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25 novembro 2023

Trabalhadores do Brasil

Trabalhadores do Brasil

Por Mary Del Priori & Renato Venancio



A permanência de Getúlio Vargas no poder não teria sido possível sem o extraordinário sucesso econômico alcançado durante seu primeiro governo. Para se ter noção do significado profundo desta afirmação, basta mencionar que, por volta de 1945, nossa industrialização finalizava seu primeiro grande ciclo. Em outras palavras, pela primeira vez, a produção fabril brasileira ultrapassa a agrícola como principal atividade da economia. Nesse período também assistimos ao surgimento da indústria de base, ou seja, aquela dedicada à produção de máquinas e ferramentas pesadas, à siderurgia e metalurgia e à indústria química.

Surpreendentemente, essas transformações ocorreram em uma conjuntura internacional adversa. É bom lembrar que a crise de 1929 e a depressão econômica que a seguiu fizeram que, durante a primeira metade da década de 1930, os preços internacionais do café diminuíssem pela metade. Mesmo assim, a economia brasileira apresentou, entre 1930 e 1945, taxas de crescimento próximas a 5% ao ano. Contudo, esse desenvolvimento não ocorre de maneira equilibrada: a atividade industrial apresenta taxas de crescimento anual de três a sete vezes mais elevadas do que a agricultura. Esta, além de sofrer diminuição pela metade em relação aos anos 1920, registra uma forte tendência à estagnação.

A industrialização acelerada teve efeitos não só econômicos, mas também políticos e sociais. Como é sabido, a fábrica tem na cidade seu espaço privilegiado e, por isso, a Era Vargas – incluindo aí seu segundo governo, entre 1950 e 1954 – é caracterizada como uma época de intensa urbanização. Em 1920, por exemplo, apenas dois em cada dez brasileiros residiam em cidades; vinte anos mais tarde essa mesma relação era de três para dez; na década de 1940, tal proporção tornara-se equilibrada: quatro em cada dez brasileiros moravam em áreas urbanas. A formação de novas cidades e o crescimento das já existentes estimulavam, por sua vez, a multiplicação de trabalhadores não vinculados às tradicionais atividades agrícolas e de industriais que não eram fazendeiros, como Roberto Simonsen, fundador do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo – embrião da Fiesp. Tipo raro nos anos 1920, mas que se torna cada vez mais frequente na década seguinte.

Getúlio Vargas, na esperança de se contrapor ao poder oligárquico, valoriza a aliança com os grupos urbanos e, paralelamente, mantém sua aproximação com o Exército. Para cada segmento específico é traçada uma estratégia política. No caso dos trabalhadores urbanos, em 1930 cria-se o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Dois anos mais tarde, Vargas adota mudanças na legislação favoráveis ao operariado: estabelece, por exemplo, a jornada de oito horas na indústria e no comércio. Tais concessões têm preço elevado, já que, no mesmo ano em que é atendida uma reivindicação defendida pelo movimento operário desde fins do século XIX, se estabelecem os primeiros traços do sindicalismo corporativo. Segundo a nova determinação legal, sindicatos de patrões e operários, divididos por categorias profissionais, ficam sujeitos às federações e confederações que, por sua vez, se subordinam ao Ministério do Trabalho. Ao longo de seu primeiro governo, Vargas diminui cada vez mais a possibilidade de existência de sindicatos não vinculados a esse modelo, até que, em 1939, dois anos após a decretação do Estado Novo, determina a existência de um único sindicato por categoria profissional.

Tal mudança é acompanhada pela criação do imposto sindical, através do qual é descontado anualmente um dia de trabalho da folha de pagamento dos operários, encaminhado para financiar a estrutura sindical. O ditador generalizava, dessa forma, o modelo corporativo para o conjunto das entidades representativas dos trabalhadores. De instrumentos de luta, os sindicatos dos anos 1940 passam à condição de agentes promotores da harmonia social e instituições prestadoras de serviços assistenciais.

