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04 janeiro 2024

Os militares no poder

Por: Mary Del Priori e Renato Venancio

 


Em 25 de agosto de 1961, o país entra em profunda crise política. A renúncia de Jânio implica a posse do vice-presidente, João Goulart. Em viagem diplomática à China, Goulart é hostilizado por importantes segmentos das forças armadas e do meio empresarial. Há razão para tanto? É preciso lembrar que ele foi responsável pelo aumento de 100% do salário-mínimo, motivo suficiente para ser identificado à nebulosa política denominada república sindicalista. Além disso, pertence à corrente nacionalista, partidária da realização de reformas de base da sociedade brasileira, que contrariavam poderosos interesses.

Os ministros militares se manifestaram contra a posse. Tal recusa, porém, estava longe de contar com o apoio unânime das forças armadas. Goulart foi eleito pelo voto direto, levando a ala legalista do Exército a se posicionar a seu favor. Explorando habilmente essa divisão, Leonel Brizola, que no início dos anos 1960 desponta como nova liderança nacional do PTB, consegue o apoio do III Exército. O então governador do Rio Grande do Sul cria a Rede da Legalidade, lançando, através dos meios de comunicação de massa, uma campanha nacional em defesa da posse do novo presidente.

O golpe de 1961 é, dessa maneira, evitado. No entanto, foram necessárias concessões políticas por parte de João Goulart. A mais importante delas foi a adoção do parlamentarismo, através do qual se transfere para o Congresso Nacional e para o presidente do Conselho de Ministros, aí eleito, boa parcela das prerrogativas do Poder Executivo.

Aproximadamente duas semanas após a renúncia de Jânio Quadros, o novo presidente assume o cargo e novas conspirações se iniciam. Um aspecto crucial relativo à adoção do parlamentarismo é aquele que prevê, nove meses antes do término do mandato presidencial, a realização de um plebiscito no qual se confirmaria a manutenção dessa forma de governo.

A experiência parlamentarista, implementada às pressas, se revela um fracasso. A crise econômica conjuga-se à quase paralisia do sistema político. Auxiliado por tais circunstâncias e pela campanha que faz, João Goulart consegue não só antecipar o plebiscito, como também dele sair vitorioso. Em janeiro de 1963, o Brasil volta a ser presidencialista. Dessa data até março de 1964, assistimos a uma progressiva radicalização entre os setores nacionalistas e antinacionalistas. Para compreendermos a razão de tanto conflito, devemos retornar no tempo e analisar as propostas políticas e econômicas desses dois grupos, assim como as alianças a que deram origem.

Conforme mencionamos no capítulo anterior, por volta de 1945 a economia brasileira torna-se predominantemente industrial. A partir dessa época, as discussões se voltam para a aceleração do processo de desenvolvimento econômico. Pois bem, uma das soluções propostas implica a associação com o capital internacional, enquanto a outra consiste em proteger a economia desse tipo de intervenção, valorizando a ação do Estado como promotor da industrialização. Entre numerosos defensores desta forma de desenvolvimento, havia os partidários da reorganização de nosso mundo rural. Para eles, o campo brasileiro mantinha estruturas econômicas pré-industriais, impedindo a integração da população aí existente ao mercado consumidor. Mais ainda: nossa agricultura, baseada em grandes propriedades e na lavoura de exportação, abastecia precariamente a cidade, elevando o custo de vida e fazendo com que, entre os trabalhadores, sobrassem poucos recursos para a aquisição de produtos industriais. A formação de latifúndios improdutivos tinha outro efeito negativo: desviava capitais das atividades econômicas mais dinâmicas. Em outras palavras, sem a reforma agrária, a economia brasileira estaria fadada à estagnação ou então a uma crescente dependência em relação aos investimentos estrangeiros.

O debate a respeito da alteração de nossas estruturas agrárias está longe de ser meramente técnico. Em torno dele se chocam interesses econômicos e paixões políticas. Não por acaso, nem mesmo governos transformadores, como os de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, instituíram projetos dessa natureza. Na verdade, pode-se afirmar o inverso. Desde os anos 1930, a ênfase dada à industrialização leva, na maioria das vezes, a restrições ao crédito rural e a uma política cambial desfavorável aos produtores agrícolas. Assim, para a manutenção das taxas de lucro, deve-se aumentar o nível de exploração dos trabalhadores, o que estimula, por sua vez, movimentos migratórios e sentimentos de revolta.

Conforme vimos, após a abolição, o campo brasileiro nem sempre adota o trabalho assalariado. Em várias partes, colonos, rendeiros, meeiros e moradores de favor é que de fato substituem o braço cativo. Nesse meio, fazendeiros cobram prestações de serviços em troca de moradia, alteram livremente os acordos de partilhas das colheitas ou despedem trabalhadores sem indenização alguma. Em 1955, a revolta contra essa situação cristaliza-se na forma de Ligas Camponesas, organizadas por Francisco Julião, advogado com longa experiência na defesa dos trabalhadores e pequenos proprietários rurais. Inicialmente, as Ligas se estabelecem em Pernambuco e Paraíba, para depois se espalharem por outras regiões brasileiras, como Rio de Janeiro e Goiás. Seu lema é levar “justiça ao campo” através da reforma agrária, “na lei ou na marra”, o que implicava invasões de propriedades rurais, criando um clima de terror em parte da elite brasileira.

Outro aspecto interessante dessa nova organização é que ela foge ao controle das tradicionais instituições populistas, como era o caso dos sindicatos vinculados ao PTB. De fato, pode-se afirmar que as Ligas e seu líder são hostis a João Goulart. Em 1962, essa postura ganha alcance nacional. Francisco Julião, eleito deputado federal pelo PSB, apoia vitoriosamente o prefeito de Recife, Miguel Arraes, na disputa do cargo de governador. João Goulart enfrenta, agora, oposição à direita e à esquerda; talvez por isso, o presidente reforça sua base de apoio popular se aproximando do PCB. Para compreender a aliança entre populistas e comunistas precisamos retornar no tempo.

O primeiro ensaio dessa aproximação ocorreu em 1945, por ocasião do fim do governo de Getúlio Vargas. No entanto, a cassação do registro legal do partido em 1947 leva os comunistas a uma fase de radicalização. A partir de 1952, ainda na ilegalidade, o Partidão – como então era popularmente conhecido – dá início à revisão dessa linha política, reaproximando-se de correntes políticas populistas, principalmente aquelas vinculadas ao nacionalismo ou ao movimento sindical.

Essa postura, em parte, decorre da análise teórica predominante no PCB. Desde os anos 1920, intelectuais comunistas procuram interpretar a sociedade brasileira à luz dos conceitos marxistas e leninistas. Tal leitura é afetada pelo fraco conhecimento de textos originais de Marx e pela adoção incondicional da linha política soviética. Nesse contexto, a interpretação que se torna dominante nos círculos comunistas é a de considerar as sociedades latino-americanas como pré-capitalistas. Tal conceituação implica, porém, brutais simplificações da realidade. Uma delas consiste em não ver diferenças entre países que apresentam níveis variados de desenvolvimento econômico. Brasil, Argentina, Guatemala ou Paraguai, por exemplo, são arrolados indistintamente. Pior ainda, adota-se a linha evolutiva europeia como sendo universal, o que leva a classificar o conjunto das sociedades latino-americanas como feudais. Na prática, tal interpretação implica reconhecer a necessidade de uma etapa capitalista para que, em um momento não definido do futuro, fosse possível atingir o socialismo; assim como os positivistas de cem anos antes, os comunistas são fortemente influenciados por concepções evolucionistas.

Ora, de forma simplificada, podemos afirmar que, para o PCB, os membros da UDN e parte do PSD representam os interesses feudais, ao passo que o PTB aglutinaria os grupos pertencentes à nascente burguesia nacional. Não é de estranhar, portanto, que os comunistas vissem com bons olhos a ascensão de João Goulart, defensor da reforma agrária e hostil ao capital internacional. Além disso, a aproximação do PCB com o PTB atende a necessidades práticas, como era o caso da legalização partidária dos comunistas.

