1930: Revoluções e Golpes
Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato
Para os leitores de jornais da época, o golpe que depôs Washington Luís e consequentemente impediu a posse de seu sucessor, Júlio Prestes, pareceu um típico confronto entre chefes políticos da República Velha. Muitos achavam que o novo governo não duraria, pelo fato de a sustentação política da Revolução de 1930 ser bastante frágil. O movimento, como se sabe, havia desafiado o domínio de poderosas oligarquias, a começar pela paulista, formada por influentes fazendeiros e industriais, organizados em torno do Partido Republicano Paulista.
Para
enfrentar tal coligação de interesses, Vargas articulou em torno de
si vários grupos que, desde o início da década de 1920, vinham
dando mostra de descontentamento contra o domínio oligárquico. A
história política brasileira de 1930 a 1954 passa então a ser
marcada por uma série de alianças, rupturas, aproximações e
perseguições entre o novo presidente e diversos segmentos da
sociedade; para melhor compreendermos tais artimanhas, voltemos ao
calor dos acontecimentos.
Como
vimos, em 3 de outubro de 1930 começa a revolução. Os primeiros
levantes têm como base os estados em que melhor se implantara a
Aliança Liberal. Assim, nas primeiras 24 horas da rebelião, Rio
Grande do Sul e Paraíba foram dominados. Nos dias seguintes, o mesmo
ocorreu no Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e Paraná. Como é
possível tão rápido sucesso? Ora, paralelamente aos bandos de
jagunços dos grupos dissidentes, os oposicionistas contavam com o
fundamental apoio dos militares descontentes. Os políticos da
Aliança Liberal, com habilidade, selam um pacto com os jovens
oficiais do Exército. Para os tenentistas, a revolução parece
atender a certas expectativas: ela combate a política oligárquica,
através de um governo centralizador, além de garantir a muitas
vezes negada anistia aos militares que participaram das revoltas
ocorridas entre 1922 e 1927.
Duas
semanas após o início do movimento, foi submetida parte do
território paulista, e a revolução avança em direção ao Rio de
Janeiro. A situação é totalmente favorável aos revoltosos; e, em
24 de outubro, a cúpula do Exército depõe o presidente Washington
Luís.
Os generais dão um golpe dentro do golpe – ou, para utilizarmos a
terminologia da época, fazem uma contrarrevolução dentro da
revolução –, contendo o ímpeto transformador dos tenentistas.
Após pôr abaixo o velho governo, começam as negociações para a
transição do poder. Apesar da resistência de alguns generais, em 3
de novembro de 1930, toma posse o novo dirigente.
A
partir dessa data tem início a presidência de Getúlio
Vargas,
que parecia destinada a durar pouco. Desde os primeiros dias, o novo
presidente enfrenta forte oposição paulista, e as queixas são
compartilhadas pelo tradicional PRP e pelo Partido Democrático (PD).
Este último foi um elemento ativo da Aliança Liberal. Segundo os
democratas paulistas, a finalidade do governo provisório era
garantir reformas políticas através da convocação de uma
Assembleia Constituinte.
Apoiado
nos velhos tenentistas e nos novos generais, Getúlio Vargas dá a
entender que tal convocação abria caminho para o retorno das
oligarquias ao poder. Descontentando ainda mais o PD, Vargas escolhe
um membro das fileiras tenentistas como interventor de São Paulo. O
PD faz novas tentativas, mas essas seguidamente fracassam, levando os
políticos paulistas que haviam apoiado a revolução a fazer
alianças com os membros do PRP, formando a Frente Única Paulista
(FUP). Estes últimos também se aproximam de grupos políticos do
Rio Grande do Sul e Minas Gerais, descontentes com os rumos do
governo provisório. Diante da pressão política, Getúlio recua,
convocando uma Assembleia Constituinte. No entanto, o texto da
convocação é ambíguo, pois condena os que sonham com “a volta
automática ao passado” e dá a entender que Vargas imporia um
governo centralizador. Em julho de 1932, os paulistas mostram do que
são capazes para defender uma Constituinte liberal: pegam em armas
contra o governo. Por pouco – ou seja, em razão do recuo de
gaúchos e mineiros – Vargas não é deposto.
