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1 de maio de 2023

Nasce a República




Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1] 


O Major Sólon Ribeiro fez circular uma história falsa com o propósito de convencer Deodoro a se rebelar. Era preciso esta artimanha, pois ele era amigo pessoal de D. Pedro II. A mentira era dizer que o imperador tinha mandado prender o marechal e Benjamim Constant. Os boatos funcionaram e as tropas se rebelaram..." [2]

Em novembro de 1889, as relações entre o Exército e o governo imperial estavam deterioradas. Falava-se muito a respeito da progressiva substituição dos batalhões da Corte pela Guarda Nacional e até que escravos fiéis à princesa Isabel atacariam quartéis onde houvesse militares simpáticos à causa republicana. No dia 14, novo boato: circula a notícia da detenção, por insubordinação, de Deodoro da Fonseca e Benjamin Constant, então principais lideranças do Exército. Na manhã seguinte, os acontecimentos se precipitaram. Deodoro, apesar de estar se recuperando de uma doença, toma a iniciativa, decretando a prisão do visconde do Ouro Preto, chefe do Gabinete e presidente do Conselho de Estado; a agitação do Exército toma conta das ruas e é proclamado o fim da monarquia; dois dias mais tarde, a família real embarca para a Europa, rumo ao exílio.

O povo assiste a tudo isso “bestializado”. A quartelada de 15 de novembro foi uma surpresa; o movimento republicano, contudo, não era uma novidade. Durante o período colonial, várias revoltas, a começar pela Inconfidência Mineira, levantaram essa bandeira [veja também: A República do Brasil: história e consolidação]. Nas regências, outro surto republicano varreu as províncias e só a muito custo acabou sendo debelado. Em fins do Império, o dado realmente novo não foi o republicanismo, mas sim o fato de esse movimento envolver agora a nata da elite econômica – os fazendeiros de café paulistas –, e também o de ser politicamente moderado e socialmente conservador.

Embora o 15 de Novembro tenha dado origem a alguns grupos radicais, denominados jacobinos, eles constituíam uma pequena minoria e praticamente se restringiram à cidade do Rio de Janeiro. Em contrapartida, republicanos famosos, como Quintino Bocaiúva e Saldanha Marinho, notabilizaram-se pela política conciliatória, defendendo, sempre que podiam, a ideia de que a nova forma de governo viria por meio de reformas constitucionais, e não pela força das armas, posição, aliás, acatada pelo Manifesto Republicano de 1870, texto que emitia críticas brandas à monarquia, havendo inclusive passagens que reproduziam argumentos há muito compartilhados até por membros do Partido Conservador.

Por esse motivo, costuma-se afirmar nos livros de história que a proclamação da República pegou quase todos de surpresa. No entanto, as condições para a implantação do novo governo eram propícias. Tanto é verdade que, após o golpe, a defesa do antigo regime foi pequena: ocorreu apenas um pequeno levante em São Luís, Maranhão. A maior parte dos monarquistas se restringiu a escrever artigos e livros detratando o governo militar. Um partido defendendo a causa só foi criado seis anos após o golpe. E uma tentativa de trazer a família imperial de volta – uma restauração –, na figura de um dos filhos das princesas Isabel ou Leopoldina, teve fraquíssima repercussão. Só ocorreu em 1902, tendo como palco Ribeirãozinho, pacata cidade do interior paulista. Portanto, entre os grupos dominantes, raros foram aqueles que defenderam d. Pedro II; em contrapartida, desde o início da década de 1870 havia uma enorme quantidade dos que sistematicamente o criticavam.

Os militares, como vimos, tinham razões para estar descontentes: a política de enfraquecimento e de desmobilização das forças armadas significou para eles que de nada havia valido o sangue derramado na Guerra do Paraguai. A fragilidade do regime alimentava-se ainda em outras fontes. A Lei do Ventre Livre descontentou a massa dos fazendeiros escravistas. A abolição sem indenização, cabe repetir, ampliou esse descontentamento, abalando para sempre a confiança que a elite tinha no Império. Entre as elites regionais – principalmente aquelas do Centro-Sul, endinheiradas pelo café –, as queixas também se estendiam ao papel desempenhado pelo Poder Moderador, aos elevados impostos e à representação política desproporcional das províncias.

Vejamos, com mais vagar, a razão de tanta reclamação.

Durante o Segundo Reinado, o governo imperial, a todo momento, interferiu na vida política, impedindo a perpetuação de uma mesma facção no poder. A prerrogativa, facultada pelo Poder Moderador, de interromper as legislaturas e convocar novas eleições, possibilitava isso, mas, por outro lado, tal mecanismo tinha um preço elevado: indispunha d. Pedro com os partidos. Não sem razão, a monarquia passou progressivamente a ser vista como um obstáculo ao pleno domínio das oligarquias regionais. No Centro-Sul, essa queixa aliava-se a outra igualmente importante: apesar da superioridade populacional e econômica, a região mais rica do país possuía uma representação inferior à do Norte e do Nordeste, daí inclusive a aprovação de leis emancipacionistas que tanto contrariavam os interesses dos fazendeiros da lavoura cafeeira. A distribuição desigual de recursos fiscais era outra consequência desse desequilíbrio político. Nos anos 1880, época em que o Império subsidiou, a juros 50% mais baixos do que os cobrados pelo mercado, a criação dos engenhos centrais baianos e pernambucanos – empreendimentos quase do mesmo porte das usinas de nossa época –, foi também o período em que, para cada mil-réis de impostos pagos pelos paulistas ao governo central, apenas 150 réis voltavam como benefícios. A monarquia, dessa forma, foi se distanciando dos segmentos mais importantes das elites regionais, que passaram a defender cada vez mais a descentralização e o federalismo, aliás, principais bandeiras do movimento republicano nascido em 1870.

Como se não bastassem todas essas frentes oposicionistas, a inabilidade política dos monarquistas estendeu-se a outros campos, comprometendo até uma instituição que tinha de tudo para ser sua aliada: a Igreja. No sentido de neutralizar a participação política dos padres – muito ativos nos movimentos separatistas posteriores à independência –, d. Pedro II promoveu bispos que se alinhavam à chamada corrente ultramontana. Tal segmento reunia correntes eclesiásticas que primavam pelo conservadorismo, pelo afastamento do clero das atividades partidárias e por uma defesa intransigente dos pontos de vista da Santa Sé – dizia-se que eles eram “mais papistas do que o papa”.