Goulart procurava tirar vantagens dessa aliança. Um exemplo disso refere-se às mencionadas Ligas Camponesas. No início dos anos 1960, comunistas e trabalhistas levam a cabo uma bem-sucedida campanha de filiação sindical dos trabalhadores do campo. Na época do fim do parlamentarismo, enquanto as Ligas contam com 80 mil associados, registra-se a existência de 250 mil trabalhadores agrícolas sindicalizados, o que enfraquece o segmento oposicionista Julião Arraes em sua própria base eleitoral.

A aproximação entre PTB e PCB revela o fracasso do presidente em promover uma política moderada. Goulart naufraga em suas articulações com a Frente Parlamentar Nacionalista, integrada até mesmo por udenistas favoráveis às reformas estruturais da sociedade brasileira. O mesmo ocorre em sua tentativa de criar a União Sindical dos Trabalhadores, confederação destinada a enfraquecer o Comando Geral dos Trabalhadores, controlado por comunistas. Na política econômica, seu resultado também é medíocre. A equipe de seu primeiro ministério, liderada por San Thiago Dantas e Celso Furtado, tenta, sem sucesso, implementar o plano trienal, que prevê a captação de recursos internacionais, assim como austeridade no gasto público, crédito e política salarial. Tal fracasso tem graves repercussões, registrando-se então uma recessão e uma taxa de inflação alarmante.

Cada vez mais isolado entre as elites, Goulart procura apoio na ala radical do trabalhismo, liderada por Leonel Brizola – defensor da mobilização popular como uma forma de pressão pelas reformas de base. Em outubro de 1963, as conspirações contra seu governo proliferam. Pressionado pela ala legalista do Exército, o presidente ensaia decretar estado de sítio, mas é sabotado no Congresso pelo próprio partido, perdendo assim o pouco de prestígio que lhe resta junto às forças militares.

Apesar de sua frágil situação, Goulart não reavalia o projeto reformista. Desde a posse, o presidente mantém uma postura ambígua, ora tentando desenvolver uma política moderada, ora apelando para a mobilização popular para forçar o Congresso a aprovar reformas. Em parte devido à inflação, e também à ambiguidade populista, greves se multiplicam. Assim, é possível afirmar, por exemplo, que entre 1961 e 1963 ocorrem mais movimentos grevistas do que no período compreendido entre 1950 e 1960. No que diz respeito às greves gerais – ou seja, aquelas envolvendo várias categorias socio-profissionais –, o crescimento é de 350%! Não é difícil imaginar os transtornos criados nos serviços básicos de saúde e de transportes coletivos por esse tipo de prática, tornando o presidente bastante impopular junto às classes médias e camadas representativas dos trabalhadores. Observa-se, ainda, durante seu governo, o declínio acentuado da repressão aos grevistas, dando munição aos que disseminavam entre as elites o medo em relação à implantação de uma república sindicalista no Brasil.

No início de 1964, o presidente encaminha ao Congresso um projeto de reforma agrária e é derrotado. Através de mobilizações de massa pressiona o Poder Legislativo. No comício de 13 de março, que reúne cerca de 150 mil participantes, anuncia decretos nacionalizando refinarias particulares de petróleo e desapropriando terras com mais de 100 hectares que ladeavam rodovias e ferrovias federais. As medidas são acompanhadas por declarações bombásticas, como as de Brizola, defendendo a constituição de um Congresso composto de camponeses, operários, sargentos e oficiais militares. A direita reage a esse tipo de manifestação, organizando, com apoio da Igreja Católica e de associações empresariais, “marchas da família com Deus pela liberdade”, por meio das quais condenam o suposto avanço do comunismo no Brasil.

Em um lance extremamente infeliz, Goulart estende a mobilização sindical aos quartéis. Em fins de março, apoia a revolta de marinheiros, deixando que esses últimos participem da escolha do novo ministro da Marinha; além disso, mobiliza os sargentos do Rio de Janeiro. A quebra da hierarquia militar é o item que faltava para que os conspiradores conseguissem apoio da ala legalista das forças armadas. Em 31 de março é deposto o presidente. A UDN, por intermédio de dois governadores, Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Carlos Lacerda, da Guanabara, participa ativamente do golpe, e, em 15 de abril, o general Castello Branco, identificado à ala legalista, assume a Presidência da República. Dentre os poderes atribuídos a ele havia o de cassar direitos políticos e afastar os militares identificados ao governo deposto. Essa depuração envolve milhares de oficiais, soldados e deputados, e seu resultado concreto foi criar um desequilíbrio no Congresso e nas forças armadas a favor dos antigos grupos antinacionalistas.

Esse desequilíbrio de forças no interior do Exército gera uma situação complexa. Inicialmente, o núcleo conspirador apresentou a intervenção militar como defensiva em face de um iminente golpe que Goulart estaria planejando, e previa, por exemplo, eleições presidenciais em 1965. No entanto, os grupos antinacionalistas – agora denominados linha-dura – alimentam um projeto político duradouro. Nos documentos imediatamente lançados após o golpe, os partidários dessa visão assumem o papel de liderar a sociedade brasileira: “a revolução” – afirma um desses textos – “se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação”.

De fato, o Golpe Militar de 1964 pode ser acusado de muitas coisas, menos de ter sido uma mera quartelada. Havia muito, tal intervenção era discutida em instituições, como a Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1948, ou o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), fundado em 1962 por lideranças empresariais. Outro indício de que o golpe vinha sendo tramado havia tempos ficou registrado nos documentos da operação “Brother Sam”, através da qual se prevê, caso houvesse resistência, que o governo norte-americano “doaria” 110 toneladas de armas e munições ao Exército brasileiro. Por ser fruto desse planejamento prévio, não é surpreendente que a instituição militar apresente um projeto próprio de desenvolvimento para o país – aliás, compartilhado pela maioria do empresariado nacional. Em larga medida, tal projeto consiste em retomar o modelo implantado em fins da década de 1950, aquele definido como tripé, baseado na associação entre empresas nacionais privadas, multinacionais e estatais.

Com o objetivo de tornar esse modelo mais eficaz, é meticulosamente organizada a repressão ao movimento sindical e à oposição política. Contudo, a implantação da ditadura não ocorre imediatamente após a deposição do presidente. Os conspiradores dependem dos grupos legalistas, muitos deles defensores do retorno do poder civil nas eleições presidenciais seguintes. Além disso, a ausência de resistência – em 3 de abril de 1964, João Goulart se exila no Uruguai – desarma a linha-dura. Mas isso dura pouco. Em 1965, graças às depurações nas forças armadas, os militares identificados ao general Costa e Silva têm força suficiente para alterar os rumos da revolução. A derrota que enfrentam nas urnas alimenta ainda mais essa tendência. No referido ano, candidatos oposicionistas vencem em estados e cidades importantes, como na Guanabara, em Minas Gerais e na capital paulista. Boa parcela dos brasileiros demonstra seu descontentamento com o governo instituído em 31 de março. Como resposta, foram impostos os Atos Institucionais nos 2 e 3, que abolem os partidos existentes e as eleições diretas para presidente, governador e prefeito de capitais. Não restavam dúvidas, os militares tinham vindo para ficar...


Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010. Cap. 30, pág. 198 a 203.

12 junho 2023

Frida Vingren: uma voz feminina no início do pentecostalismo brasileiro

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Artigo de autoria de meu antigo colega de classe, Thiago Tropardi Gonçalves, na disciplina O Papel da Mulher no Protestantismo Brasileiro, ministrada no Curso História e Teologia do Protestantismo no Brasil, pela Professora Rute Salviano Almeida, na Faculdade Teológica Batista de São Paulo, em fevereiro de 2015.

O movimento evangélico brasileiro é caracterizado, assim como na América do Norte, por sua grande variedade, por suas ricas e mesmo incomuns manifestações, e por ter sido intensamente impactado, no início do século XX pelo surgimento de uma nova força no mundo Protestante, O Movimento Pentecostal contemporâneo.