A
denominada Revolta
Constitucionalista,
embora derrotada, alcança parte importante de seus objetivos. Além
da confirmação da convocação da Assembleia Constituinte, os
paulistas influenciaram a escolha do interventor local, Armando de
Salles Oliveira. O mérito de Getúlio foi o de ter conseguido
permanecer no poder. Mas a situação o fragilizava. Na ausência de
um partido político de alcance nacional que o apoiasse, foi
necessário fazer concessões às oligarquias, como aconteceu por
ocasião da escolha do interventor paulista. O presidente teve de
aceitar uma Constituição de cunho liberal, que em muito restringia
a ação do Poder Executivo. De certa maneira, Getúlio pagava o
preço por fazer uma revolução política, mas não econômica ou
social.
É
nesse contexto que o futuro ditador se aproxima mais e mais do
Exército. A instituição, além de abrangência nacional, tem poder
de fogo contra as oligarquias, como fica demonstrado em 1930 e 1932.
No entanto, as forças armadas continuam divididas. Uma parcela dos
antigos tenentes está integrada ao governo provisório, outra parte
permanece na oposição, radicalizando-se. Exemplo disso foi Luís
Carlos Prestes. No ano em que termina a revolta tenentista que levava
seu nome – Coluna
Prestes
–, o Partido Comunista do Brasil começa a contatá-lo. Tal
agremiação, nascida em 1922, era, em grande parte, resultado do
impacto político da Revolução Russa, quando, pela primeira vez, o
comunismo deixa de ser uma utopia distante, ou uma experiência
isolada – como foi a Comuna de Paris, de 1871 –, para se
transformar em uma forma de governo de um país de dimensões
continentais.
O
leitor atual dificilmente imagina o quanto essa transformação
influencia a opinião política dos antigos defensores da causa
operária. Entre 1917 e 1922, assiste-se à progressiva conversão de
um grande número de anarquistas e socialistas brasileiros às
concepções comunistas. Essa aproximação tem como contrapartida a
adoção de diretrizes da política internacional soviética,
deixando pouca autonomia para a elaboração de uma ação que leve
em conta as especificidades locais. Em 1928, uma aproximação
política com as camadas médias da sociedade é abandonada em troca
da intransigência política. A posição favorável à via militar
da revolução comunista, em detrimento da participação
parlamentar, cresce.
Nesse
contexto, a dissidência radical tenentista é vista como aliada
potencial do PCB, que para isso cria em 1929 o Comitê Militar
Revolucionário. Apesar desses esforços, Prestes recusa-se
inicialmente a se filiar ao partido. Ao longo do ano de 1930, porém,
sua posição política se modifica a ponto de rumar para o exílio
em Moscou, de onde retorna como membro do PCB, em 1934. Junto a ele
ingressam no partido importantes lideranças do antigo movimento
tenentista, como Agildo Barata e Gregório Bezerra, além de uma
massa silenciosa que permanece nos quartéis e que é protagonista do
Levante Comunista de 1935.
Entre
1928 e 1935 observa-se, portanto, o surgimento, no interior do PCB,
de uma esquerda de origem militar. Nesse último ano, comunistas
brasileiros, acompanhando a tendência internacional do movimento,
implementam uma política de frente popular, que, no Brasil, recebe a
designação de Aliança Nacional Libertadora (ANL).
Trata-se não só de uma aproximação com os grupos socialistas e
nacionalistas e contrários ao nazifascismo, como também uma defesa
das camadas populares diante da crise econômica de 1929. Na França,
por exemplo, tal movimento chega ao poder em 1936, sendo responsável
pela implementação de medidas de grande impacto, como a adoção da
semana de quarenta horas ou a obrigatoriedade de férias remuneradas.
Contudo, como em outras partes do mundo, a política frentista da ANL
apresenta desde o início um forte desequilíbrio a favor dos
comunistas. Assim, a ANL, embora também composta por forças
políticas moderadas, tem como presidente de honra Luís Carlos
Prestes. O PCB, por sua vez, assume posturas cada vez mais radicais
contra Getúlio Vargas, abrindo caminho para o fechamento, em julho
de 1935, de nossa primeira experiência de front populaire. Extinta a
ANL, os comunistas, uma vez mais, avaliam mal a correlação de
forças e partem para o confronto com o governo federal. Em novembro
de 1935, no melhor estilo das revoltas tenentistas, os quartéis se
levantam contra Getúlio Vargas. Em Natal, Recife e Rio de Janeiro,
os conflitos acabam resultando em mortes de oficiais e soldados.