Uma vez no poder, a nova elite eclesiástica implementou reformas semelhantes àquelas ocorridas no Exército. Em outras palavras, até meados do século XIX, padres que quisessem conseguir uma boa colocação, em paróquias que tivessem prestígio e fossem localizadas em cidades importantes, deveriam contar com o apoio das famílias dominantes, ou seja, deviam ser indicados pelos mandões da terra. Os bispos ultramontanos alteraram essa situação, transformando a ocupação de cargos públicos pelos padres em uma prerrogativa exclusivamente diocesana, mudança que levou a uma “profissionalização” do clero, selecionado, agora, segundo a formação moral, conhecimento e fidelidade à Igreja. De fato, não há como negar que essas reformas implicaram um retraimento da participação política do baixo clero. Em compensação, geraram uma legião de padres sisudos, conservadores até a medula e muito zelosos quanto a questões religiosas. Ora, dentre as diretrizes ultramontanas constava a intolerância a outros cultos, inclusive à maçonaria, animosidade que, neste caso, era ainda mais acentuada devido ao fato de os maçons, no Brasil, serem partidários do liberalismo e defensores do casamento civil e da liberdade religiosa.

Embora subordinado ao imperador pelo sistema de padroado, o clero brasileiro da segunda metade do século XIX passou a pregar abertamente contra os maçons, ameaçando inclusive ministros e políticos importantes, ligados à maçonaria, de excomunhão. Na década de 1870, os ânimos se acirraram, tendo ocorrido, sob acusação de insubordinação, prisões e condenações de bispos a quatro anos de trabalhos forçados, como foi o caso de d. frei Vital Maria e d. Macedo Costa. Apesar de não serem simpáticos à causa republicana, que também defendia o casamento civil, os membros da alta cúpula da Igreja tornaram-se críticos ferozes do governo de d. Pedro II. Por meio de sermões, do sacramento da confissão e, principalmente, da imprensa religiosa, padres e bispos irmanaram-se para expressar essas recriminações, enfraquecendo ainda mais o poder imperial.

Devido ao afastamento das elites civis, militares e eclesiásticas, o fim da monarquia nos anos 1880, se não era almejado, era pelo menos previsto. Paradoxalmente, esse tipo de regime, tido como elitista, tornou-se cada vez mais afastado das classes dominantes brasileiras, tendo como seus principais defensores os segmentos da camada popular. A abolição era a razão dessa repentina popularidade. Entre raros republicanos de origem humilde e negros, como no caso de José do Patrocínio, a medida chegou a levar a uma reconversão política. No meio da escravaria, o impacto foi ainda maior. Aos olhos de muitos libertos, o gesto paternal – ou melhor, maternal – da princesa Isabel teve fortíssimo efeito. Alguns meses após o 13 de Maio, vários deles engrossaram as fileiras da Guarda Negra, com o objetivo de defender o regime, provocando desordens em comícios de republicanos ou atacando-os fisicamente. Na Corte, a organização pró-monarquia chegou a contar com 1.500 filiados, conquistando também adeptos na Bahia, São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Minas Gerais, onde consta ter havido paralisações de ex-escravos devido ao fato de antigos senhores, agora transformados em patrões, terem se filiado ao Partido Republicano. A Gazeta de Notícias, em sua edição de 7 de julho de 1888, registrou uma dessas ocorrências: “Informam-nos, diz o Pharol, de Juiz de Fora, de anteontem, que na vila da Sapucaia os libertos pela lei de 13 de maio, sabendo que seus ex-senhores fazendeiros estão organizando um clube republicano, têm solenemente declarado não aceitarem trabalho em suas fazendas por preço algum”.

Aliás, não faltavam motivos para os libertos do 13 de Maio desconfiarem da agremiação política nascida em 1870. Líderes importantes do movimento republicano, como Assis Brasil, citando o exemplo dos primeiros cem anos dos Estados Unidos independentes, viam compatibilidade entre republicanismo e escravidão. A posição oficial do partido não era muito diferente. A facção paulista, por exemplo, defendia que a escravidão não deveria acabar por decreto ou motivada por considerações éticas, mas sim pela lenta difusão do trabalho livre, que tornaria antieconômica a compra de cativos.

Apesar de popular, a Guarda Negra, em razão da perseguição policial, desarticulou-se rapidamente, não sendo capaz de esboçar resistência à proclamação da República. Na realidade, o próprio governo monárquico inviabilizou que esse apoio alcançasse consistência. Durante o Império, o sistema eleitoral era restrito aos homens livres que tivessem um determinado nível de renda. Ora, como o reajuste do que seria esse limite mínimo demorava para ser feito – ocorreu apenas em 1824 e 1846 –, a inflação, ao longo do tempo, acabava facultando o aumento progressivo do número de votantes. No início da década da abolição, cerca de 10% da população brasileira participava do sistema político. À primeira vista, esse índice pode parecer baixo, mas não era: em São Paulo, núcleo central do republicanismo, aproximadamente metade dos homens adultos – incluindo aí ex-escravos e analfabetos – era apta a votar.

Em 1881, porém, uma reforma eleitoral acoplou à renda mínima a exigência de o eleitor ser alfabetizado – critério, aliás, reafirmado pelo governo republicano nos seus primeiros cem anos de existência. O resultado imediato de tal mudança foi uma dramática diminuição do número de eleitores. Na época da proclamação da República, apenas 1% da população participava do sistema político, restrição elitista que inviabilizou, posteriormente, a via eleitoral como um possível recurso para a restauração do regime monárquico.

Por isso mesmo, é possível afirmar que, no processo de consolidação da nova ordem criada em 15 de novembro de 1889, bem mais importante do que a reação dos monarquistas e dos libertos, foram os conflitos que ocorreram no interior do movimento republicano. A começar pela divergência de perspectivas entre civis e militares. Enquanto os primeiros defendiam federalismo ou autonomia provincial, os últimos se mantiveram apegados à noção de regime centralizado, mais ainda, de ditadura republicana. Para compreendermos em que consistiria essa forma de governo, é necessário lembrar que os anos 1870, além do advento do republicanismo, foi acompanhado por uma renovação nos horizontes intelectuais brasileiros.