Apesar de existirem questões concernentes à proporcionalidade incompatível de evangélicos no Brasil e nos Estados Unidos, o contexto do surgimento do Pentecostalismo nos dois países tem semelhanças importantes. Tanto no Brasil quanto nos Estado Unidos a grande maioria das denominações históricas já estavam seguramente instaladas quando da ocasião do surgimento do Pentecostalismo, obviamente os protestantes eram minoria em terras tupiniquins, o que não ocorria no norte da América, contudo já havia uma base protestante sólida em território nacional.

Nesse sentido, não importa em qual dos dois países, o Pentecostalismo desde seu início tem na sua origem a essência de ser uma dissidência protestante surgida a partir das Igrejas Históricas ou, dependendo da perspectiva do observador, concomitantemente à mesma. Traduzindo em rápidas palavras: O Pentecostalismo moderno é um movimento Protestante tanto na origem quanto em seu posterior desenvolvimento. Aqueles que questionam a essência do movimento e propõe total incompatibilidade entre o Protestantismo Histórico e Tradicional e o Movimento Pentecostal claramente se mostram ignorantes com relação a essência histórica, bíblica e revolucionária do protestantismo, bem como também o fazem em se tratando da natureza, doutrina e história do Movimento Pentecostal.

Pentecostalismo é Protestantismo gostem ou não os Protestantes não-pentecostais. E, no caso do Brasil, a discussão é consideravelmente mais séria e relevante que no resto do mundo. Levando-se em consideração os debates e controvérsias sobre se de fato é legítimo falar em “Protestantismo Brasileiro” ou se o termo correto a ser usado seria “Protestantismo no Brasil”, tal discussão parte da premissa de que, de fato, existe a possibilidade de um “Protestantismo Brasileiro” não existir visto que o protestantismo praticado no Brasil em poucas ocasiões foi autônomo e/ou independente de influências estrangeiras. O Protestantismo Brasileiro nunca teria saído de baixo das asas de seus irmãos europeu e norte-americano e, por essa razão, faria então muito mais sentido falar em um “Protestantismo no Brasil”, ou seja, um protestantismo estrangeiro praticado em solo brasileiro.

Tomando como ponto de partida a discussão acima, muitos especialistas defendem ser o Pentecostalismo o legítimo "Protestantismo Brasileiro". O Pentecostalismo teria sido a modalidade de protestantismo que realmente adentrou à sociedade brasileira transformando-a enquanto foi transformado por ela. O Pentecostalismo alcançou pessoas, camadas sociais e grupos que o protestantismo histórico encontrou imensas dificuldades para alcançar ou mesmo que, na prática, nunca pretendeu atingir. Pentecostais dialogaram extensivamente com cultos afros e práticas populares tradicionais presentes na sociedade brasileira enquanto dialeticamente rejeitaram ainda outro enorme número de práticas populares tradicionalmente praticadas em diversas regiões do país. Apenas para citar um exemplo, enquanto alguns grupos pentecostais usam como instrumentos musicais apenas o violão e o teclado, outros levam atabaques, bumbos e diversos instrumentos de percussão de origem africana para cultuar ao Senhor nos cultos de domingo à noite. Pentecostalismo, na prática, é Ecclesia Reformata et Semper Reformanda est [1].

Isto posto, parece salutar observar a vida e obra de uma das grandes vozes da História do Movimento Pentecostal Brasileiro. Passemos então a observar vida e obra de Frida Maria Strandberg Vingren, conhecida popularmente como Frida Vingren.

Frida, assim como a maioria das grandes mulheres da História do Cristianismo, sendo ao mesmo tempo missionária, obreira, mãe e esposa encontrou muitas dificuldades no transcorrer de sua vida de fé, e como cristã fervorosa, jamais perdeu as esperanças ou a confiança de que seu Salvador a poderia livrar de qualquer mal e auxiliá-la a superar as mais terríveis dificuldades, mesmo àquelas presentes no cotidiano do contexto missionário.

Frida nasceu em Själevad, Västernorrlands, região norte da Suécia no dia 9 de Junho de 1891, filha de Jonas Strandberg e Margareta Sundelin. Os pais de Frida construíram uma grande família e a jovem teve vários irmãos. Seus pais eram cristãos luteranos, Frida, portanto, foi criada em uma família cristã e recebeu educação luterana quando criança, estudou até o nível superior sendo formada em enfermagem. Não obstante, a jovem, apesar de luterana na origem, logo começou a participar de cultos em uma igreja pentecostal. Sobre essa fase da vida de Vingren, Araujo comenta: “Ela tornou-se membro da Igreja Filadélfia de Estocolmo, onde cooperava. Batizada em águas pelo pastor Lewi Pethrus, em 24 de Janeiro de 1917, pouco tempo depois recebeu o batismo no Espírito Santo. Posteriormente, recebeu o dom de profecia.” [2]

Jovem com talentos incomuns Frida possuía aptidões e foi, durante sua vida e ministério, missionária, enfermeira, musicista, compositora de hinos da Harpa Cristã, pregadora, redatora, escritora, pesquisadora, ensinadora, pastora, mãe, esposa, administradora do lar e por vezes da igreja. A jovem, de fato, possuía talentos extraordinários. Analisaremos alguns destes talentos com mais cuidado no decorrer do texto.

É significativo que o Primeiro líder e fundador das Assembleias de Deus no Brasil fosse a favor de um ministério feminino mais ativo na Igreja. Gunnar Vingren, esposo de Frida, sempre desejou que sua esposa e que as mulheres assembleianas tivessem mais atuação no seio da igreja. Uma controvérsia conhecida ocorreu entre Vingren e Samuel Nyström o segundo missionário na linha de liderança da denominação. Nos eventos que antecederam a Convenção Geral das Assembleias de Deus de 1930 Vingren e Nyström travaram uma batalha em função da questão da ordenação feminina e da liberdade de atuação das mulheres na pregação e ensino na igreja, sobre esse fato Gunnar escreveu em 1929: “Samuel Nyström chegou do Pará. Não se humilhou. Sustenta que a mulher não pode pregar nem ensinar, só testificar. Disse mais que, provavelmente, vai embora do Brasil.” [3]

Em outro encontro relatado por Gunnar Vingren o missionário conta que Nyström foi a São Paulo e a Santos para ter apoio dos Missionários Daniel Berg e Simon Lundgren e assim finalmente convencer Vingren a respeito do ministério feminino ser ilegítimo, sobre esse encontro Vingren aponta o seguinte desfecho:

Chegaram Samuel, Simon e Daniel. Samuel não se humilhou. Separamo-nos em paz, mas para não trabalhar mais juntos, nem com jornal ou nas escolas bíblicas, até o Senhor nos unir. Simon disse que ficava de fora e Daniel tinha convidado Samuel a trabalhar em São Paulo. Assim disse para ele: Estamos separados. [4]

Apesar da sentença declarada pelo líder das ADs eles voltariam a trabalhar juntos, Nyström na verdade chegou a trabalhar com Frida em uma das ocasiões em que, na ausência de Gunnar, eles dirigiram juntos a Assembleia de Deus em Belém do Pará. Samuel conta a respeito dessa época: “A irmã Frida Vingren e eu trabalhávamos em colaboração. Muitos foram salvos e batizados nas águas e Jesus continuava batizando no Espírito Santo [5]". Entretanto Araujo defende que esta aceitação de Samuel com relação a Frida se dá apenas por ele considerar que a jovem missionária e o evento em que ocorrera seu pastorado eram uma exceção à regra e não pelo fato de o cofundador da denominação aceitar o ministério feminino na igreja [6].

Dentre as muitas funções que Frida acumulou durante sua vida a função de Pastora e pregadora foi de fundamental importância para o posterior desenvolvimento da denominação. Frida não exerceu apenas o pastorado em Belém, anos mais tarde ela assumiria a igreja em São Cristovam no Rio de Janeiro, a maior e mais importante igreja Assembleia de Deus no país, nas ocasiões em que seu esposo estava ausente, seja por enfermidade ou por ocasião de suas muitas viagens missionárias. Frida além de dirigir os cultos em São Cristovam (uma igreja para dois mil membros) por diversas vezes foi pregadora ao ar livre, assim Wesley e Withefield na Inglaterra do século XVIII.