Com certeza, os líderes sindicais formados na antiga tradição anarquista veem criticamente essas mudanças, encarando-as como uma maneira de cooptação e de manipulação dos interesses da classe trabalhadora. No entanto, entre a massa operária, a postura parece ser outra. Para muitos, familiarizados com as associações mutualistas, Getúlio Vargas atendia a certas expectativas, como no caso da generalização dos institutos de previdência, garantindo aos trabalhadores o direito à aposentadoria. Além disso, através da legislação que acompanha a implantação dos sindicatos corporativos, Vargas consegue sensibilizar inúmeros militantes oriundos das lutas socialistas. A Consolidação das Leis Trabalhistas [CLT], firmada em 1943, viabiliza isso. Nela determina-se que, a partir de então, o trabalhador dispensado deveria ser indenizado, a mulher operária teria direito a serviços de amparo à maternidade, assim como se restringe a exploração do trabalho infantil. Isso para não mencionar a criação de uma justiça do trabalho, com o intuito de intermediar os conflitos entre patrões e empregados. Getúlio Vargas, dessa maneira, surge aos olhos de muitos como um protetor, como aquele que criara, via Ministério do Trabalho, uma espécie de mutualismo sindicalista em escala nacional.

Os empresários também viram parte de suas expectativas atendidas. Conforme já mencionamos, o grupo mais poderoso deles, sediado em São Paulo, não havia apoiado a Aliança Liberal. Durante a Revolução Constitucionalista, uma vez mais, as associações empresariais paulistas demonstraram seu descontentamento diante da tendência centralizadora do governo provisório. Situação bem diferente foi registrada em 1937, quando então as principais lideranças industriais paulistas não se opuseram à implantação do Estado Novo. Por trás dessa atitude, com certeza, havia o medo em relação ao que se chamava na época de ameaça comunista, e também o reconhecimento dos sucessos econômicos alcançados.

Getúlio Vargas em muito se diferencia dos presidentes da República Velha. Exemplos de planejamentos bem-sucedidos não faltam. Em certas ocasiões, o ditador aproveita-se da tensa situação internacional do período anterior à Segunda Guerra Mundial para conseguir vantagens. Oscilando entre o apoio aos países liberais e aos do eixo nazifascista, o governo brasileiro consegue recursos norte-americanos para instalação, em 1941, da Companhia Siderúrgica Nacional, cujos efeitos na área industrial foram extremamente benéficos. Getúlio também foi hábil em descobrir e integrar a seu projeto político-econômico intelectuais descontentes e reformistas. Tais grupos originavam-se de instituições tecnológicas, como a Escola de Minas de Ouro Preto, ou eram fruto de ramificações do Modernismo dos anos 1920. Conforme é sabido, esse movimento deu origem a tendências que valorizavam a análise científica, proporcionada pelas nascentes ciências sociais, como uma forma de melhor conhecer e explicar o funcionamento de nossa sociedade. Graças a isso, assistimos – em uma sociedade que praticamente dispunha apenas de cursos superiores de medicina, direito e engenharia – ao surgimento de uma geração de sociólogos, economistas e administradores. Esses intelectuais, uma vez cooptados pelo aparelho burocrático getulista, são responsáveis pelos primeiros projetos de planejamento estatal na área econômica. Graças a esse planejamento, empresas estatais passam a ocupar espaços estratégicos na produção de energia e matérias-primas.