Conforme expressão de um intelectual da época, no “bando das novas ideias” que chegaram ao Brasil predominavam agora aquelas afinadas ao pensamento científico ou, pelo menos, com o que então se acreditava ser a ciência. O positivismo foi uma dessas correntes. Seus partidários previam o advento da “era positiva”, em que a sociedade – a começar pela política – funcionaria e seria regulada e controlada de maneira científica. O problema todo, porém, era que Auguste Comte, filósofo francês idealizador do positivismo, não via com bons olhos a democracia, o individualismo e o liberalismo, encarando-os como invenções metafísicas. Segundo esse autor, a sociedade moderna deveria ser gerida de maneira autoritária, por um conjunto de sábios voltados ao bem comum, daí inclusive o conhecido trecho de uma máxima positivista: “a ordem por base e o progresso por fim” – lema curiosamente incorporado à bandeira nacional republicana. Não por acaso, esse tipo de filosofia antidemocrática – resultado de extravagante mescla de admiração pelos avanços científicos do século XIX com fórmulas políticas inspiradas no absolutismo do Antigo Regime – conquistou adeptos entre militares brasileiros.

Assim, enquanto as formulações políticas de Deodoro da Fonseca restringiam-se aos ataques moralistas aos bacharéis, que humilhavam ou ameaçavam a sobrevivência do Exército, um grupo de militares positivistas – minoritário e vinculado a Benjamim Constant – introduziu no debate político brasileiro a ideia da ditadura republicana. Tal perspectiva política fez sucesso, sendo também partilhada por aqueles que não seguiam os ensinamentos comtianos. Em 1891, cerca de um ano após sua eleição como primeiro presidente constitucional, o marechal Deodoro deu mostra disso, desrespeitando a Constituição e fechando o Congresso. Uma conspiração militar o forçou então a renunciar. Mas o vice-presidente, Floriano Peixoto, assumiu o poder acentuando ainda mais as tendências ditatoriais do regime. Além de não convocar novas eleições presidenciais conforme previa a Constituição, o Marechal de Ferro contrariou os interesses de diversos segmentos oligárquicos, nomeando interventores militares para os governos estaduais.

A reação não demorou a ocorrer. Devido ao fato de a Marinha ter mantido fortes tradições aristocráticas, esse segmento acabou por espelhar, no início da República, os descontentamentos de parte da elite civil. A Revolta da Armada, de 1893-94, foi expressão disso. Embora um de seus líderes, o almirante Saldanha da Gama, fosse monarquista assumido, tal movimento, longe de ser uma conspiração antirrepublicana, expressou muito mais o descontentamento diante dos rumos tomados pelo novo regime, sendo por isso apoiado por republicanos avessos ao militarismo, como Rui Barbosa.

Em 1893, ao mesmo tempo em que o Rio de Janeiro era bombardeado por navios da armada, ocorreu, no Sul, a Revolta Federalista, na qual os grupos dominantes locais se dividiram entre facções a favor e contra Floriano Peixoto. Este, por sua vez, com o objetivo de conseguir recursos e milícias suplementares para os combates na capital, assim como no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, aproximou-se de lideranças republicanas paulistas, abrindo caminho para a transição do poder para as mãos dos civis. Em 1894, com a eleição de Prudente de Morais, foi dado o primeiro passo e, em 1898, com Campos Sales, a transição se consolidou. Inaugura-se então o que se convencionou denominar de política dos governadores, ou seja, o pleno domínio das oligarquias sobre a república brasileira.


Veja também:


Notas:

  • [1]  Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 153 a 158, Capítulo 22.


Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

28 de abril de 2023

1984 – George Orwell – Parte 1 – Capítulo 1: O Grande Irmão

Por Alcides Barbosa de Amorim

Sobre 1984 de George Orwell, já falamos sobre dois assuntos, O Ministério da Verdade e alguns destaques iniciais e introdutórios sobre o livro. Neste post, quero resumir (veja também o resumo feito por Natália Barboni) o capítulo 1 da parte 1, destacando as ideias principais do capítulo.

Era um dia claro e frio de abril e os relógios marcavam treze horas…”. Assim começa o livro 1984, de George Orweel, cujo personagem principal, Winston Smith, que tinha 39 anos de idade, passava pelas portas de vidro das Mansões da Vitória, cujo hall de entrada tinha cheiro de repolho cozido e tapetes velhos de retalhos. Este local ficava a cerca de um quilômetro de distância de seu trabalho, o Ministério da Verdade, em Londres, a terceira cidade mais populosa das províncias da Oceania.

Já no hall do prédio Winston se depara com um imenso cartaz com o rosto enorme de um homem com cerca de 45 anos, que tinha um bigode preto farto e traços acidentalmente bonitos. Apesar de possuir uma úlcera varicosa e ser – talvez por conta disto – muito magro e frágil, Winston sobe as escadas até um apartamento no sétimo andar, vestido com um macacão azul, uniforme oficial do partido. Ao subir, depara, em cada andar, com o pôster com o rosto enorme que encarava quem passasse. A legenda do cartaz dizia: O GRANDE IRMÃO ESTÁ VENDO VOCÊ.

Dentro do apartamento, uma voz doce vinha de uma placa metálica, uma teletela. Esta tinha também o poder de filmar e gravar todo o ambiente. Aliás, até fora do apartamento, nas ruas, Winston Smith, da janela do apartamento, percebe o bigode negro vigiando todos em cada esquina, e na fachada da casa oposta, a legenda: O GRANDE IRMÃO ESTÁ VENDO VOCÊ, além de helicóptero vigiando telhados, a patrulha policial bisbilhotando as janelas das pessoas etc. Para as patrulhas, porém, a única coisa que importava era a Polícia do Pensamento.

