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09 dezembro 2023

Tentações militares e outras tentações

Por:  Mary Del Priori Renato Venancio


Governo Populista: imagem adaptada

O fim do Estado Novo sugeria que as antigas oligarquias tinham chance de retornar ao comando político. Mas isso só na aparência, pois o Brasil dos anos 1940 era profundamente diferente daquele que havia existido durante a Primeira República. Dentre essas mudanças, talvez a mais importante tenha sido a que dizia respeito ao novo eleitorado que então surgira.

Em consequência das reformas educacionais e da incorporação do voto feminino, os índices de participação eleitoral, em declínio desde fins do Império – quando os analfabetos foram excluídos do direito de votar –, aumentam sensivelmente. Por volta de 1945, além de mais numerosos do que nunca, os eleitores brasileiros também apresentam um perfil cada vez mais urbano. Um exemplo extremo dessa situação pode ser percebido ao compararmos o estado do Amazonas com a cidade do Rio de Janeiro: enquanto a primeira unidade possuía 28.908 eleitores, o Distrito Federal desfrutava de um colégio eleitoral de 483.374 homens e mulheres.

Como seria de esperar, tal mudança implica uma alteração profunda no perfil dos candidatos e dos votantes. Estes ficam cada vez menos sujeitos aos coronéis, enquanto aqueles não mais precisam ser originários da elite agrária, dependendo agora do próprio carisma, da representatividade junto aos trabalhadores ou de uma máquina clientelista capaz de conceder favores e empregos. Uma vez mais se deve reconhecer a sagacidade do antigo ditador em perceber essas transformações, explorando-as habilmente. A conjugação entre a propaganda política, que fazia dele o “protetor dos pobres”, e a utilização de sindicatos e de institutos de previdência garante seu prestígio entre os eleitores urbanos, tornando-o parcialmente independente das antigas oligarquias. Mais ainda: através do PTB, Getúlio imprime uma dimensão nacional a seu projeto político.

Após o fim do Estado Novo, a amarga experiência eleitoral vivida pelos egressos do antigo Partido Republicano Paulista, em contraste com o retorno do ex-ditador ao poder, ilustra esse estado de coisas. Por isso, para muitos pesquisadores, a década de 1950 é um momento de consolidação de uma prática política definida como populismo: multiplicam-se os políticos que apelam para as massas urbanas e não mais consideram as elites como portadoras de um modelo a ser seguido.

No caminho de retorno de Getúlio Vargas existia, porém, um obstáculo: o Exército. Como vimos, os generais o haviam deposto em 1945. Seu retorno à presidência em 1951 implicava negociações. Estas, por sua vez, são bem-sucedidas. Para muitos militares, Getúlio, por ser um político com forte apelo popular, servia como antídoto ante o risco do comunismo. Em 1945, o PCB, apesar de legalizado às vésperas das eleições, consegue eleger catorze deputados e Luís Carlos Prestes como senador; o que representa o voto de aproximadamente 12% do eleitorado brasileiro, sendo que em algumas cidades, como o Rio de Janeiro, tal cifra atinge 20%.

Nessa época, um impasse sobre os rumos que devia tomar a sociedade brasileira divide o Exército. Até o início dos anos 1940, o debate a respeito do desenvolvimento nacional é dividido em duas correntes: uma defende a “vocação agrícola” de nossa sociedade e a outra se posiciona a favor da industrialização acelerada. Ora, durante o governo Dutra, a primeira posição perde o sentido, pois a maior parte da economia brasileira passa a depender do desenvolvimento industrial.

Devido às transformações implementadas ao longo do primeiro governo de Getúlio Vargas, o modelo de industrialização se depara com sérias dificuldades. Não se trata mais de simplesmente substituir os produtos de consumo importados por similares nacionais, mas sim de incrementar um modelo de desenvolvimento industrial articulado. Em outras palavras, tratava-se de saber como seria possível produzir internamente automóveis, navios e maquinário ligado à mecânica pesada, bens que dependiam de capitais elevados e de tecnologia avançada.

Diante de tais questões surgem profundas divisões no seio das elites brasileiras, incluindo aquelas pertencentes às forças armadas. De forma esquemática, é possível identificar aqueles que, de um lado, defendem o nacionalismo econômico e a intensiva participação do Estado no desenvolvimento industrial. Na outra posição estavam os partidários de que o segundo ciclo de nossa industrialização devia ser comandado exclusivamente pela iniciativa privada brasileira, associada a capitais estrangeiros.