Em relação à área econômica mais desenvolvida do país, a política getulista foi generosa. No início da década de 1930, é retomada a política de valorização do café, abandonada repentinamente por Washington Luís. Graças à manutenção do elevado nível de renda local, coube a São Paulo liderar o processo de formação do mercado nacional voltado para a substituição das importações. Paralelamente a isso, o governo garante, por meio da política fiscal e cambial, a transferência de renda para o setor industrial. A importância do empresário paulista cresce a olhos vistos: nos anos 1940 eles passam a responder por metade da produção fabril brasileira, o que significava um aumento de 50% em relação aos índices registrados em 1920. Não foi somente na economia que a intervenção estatal getulista se notabiliza. Em certas áreas registram-se, igualmente, mudanças profundas. Este foi o caso da educação. Durante a gestão de Gustavo Capanema – ministro da Educação e da Saúde entre 1934 e 1945, que congrega intelectuais do porte de Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Heitor Villa-Lobos –, são planejadas e implementadas importantes alterações, como a ampliação de vagas e a unificação dos conteúdos das disciplinas no ensino secundário e no universitário. Isso para não mencionar a criação do ensino profissional, consubstanciado em instituições como Senai, Senac e Sesc.

A aproximação de Getúlio com o que havia de mais moderno na época – inclusive no sentido autoritário dessa modernidade – se expressa através da criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Voltado para a propaganda política através dos novos meios de comunicação, como o rádio e o cinema, o DIP foi responsável pela organização de rituais totalitários de culto à personalidade do ditador. Essa instituição também submete a cultura popular à censura, conforme ficou registrado nas alterações impostas às letras de sambas. Exemplo disto é a conhecida modificação – exigida pelos agentes do DIP – do texto da música Bonde de São Januário, composta em 1940 por Ataulfo Alves e Wilson Batista. Na letra original do samba, o refrão era “O Bonde de São Januário/ leva mais um otário/ que vai indo trabalhar”; após a interferência do DIP, o texto passou a ser “O Bonde de São Januário/ leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar”.

Como seria de esperar, Getúlio esteve longe de agradar a todos os segmentos da elite dominante. Os setores agrários acusam a indústria de desviar braços do campo, ao mesmo tempo em que percebem estar financiando as importações de insumos fabris e investimentos do Estado na infraestrutura industrial. Mesmo entre os empresários, o fundador do Estado Novo esteve longe de ter unanimidade. A legislação trabalhista onera a atividade industrial, reduzindo o ritmo de acumulação nesse setor. Além disso, a política econômica agressiva tem efeitos regionais nefastos, implicando o declínio de estados que não conseguem acompanhar o ritmo competitivo do crescimento. Assim, é bastante revelador o fato de que, na década de 1940, enquanto São Paulo controla quase metade da produção industrial, a participação do Rio de Janeiro diminui pela metade. O mesmo ocorre nas regiões nordestinas, onde se registra, no referido período, uma diminuição de 40% na atividade industrial. No Rio Grande do Sul, a queda nesse setor é de 20%.

Não é de estranhar, portanto, que ao longo do Estado Novo se multiplicassem as vozes descontentes com o rumo tomado pelo governo. Contudo, a legislação que acompanhou o golpe facultava à oposição uma alternativa de poder, pois a ditadura instalada em 1937, curiosamente, tinha data marcada para acabar. Segundo a Constituição outorgada, previa-se para 1943 a realização de um plebiscito em que o regime seria posto à prova nas urnas. Em 1942, a decretação do estado de guerra – ou seja, de preparação do Brasil para lutar na Europa contra o nazifascismo – permite a transferência dessa consulta para o período imediatamente posterior ao término dos conflitos.