Quando Gunnar não podia dirigir os cultos na AD de São Cristovam, devido ás suas muitas enfermidades, quem os dirigia era sua esposa. Os cultos ao ar livre no Rio de Janeiro, promovidos no Largo da Lapa, na Praça da Bandeira, na Praça Onze e na Estação Central eram dirigidos por Frida. Era costume também que ela ministrasse estudos bíblicos. [7]

Sobre os cultos ao ar livre e a pregação ainda é importante salientar que Frida foi “… a missionária que aprendeu português mais rápido. Dois meses após sua chegada fez sua primeira pregação" [8]. Ivar Vingren, filho de Frida e Gunnar, em uma visita à CPAD, em 1985, faz a seguinte afirmação sobre sua mãe: “... tinha um dom de ensinar e pregar como ninguém, e por essa razão sofreu muita perseguição [com relação a seu ministério de ensino e pregação]” [9].

Além dos cultos ministrados ao ar livre e na Igreja em São Cristovam, Frida ainda possuía um trabalho relacionado aos cultos em presídios, fontes afirmam que Frida era a dirigente oficial de cultos realizados na Casa de Detenção aos domingos, elucidando assim alguns aspectos a respeito da ativa rotina da missionária sueca em solo carioca.

Outro aspecto de Frida é o da ensinadora e escritora. Frida foi a única mulher na história das Assembleias de Deus a escrever comentários da Revista Lições Bíblicas, a revista oficial das escolas dominicais da Assembleia de Deus no Brasil. Era Frida quem dirigia a Escola dominical na Igreja de São Cristovam e, além de ensinar, era conhecida por sua postura incansável e por sua capacidade de rapidamente resolver os mais diversos problemas que lhe desafiavam.

Frida, como ensinadora cristã, participou ativamente na direção do jornal assembleiano Som Alegre e escreveu para o Jornal Boa Semente. Ambos se fundiriam e se tornariam o jornal tradicional da denominação, o Mensageiro da Paz.

Frida escreveu diversos artigos para esses jornais, a maioria deles tratavam de questões como a vida cristã, a fé, os dons espirituais, entre outros. Dos artigos publicados de autoria da missionária se destacam: A Fé dos Santos, de Janeiro de 1930, para o jornal Som Alegre; Dons Espirituais, também de Janeiro de 1930, para o jornal Som Alegre; Cristo Ressuscitado, de Abril de 1931, pelo recém fundado Mensageiro da Paz; e Ganhando o mundo e perdendo a Alma, de Setembro de 1931 para o jornal Mensageiro da Paz. Um de seus artigos, intitulado de A Fé dos Santos, mostra bem o estilo apologético, ético, escatológico e doutrinário de seus escritos: Peleja pela fé uma vez entregue aos santos, diz o apóstolo Paulo. Se naquele tempo havia necessidade de tal advertência – ainda mais hoje que é o tempo da apostasia. Um dos maiores sinais da segunda Vinda de Cristo é a apostasia.

A fé dos santos” é  uma das doutrinas fundamentais que o apóstolo nos recomenda guardar. Sim, ele diz: “pelejai por ela” – a fé. Isto inclui tanto (a fé), o uso prático dela em nossa vida particular, como um trabalho defensivo.

Proclamemos, portanto, em primeiro lugar, a salvação completa de todos os vícios e pecados. Uma salvação que comece no coração pelo novo nascimento e depois penetre em todo seu ser – corpo, espírito e alma [10].

Frida foi uma das mais influentes ensinadoras da denominação desde sua fundação, ademais também foi a mulher a conquistar maior espaço de atuação como pastora, pregadora ensinadora, escritora e também como musicista. Sobre todas essas qualidades da jovem missionaria sueca Araujo comenta:

Frida, então, desenvolveu, junto com o marido, intensas atividades evangelísticas, abrindo frentes de trabalho em muitos lugares. Todo o trabalho social da igreja, bem como a direção dos grupos de oração, de visitadoras e de evangelização, ficou sob a responsabilidade da missionária. Dirigia também a Escola Dominical, e nos cultos, fazia a leitura bíblica inicial. Tocava órgão, violão e cantava hinos, ás vezes sozinha, as vezes em companhia do esposo. […] escreveu profundas mensagens evangelísticas, doutrinárias e de exortação, além de compor belos hinos para o louvor a Deus, e fazer traduções. Na Harpa Cristã há 24 hinos com o seu nome (16 versões e 8 autorias), todos de grande valor espiritual.

Frida foi, pode-se dizer, uma das chamas que o senhor ascendeu no mundo para iluminar o caminho de muitos pecadores, sua obra ao lado de seu esposo Gunnar mudou em definitivo a história religiosa de toda uma nação. O valor do trabalho da missionaria, seus sofrimentos e dificuldades são, certamente, incalculáveis. Sua dedicação como pastora, pregadora, ensinadora, musicista, mãe, esposa, editora e escritora são tamanhos que, quando olhamos pelos retrovisores da história a trajetória da maior denominação protestante do país, nenhuma mulher parece se destacar tanto quanto a valorosa missionária sueca e, de fato, nenhuma outra mulher parece ter sido de tamanha importância para o avanço da igreja de Cristo no Brasil. Sem o zelo missionário e o esforço evangelístico dos primeiros missionários pentecostais suecos e norte americanos no Brasil, a pouca força da igreja tradicional/história teria se feito sentir de modo muito menos intenso. Não fossem as privações e dificuldades superadas por cristãos suecos que, perseguidos em sua nação de origem, vinham ao Brasil com zelo fervoroso pelas almas, nossa nação seria outra. Uma nação muito mais católica e com uma influência protestante muito menor em termos de proporção e intensidade.

Nesse sentido, os evangelistas pentecostais anônimos e os conhecidos, como no caso de Frida, tem em suas histórias o fascinante legado de ter levado Cristo a uma nação, não apenas a nação branca de classe média e alta, mas a nação brasileira realmente carente e necessitada de um salvador em todos os sentidos. Cristo, levado pela chama pentecostal e pregado pelos lábios pentecostais, alcançou a população simples e necessitada do Brasil como nunca antes. Nasce, com os pentecostais, a religião mais negra do Brasil, a mais alegre, apaixonada e por vezes perseguida. Nasce o protestantismo brasileiro e, não apenas isso, em suas relações e trocas de informação e vitalidade com o catolicismo romano popular, nasce o Cristianismo Brasileiro, em alguns aspectos um movimento absolutamente valioso e belo, em outros por vezes problemático. Mas, diferente do protestantismo tradicional, um cristianismo que experiências, vivencias e convicção religiosa dialética e simbiótica. Não existem experiências na igreja pentecostal que sejam compradas ou rejeitadas a priori, apenas experiências adquiridas e experimentadas.

Frida morre na Suécia aos 49 anos, no dia 30 de setembro de 1940, sete anos após Gunnar (falecido em 1933). Após uma vida de trabalhos incessantes, lutas e as mais diversas dificuldades, após passar fome, noites de oração em agonia e lágrimas, além das enfermidades sofridas por ela e pelo esposo [11].

No túmulo de sua mãe Ivar escreveu a seguinte mensagem: “Aquele que leva a preciosa semente, andando e chorando, voltará sem dúvida com alegria, trazendo consigo os seus molhos” (Salmos 126.6).

 

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Veja também:

A missionária sueca perseguida no Brasil, internada em hospício e ‘esquecida’ pela História.


Referências bibliográficas:

  • ARAUJO, Isael de. Dicionário do Movimento Pentecostal, 1ª Edição. Rio de Janeiro. CPAD: 2007.

  • MESQUITA, Antônio Pereira de. (Editor). Mensageiro da Paz: Artigos Históricos, 1ª Edição. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.