Embora não fosse frontalmente contrário aos investimentos internacionais, Getúlio era identificado à corrente nacionalista. Foi justamente com base nos segmentos do Exército filiados a essa tendência que ele consegue apaziguar temporariamente os quartéis. No entanto, a trégua não dura muito. Dentre o grupo identificado ao segundo modelo de desenvolvimento industrial, havia uma parcela importante da elite civil, reunida em torno da UDN. De certa maneira, a fragilidade eleitoral desse grupo era compensada pelo prestígio que contava junto a importantes segmentos das forças armadas.

As circunstâncias políticas internacionais em grande parte favorecem a UDN. Conforme mencionamos anteriormente, durante a Segunda Guerra Mundial, na luta contra o nazifascismo, Estados Unidos e União Soviética se aproximam. A postura anticomunista por parte dos governos capitalistas declina. No Brasil, legaliza-se o PCB, ainda que por um curto período. No entanto, após a guerra, a posição norte-americana sofre uma inflexão: o comunismo torna-se a principal ameaça. Razões para isso? Por volta de 1950, o sistema comunista havia deixado de ser uma experiência isolada, sendo agora compartilhado por um número crescente de países do Leste Europeu, tais como Iugoslávia (1945), Bulgária (1946), Polônia (1947), Checoslováquia (1948), Hungria (1949) e República Democrática Alemã (1949); assim como asiáticos, Vietnã do Norte (1945), Coreia do Norte (1948) e China (1949).

O quadro mundial torna-se ainda mais delicado em razão do desenvolvimento de armas atômicas. Em 1945, os Estados Unidos, nos ataques a Hiroshima e Nagasaki, demonstraram as consequências desse poderio. Quatro anos mais tarde, foi a vez de a União Soviética revelar ao mundo seu arsenal atômico em testes no deserto do Cazaquistão. Em um contexto como esse, um confronto entre Estados Unidos e União Soviética colocaria em risco a sobrevivência do planeta. Essa situação leva à transferência dos conflitos para os países subordinados a cada uma dessas potências. Como seria de esperar, a nova política internacional concede pouca autonomia às áreas de influência; atitude que implica ver nas políticas nacionalistas ora uma guinada rumo ao capitalismo – no caso do bloco soviético –, ora um passo em direção ao comunismo – no caso do bloco norte-americano.

No início dos anos 1950, parte do Exército brasileiro e a União Democrática Nacional, que chegou a contar com um pequeno agrupamento de socialistas, depois estabelecido em partido próprio, transitam para posturas cada vez mais afinadas com o anticomunismo. Acusa-se Getúlio de tramar novos golpes, agora com base nos setores nacionalistas e sindicais.

Dessa forma, a Guerra Fria, que inicialmente contribui para o retorno do ex-ditador, visto como uma forma de contrabalançar a influência dos comunistas, torna-se um elemento desfavorável a sua continuidade no poder. Ciente dessa fragilidade, Vargas procura cooptar os opositores. No Exército, promove hierarquicamente, a partir de 1952, grupos antinacionalistas, e o mesmo é feito em relação aos políticos da UDN, a quem são oferecidas pastas ministeriais. A tentativa de cooptação estende-se aos comunistas: em 1952, deixa de ser obrigatória a apresentação de atestado ideológico – fornecido pela polícia – aos dirigentes sindicais.

Paralelamente a isso, é aprofundada a política econômica nacionalista, por intermédio de leis de grande impacto na opinião pública, como aquelas referentes à limitação de remessas de lucros de empresas estrangeiras ou à criação da Petrobras, que passa a deter o monopólio da exploração do petróleo brasileiro. A ousadia do presidente não para e, em 1953, Getúlio procura reforçar sua base popular indicando um jovem político com amplo apoio sindical para ocupar o cargo de ministro do Trabalho. Seu nome: João Goulart.

O novo líder trabalhista não esconde a opção política, atendendo reivindicações de reajustamento do salário-mínimo, aumentando-o em 100%. A crise se instala e o Exército, uma vez mais, é o porta-voz do descontentamento das elites. Em fevereiro de 1954, vem a público o Manifesto dos coronéis. O texto é um exemplo do radicalismo comum ao período da guerra fria. Queixando-se de que o aumento não era extensivo às forças armadas, os oficiais aproveitam a ocasião para denunciar a ameaça da “república sindicalista”, assim como a “infiltração de perniciosas ideologias antidemocráticas”, ou então para alertar a respeito do “comunismo solerte sempre à espreita...” pronto a dominar o Brasil.

Em vez de cooptar as elites, Getúlio consegue assustá-las.

