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04 janeiro 2024

Os militares no poder

Por: Mary Del Priori e Renato Venancio

 


Em 25 de agosto de 1961, o país entra em profunda crise política. A renúncia de Jânio implica a posse do vice-presidente, João Goulart. Em viagem diplomática à China, Goulart é hostilizado por importantes segmentos das forças armadas e do meio empresarial. Há razão para tanto? É preciso lembrar que ele foi responsável pelo aumento de 100% do salário-mínimo, motivo suficiente para ser identificado à nebulosa política denominada república sindicalista. Além disso, pertence à corrente nacionalista, partidária da realização de reformas de base da sociedade brasileira, que contrariavam poderosos interesses.

Os ministros militares se manifestaram contra a posse. Tal recusa, porém, estava longe de contar com o apoio unânime das forças armadas. Goulart foi eleito pelo voto direto, levando a ala legalista do Exército a se posicionar a seu favor. Explorando habilmente essa divisão, Leonel Brizola, que no início dos anos 1960 desponta como nova liderança nacional do PTB, consegue o apoio do III Exército. O então governador do Rio Grande do Sul cria a Rede da Legalidade, lançando, através dos meios de comunicação de massa, uma campanha nacional em defesa da posse do novo presidente.

O golpe de 1961 é, dessa maneira, evitado. No entanto, foram necessárias concessões políticas por parte de João Goulart. A mais importante delas foi a adoção do parlamentarismo, através do qual se transfere para o Congresso Nacional e para o presidente do Conselho de Ministros, aí eleito, boa parcela das prerrogativas do Poder Executivo.

Aproximadamente duas semanas após a renúncia de Jânio Quadros, o novo presidente assume o cargo e novas conspirações se iniciam. Um aspecto crucial relativo à adoção do parlamentarismo é aquele que prevê, nove meses antes do término do mandato presidencial, a realização de um plebiscito no qual se confirmaria a manutenção dessa forma de governo.

A experiência parlamentarista, implementada às pressas, se revela um fracasso. A crise econômica conjuga-se à quase paralisia do sistema político. Auxiliado por tais circunstâncias e pela campanha que faz, João Goulart consegue não só antecipar o plebiscito, como também dele sair vitorioso. Em janeiro de 1963, o Brasil volta a ser presidencialista. Dessa data até março de 1964, assistimos a uma progressiva radicalização entre os setores nacionalistas e antinacionalistas. Para compreendermos a razão de tanto conflito, devemos retornar no tempo e analisar as propostas políticas e econômicas desses dois grupos, assim como as alianças a que deram origem.

Conforme mencionamos no capítulo anterior, por volta de 1945 a economia brasileira torna-se predominantemente industrial. A partir dessa época, as discussões se voltam para a aceleração do processo de desenvolvimento econômico. Pois bem, uma das soluções propostas implica a associação com o capital internacional, enquanto a outra consiste em proteger a economia desse tipo de intervenção, valorizando a ação do Estado como promotor da industrialização. Entre numerosos defensores desta forma de desenvolvimento, havia os partidários da reorganização de nosso mundo rural. Para eles, o campo brasileiro mantinha estruturas econômicas pré-industriais, impedindo a integração da população aí existente ao mercado consumidor. Mais ainda: nossa agricultura, baseada em grandes propriedades e na lavoura de exportação, abastecia precariamente a cidade, elevando o custo de vida e fazendo com que, entre os trabalhadores, sobrassem poucos recursos para a aquisição de produtos industriais. A formação de latifúndios improdutivos tinha outro efeito negativo: desviava capitais das atividades econômicas mais dinâmicas. Em outras palavras, sem a reforma agrária, a economia brasileira estaria fadada à estagnação ou então a uma crescente dependência em relação aos investimentos estrangeiros.