Com
oportunismo, Getúlio Vargas explora o novo momento político. A
quartelada serve de pretexto para perseguição não só de
comunistas como também de grupos que não pertenciam à ANL, mas
faziam oposição ao governo; entre eles havia anarquistas,
sindicalistas independentes e até políticos liberais. Mais
importante ainda: a revolta consolida a aliança entre o presidente e
as forças armadas. A partir da denominada Intentona
Comunista
– definição que faz alusão à noção de plano louco ou insano,
conforme registram os dicionários – é intensificada a mística
corporativa do Exército. Os comunistas passam a ser vistos como
inimigos viscerais; enquanto isso, nas fileiras do Exército, há um
escrupuloso expurgo: cerca de 1.100 oficiais e praças são expulsos
em razão de posições políticas. Ao mesmo tempo em que essa
depuração ocorre, os efetivos militares, em 1936, aumentam para
cerca de 80 mil homens, superando em muito os 47 mil oficiais e
soldados existentes em 1930.
Apoiado
nas forças armadas, Vargas abre caminho para decretar o Estado
Novo.
Em 1937, faz veicular pela imprensa o Plano Cohen, suposta
conspiração comunista, justificativa para o golpe. Tal plano,
sabidamente falso, de autoria de grupos de extrema direita, prevê,
por exemplo, o desrespeito sistemático à honra e aos sentimentos
mais íntimos da mulher brasileira, ou seja, o estupro generalizado.
Sob
a alegação de que uma nova intentona era tramada, Getúlio revoga a
Constituição. O golpe, porém, contraria importantes interesses
políticos, que levam, anos mais tarde, ao colapso o Estado Novo.
Eram previstas eleições presidenciais em 1938. No momento em que
Getúlio impõe seu governo ditatorial, três candidatos haviam sido
lançados: Armando de Salles Oliveira, congregando facções
políticas paulistas e gaúchas, assim como segmentos de oligarquias
baianas e pernambucanas; José Américo de Almeida, representando
grupos políticos de Minas Gerais, Paraíba e Pernambuco, além de
facções oligárquicas de São Paulo, Bahia e Rio Grande do Sul; e
Plínio Salgado, chefe da Ação Integralista Brasileira, versão
nacional do fascismo europeu.
Os
dois primeiros candidatos articulam protestos na Bahia, em Pernambuco
e no Rio Grande do Sul, chegando neste último a haver resistência
armada, que é, entretanto, rapidamente sufocada. O governador local
ruma ao exílio, e o candidato integralista se aproxima politicamente
do ditador, o que não causa surpresa, uma vez que vários aspectos
do Estado Novo lembram as formas de governo nazifascista. A tônica
antissemita é uma delas. O Plano Cohen, por exemplo, é definido
como uma conspiração judaico-comunista, reproduzindo ideias comuns
aos integralistas. Mais importante que a retórica racista são os
objetivos práticos do golpe. Prevê-se, por exemplo, o fechamento do
Congresso, a extinção dos partidos políticos e a criação de um
sistema centralizado de poder. Em outras palavras, é a ditadura
contra as oligarquias, a ditadura contra os comunistas, a ditadura
contra os democratas liberais. Contudo, a tentativa de aproximação
do chefe integralista com o ditador não só falhou como também não
impediu o fechamento da Ação Integralista Brasileira. Tal
determinação levou os integralistas a implementar, em 1938, uma
nova tentativa de golpe contra Getúlio. Seu fracasso permite ao
ditador novos expurgos nas forças armadas, excluindo agora segmentos
tenentistas que caminharam para o radicalismo de direita. Dessa
forma, entre 1937 e 1945, Getúlio Vargas, com a capa institucional
que lembra governos fascistas europeus, torna-se um chefe militar de
escala nacional. Para compreendermos seu declínio e o posterior
retorno ao poder em 1950, precisamos investigar o surgimento de dois
novos segmentos políticos: os trabalhadores e os empresários, duas
faces de um Brasil cada vez mais urbano.
Veja
também:
Fonte / Referência bibliográfica:
- DEL PRIORI Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010 - Texto
copiado na íntegra (e com adaptações) Pag. 180
a 184,
Capítulo 27
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