Diante da crise, Vargas afasta João Goulart do cargo, mas mantém o aumento do salário-mínimo. A UDN, por meio de seu mais radical líder, Carlos Lacerda, multiplica as acusações de corrupção, de nepotismo e de uso de dinheiro público para promover jornais favoráveis ao governo. Por outro lado, as articulações políticas “acima dos partidos” acabam por afastar os aliados tradicionais. Em junho de 1954, o Congresso vota o impeachment de Getúlio Vargas. O pedido é rejeitado; mantêm-se, entretanto, fortíssimas pressões pela renúncia. Em agosto, um atentado a Carlos Lacerda, no qual estavam envolvidos elementos próximos a Vargas, sela definitivamente o destino do presidente. Um novo golpe militar é posto em marcha, mas acaba não dando certo. Vejamos por quê.

Nas forças armadas, paralelamente aos nacionalistas e antinacionalistas, havia aqueles dispostos a garantir que a Constituição fosse respeitada. Alguns autores definem esse segmento como “legalista”. A suspeita de que o presidente estava tramando um novo golpe levou os antinacionalistas a conseguirem apoio dos legalistas. É nesse contexto que se interpreta o suicídio de Getúlio Vargas, ocorrido em 24 de agosto de 1954: um derradeiro gesto político, através do qual ele consegue sensibilizar as massas populares, ao mesmo tempo em que esvazia a aliança golpista no interior das forças armadas.

Dessa vez, o presidente acerta: os levantes populares após o suicídio inviabilizam a ação militar. No período que se estende até 1955 são preparadas novas eleições presidenciais; a UDN busca um candidato militar, na figura do general Juarez Távora, e o PTB, por sua vez, procura se aproximar do PSD, que tem como candidato Juscelino Kubitschek. Combatendo o salário-mínimo, o direito de greve e o ensino gratuito, os udenistas são novamente derrotados e Juscelino e o vice-presidente eleito, João Goulart, não encontram um ambiente político favorável. Em 11 de novembro de 1955, alegando a necessidade de maioria absoluta nas votações presidenciais, os quartéis voltam a dar sinais de descontentamento. Uma vez mais, a corrente militar antinacionalista procura o apoio dos legalistas, mas estes garantem a posse do novo presidente.

Como se pode perceber, após 1945, as intervenções militares no sistema político não são um fato isolado, mas sim uma prática rotineira, que se repetirá em 1961, alcançando em 1964 o sucesso esperado. Voltemos, porém, a Kubitschek. Ele representou uma ruptura? Ora, no melhor estilo do PSD mineiro, do qual ele era originário, a resposta é sim e não. Em outras palavras, o novo presidente procura conciliar bandeiras comuns aos nacionalistas e antinacionalistas. Promove os primeiros no Exército, aprofunda práticas de intervencionismo estatal, mas, ao mesmo tempo, abre a economia para os investimentos estrangeiros.

O novo governo, aliado do PTB, guarda traços populistas. No entanto, a política econômica representa uma alteração profunda em relação ao modelo precedente. Durante os dois governos Vargas, a prioridade do desenvolvimento nacional consiste no crescimento da indústria de base, produtora de aço ou de fontes de energia, como o petróleo e a eletricidade. Nesse primeiro modelo, a iniciativa estatal predomina e os recursos para o crescimento econômico advêm da agricultura de exportação. Pois bem, Juscelino Kubitschek altera essa forma de crescimento industrial, instituindo o que os historiadores economistas chamam de tripé: a associação de empresas privadas brasileiras com multinacionais e estatais, estas últimas responsáveis pela produção de energia e insumos industriais.

A diferença desse modelo em relação ao anterior reside no fato de os bens duráveis, como foi o caso da produção de automóveis por multinacionais, passarem a ser o principal setor do processo de industrialização. Graças ao investimento das empresas estrangeiras, a nova economia brasileira tornar-se-ia mais independente em relação às crises do setor agroexportador. No entanto, o modelo tripé tem consequências nefastas. Por dispor de fartos recursos, a produção das multinacionais podia crescer em ritmo mais acelerado do que a produção de base, implicando aumento das importações de insumos industriais, fator responsável pelo progressivo endividamento externo do Brasil. Mais ainda: para estimular a implantação dessas empresas, foi facilitada a remessa de lucros para as matrizes, o que implica o desvio de valiosos recursos da economia brasileira.

A curto prazo, porém, o modelo industrial de Juscelino foi um sucesso. A economia atinge taxas de crescimento de 7%, 8% e até 10% ao ano. Isso permite que um ambicioso Plano de Metas – popularmente conhecido como “50 anos em 5” – alcance um estrondoso sucesso. Rodovias são multiplicadas e o número de hidrelétricas cresce além do previsto, o mesmo ocorrendo com a indústria pesada. Na área de produção de alimentos, o presidente estimula uma tendência, existente desde os anos 1930, que consiste em ampliar a fronteira agrícola em direção a Goiás e Mato Grosso – o que, aliás, leva a novos extermínios de povos indígenas. Coroando essa política ambiciosa, a capital é transferida: no cerrado do Brasil Central, surge Brasília.