O debate a respeito da alteração de nossas estruturas agrárias está longe de ser meramente técnico. Em torno dele se chocam interesses econômicos e paixões políticas. Não por acaso, nem mesmo governos transformadores, como os de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, instituíram projetos dessa natureza. Na verdade, pode-se afirmar o inverso. Desde os anos 1930, a ênfase dada à industrialização leva, na maioria das vezes, a restrições ao crédito rural e a uma política cambial desfavorável aos produtores agrícolas. Assim, para a manutenção das taxas de lucro, deve-se aumentar o nível de exploração dos trabalhadores, o que estimula, por sua vez, movimentos migratórios e sentimentos de revolta.

Conforme vimos, após a abolição, o campo brasileiro nem sempre adota o trabalho assalariado. Em várias partes, colonos, rendeiros, meeiros e moradores de favor é que de fato substituem o braço cativo. Nesse meio, fazendeiros cobram prestações de serviços em troca de moradia, alteram livremente os acordos de partilhas das colheitas ou despedem trabalhadores sem indenização alguma. Em 1955, a revolta contra essa situação cristaliza-se na forma de Ligas Camponesas, organizadas por Francisco Julião, advogado com longa experiência na defesa dos trabalhadores e pequenos proprietários rurais. Inicialmente, as Ligas se estabelecem em Pernambuco e Paraíba, para depois se espalharem por outras regiões brasileiras, como Rio de Janeiro e Goiás. Seu lema é levar “justiça ao campo” através da reforma agrária, “na lei ou na marra”, o que implicava invasões de propriedades rurais, criando um clima de terror em parte da elite brasileira.

Outro aspecto interessante dessa nova organização é que ela foge ao controle das tradicionais instituições populistas, como era o caso dos sindicatos vinculados ao PTB. De fato, pode-se afirmar que as Ligas e seu líder são hostis a João Goulart. Em 1962, essa postura ganha alcance nacional. Francisco Julião, eleito deputado federal pelo PSB, apoia vitoriosamente o prefeito de Recife, Miguel Arraes, na disputa do cargo de governador. João Goulart enfrenta, agora, oposição à direita e à esquerda; talvez por isso, o presidente reforça sua base de apoio popular se aproximando do PCB. Para compreender a aliança entre populistas e comunistas precisamos retornar no tempo.

O primeiro ensaio dessa aproximação ocorreu em 1945, por ocasião do fim do governo de Getúlio Vargas. No entanto, a cassação do registro legal do partido em 1947 leva os comunistas a uma fase de radicalização. A partir de 1952, ainda na ilegalidade, o Partidão – como então era popularmente conhecido – dá início à revisão dessa linha política, reaproximando-se de correntes políticas populistas, principalmente aquelas vinculadas ao nacionalismo ou ao movimento sindical.

Essa postura, em parte, decorre da análise teórica predominante no PCB. Desde os anos 1920, intelectuais comunistas procuram interpretar a sociedade brasileira à luz dos conceitos marxistas e leninistas. Tal leitura é afetada pelo fraco conhecimento de textos originais de Marx e pela adoção incondicional da linha política soviética. Nesse contexto, a interpretação que se torna dominante nos círculos comunistas é a de considerar as sociedades latino-americanas como pré-capitalistas. Tal conceituação implica, porém, brutais simplificações da realidade. Uma delas consiste em não ver diferenças entre países que apresentam níveis variados de desenvolvimento econômico. Brasil, Argentina, Guatemala ou Paraguai, por exemplo, são arrolados indistintamente. Pior ainda, adota-se a linha evolutiva europeia como sendo universal, o que leva a classificar o conjunto das sociedades latino-americanas como feudais. Na prática, tal interpretação implica reconhecer a necessidade de uma etapa capitalista para que, em um momento não definido do futuro, fosse possível atingir o socialismo; assim como os positivistas de cem anos antes, os comunistas são fortemente influenciados por concepções evolucionistas.