Os três slogans do partido, que podiam ser lidos até a partir do prédio – Mansões da Vitória –, mesmo a um quilômetro distante, era: GUERRA É PAZ, LIBERDADE É ESCRAVIDÃO, IGNORÂNCIA É FORÇA.

Os Ministérios eram divididos em quatro casas, sendo cada uma delas a de um dos ministérios. Os quatro Ministérios eram:

  • Ministério da Verdade, que se preocupava com notícias, entretenimento, educação e artes plásticas.
  • Ministério da Paz, que se preocupava com a guerra.
  • Ministério do Amor (o mais assustador) que mantinha a lei e a ordem.
  • Ministério de Abundância, que se ocupava dos assuntos econômicos. 

Winston volta para a sala de estar e senta-se em uma pequena mesa que ficava à esquerda da teletela, de alguma forma, longe do seu alcance visual. E começa a escrever – uma espécie de diário –, porém ele sabe que se fosse detectado, mesmo não sendo aparentemente ilegal, (nada era ilegal, já que não havia mais leis), poderia ser punido com a morte, ou pelo menos com vinte e cinco anos em um campo de trabalho forçado. Mesmo assim, cria coragem e começa pela data: 04 de abril de 1984.

O diário de Winston Smith era para ser deixado para o futuro. Mas surge uma dúvida: com a Novalíngua ou duplopensar, como seria que pessoas no futuro iriam entender? Como poderia se comunicar com o futuro? Era impossível por natureza. Ou o futuro se assemelharia ao presente e, nesse caso, não o ouviria; ou seria diferente e sua situação não faria sentido.

Winston começa a escrever sobre um filme de guerra e para – de escrever – ao sentir dores de cãibras e também não entende porque tinha começado por aquele fluxo de lixo, as atrocidades da guerra. Depois, começar falar no diário sobre acontecimentos da manhã daquele dia no Ministério, por exemplo, num caso em que estava tomando seu lugar em uma das fileiras do meio quando duas pessoas que ele conhecia de vista, mas com quem nunca tinha falado, entraram inesperadamente na sala. Uma delas era uma garota com quem ele cruzava com frequência nos corredores, não sabia nem o nome dela, e não gostava da garota pois suspeitava ser ela uma pessoa perigosa a serviço da Polícia do Pensamento. A outra pessoa era um homem chamado O’Brien, um membro do Partido Interno, de alguma forma indefinível, curiosamente civilizado. Como não o conhecia direito apenas nutria a esperança de que a ortodoxia política de O’Brien não fosse perfeita.

Estavam reunidos no seu trabalho quando um discurso horrível explodiu da grande teletela no final da sala. Foi um barulho que fazia os dentes rangerem e arrepiavam os cabelos na parte de trás do pescoço. Os Dois Minutos de Ódio tinha começado, e o rosto de Emmanuel Goldstein, o Inimigo do Povo, havia piscado na tela. Acontecem assobios, medo e repugnância entre a plateia. Goldstein havia sido uma das figuras principais do Partido, quase no mesmo nível do próprio Grande Irmão, e depois havia se envolvido em atividades contrarrevolucionárias, fora condenado à morte, mas escapado misteriosamente e desaparecido, possivelmente estivera escondido em algum lugar na própria Oceania. Ele tinha um rosto judeu magro, auréola grande e felpuda de cabelos brancos e uma pequena barbicha. E Winston sente uma mistura dolorosa de emoções, pois o ouvira atacando as doutrinas do Partido. Estava abusando do Grande Irmão, denunciando a ditadura do Partido, exigindo o fim imediato da paz com a Eurásia, defendendo a liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade de reunião, liberdade de pensamento…

Winston mistura seu ódio ao da multidão contra Goldstein, ao perceber que para quase todos os presentes o Grande Irmão era de fato o protetor, invencível e destemido. Então os três slogans do Partido se destacaram na tela: GUERRA É PAZ, LIBERDADE É ESCRAVIDÃO, IGNORÂNCIA É FORÇA.

Após o pronunciamento de Goldstein, Wiston percebe, após seus olhos encontrarem o olhar de O’Brien por um breve momento, que este pensa como ele, isto é, ambos pensavam que o Grande Irmão era de fato uma péssima figura. Era como se suas duas mentes tivessem se aberto e os pensamentos fluído de um para o outro, “eu estou com você”, O’Brien parecia ter dito a ele. “Sei exatamente o que você está sentindo. Sei tudo sobre seu escárnio, seu ódio, sua repugnância. Mas não se preocupe, eu estou do seu lado”.

Seus olhos se reorientaram na página. Ele descobriu que enquanto ficou sentado sem fazer nada, ele também estava escrevendo, como se fosse uma ação automática, várias vezes a expressão: FORA GRANDE IRMÃO, FORA GRANDE IRMÃO, FORA GRANDE IRMÃO…, e sente medo! E enquanto isto alguém bate à porta. Quem era? Veremos no próximo capítulo.

Bem, sobre este capítulo, além de destacar o papel dos personagens, quero apenas comentar sobre a figura do Grande Irmão. Nos últimos três anos, pudemos perceber aqui no Brasil um isolamento social com monitoramento, e sobretudo no meu estado, São Paulo, sob o governo de João Dória, houve ameaças, inclusive, de controlar os cidadãos através de dados de telefones celulares. Senti bem de perto como o Estado – o Grande Irmão – quer estar de olho em todas as pessoas. E por isso resolvi adicionar abaixo o vídeo de Alex Carozza, de abril de 2020, que trata do tema.

Mas a fúria do Grande Irmão no Brasil todo hoje (2023), agora sob a figura de um novo governo, que teve a pandemia como um dos carros-chefes – o estopim da narrativa – e o desejo terrível de controlar as redes sociais, inspirado em governos ditatoriais de esquerda, está terrível. Estamos em vias de verem sendo aprovada a PL 2630, que está sendo chamada de “PL da Censura”. E a partir daí, se criará o tal “Ministério da Verdade”. Qual verdade? Aquela que o Estado determinar. Infelizmente, afirma Carozza, quando o “… Estado avança no controle, dificilmente volta atrás. A visão de George Orwell no livro intitulado ‘1984’ se torna finalmente possível pelo avanço das tecnologias modernas. Pense no efeito perigoso de juntar o avanço da tecnologia da informação com governos autoritários mundo afora…”

Só posso concluir lamentando que no Brasil, “o Grande Irmão está de olho em você”, em mim, em nós, sobretudo se o nós forem conservadores, cristãos, brancos, homens… E, se ainda por cima, forem bolsonaristas, aí então o OLHO do Estado estará mais aberto ainda.