Diante de tais feitos, a própria UDN abandona provisoriamente o discurso anticomunista em prol de críticas à má gestão dos negócios públicos, à corrupção e à inflação que se intensifica no período. Apesar disso, respira-se certa tranquilidade política, pois o crescimento econômico também permite o aumento dos salários – que, em termos reais, no ano de 1959, atingem valores até hoje não ultrapassados –, reforçando o apoio dos trabalhadores ao PTB, base aliada do governo juscelinista.

Mas a calmaria não dura muito. Ao longo da redemocratização surgem vários partidos políticos que, na maior parte do tempo, não chegam a ameaçar o controle das três agremiações dominantes. Quase sempre de pouca duração, esses pequenos partidos às vezes tinham designações pitorescas, como União Social pelos Direitos do Homem, Partido Industrial Agrícola Democrático ou Partido Nacional Evolucionista, para mencionarmos apenas alguns exemplos. Vez por outra, porém, a fragmentação partidária permitia a ascensão de políticos não vinculados às organizações tradicionais. Um exemplo bem-sucedido dessa trajetória foi o de Jânio Quadros, eleito sucessivamente, a partir de 1947, vereador, deputado estadual, prefeito e governador pelo Partido Democrata Cristão.

O anticomunismo e a retórica moralista de Jânio em muito agradava aos udenistas. Misturando o discurso conservador com práticas populistas, Jânio consegue o impossível: ser de direita e conquistar o apoio das massas. Não é de se estranhar a aproximação da UDN, selando uma aliança para as eleições presidenciais de 1960. Do outro lado do espectro das forças políticas, reproduz-se a aliança PSD-PTB, com a indicação do general Lott, da ala nacionalista do Exército; pela segunda vez, também era candidato à presidência Ademar de Barros, líder populista paulista, concorrendo pelo Partido Social Progressista.

A vitória janista foi esmagadora: o candidato conseguiu 50% de votos a mais do que o general Lott, e mais que o dobro de Ademar de Barros. A UDN finalmente chega ao poder, mas trata-se de uma vitória ambígua. O novo presidente governa sem consultar a coligação de partidos que o elegeu e seu ministério inclui inimigos dos udenistas, assim como pessoas escolhidas pelo critério de amizade. No Exército, Jânio promove grupos antinacionalistas e, em relação ao Congresso, tem uma postura agressiva, declarando publicamente tratar-se de um “clube de ociosos”.

Visando combater os altos índices de inflação herdados do governo anterior, Jânio implementa uma política econômica austera. No plano internacional, desagrada à UDN, pois opta por uma política de não alinhamento aos Estados Unidos, valorizando acordos comerciais com países do bloco comunista. A política econômica coerente e a inovadora política diplomática convivem com medidas sem nenhuma importância, mas com grande repercussão nos meios de comunicação, como as proibições do uso de biquínis em desfile de misses, do hipnotismo em lugares públicos, de corridas de cavalos em dias de semana, de brigas de galo... Jânio também condecora Che Guevara, em uma aproximação com Cuba, talvez tentando repetir a política internacional ambígua de Getúlio Vargas, responsável por acordos vantajosos com os Estados Unidos.

Apesar do tom autoritário, quando não carnavalesco, de seu governo, o risco de instabilidade política parecia diminuir, a não ser por um importante detalhe: segundo a legislação da época, votava-se para vice-presidente separadamente do cabeça de chapa. Ora, na eleição de Jânio, João Goulart havia sido novamente eleito ao cargo. Após pouco mais de seis meses no governo, o presidente procura explorar a delicada situação renunciando.

Conforme o presidente, no livro História do povo brasileiro, seu objetivo era forçar uma intervenção militar: “primeiro, operar-se-ia a renúncia; segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório – visto que a João Goulart [...] não permitiriam as forças militares a posse, e, destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro, ou bem se passaria a uma fórmula, em consequência da qual ele mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro do novo regime institucional, ou bem, sem ele, as forças armadas se encarregariam de montar esse novo regime [...]”. O aprendiz de ditador fracassa devido à vacilação dos chefes militares. Instala-se, então, uma grave crise política, cujo desfecho tem uma data marcada: 31 de março de 1964.

Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

  • Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010. Cap. 29, pág. 191 a 197.

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