Em 1941, começam as primeiras articulações para garantir a transição política, e o próprio ditador esboça um partido nacional. Dois anos mais tarde, o descontentamento das elites marginalizadas pelo Estado Novo veio a público pelo Manifesto dos Mineiros. Nesse texto, amplamente divulgado de norte a sul do país, políticos de renome nacional, como Afonso Arinos, Bilac Pinto, Milton Campos e Magalhães Pinto, criticavam o caráter autoritário do governo. Ao mesmo tempo, manifestando uma nostalgia pelo regionalismo, que tanto caracterizou o sistema de poder da República Velha, acusam Getúlio de “espoliação do poder político de Minas Gerais”. Em 1944, a estrutura partidária que comandaria a transição já estava constituída. Como exemplo dessa confluência de poder, é registrada a aproximação de José Américo de Almeida e Armando de Salles Oliveira, políticos que desde 1937 haviam conseguido arregimentar as oligarquias descontentes, embora concorrentes entre si. Eles e as elites dissidentes, que desde a Revolução de 30 haviam sido marginalizadas, agrupam-se na União Democrática Nacional (UDN). Paralelamente a essa oposição, Vargas promove a reunião dos interventores no Partido Social Democrático (PSD). Enquanto isso, as estruturas sindical e previdenciária por ele criadas servem de base para a formação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Tais organizações, que estavam se esboçando em 1944, são legalizadas no ano seguinte. A UDN lança candidato próprio às eleições previstas para 1946, o mesmo ocorrendo com o PSD, mas a posição do PTB é outra. Não lança candidato, mas defende a convocação de uma Assembleia Constituinte ainda no governo de Getúlio, que seria por isso prolongado um pouco mais. Tal movimento ganhou as ruas – sendo popularmente denominado na época como “queremismo”, ou seja, “queremos Getúlio” – e conta com o apoio do PCB. Esse apoio é, aparentemente, surpreendente. Como vimos, Vargas foi responsável por uma feroz repressão aos comunistas. No entanto, é necessário lembrar que foi no seu governo que o Brasil entra em guerra contra o nazifascismo, em uma aliança da qual participou a União Soviética e, no final de sua gestão, também houve a anistia e a legalização do PCB. Mais ainda: para os comunistas, os inimigos políticos de Vargas reunidos na UDN representavam o que havia de mais atrasado na sociedade brasileira.

Além de mobilizar as massas urbanas, o ditador começa a fazer modificações no comando da polícia do Distrito Federal. Crescem suspeitas de que as eleições seriam manipuladas em prol da continuidade do governo. Há muito, porém, as elites dissidentes e opositoras se precaviam contra essa possibilidade. Não por acaso, tanto a UDN quanto o PSD escolheram candidatos à presidência nas fileiras militares: no primeiro caso trata-se do brigadeiro Eduardo Gomes e, no segundo, do general Eurico Gaspar Dutra.

Em 1945, as forças armadas, embora tivessem enviado “apenas” 23.344 soldados para a Segunda Guerra Mundial, aproveitam a justificativa do conflito internacional para formar um contingente interno de 171.300 homens. Para se ter uma clara noção do que representa esse número, basta mencionar que ele é quatro vezes maior do que o de 1930 e o dobro do que foi necessário para o golpe de 1937. Getúlio experimenta o amargo sabor de uma intervenção militar feita por uma instituição que ele havia ajudado a crescer. Em 29 de outubro de 1945, sob pressão do Exército, o criador do Estado Novo deixa o poder. Sem candidato próprio, o PTB apoia Dutra, que, não por acaso, consegue vencer as eleições presidenciais, enquanto Getúlio, eleito para o Senado, quase não participa da Constituinte. O ditador ruma para um exílio interno em São Borja, no Rio Grande do Sul, de onde retornará – segundo ele próprio definiu – “nos braços do povo” para um novo mandato presidencial. Panfletos da época revelam o estranho equilíbrio de forças que se tenta construir. Num deles divulgava-se a seguinte “oração”: “Protetor nosso que estais em São Borja, honrado seja o vosso nome; venha a nós a nossa proteção, seja feita a vossa vontade, assim no Sul como no Norte; os direitos nossos de cada dia nos dai hoje; e perdoai-nos as nossas imprudências, assim como nós perdoamos aos nossos perseguidores; e não nos deixeis cair no comunismo, mas livrai-nos do capitalismo. Amém”. Como veremos a seguir [In: Tentações militares e outras tentações], a ambiguidade do projeto político de Getúlio contribui para que se compreenda seu retorno ao poder, assim como seu trágico desfecho.


Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010. Cap. 28, pág. 185 a 190.

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