Ora, de forma simplificada, podemos afirmar que, para o PCB, os membros da UDN e parte do PSD representam os interesses feudais, ao passo que o PTB aglutinaria os grupos pertencentes à nascente burguesia nacional. Não é de estranhar, portanto, que os comunistas vissem com bons olhos a ascensão de João Goulart, defensor da reforma agrária e hostil ao capital internacional. Além disso, a aproximação do PCB com o PTB atende a necessidades práticas, como era o caso da legalização partidária dos comunistas.

Goulart procurava tirar vantagens dessa aliança. Um exemplo disso refere-se às mencionadas Ligas Camponesas. No início dos anos 1960, comunistas e trabalhistas levam a cabo uma bem-sucedida campanha de filiação sindical dos trabalhadores do campo. Na época do fim do parlamentarismo, enquanto as Ligas contam com 80 mil associados, registra-se a existência de 250 mil trabalhadores agrícolas sindicalizados, o que enfraquece o segmento oposicionista Julião Arraes em sua própria base eleitoral.

A aproximação entre PTB e PCB revela o fracasso do presidente em promover uma política moderada. Goulart naufraga em suas articulações com a Frente Parlamentar Nacionalista, integrada até mesmo por udenistas favoráveis às reformas estruturais da sociedade brasileira. O mesmo ocorre em sua tentativa de criar a União Sindical dos Trabalhadores, confederação destinada a enfraquecer o Comando Geral dos Trabalhadores, controlado por comunistas. Na política econômica, seu resultado também é medíocre. A equipe de seu primeiro ministério, liderada por San Thiago Dantas e Celso Furtado, tenta, sem sucesso, implementar o plano trienal, que prevê a captação de recursos internacionais, assim como austeridade no gasto público, crédito e política salarial. Tal fracasso tem graves repercussões, registrando-se então uma recessão e uma taxa de inflação alarmante.

Cada vez mais isolado entre as elites, Goulart procura apoio na ala radical do trabalhismo, liderada por Leonel Brizola – defensor da mobilização popular como uma forma de pressão pelas reformas de base. Em outubro de 1963, as conspirações contra seu governo proliferam. Pressionado pela ala legalista do Exército, o presidente ensaia decretar estado de sítio, mas é sabotado no Congresso pelo próprio partido, perdendo assim o pouco de prestígio que lhe resta junto às forças militares.

Apesar de sua frágil situação, Goulart não reavalia o projeto reformista. Desde a posse, o presidente mantém uma postura ambígua, ora tentando desenvolver uma política moderada, ora apelando para a mobilização popular para forçar o Congresso a aprovar reformas. Em parte devido à inflação, e também à ambiguidade populista, greves se multiplicam. Assim, é possível afirmar, por exemplo, que entre 1961 e 1963 ocorrem mais movimentos grevistas do que no período compreendido entre 1950 e 1960. No que diz respeito às greves gerais – ou seja, aquelas envolvendo várias categorias socio-profissionais –, o crescimento é de 350%! Não é difícil imaginar os transtornos criados nos serviços básicos de saúde e de transportes coletivos por esse tipo de prática, tornando o presidente bastante impopular junto às classes médias e camadas representativas dos trabalhadores. Observa-se, ainda, durante seu governo, o declínio acentuado da repressão aos grevistas, dando munição aos que disseminavam entre as elites o medo em relação à implantação de uma república sindicalista no Brasil.

No início de 1964, o presidente encaminha ao Congresso um projeto de reforma agrária e é derrotado. Através de mobilizações de massa pressiona o Poder Legislativo. No comício de 13 de março, que reúne cerca de 150 mil participantes, anuncia decretos nacionalizando refinarias particulares de petróleo e desapropriando terras com mais de 100 hectares que ladeavam rodovias e ferrovias federais. As medidas são acompanhadas por declarações bombásticas, como as de Brizola, defendendo a constituição de um Congresso composto de camponeses, operários, sargentos e oficiais militares. A direita reage a esse tipo de manifestação, organizando, com apoio da Igreja Católica e de associações empresariais, “marchas da família com Deus pela liberdade”, por meio das quais condenam o suposto avanço do comunismo no Brasil.