Notas:

  • [1]  “Igreja Reformada sempre em Reforma” ou “Igreja reformada sempre se reformando”.
  • [2]  ARAUJO, 2007, p. 903.
  • [3]  Idem, p. 493.
  • [4]  Idem, p. 493.
  • [5]  Idem, p. 493.
  • [6]  Araujo comenta que “… o fato de Nyström ter uma posição definida sobre o assunto não o impediu de trabalhar com uma mulher a frente da obra, quando se fez necessário. Por outro lado, ele também não mudou sua opinião. Ele entendia que aquilo se tratava de algo excepcional” (ARAUJO, 2007, p. 493,494).
  • [7]  ARAUJO, 2007, p. 492.
  • [8]  Idem, p. 905.
  • [9Idem, pp. 905, 906.
  • [10VINGREN, Frida, Mensageiro da Paz: Artigos Históricos. CPAD, 2004, p. 32.
  • [11Em carta envia dia 27 de Maio de 1932 Frida escreve: “Somente o Senhor sabe da tribulação e do sofrimento que têm sido o preço do trabalho. Têm sido dias e noites de oração, lágrimas e agonia. Mas também não foi em vão pois temos visto a glória de Deus se manifestar. Tendo [sido] completamente esgotada dos nervos e também sofrida do coração, mas o Senhor tem me ajudado e curado muitas vezes” (ARAUJO, 2007, p. 905). Seu esposo Gunnar, confidencia o seguinte: “Durante o ano passado, eu tinha uma dívida. Então, para pagá-la, fizemos um esforço especial no último trimestre, e fomos forçados a viver com quase nada. A minha família teve que andar com roupa velha e usada. Minha esposa é testemunha de como eu tratei de compra somente o mais necessário. Mas eu agradeço ao Senhor por tudo, pois poderia ter sido muito pior” (ARAUJO, 2007, p. 905).

26 maio 2023

Cristianismo e Cultura

Por W. A. Dyrness [1]


Cultura é um conceito antropológico e está relacionado a toda invenção humana, seja ela material ou imaterial. Mas por sua vez, o homem criador de cultura, é um ser que tem sua origem no processo criativo de Deus. Daí, a importância de se analisar a cultura mais do que puramente antropológica, natural ou cientificamente, também teologicamente.

A cultura foi tema de estudos (dissertações) nossos nas áreas de História e de Teologia. E é nesse sentido que também produzimos vários textos e os publicamos neste blog, por exemplo:

Continuando este assunto, resolvi transcrever o texto abaixo, de W. A. Dyrness [3], no qual ele faz uma análise entre as relações do cristianismo com a cultura, sob a cosmovisão de um teólogo protestante e com um panorama histórico muito importante.


O cristão e a cultura


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As relações entre o cristianismo e a cultura têm variado segundo as circunstâncias e os modos específicos de percepção da cultura. Embora a ciência social moderna nos tenha dado uma compreensão mais pormenorizada da cultura, basicamente nos interessamos pela maneira que a obra divina da redenção – tanto nas Escrituras quanto na História – tem confrontado e transformado a ordem social no seu contexto criado, e também pelas formas de as comunidades crentes encararem o seu meio ambiente e corresponderem a ele. A Igreja confronta estas questões sempre quando procura viver na prática a sua fé e dar um testemunho fidedigno no lugar para onde Deus a chamou.

A palavra "cultura" originalmente referia-se ao cultivo da terra, e nunca perdeu completamente esta harmonia com a produtividade natural. Embora a palavra seja bastante usada de modo mais ligado às belas-artes, a cultura é melhor entendida como o padrão total do comportamento de um povo, e é neste último sentido que a palavra será empregada neste artigo. A cultura inclui todo o comportamento que é aprendido e transmitido pelos símbolos (ritos, artefatos, linguagem etc.) de um grupo especifico, e que se concentra em certas ideias ou pressuposições que chamamos de cosmovisão.


1. Estrutura Bíblica e Teológica

a) Antigo Testamento

A Bíblia não tem palavra correspondente a "cultura" como tal, mas fica claro desde o principio que Deus criou o homem e a mulher como criaturas de cultura. Os capítulos iniciais de Gênesis apresentam a ordem criada como uma comunidade inter-relacionada em que os relacionamentos com Deus, com a terra e com os seres humanos desempenhavam o seu papel. Há uma aliança subentendida entre o homem e Deus que deve ser vivida num contexto social por um povo encaixado na criação. Fica claro que a ordem era boa (Gn 1.31) e que o processo humano de exercer domínio também era bom.

A Queda que acompanhou a rebelião de Adão e Eva contra as instruções de Deus resultou numa comunidade desordeira e numa cultura que refletia a soberba humana (Gn 11.4). A intervenção divina, desde a escolha de Abraão até a libertação do Egito, deve ser vista em termos do propósito de Deus de restaurar e renovar a ordem criada através de um povo que refletisse o Seu caráter.

É um erro ver a Lei como uma expressão do desejo de Deus no sentido que Seu povo tivesse um sistema cultural sem igual. Boa parte da cultura de Israel coincidia com as culturas de outras nações do antigo Oriente Próximo. É verdade que o contato com outras culturas foi proibido quando Israel entrou em Canaã (Js 6.18), mas isto era devido ao fato de aqueles povos estarem sujeitos à ira de Deus por causa das suas iniquidades não por serem estrangeiros.

De fato, os antropólogos que estudam o AT reconhecem que Israel, devido à sua geografia, estava mais exposto às influências dos povos circunvizinhos do que qualquer outra nação antiga. Os estudiosos bíblicos têm começado a apreciar como as práticas bíblicas – e.g., a ornamentação do Templo ou até mesmo a ideia da aliança – têm paralelos estreitos nas culturas vizinhas. Desta forma, no processo da revelação, Deus não Se preocupou em dar ao Seu povo uma cultura especial, mas em intervir e revelar a Sua vontade de modo que instituições e práticas já existentes pudessem ser reformadas e tornar-se veículos apropriados da Sua glória. Isto, naturalmente, importava em proibir muitas coisas dentre as culturas vizinhas, e até mesmo aquelas instituições que Israel tinha em comum com seus vizinhos – tais como o sacerdócio e a monarquia – foram transformadas sob o impacto das instruções de Deus (e.g., Dt 17.14-20).

À medida que Israel prosperou durante a monarquia, esqueceu-se de que suas instituições eram um meio de promover os propósitos de Deus e passou a vê-las como fragilidades em si mesmas, de modo que Deus teve de expulsar Israel da sua terra e mandar habitar no meio de uma cultura estranha. Mesmo ali, Deus prometeu que um Rebento do tronco de Jessé levaria a efeito a renovação de toda a criação (Is 11); enquanto isso, israelitas teriam de procurar a prosperidade da terra onde habitavam (Jr 29.5-7).

b) Novo Testamento

O desejo de Deus de redimir e restaurar os padrões culturais humanos fica subentendido no ministério de Cristo, que veio com uma nítida consciência de estar cumprindo o propósito redentor do AT. Sua obra da nova criação, que abalou a terra, concentrou-se na ressurreição, na ascensão e no Pentecoste, que eram vistos como cumprimentos das promessas veterotestamentárias para a vida e a comunidade segundo Aliança.

A repetida observação de que o NT é indiferente à cultura é aplicável somente no caso de um conceito muito estreito do termo. A experiência que os cristãos têm com Cristo era considerada cheia de grandes implicações para a cultura (cf. o conselho de Paulo a Filemom). E se for levada em conta a visão veterotestamentária da renovação da terra e da humanidade, poderá ser visto que a obra terrena de Cristo deu início a um processo de transformação que será gloriosamente completado quando Ele voltar para julgar o mundo, uma consumação da qual, mediante nossa reação favorável em fé e obediência, já recebemos um antegozo.

Como no AT, o meio ambiente da Igreja no NT era altamente cosmopolitano. A administração romana e a língua e cultura gregas favoreciam o intercâmbio de ideias. Os escritores do NT frequentemente empregavam termos familiares a um amplo espectro de pessoas: João faz uso de palavras tais como logos ou sophia para expressar a realidade transformadora do Verbo que Se fez carne; Paulo demonstra que respeita uma grande variedade de práticas culturais (1 Co 10.23-33; Rm 14; CI 2.16; 1 Tm 4.3-4) para a libertação genuína que advém de estar em Cristo. Não se quer dizer com isto que o evangelho era compatível com todo e qualquer padrão cultural. Havia choques fundamentais com os judaizantes, que insistiam numa cultura judaica para todos os crentes com os gregos, que acreditavam que a sabedoria expressava uma ordem imanente que poderia ser descoberta pela razão humana. Para estes, a vinda de Cristo era o elemento decisivo; um novo sentido foi dado ao testemunho da Lei judaica e à procura grega da sabedoria humana.