Notas/Referências bibliográficas:

  • ORWELL, George. 1984 - George Orwell – Livro em PDF. Disponível por Gazeta do Povo. 1949. In: <1984 - George Orwell>.

21 de abril de 2023

1984 – Introdução: destaques gerais

Por Alcides Amorim

 “Guerra é Paz. Liberdade é Escravidão. Ignorância é Força.”

Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota prensando um rosto humano para sempre.”

Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro.”

Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado.”

A massa mantém a marca, a marca mantém a mídia e a mídia controla a massa.”

O pensamento-crime não acarreta a morte: o pensamento-crime é a morte.“

Nós somos os mortos. Nossa única vida genuína repousa no futuro.”

(Algumas frases de George Orwell, em 1984).

George Orwell


Eu fui contemplado no ano passado com o livro em PDF 1984 de George Orwell, presenteado pela Gazeta do Povo sobre o qual tenho ouvido uma diversidade de comentários, estudos, vídeos etc., por se tratar de uma mensagem muito rica e atual, o que confirma o porquê disto tudo através da leitura do mesmo. E já destacamos também em outro momento, matéria da própria Gazeta do Povo, do jornalista Leonardo Desideri sobre o Ministério da Verdade. Pretendo salientar neste post as informações iniciais e mais importantes como os principais personagens mencionados no livro, sua mensagem e sua aplicação – até coincidente – a fatos e acontecimentos políticos de nossos dias. Posteriormente, pretendo fazer também um resumo (notas) e comentários de cada capítulo do mencionado volume de George Orwell.

George Orwell (1903 – 1950), conforme destaca o Brasil Paralelo, é um pseudônimo do autor. Seu nome de batismo na Igreja Anglicana foi Eric Arthur Blair. Nasceu em 25 de junho de 1903, em Motihari, na cidade de Bengala, Índia, onde seu pai trabalhava para o império britânico, e estudou em colégios tradicionais da Inglaterra. Jornalista, crítico e romancista, é um dos mais influentes escritores do século XX. Autor também de Revolução dos Bichos (1945), dentre outros. Morreu de tuberculose, sete meses depois da publicação de 1984, publicado em 1949.

O livro 1984 foi escrito em 1948 e parece estarem invertidos os dois últimos números do ano: 84 ao invés de 48, justamente como acontece com as inversões de discursos, narrativas, valores… O gênero do livro é uma distopia, ou seja, enquanto a utopia idealiza uma sociedade boa, a distopia, conforme descreve o livro, é a idealização de uma sociedade em condições de extrema opressão, desespero e privação.

O mundo do livro é dividido em três grandes impérios modernos, que são grandes potências (Wikipédia):

  • Oceania - o maior dos impérios, governa toda a Oceania, América, Islândia, Reino Unido< Irlanda e grande parte do sul da África.

  • Eurásia: o segundo maior império, governa toda a Europa (exceto Islândia, Reino Unido e Irlanda), quase toda a Rússia e pequena parte do resto da Ásia.

  • Lestásia: o menor império, governa países orientais como China, Japão, Coreia, parte da Índia e algumas nações vizinhas.

  • Territórios sob disputa: outros territórios, como o norte da África, o centro e o Sudeste da Ásia (quadrilátero formado entre as cidades de Brazzaville, Darwin, Hong Kong e Tânger), além de todo o território da Antártica.

O “clássico romance distópico do autor britânico George Orwell… retrata o cotidiano de um regime político totalitário de modelo comunista… Desde sua publicação, muitos de seus termos e conceitos, como ‘Big Brother’, ‘duplipensar’ e ‘Novilíngua’ entraram no vernáculo popular. O termo ‘Orwelliano’ surgiu para se referir a qualquer reminiscência do regime ficcional do livro… De facto, 1984 é uma metáfora sobre o poder e atuação dos regimes comunistas, Orwell o escreveu animado de um sentido de urgência, para avisar os seus contemporâneos e às gerações futuras do perigo que corriam, e lutou desesperadamente contra a morte – sofria de tuberculose – para poder acabá-lo” (Paloma VIRICIO).

Os principais termos constantes usados no livro são:

  • Buraco na memória: consiste em alterar ou destruir documentos, fotos, gravações e textos considerados inapropriados a fim de levar as pessoas a pensarem que um determinado fato nunca ocorreu.

  • Crime-ideia: crime de ideia com base no pensamento correto do Ministério da Verdade. Ao questionar os documentos e ser denunciado, caberá à ‘Polícia do Pensamento’ eliminar o indivíduo.

  • Duplipensar: fenômeno de aceitar duas crenças contraditórias simultaneamente.

  • Grande Irmão: ditador e líder máximo do Partido que vê tudo 24 horas por dia.

  • Impessoa (não-pessoa): pessoa que não existe mais, e todas as referências a ela devem ser apagadas dos registros históricos.

  • Ministérios:
    • Fartura: responsável pela economia.
    • Paz: responsável pela guerra.
    • Verdade: responsável por tudo o que é escrito, seguindo a lógica de que o partido é infalível e nunca erra.
    • Amor: responsável pela espionagem e controle da população.

  • Novilíngua: pensada para travar o pensamento pela diminuição do vocabulário, através de um estado de confusão com a semântica foi distorcida.

  • O Partido: grupo que se mantém no poder através de métodos totalitários, de forma explícita. O objetivo do partido não é nada menos do que o poder. O Partido é marcado pela onipresença do Grande Irmão, que ao país governa e a todos vigia.