Em um lance extremamente infeliz, Goulart estende a mobilização sindical aos quartéis. Em fins de março, apoia a revolta de marinheiros, deixando que esses últimos participem da escolha do novo ministro da Marinha; além disso, mobiliza os sargentos do Rio de Janeiro. A quebra da hierarquia militar é o item que faltava para que os conspiradores conseguissem apoio da ala legalista das forças armadas. Em 31 de março é deposto o presidente. A UDN, por intermédio de dois governadores, Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Carlos Lacerda, da Guanabara, participa ativamente do golpe, e, em 15 de abril, o general Castello Branco, identificado à ala legalista, assume a Presidência da República. Dentre os poderes atribuídos a ele havia o de cassar direitos políticos e afastar os militares identificados ao governo deposto. Essa depuração envolve milhares de oficiais, soldados e deputados, e seu resultado concreto foi criar um desequilíbrio no Congresso e nas forças armadas a favor dos antigos grupos antinacionalistas.

Esse desequilíbrio de forças no interior do Exército gera uma situação complexa. Inicialmente, o núcleo conspirador apresentou a intervenção militar como defensiva em face de um iminente golpe que Goulart estaria planejando, e previa, por exemplo, eleições presidenciais em 1965. No entanto, os grupos antinacionalistas – agora denominados linha-dura – alimentam um projeto político duradouro. Nos documentos imediatamente lançados após o golpe, os partidários dessa visão assumem o papel de liderar a sociedade brasileira: “a revolução” – afirma um desses textos – “se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação”.

De fato, o Golpe Militar de 1964 pode ser acusado de muitas coisas, menos de ter sido uma mera quartelada. Havia muito, tal intervenção era discutida em instituições, como a Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1948, ou o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), fundado em 1962 por lideranças empresariais. Outro indício de que o golpe vinha sendo tramado havia tempos ficou registrado nos documentos da operação “Brother Sam”, através da qual se prevê, caso houvesse resistência, que o governo norte-americano “doaria” 110 toneladas de armas e munições ao Exército brasileiro. Por ser fruto desse planejamento prévio, não é surpreendente que a instituição militar apresente um projeto próprio de desenvolvimento para o país – aliás, compartilhado pela maioria do empresariado nacional. Em larga medida, tal projeto consiste em retomar o modelo implantado em fins da década de 1950, aquele definido como tripé, baseado na associação entre empresas nacionais privadas, multinacionais e estatais.

Com o objetivo de tornar esse modelo mais eficaz, é meticulosamente organizada a repressão ao movimento sindical e à oposição política. Contudo, a implantação da ditadura não ocorre imediatamente após a deposição do presidente. Os conspiradores dependem dos grupos legalistas, muitos deles defensores do retorno do poder civil nas eleições presidenciais seguintes. Além disso, a ausência de resistência – em 3 de abril de 1964, João Goulart se exila no Uruguai – desarma a linha-dura. Mas isso dura pouco. Em 1965, graças às depurações nas forças armadas, os militares identificados ao general Costa e Silva têm força suficiente para alterar os rumos da revolução. A derrota que enfrentam nas urnas alimenta ainda mais essa tendência. No referido ano, candidatos oposicionistas vencem em estados e cidades importantes, como na Guanabara, em Minas Gerais e na capital paulista. Boa parcela dos brasileiros demonstra seu descontentamento com o governo instituído em 31 de março. Como resposta, foram impostos os Atos Institucionais nos 2 e 3, que abolem os partidos existentes e as eleições diretas para presidente, governador e prefeito de capitais. Não restavam dúvidas, os militares tinham vindo para ficar...


Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010. Cap. 30, pág. 198 a 203.

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