ser humano crescesse de tal modo em comunhão com ele que com o tempo chegasse a estar ainda acima dos anjos.
Os anjos são seres superiores a nós somente provisoriamente. Quando se cumprir na humanidade o propósito divino, os seres humanos estarão acima dos anjos, pois gozaremos de uma comunhão com Deus mais estreita que a deles. A função dos anjos é semelhante à do tutor que dirige os primeiros passos de um príncipe. Ainda por um momento o tutor está acima do príncipe, mas com o tempo será subordinado a ele.
Deus criou então a humanidade "como crianças", para que fossem crescendo e se acostumando à comunhão com ele. Além dos anjos, Deus contava com suas duas "mãos" – o Verbo e o Espírito Santo – para dirigir e instruir a humanidade. Guiados por essas mãos, os seres humanos receberão instrução e crescimento, preparando-se cada vez mais para uma comunhão mais e mais íntima com Deus. Isto é o que Irineu chama de "divinização". O propósito último de Deus é fazer-nos cada vez mais semelhantes a ele. Isto não quer dizer que de algum modo nos dissolveremos na divindade, nem que chegaremos a ser iguais a Deus. Ao contrário, Deus se encontra tão acima de nós que por mais que cresçamos em nossa semelhança a Ele, sempre haverá caminho por andar.
Mas
um dos anjos, Satanás, sentiu ciúmes do destino tão elevado que
Deus reservava à criatura humana e, portanto, tentou e fez pecarem
Adão e Eva Como resultado do pecado, a criatura humana foi expulsa
do paraíso, e seu crescimento ficou torcido. Portanto, a história
tal como se desenvolveu é resultado do pecado.
Mas,
se bem que o conteúdo concreto da história da humanidade é
resultado do pecado, o fato de que haja história não o é. Deus
sempre teve o propósito de que houvesse história. O paraíso não
era senão o ponto de partida nos propósitos de Deus para com a
humanidade.
O mesmo se pode dizer com respeito à encarnação de Deus em Jesus Cristo. A encarnação não é o resultado do pecado humano. Ao contrário, desde o princípio Deus tinha o propósito de se unir à humanidade como o fez em Jesus Cristo. De fato, o Verbo encarnado foi o modelo que Deus utilizou ao criar o ser humano segundo sua "imagem e semelhança". Adão e Eva foram criados para que, depois de um processo de crescimento e instrução, chegassem a ser como o Verbo que havia de encarnar. Por causa do pecado, o que sucedeu é que a encarnação tomou outro propósito, e veio a ser também remédio contra o pecado e meio para a derrota de Satanás.
Ainda antes da encarnação, e desde o momento do primeiro pecado, Deus esteve dirigindo a humanidade em direção à uma comunhão mais íntima com ele. Por isso é que Deus "maldiz" à serpente e à terra, enquanto só "castiga" ao homem e à mulher. No momento das maldições, Deus continua levando a cabo seus propósitos redentores.
Nesses
propósitos, o povo de Israel cumpre um papel importantíssimo, pois
é na história do povo escolhido que as mãos de Deus têm
continuado a preparar a humanidade para a comunhão com Deus.
Portanto, o Antigo Testamento não é a revelação de um Deus
estranho à fé cristã, mas é a história de como Deus continuou os
seus propósitos redentores mesmo depois do pecado de Adão e Eva.
Por
fim, ao chegar o momento adequado, quando a humanidade tivesse
recebido a preparação necessária, o Verbo se encarnou em Jesus
Cristo. Jesus é o "segundo Adão" porque em sua vida,
morte e ressurreição foi criada uma nova humanidade, e em todas
suas ações, Jesus foi corrigindo o mal que fora feito no primeiro
pecado. Mas, além disso, Jesus derrotou o maligno, e nos fez
possível viver uma nova liberdade. Quem está unido a ele mediante o
batismo, a fé e a comunhão participa de sua vitória. Jesus Cristo
é literalmente a cabeça da igreja, que é seu corpo. O corpo se
nutre mediante a adoração – particularmente a eucaristia – e de
tal modo está unido à cabeça que já vai recebendo os benefícios
da vitória de Cristo. Em sua ressurreição começou a ressurreição
final, da qual todos os que formam parte de seu corpo serão
participantes.
Quando chegar a consumação final, e o Reino de Deus se estabelecer, isto não vai querer dizer que a tarefa de Deus como pastor terá terminado. Ao contrário, a humanidade redimida continuará crescendo em comunhão com Deus, e o processo de divinização continuará por toda a eternidade, levando-nos sempre mais perto de Deus.
Em resumo, a teologia de Irineu consiste em uma grandiosa e amplíssima visão da história, de tal modo que os propósitos de Deus vão se cumprindo através dela. Nessa história, o ponto central é a encarnação de Jesus Cristo, não simplesmente porque Ele tenha vindo corrigir a carreira torcida da humanidade, mas também e, sobretudo, porque desde o próprio momento da criação Deus já projetava a encarnação como o ponto culminante de sua obra. O propósito de Deus é unir-se ao ser humano, e isto ocorreu em Jesus Cristo de um modo inigualável.
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Quando e quando Irineu morreu? González não comenta. Ao que parece ele foi martirizado, provavelmente no ano 202, conforme o vídeo abaixo. Segundo nos informa FERREIRA: “A notícia de que ele sofreu martírio surgiu, pela primeira vez, nas obras de Jerônimo e Gregório de Tours, provavelmente na época em que, após a cidade de Lião ter apoiado o usurpador Clódio Albino e seus partidários na sucessão imperial, o vencedor desta, Sétimo Severo, mandou matar muitos moradores da cidade, nessa situação, a morte de Irineu pode muito bem ter passado despercebida”3.
Veja também o vídeo de Edgar de Oliveira, in:
Notas / Referências bibliográficas:
1 Irineu de Leão, Lião ou Lyon. Imagem meramente ilustrativa, disponível em: GONZÁLEZ, Justo L. A Era dos mártires. Op. Cit., Nota 2, p. 111.
2 GONZÁLEZ, Justo L. Uma história ilustrada do cristianismo: a era dos mártires – Vol. 1. São Paulo: Vida Nova, 1995, pp. 110 a 115.
3 FERREIRA, Franklin. Servos de Deus: espiritualidade e teologia na história da igreja. São José dos Campos/SP. Fiel, 2014. p. 42.
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