Acho importante destacar também os principais personagens constantes no livro, como (In: Wikipedia):

  • Emmanuel Goldstein: ex-membro de topo e agora opositor do partido. Atua de modo semelhante a Leon Trotsky. Assim como o Big Brother, Goldstein, se alguma vez foi real, está provavelmente morto, ambos podem ter sido criados para fins de propaganda.
  • Grande Irmão: autocrata da Oceânia, que atua de modo semelhante a ‘Joseph Stalin’. Winston Smith aponta que ele nunca foi visto, nem ninguém se lembra de ver o Big Brother, e sugere que ele pode não existir. Declaração de O'Brien que o Big Brother ‘nunca vai morrer’ também contribui para esta teoria, sugerindo que o Big Brother pode ser apenas uma representação simbólica do partido como um todo. Sua imagem está em toda parte, principalmente nos cartazes onipresentes que advertem: ‘Big Brother is Watching You’ – O Grande Irmão está observando você.

  • Júlia: amante de Winston, uma secreta ‘rebelde da cintura para baixo’, que elogia as doutrinas, é militante do Partido, enquanto vive secretamente em contradição com elas.

  • O'Brien: agente do governo que engana Winston e Julia fazendo-os acreditar que ele é um membro da resistência, e convencendo-os a aderir a esta, e depois usa isso contra eles para torturá-los. Ele convence-os de que eles não devem apenas obedecer, mas amar o Big Brother. O'Brien pode ser visto como principal antagonista da novela.

  • Winston Smith: protagonista do romance, um homem comum fleumático.


Veja também a análise sobre 1984, por Guilherme Freire em:


Referências bibliográficas:

  • FREIRE, Guilherme. 1984: Análise da obra de Goerge Orwell. Disponível em: <1984 – YouTube>. Acesso em: 19/04/2023. 

  • ORWELL, George. 1984 - George Orwell – Livro em PDF. Disponível por Gazeta do Povo. 1949. In: <1984 - George Orwell>. 

9 de abril de 2023

Emancipacionistas, abolicionistas e escravistas

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

O fim da “escravidão”, em 13 de maio de 1888 foi pacífico como sugere o cartaz ao lado? Na verdade, “… para compreendermos com mais clareza essa questão, devemos atentar para a existência de três grupos que na época a debateram: os emancipacionistas, os abolicionistas e os escravistas... [2].

Uma questão que sempre intrigou os historiadores foi a de saber os principais motivos que levaram à libertação dos escravos em 1888. A Lei Áurea teria sido obra de cativos revoltados, resultado do radicalismo abolicionista ou, ao contrário, decorreu de uma política reformista implementada pelos dirigentes do Império?

Graças ao abolicionismo, a mobilização popular tornou-se um elemento de transformação consciente da realidade. A revolta agora não era circunstancial, contra o aumento dos preços de alimentos ou contra alguma medida que prejudicava os interesses populares, mas sim efetiva, pois tinha por objetivo alterar a estrutura da sociedade. Os abolicionistas também inovaram na forma de organização. Em vez de reuniões secretas, como ocorria na maçonaria, que tanto envolveu os políticos do Império, eles formavam clubes abertos a quem quisesse participar, lançavam jornais, assim como organizavam palestras em teatros e comícios nas ruas. Representavam, por assim dizer, uma nova forma de fazer política, uma forma que fugia às rédeas dos oligarcas e poderosos rurais. Foi por esse movimento que surgiram modernas lideranças negras, como André Rebouças e José do Patrocínio, cuja atuação teve repercussão nacional. Não por acaso, os abolicionistas também foram os primeiros a defender a distribuição de terras entre os ex-escravos e a criação de escola pública para os filhos dos futuros libertos.

O resultado de várias pesquisas permite, hoje, uma visão matizada a respeito do tema, que leva em conta tanto a rebeldia dos escravos quanto a ação reformista da elite. Para compreendermos com mais clareza essa questão, devemos atentar para a existência de três grupos que na época a debateram: os emancipacionistas, partidários da extinção lenta e gradual da escravidão; os abolicionistas, que propunham a libertação imediata dos escravizados; e, por fim, como seria de esperar, os escravistas, defensores do sistema ou, pelo menos, da indenização dos proprietários caso a abolição fosse sancionada.

Os conflitos entre essas três correntes definiram o ritmo da extinção da escravatura. A primeira delas tinha uma longa tradição. Conforme vários folhetos e livros da época da abolição registraram, a experiência metropolitana era um exemplo bem-sucedido de política emancipacionista. Em Portugal, os escravos constituíam pequena parcela da população, nunca chegando a ser a principal força de trabalho da economia. Mesmo assim, a escravidão portuguesa não foi abolida de uma só vez, mas sim por intermédio de leis que gradualmente a extinguiram. A primeira delas, sancionada em 1761, declarou livres todos os negros e mulatos oriundos da América, África e Ásia que desembarcassem em portos do reino. Em 1773, outra lei decretou, sob determinadas circunstâncias, a “liberdade do ventre”, ou seja, a liberdade das crianças escravas.

Quando foi sancionada a primeira lei emancipacionista, existiam em Portugal milhares de cativos domésticos; cinquenta anos mais tarde quase não havia mais traços dessa forma de exploração do trabalho. A legislação portuguesa impediu a reposição dos escravos. Com o passar do tempo, o sistema acabou extinguindo-se por si mesmo, quer devido ao falecimento dos escravos existentes, quer pela libertação de seus filhos ao nascer. A experiência portuguesa não passou despercebida entre as elites brasileiras. Tratava-se de um exemplo bastante atraente, pois dispensava a abolição formal, medida que, para muitos, consistia em um confisco da propriedade alheia.

Não por acaso, José Bonifácio, em 1823, propôs, conforme mencionamos anteriormente, o fim gradual da escravidão. Embora tenha sido derrotado nessa ocasião, as ideias do Patriarca da Independência tiveram reflexos em 1850, nos debates que levaram ao final do tráfico internacional de escravos, e na Lei do Ventre Livre, sancionada em 1871.

Os emancipacionistas tinham, portanto, uma posição moderada. Eles podiam ser identificados nas fileiras dos conservadores, embora fossem mais numerosos entre os liberais. Entre os seus partidários, estava nada menos do que o imperador, que, na Fala do Trono de 1867, libertou os cativos que pertenciam ao Estado e defendeu a emancipação progressiva dos demais escravos brasileiros. A bandeira que os unia era a de que o sistema escravista inviabilizava a constituição de uma nação civilizada, mas, por outro lado, que a abolição não podia ser pretexto para a desorganização da agricultura, base econômica de sustentação do Império. Daí o gradualismo dos membros desse grupo, que previa a extinção lenta e pacífica do sistema escravista até, no máximo, os últimos dias do século XIX, quando os escravos representariam menos de 1% da população brasileira.