2. A Perspectiva Histórica

a) A Igreja Primitiva

A igreja nasceu no meio de tradições intelectuais importantes. Alguns, como Justino Mártir, achavam que a boa cultura era uma reflexão do Logos divino e treinamento preliminar para o evangelho. Outros concordavam com Tertuliano, que insistia em dizer que a cultura era o foco do pecado e que a salvação envolvia uma separação ética das influências circunvizinhas. Mas logo ficou claro que, se a igreja quisesse comunicar a sua fé em termos que o mundo pudesse compreender, ela também, assim como a igreja neotestamentária, deveria fazer uso de expressões contemporâneas. As ideias de infinitude e eternidade, que os gregos relutavam em aplicar a Deus, eram usadas para descrever o Deus dos cristãos; a ideia de uma fonte transcendente de todas as coisas, oriunda do Oriente Próximo, influenciou as formulações posteriores da doutrina da Criação; e o mundo inteligível de Plotino foi usado para descrever a Nova Jerusalém e formular um caminho para Deus a partir do interior. Em outros aspectos, no entanto, como nos conceitos da História e da Providência, o cristianismo rompeu nitidamente com essas influências.

A conversão do Imperador Constantino (312 d.C.) alterou a posição do cristianismo no mundo, ou até o caráter do próprio cristianismo, e tornou possível a identificação de uma civilização especifica com o cristianismo. A tentação era considerar a fé de forma institucional, ao invés de ser o poder de Deus para transformar indivíduos e comunidades. Agostinho forneceu a primeira interpretação geral da história e da cultura em Cidade de Deus. Ali, argumentou que a história envolvia uma luta contínua entre a cidade dos homens, dominada pela cupiditas (ou cobiça), e a Cidade de Deus, governada pelo amor. Com a decadência da cultura clássica, Agostinho veio a sentir certo pessimismo no tocante às realizações humanas e à necessidade de confiar na graça de Deus. A Queda, se- gundo ele acreditava, criou uma divisão dentro da consciência humana, que poderia ser sanada somente pela submissão à Igreja e pela apropriação da sua arte e liturgia como modo de se obter um conhecimento amplo de Deus. A linguagem bíblica figurada passou, então, a tomar o lugar dos Clássicos como a base de uma "cultura crista" (cf. sua Da Doutrina Cristã), lançando, assim, o alicerce para a arte e adoração medievais.

Enquanto isso, os teólogos do leste ressaltavam a terra como um veículo em potencial do Espírito de Deus e viam a redenção em termos da divinização (Atanásio), uma restauração da sua "imagem" de Deus. Esta ideia reconquistou alguns ecos do AT que tinham sido perdidos no Ocidente, e levou às ricas tradições místicas das Igrejas Ortodoxas.

b) A Idade Média

A partir de Agostinho desenvolveu-se o conceito de que tudo na terra se conformava com algum padrão celestial. Bonaventura retratava o mundo como uma estrada que levava a Deus, ao longo da qual cada objeto O revelava. Para Aquino, a cultura como uma reflexão da finalidade natural do homem deve conformar-se à lei natural. Visto que "é natural ao homem ser um animal social e politico", a vida em sociedade é preceituada pela lei natural. A graça, a boa assistência da parte de Deus, aperfeiçoa, ao invés de julgar aquilo que é naturalmente bom, visto que a nossa finalidade está implícita em nossa natureza. Esta opinião compreendia a relevância eterna da realização humana – a nossa obra "dá frutos eternos", conforme a expressão de Dante, na Divina Comédia – mesmo quando reduzia seu significado histórico e, às vezes, causava lealdade não-critica a corporificações específicas da civilização cristã.

c) A Reforma

A crítica decisiva ao conceito medieval da cultura veio com a Reforma. A revolução copernicana e as viagens de descoberta focalizavam as possibilidades da vida terrestre. A cosmovisão medieval estática foi rompida, e os reformadores começaram a definir os propósitos cristãos não em termos de imaginação de algum padrão eterno mas de concretização de um ideal futuro. João Calvino enfatizava as intervenções soberanas de Deus e a vitória definitiva de Cristo que é ressaltada pela ressurreição. A ascensão deixava subentendido que todas as coisas ficam plenas da Sua glória e, portanto, o cristão pode ser otimista no tocante a esta ordem mundial. O reino dinâmico de Cristo avança através da Igreja, a fim de colocar toda a humanidade sob o domínio do evangelho.

Martinho Lutero, por outro lado, reagindo contra as pretensões medievais da cultura cristã, enfatizava o caráter pecaminoso da obra humana e a necessidade da graça. As formas culturais, portanto, não têm valor positivo e servem somente para refrear o mal. O ato espontâneo de amor que Deus produz no crente pode ser levado a efeito em qualquer profissão e, de qualquer maneira, não ficará plenamente manifesto a não ser na volta de Cristo. A Igreja leveda a sociedade, mas sua influência é frequentemente visível somente pela fé.

A corrente radical da Reforma – às vezes chamada anabatismo – retomou linhas ascéticas e perfeccionistas na Igreja, e ressaltava a conversão pessoal e uma comunidade cristã separada. O conceito deles no tocante ao caráter penetrante do pecado, a ênfase na volta iminente de Cristo e, talvez, a condição minoritária fizeram com que se tornassem pessimistas no tocante às possibilidades da cultura humana.

d) O lluminismo

A consciência da Reforma e a ênfase dada pela Renascença ao presente mundo contribuíram juntas para um processo de secularização no Ocidente em que o consenso cristão da Idade Média paulatinamente cedeu lugar aos alvos do estado secular. Os ideais cristãos frequentemente eram influentes na sociedade (como continuam sendo até ao dia de hoje), mas abria-se mão da realidade cristã. Já em fins do séc XVIII, durante o período chamado Iluminismo, o mundo era considerado em terma imanentes; Deus estava distante, sem Se envolver; o homem já se tornara maior de idade. Por trás desta fé subjazia a convicção de que "a situação humana é fundamentalmente caracterizada pelo conflito com a natureza" e não pelo conflito com Deus (H Niebuhr). Além disso, havia plena confiança da vitória nesse conflito, e o caminho ficou aberto para se identificar o cristianismo com a cultura europeia ocidental (e, posteriormente, norte-americana), e para o imperialismo cultural dos séculos XIX e XX.

A ideia de Hegel sobre o desenvolvimento imanente da realidade espiritual na cultura humana marcou uma etapa final da influência do cristianismo sobre a cultura europeia. Pouco depois, Nietzsche proclamou que Deus estava morto e que todos os valores deveriam ser reformulados. Karl Löwith chama o niilismo resultante "a única crença genuína de pessoas cultas", no fim do século XIX.

e) O Período Moderno

A Primeira Guerra Mundial pareceu confirmar o cinismo de Nietzsche, bem como a ausência de todas as influências cristãs sobre a cultura, e esmagou as esperanças de alguns que tinham acreditado na possibilidade da introdução do milênio. Não é de admirar que a maioria dos cristãos adotasse atitudes negativas diante da direção tomada pela cultura ocidental e se satisfizesse em lutar em frentes muito estreitas. Numa das primeiras tentativas de julgar criticamente a cultura moderna pós-cristã, T. S. Eliot argumentou, em 1934, que a literatura moderna era dominada por secularismo e individualismo. Mais recentemente, os evangélicos Francis Schaeffer e H. R. Rookmaaker traçaram a alienação da cultura moderna à capitulação dos valores cristãos desde a Renascença. B. I. Bell e C. S. Lewis descreveram a manipulação e a desumanização que resultaram da moderna sociedade de consumo, com as "sensibilidades famintas" consequentes. De modo mais positivo, Paul Tillich indicou que as formas culturais modernas ainda expressam uma dedicação básica religiosa ou absoluta, que possibilitam uma experiência de profundidade.