Vejamos agora a corrente abolicionista. Conforme mencionamos em outro capítulo, na Europa, particularmente na Inglaterra, o abolicionismo existia desde 1780. No caso brasileiro, esse movimento surge somente em 1870. A queda do preço dos escravos, em fins do século XVIII e início do XIX – devido ao fim do tráfico norte-americano e a movimentos revolucionários, como o do Haiti –, contribuiu para esse atraso. Tal situação permitiu que, de norte a sul, no campo e nas cidades brasileiras, mais e mais pessoas, até libertos, ascendessem à condição senhorial. Apesar de desumana, a escravidão, na época da independência, tornou-se, por assim dizer, uma instituição “popular”. No meio rural, ela era tanto a base das plantations quanto a solução para os problemas dos pequenos proprietários, cujos filhos iam ocupar áreas da fronteira agrícola, inviabilizando a mão de obra familiar. Na cidade, a escravidão miúda também garantia a sobrevivência de muitos, havendo aqueles que economizavam durante a vida toda para, na velhice, adquirir um ou dois escravos e viver de seu “ganho” ou aluguel.

Ora, a partir da década de 1830, o processo de popularização do escravismo começou a ser revertido. A conjunção entre a pressão inglesa e a expansão do café no Vale do Paraíba fluminense levou a um aumento vertiginoso no preço dos escravos. O fim do tráfico internacional em 1850 intensificou ainda mais essa tendência. Os pequenos proprietários, tanto os do campo quanto os da cidade, não conseguiram mais repor a escravaria. O mesmo ocorreu nas áreas em crise, como no caso do Nordeste açucareiro. Mais ainda: em razão da subida dos preços dos escravos, a tentação de vendê-los aumentou. O resultado disso foi o surgimento do tráfico interno, através do qual o sistema escravista se concentrou nas regiões Centro-Sul dominadas pela economia cafeeira ou vinculadas ao abastecimento desses territórios, como foi o caso de Minas Gerais.

Observa-se assim, na segunda metade do século XIX, a multiplicação de regiões e de grupos sociais sem interesse direto no escravismo. Para vários historiadores, o abolicionismo tornou-se possível justamente nesse momento, sendo particularmente mais ativo e organizado nas cidades que estavam deixando de ser escravistas. O movimento, em certo sentido, traduziria o ressentimento das populações urbanas contra o governo imperial, dominado por interesses agrários.

O surgimento desse movimento representou ainda outra mudança importante: pela primeira vez, o escravismo não opunha somente escravos a livres, mas também encontrava divisões no interior da própria população livre. Se no período colonial a rebeldia escrava ocorria na forma de fugas e insurreições, após o surgimento do movimento abolicionista observam-se novas alternativas legais de luta, baseadas em alianças entre cativos e homens livres. Advogados abolicionistas passam a recorrer a leis para proteger a vida de escravos, a integridade de suas famílias ou para punir senhores cruéis. Ao mesmo tempo, redes de apoio junto às camadas populares, como a dos caifazes paulistas, surgem para acudir cativos fujões, garantir seu transporte e boa acolhida nas cidades.

Os escravos, como seria de se esperar, tiveram participação ativa no movimento abolicionista. De certa maneira, as transformações ocorridas no período contribuíram para isso. Nas décadas que antecederam 1888, o tráfico interno desenraizou milhares de cativos que há várias gerações moravam na mesma região, em áreas rurais decadentes, onde o ritmo de trabalho era relaxado, ou no meio urbano, onde a possibilidade de autonomia de movimentação ou de libertação era frequente. A ida desses escravos para as plantations era uma experiência traumática. Não foram poucos os que preferiram o suicídio ao trabalho exaustivo nas fazendas cafeeiras. Outros, em maior número, fugiam; como se tratava de escravos nascidos no Brasil, eles falavam português, o que facilitava contatos com os aliados abolicionistas e, para desgosto dos proprietários, dificultava distingui-los dos demais homens livres negros.

Já os grupos escravistas predominavam entre os membros da elite agrária. Em 1885, Rui Barbosa define-os como “uma espécie de travessões opostos a todo movimento. Não admitem progresso, a não ser para trás [...] o que não for a imobilidade é a ruína da pátria”. Isso, porém, estava longe de significar que não houvesse gente letrada e refinada nesse meio. José de Alencar, só para citar um exemplo, foi um árduo defensor do escravismo, denunciando os abolicionistas como “emissários da revolução, apóstolos da anarquia”, ou então rejeitando a superioridade do “trabalho livre”, alegando que os operários europeus viviam em condições piores do que os cativos brasileiros. Portanto, era possível ser poeta e escravista ao mesmo tempo. Aliás, ser proprietário de escravos não era um sintoma de sadismo ou de inclinação à crueldade; o sistema era defendido por razões bem mais objetivas, como a questão da falta de controle sobre a mão de obra livre. O problema, de fato, era sério. Nas reuniões e congressos promovidos pelos Clubes da Lavoura – uma espécie de antítese das associações abolicionistas –, os fazendeiros alegavam que os trabalhadores livres eram inconstantes, mudavam-se frequentemente ou simplesmente abandonavam suas ocupações e desapareciam. Tais queixas não eram descabidas. Na época da abolição, a maior parte do território brasileiro ainda não havia sido ocupada. Para os homens livres era atraente trabalhar por algum tempo nas fazendas, reunir recursos mínimos e depois ir para áreas não ocupadas.

Dependendo da região, entretanto, a tendência escravista podia ser menos intensa. No Nordeste, por exemplo, devido ao fato de as terras férteis estarem quase todas sob o domínio dos latifúndios, havia poucas opções para os homens livres e pobres se transformarem em camponeses. Além disso, as secas prolongadas nas regiões semiáridas levavam muitas famílias sertanejas a procurar trabalho nas fazendas ou, ao menos, a se sujeitarem ao serviço temporário nelas. Nessas áreas, foi possível uma precoce transição para o trabalho livre. Não por acaso, a província de Ceará decretou a abolição em 1884, e Joaquim Nabuco, principal líder abolicionista brasileiro, tinha sua origem na elite açucareira pernambucana.