A influência do máximo alcance sobre o conceito cristão da cultura desde a Segunda Guerra Mundial tem sido levada a efeito pelo impacto crescente das ciências sociais. Estes estudos nos mostraram que a cultura é mais do que uma cosmovisão intelectual; é também um complexo de símbolos – incluindo objetos, palavras e eventos – por meio dos quais um povo se orienta no mundo. O significado e, portanto, as implicações da dedicação cristã revelam que permeiam a totalidade da cultura humana, possibilitando, assim, uma nova compreensão integral do evangelho. A comunicação transcultural da tem sugerido a necessidade de se aproveitarem os recursos da cultura emissora e da cultura receptora a fim de se obter uma compreensão mais completa da verdade cristã. Em todas as comunidades, há a consciência crescente de que a Palavra de Deus, e não alguma cultura especifica, corrigirá falhas e redimirá aspectos fortes, e toda percepção cultural da verdade cristã e das Escrituras pode ser usada para enaltecer a nossa compreensão do evangelho "até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus" (Ef 4.13).

3. A Tipologia

A história do encontro entre o cristianismo e a cultura demonstra certas reações típicas que refletem várias ênfases teológicas e contingências históricas. Correndo o risco de fazer divisões arbitrárias, podemos sugerir três conceitos típicos que têm sido influentes no pensamento evangélico.

a) O Anabatista

No decurso da história da cristandade uma corrente radical e rigorosa apareceu, enfatizando a natureza decaída desta ordem mundial e a necessidade de se criarem estruturas alternativas que sigam mais de perto o modelo do Senhor crucificado da Igreja. Tal conceito, que achou sua expressão mais clara na Reforma radical, tem continuado a influenciar os cristãos através das igrejas dentro dessa tradição e dos muitos grupos pietistas que compartilham desse mesmo espírito. Uma expressão extremada desse ponto de vista está em Watchman Nee, que acreditava que a salvação envolvia a separação total entre o crente e o sistema deste mundo. O cristão vive no mundo como num ambiente estranho – como um mergulhador na água – e assim deve desenvolver uma atitude de desprendimento. A obra terrena do cristão sempre está sujeita à sentença da morte: sua única esperança é ser finalmente libertado por Deus. Um proponente mais moderado deste conceito é Jacques Ellul, que argumentava que a civilização espera numa nova obra de Deus mediante a qual a Nova Jerusalém tomará o lugar desta cidade caída. Enquanto isso, continuamos a trabalhar, conscientes de que "estamos participando de uma obra de morte que está sob a maldição". Uma expressão mais positiva e influente desta tendência é oferecida por J. H. Yoder. Segundo Yoder, Jesus veio levar a efeito uma revolução social por meio da formação de uma nova comunidade voluntária, ao invés de um encontro com as autoridades. Cristo fundou uma nova ordem com padrões alternativos de liderança e estilo de vida que acabarão condenando e substituindo a velha ordem moribunda. O caminho da cruz, Yoder acredita, é uma "alternativa tanto a insurreição quanto ao quietismo". Este conceito tem dado expressão nítida aos elementos apocalípticos e transcendentes do cristianismo, e muitos dos seus representantes têm exercido uma forte influência profética, embora tenham hesitado em ocupar-se em esforços públicos ativos para melhorar as condições existentes.

b) O Conceito Anglo-Católico

Outros cristãos têm insistido mais na distribuição entre as esferas da graça e da natureza. Continuando a tradição medieval, pensadores com esta tendência acreditam que a área da cultura humana é indiferente aos valores religiosos. J. H. Newman deu expressão clássica a este conceito há um século, quando declarou que a cultura tem valor no seu próprio nível (natural), mas não pode ser o ambiente da virtude: "O cultivo intelectual não é a causa, nem o antecedente apropriado, de qualquer coisa sobrenatural". No presente século, C. S. Lewis adotou um ponto de vista semelhante. Ele acredita que o NT é inconfundivelmente frio na sua maneira de tratar a cultura, sendo que é necessário descartá-la no momento em que entra em conflito com o serviço de Deus. O bem da cultura pode formar uma analogia com o bem cristão, mas não é a mesma coisa – Lewis confessa não saber como se pode harmonizar bens espirituais e culturais. Estes pensadores dão, com toda a razão, prioridade aos valores espirituais, mas não conseguem sugerir perspectivas criticas formadas pela verdade cristã e, portanto, tendem a apoiar o status quo cultural.

c) O Conceito Reformado

Desde Justino Mártir têm havido cristãos com a convicção de que a cultura pode ser levada cativa ao senhorio de Cristo. Enfatizando o poder criador de Deus e a obra vitoriosa de Cristo, estes pensadores tendem a ser mais otimistas no tocante às estruturas humanas, pois têm a impressão que por mais iníquas e depravadas que certas instituições talvez pareçam ser, elas não estão fora do alcance da soberania de Cristo. Calvino deu expressão clássica a esta posição, e tem sido seguido pela tradição do cristianismo reformado e presbiteriano. No início do século XX, Abraham Kuyper expressou de modo conciso este ponto de vista, que coloca a glorificação do próprio Deus no centro do pensamento cristão a respeito da cultura. Toda a labuta humana exibe coletivamente a imagem de Deus e, mediante a graça geral, é dada para honrar a Cristo, o mediador da Criação. A cultura, portanto, pode ser o meio de controle da influência do pecado e, por causa da obra de Cristo que restaura a criação dentro das suas próprias raízes, pode começar a refletir o triunfo do reino restaurado de Cristo, que será consumado na Segunda Vinda. Kuyper acredita que o desenvolvimento genuíno na sociedade transbordará para a eternidade (Ap 21.24), embora os últimos dias tenham de demonstrar uma apostasia nas coisas espirituais. Este conceito tem tido muita influência nas sociedades onde se faz presente, e exibe uma ênfase atraente ao senhorio de Cristo e à realidade do Seu reino; sua fraqueza tem sido uma tendência ao triunfalismo que subestima o poder e a extensão da iniquidade.

Conclusão Teológica

Com base nas evidências examinadas, é possível sugerir algumas diretrizes para uma abordagem cristã à cultura? Alguns concordam com H.R Niebuhr em que as relatividades da nossa fé e da nossa posição sugerem que deixemos abertas as nossas opções. Certos parâmetros bíblicos, no entanto, podem ser oferecidos. Os evangélicos têm se preocupado, com razão, em evitar que as influências culturais não desafiem nem diluam a autoridade de Cristo e da Sua Palavra. Mas é claro que este problema não pode ser resolvido ao se evitar a cultura; é impossível dedicar-se a Cristo em isolamento da nossa cultura. Alguma medida de solidariedade com nosso meio ambiente é inevitável; somos produtos dele e, como cristãos, somos responsáveis diante dele para pensarmos sal e luz. Além disso, o pecado é a rebelião contra Deus e Sua Palavra, de modo que a luta básica na cultura não é contra a natureza, mas contra as forças do mal. Segue-se que não podemos evitar a batalha em prol da justiça na esfera cultural. Conforme Milton: "Ser ingênuo e ignorante no tocante às opções morais é uma coisa; uma outra coisa bem diferente é ter consciência das opções e escolher a obediência a Deus". A pureza visível, pois, embora provenha de Deus, não pode ser concretizada senão mediante provações, e as provações provêm daquilo que é contrário.

A necessidade básica para os cristãos no decurso das eras tem sido uma fé suficientemente grande para incluir a totalidade dos elementos bíblicos – que vê Deus como Criador e Sustentador; que honra a Cristo como Logos e Senhor; e que vê na redenção tanto a reconciliação do pecador quanto a renovação da ordem criada. Esta atitude leva um otimismo realista, porque a dedicação a Deus liberta-nos da subserviência aos princípios menos importantes e ajuda-nos a mantê-los na sua perspectiva correta. A Escritura é a norma para todos os povos e todos os tempos, mas o elemento supracultural sempre deve ser expresso em alguma forma cultural especifica, mesmo que tais formas sejam transformadas à medida que o Espirito Santo aplica a realidade do reino. Por ora, em nossas famílias e comunidades, oremos para termos o prazer da criança, que fica atônita simplesmente por existir, e a sabedoria do erudito, a fim de discernirmos a verdade e batalharmos por ela. Porque as "pequenas ações de pequenos homens e pequenas mulheres, todas incompletas e imperfeitas..., são cruciais e têm seu lugar nos grandes planos de Deus" (H. R. Rookmaaker).