No Centro-Sul a situação era bem diferente. Nessa região havia abundância de terra fértil não ocupada, terra “de ninguém”, disponível para quem quisesse se tornar um roceiro ou sitiante. Por isso, boa parte dos fazendeiros de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais permaneceu fiel ao escravismo, alegando instabilidade e número insuficiente de trabalhadores livres nacionais. A corrente emancipacionista, através da Lei de Terra, de 1850, tentou converter esses grupos, determinando que “as terras devolutas só poderiam ser adquiridas por meio da compra”, o que obrigaria os homens livres a trabalhar até dispor de recursos para se estabelecer como pequenos proprietários. Contudo, a vastidão do território e os elevados custos de demarcação aliados à precariedade da burocracia imperial fizeram com que essa medida nunca fosse efetivada. Embora promulgada, a Lei de Terra não impediu que os homens livres continuassem a fugir do trabalho nas fazendas para se tornar posseiros, roceiros, caiçaras, ou seja, pequenos camponeses nas terras não ocupadas pela lavoura de exportação.

A situação era tal que muitos emancipacionistas voltavam a ser escravistas. Um exemplo dessa trajetória foi o caso do senador Vergueiro, um eminente político do Império que introduziu, na década de 1840, trabalhadores europeus em suas fazendas de café. O sistema de trabalho adotado foi o de “parceria”, na qual o proprietário se comprometia a pagar o transporte do imigrante da Europa até a fazenda e fornecia casa, instrumentos e terra para o plantio de alimentos. Em troca, os imigrantes cuidavam de um número não especificado de pés de café e pagavam a dívida contraída com os rendimentos da venda de alimentos e da parte que lhes cabia dos lucros conseguidos com a lavoura de exportação. A experiência, em princípio, deu certo, sendo partilhada por outros proprietários paulistas. De fato, para os trabalhadores livres, a possibilidade de desenvolver uma lavoura autônoma era algo atraente, pois permitia que eles comercializassem produtos agrícolas, gerando renda imediata. No entanto, as dívidas acumuladas durante a viagem ou na compra de ferramentas eram motivo de vários conflitos. Do lado dos fazendeiros, as queixas diziam respeito ao fato de os imigrantes descuidarem dos pés de café, preferindo cuidar das próprias roças, cuja comercialização era mais difícil de ser fiscalizada. Entre os trabalhadores, as reclamações incidiam no fato de que as dívidas os reduziam à condição de semiescravos. Como resultado disso, registrou-se, na década de 1860, o abandono da maioria das experiências de trabalho livre na lavoura cafeeira paulista.

A corrente emancipacionista lutou para que as experiências com trabalhadores europeus fossem reativadas, defendendo, por esse motivo, a “imigração subsidiada”. Em 1884, tal medida foi finalmente colocada em prática. O governo, principalmente o da província de São Paulo, passou a pagar a passagem de imigrantes europeus. Isso permitiu que as regiões brasileiras mais prósperas, no caso o Centro-Sul cafeeiro, fossem inundadas de italianos, portugueses e espanhóis que fugiam da pobreza em uma Europa em fase de intenso crescimento populacional. Os proprietários rurais, por sua vez, escaldados com as desastrosas experiências da parceria, adotaram uma nova forma de trabalho. No então denominado colonato, a extensão da lavoura de alimentos dos colonos ficou condicionada ao número de pés de café cuidados. Além de não arcar mais com as dívidas da viagem, os colonos passaram a contar com incentivos extras, tais como salários por ocasião da capina e da colheita. A combinação entre controle na concessão de terras para roças e pagamento por tarefas obteve grande sucesso, sendo aplicada não só na lavoura cafeeira como também em outras atividades agrícolas de exportação que empregavam o trabalhador livre.

Paralelamente ao incentivo à imigração, os emancipacionistas também procuraram criar meios para promover a permanência dos ex-escravos nas fazendas. Algumas cláusulas da Lei do Ventre Livre e da Lei dos Sexagenários atestam isso. A primeira, libertava os filhos de escravas nascidos após 1871. No entanto, um de seus artigos indicava que os proprietários podiam dispor dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. Em 1885, a Lei dos Sexagenários reproduziu fórmula semelhante, determinando: “São libertos os escravos de 60 anos de idade[...] ficando, porém, obrigados, a título de indenização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos”.

No início dos anos 1880, a estratégia emancipacionista parecia estar dando certo. A questão agora era a de esperar até que o número de escravos existentes na sociedade caísse a ponto de ser possível a libertação deles com as respectivas indenizações a seus proprietários. Para muitos partidários dessa tendência, 1899 era esse ano. No entanto, o radicalismo da ação abolicionista – não só através das fugas e de manifestações públicas, mas também graças a uma vasta literatura sensível à causa que teve entre seus adeptos escritores do nível de Castro Alves e Bernardo Guimarães – criou condições para o 13 de Maio de 1888.

O impacto da abolição foi devastador na relação entre o governo imperial e uma legião de proprietários rurais, pois, na época em que foi sancionada, a indenização era impossível: os 700 mil escravos existentes (sendo quase 500 mil deles localizados em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) valiam, no mínimo, 210 milhões de contos de réis, enquanto o orçamento geral do Império era de 165 milhões de contos de réis. A Lei Áurea rompeu, dessa forma, com o gradualismo dos emancipacionistas, sendo resultado das lutas de escravos e de homens livres engajados no movimento abolicionista. Para os escravistas, a abolição representou uma traição, um confisco da propriedade privada. A reação desse grupo não tardou a acontecer. Um ano após o 13 de Maio, à oposição dos militares somou-se a de numerosos ex-senhores de escravos. A monarquia estava com seus dias contados...

Veja também:


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 147 a 152, Capítulo 21.

  • [2] Imagem disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Abolicionismo_no_Brasil>. Acesso em: 09/04/2023.


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.