Fonte:

DYRNESS, William A. Cristianismo e Cultura. Apud: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. I. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 375 a 380.

Notas:

  • [1William A. DYRNESS “… é  um teólogo americano e professor de teologia e cultura no Seminário Teológico Fuller . Ele ministra cursos de teologia, cultura e artes e é membro fundador do Brehm Center… Dyrness trabalha na interseção da teologia reformada, evangélica, global e ecumênica. Suas numerosas publicações podem ser caracterizadas como uma tentativa de lidar com o encontro dramático entre a fé e a cultura humana” (Wikipedia: William Dyrness )”. Acesso em: 25/05/2023. 
  • [3Texto copiado na íntegra, com algumas adaptações e aplicado ao Novo Acordo Ortográfico Brasileiro..

06 maio 2023

1984 – George Orwell – Parte 1 – Capítulo2: crime de pensamento

Por Alcides Barbosa de Amorim

  

“Ele [Winston] já estava morto, refletiu. Parecia-lhe que só agora, quando tinha começado a formular seus pensamentos, é que ele tinha dado um passo decisivo. As consequências de cada ato estão incluídas no próprio ato. Ele escreveu: Crime de pensamento não implica em morte: crime de pensamento É morte” (ORWELL: 1984. O. C., pág. 61).


Continuando a reflexão sobre o livro 1984 de George Orwell, agora queremos fazer um resumo da parte 1, capítulo 2, e destacar também o vídeo da Gazeta do Povo abaixo.

O capitulo 1 termina com o personagem principal do livro, Winston, assustado porque havia deixado sobre a mesa o diário no qual estava escrito por toda parte a frase FORA GRANDE IRMÃO, enquanto alguém bate à porta de seu apartamento. Mas não era ninguém ligado ao Grande Irmão, ao Partido; era sim, a Sra. Parsons chamando-o de “camarada” e pedindo para ele arrumar a pia de sua cozinha que havia entupido. Ela era esposa de Tom – colega de Winston no Ministério da Verdade –, ambos vizinhos que moravam no mesmo andar do prédio. Ela tinha cerca de trinta anos, embora parecesse muito mais velha.

O marido da Sra. Parsons não estava em casa. E Winston observa que havia entre a bagunça do apartamento um cartaz em tamanho real do Grande Irmão e o habitual cheiro de repolho cozido, típico do prédio inteiro, mas ali ele era atravessado por um cheiro mais agudo de suor. Mas chamar alguém de senhora não era um termo muito utilizado, embora ele a trata assim no decorrer de todo o capítulo. O termo “camarada”, utilizado por ela era sim o costume do partido...

Embora doente e com dificuldade, Winston conserta a pia da Sra. Parsons.

Enquanto isto, aparecem as crianças da Sra. Parsons, um garoto de nove anos e sua irmã de cerca de dois anos mais nova, por trás da mesa e o ameaçava, ele com uma pistola automática de brinquedo, e ela com um fragmento de madeira, ambos fazendo o mesmo gesto e gritando: “mãos ao alto!” Estavam vestidos com o uniforme dos espiões. “‘Você é um traidor!’, gritou o garoto. ‘Você é um criminoso do pensamento! Você é um espião eurasiático! Vou atirar em você, vou vaporizar você, vou mandar você para as minas de sal’’! De repente, ambos estavam pulando em volta dele, gritando ‘Traidor!’ e ‘Criminoso do Pensamento!’”. Winston fica um tanto inquieto e assustado pois “… havia uma espécie de ferocidade calculista no olho do menino, um desejo bastante evidente de bater ou chutar Winston e uma consciência de quase ser grande o suficiente para fazê-lo. Era uma coisa boa que ele não estivesse segurando uma pistola de verdade, pensou Winston” (ORWELL: 1984, pág. 51).

Segundo a mãe das crianças, elas estavam barulhentas por não terem ido ver a execução, isto é, o espetáculo popular no Parque: enforcamento de alguns prisioneiros eurasiáticos, culpados de crimes de guerra, que acontecia cerca de uma vez por mês.

Depois de terminada a tarefa, Winston se despede da Sra. Parsons, mas leva um golpe de estilingue do garoto, mesmo antes de sair, além de ser chamado de “Goldstein”, isto é, sendo comparado ao traidor do partido. E quase todas as crianças de hoje em dia são horríveis, pensa Winston. Eram como espiões 

… sistematicamente transformados em pequenos selvagens ingovernáveis, e nem mesmo isso produzia neles alguma tendência a se rebelar contra a disciplina do Partido. Pelo contrário, eles adoravam o Partido e tudo o que estava ligado a ele… Toda a ferocidade deles era voltada para fora, contra os inimigos do Estado, contra os estrangeiros, traidores, sabotadores, criminosos do pensamento. Era quase normal que as pessoas com mais de trinta anos tivessem medo de seus próprios filhos. E com razão, já que não passava uma semana sem que o jornal The Times publicasse um parágrafo descrevendo como um bisbilhoteiro – a frase que normalmente se usava era ‘herói mirim’ – tinha ouvido alguma observação comprometedora e denunciado seus pais à Polícia do Pensamento (Idem, pág. 54).

Depois disto, Winston lembra de O’Brien, o qual parecia pensar como ele, sem a alienação de que viviam principalmente as crianças de seus dias. Há algum tempo atrás, alguém, que provavelmente, fosse O’Brien, lhe tinham dito – em sonho – sobre falar com ele fora da escuridão, num lugar claro. Por acaso Winston lembra disto e pensa: bem que isto poderia se tornar realidade.

Em casa, Winston ouve pela teletela a notícia de um conflito ocorrido com a Índia e a vitória do Exército de seu governo. Enquanto pensa, o relógio da teletela informa que é hora de ir ao trabalho e Winston até se sente revigorado com este fato.

Bem, sobre o que Winston estava escrevendo em seu diário, sua mensagem para o futuro, o fato de ter um diário escrito, isto já o denunciaria e ele se sentia um homem morto. “Ele já estava morto, refletiu. As consequências de cada ato estão incluídas no próprio ato. Ele escreveu: Crime de pensamento não implica em morte: crime de pensamento É morte” (Idem, pág. 61).

Já que se sentia um homem morto não adiantava nada se esconder. A saída era permanecer vivo o máximo possível. Mas resolveu não esconder o diário. Deixou-o numa gaveta com uma marca - um pouco de poeira com um fio de cabelo - que denunciariam caso alguém o mexesse… 

Winston, um homem que já se considerava morto por causa de sua opinião?

Como dissemos no texto que encabeça este post, Winston pensou isto ao formular e registrar seus pensamentos. Era um caminho sem volta. E qual a consequência ou consequências disto? Quero refletir por um pouco na nossa realidade político-cultural brasileira. Hoje, principalmente no meio acadêmico e outras esferas que são responsáveis por influenciar a sociedade – imprensa, artistas, escolas etc. – as pessoas estão na sua grande maioria tomadas pela ideologia do pensamento único e não admitem ninguém pensar de modo diferente. Querem a todo custo tornar em “não-pessoas” os conservadores. O preço para quem deseja romper com esta realidade é muito alto. Veja, por exemplo, no vídeo abaixo, a entrevista do professor Gabriel Giannattasio, professor da UEL – Universidade de Londrina (PR), com a jornalista Cristina Graeml, onde ele comenta sobre seu “Livro proibido: totalitarismo, intolerância e pensamento único na Universidade” e descreve  “… como se deu a ocupação da esquerda no meio acadêmico universitário e como é a perseguição a professores e alunos que ousam levar pensamentos e autores conservadores para dentro das universidades brasileiras”.

Será que os conservadores se tornarão “não-pessoas”, se considerarão mortos ou terão alguma esperança?


Referências bibliográficas:

  • ORWELL, George. 1984 - George Orwell – Livro em PDF. Disponível por Gazeta do Povo. 1949. In: <1984 - George Orwell>. Pág. 044 a 062.