Trabalhadores
do Brasil
Por Mary Del Priori & Renato Venancio
A
permanência de Getúlio Vargas no poder não teria sido possível
sem o extraordinário sucesso econômico alcançado durante seu
primeiro governo. Para se ter noção do significado profundo desta
afirmação, basta mencionar que, por volta de 1945, nossa
industrialização finalizava seu primeiro grande ciclo. Em outras
palavras, pela primeira vez, a produção fabril brasileira
ultrapassa a agrícola como principal atividade da economia. Nesse
período também assistimos ao surgimento da indústria de base, ou
seja, aquela dedicada à produção de máquinas e ferramentas
pesadas, à siderurgia e metalurgia e à indústria química.
Surpreendentemente,
essas transformações ocorreram em uma conjuntura internacional
adversa. É bom lembrar que a crise de 1929 e a depressão econômica
que a seguiu fizeram que, durante a primeira metade da década de
1930, os preços internacionais do café diminuíssem pela metade.
Mesmo assim, a economia brasileira apresentou, entre 1930 e 1945,
taxas de crescimento próximas a 5% ao ano. Contudo, esse
desenvolvimento não ocorre de maneira equilibrada: a atividade
industrial apresenta taxas de crescimento anual de três a sete vezes
mais elevadas do que a agricultura. Esta, além de sofrer diminuição
pela metade em relação aos anos 1920, registra uma forte tendência
à estagnação.
A
industrialização acelerada teve efeitos não só econômicos, mas
também políticos e sociais. Como é sabido, a fábrica tem na
cidade seu espaço privilegiado e, por isso, a Era Vargas –
incluindo aí seu segundo governo, entre 1950 e 1954 – é
caracterizada como uma época de intensa urbanização. Em 1920, por
exemplo, apenas dois em cada dez brasileiros residiam em cidades;
vinte anos mais tarde essa mesma relação era de três para dez; na
década de 1940, tal proporção tornara-se equilibrada: quatro em
cada dez brasileiros moravam em áreas urbanas. A formação de novas
cidades e o crescimento das já existentes estimulavam, por sua vez,
a multiplicação de trabalhadores não vinculados às tradicionais
atividades agrícolas e de industriais que não eram fazendeiros,
como Roberto Simonsen, fundador do Centro das Indústrias do Estado
de São Paulo – embrião da Fiesp. Tipo raro nos anos 1920, mas que
se torna cada vez mais frequente na década seguinte.
Getúlio
Vargas, na esperança de se contrapor ao poder oligárquico, valoriza
a aliança com os grupos urbanos e, paralelamente, mantém sua
aproximação com o Exército. Para cada segmento específico é
traçada uma estratégia política. No caso dos trabalhadores
urbanos, em 1930 cria-se o Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio. Dois anos mais tarde, Vargas adota mudanças na legislação
favoráveis ao operariado: estabelece, por exemplo, a jornada de oito
horas na indústria e no comércio. Tais concessões têm preço
elevado, já que, no mesmo ano em que é atendida uma reivindicação
defendida pelo movimento operário desde fins do século XIX, se
estabelecem os primeiros traços do sindicalismo corporativo. Segundo
a nova determinação legal, sindicatos de patrões e operários,
divididos por categorias profissionais, ficam sujeitos às federações
e confederações que, por sua vez, se subordinam ao Ministério do
Trabalho. Ao longo de seu primeiro governo, Vargas diminui cada vez
mais a possibilidade de existência de sindicatos não vinculados a
esse modelo, até que, em 1939, dois anos após a decretação do
Estado Novo, determina a existência de um único sindicato por
categoria profissional.
Tal
mudança é acompanhada pela criação do imposto sindical, através
do qual é descontado anualmente um dia de trabalho da folha de
pagamento dos operários, encaminhado para financiar a estrutura
sindical. O ditador generalizava, dessa forma, o modelo corporativo
para o conjunto das entidades representativas dos trabalhadores. De
instrumentos de luta, os sindicatos dos anos 1940 passam à condição
de agentes promotores da harmonia social e instituições prestadoras
de serviços assistenciais.
Com
certeza, os líderes sindicais formados na antiga tradição
anarquista veem criticamente essas mudanças, encarando-as como uma
maneira de cooptação e de manipulação dos interesses da classe
trabalhadora. No entanto, entre a massa operária, a postura parece
ser outra. Para muitos, familiarizados com as associações
mutualistas, Getúlio Vargas atendia a certas expectativas, como no
caso da generalização dos institutos de previdência, garantindo
aos trabalhadores o direito à aposentadoria. Além disso, através
da legislação que acompanha a implantação dos sindicatos
corporativos, Vargas consegue sensibilizar inúmeros militantes
oriundos das lutas socialistas. A Consolidação das Leis
Trabalhistas [CLT],
firmada em 1943, viabiliza isso. Nela determina-se que, a partir de
então, o trabalhador dispensado deveria ser indenizado, a mulher
operária teria direito a serviços de amparo à maternidade, assim
como se restringe a exploração do trabalho infantil. Isso para não
mencionar a criação de uma justiça do trabalho, com o intuito de
intermediar os conflitos entre patrões e empregados. Getúlio
Vargas, dessa maneira, surge aos olhos de muitos como um protetor,
como aquele que criara, via Ministério do Trabalho, uma espécie de
mutualismo sindicalista em escala nacional.
Os
empresários também viram parte de suas expectativas atendidas.
Conforme já mencionamos, o grupo mais poderoso deles, sediado em São
Paulo, não havia apoiado a Aliança Liberal. Durante a Revolução
Constitucionalista, uma vez mais, as associações empresariais
paulistas demonstraram seu descontentamento diante da tendência
centralizadora do governo provisório. Situação bem diferente foi
registrada em 1937, quando então as principais lideranças
industriais paulistas não se opuseram à implantação do Estado
Novo. Por trás dessa atitude, com certeza, havia o medo em relação
ao que se chamava na época de ameaça comunista, e também o
reconhecimento dos sucessos econômicos alcançados.
Getúlio
Vargas em muito se diferencia dos presidentes da República Velha.
Exemplos de planejamentos bem-sucedidos não faltam. Em certas
ocasiões, o ditador aproveita-se da tensa situação internacional
do período anterior à Segunda Guerra Mundial para conseguir
vantagens. Oscilando entre o apoio aos países liberais e aos do eixo
nazifascista, o governo brasileiro consegue recursos norte-americanos
para instalação, em 1941, da Companhia Siderúrgica Nacional, cujos
efeitos na área industrial foram extremamente benéficos. Getúlio
também foi hábil em descobrir e integrar a seu projeto
político-econômico intelectuais descontentes e reformistas. Tais
grupos originavam-se de instituições tecnológicas, como a Escola
de Minas de Ouro Preto, ou eram fruto de ramificações do Modernismo
dos anos 1920. Conforme é sabido, esse movimento deu origem a
tendências que valorizavam a análise científica, proporcionada
pelas nascentes ciências sociais, como uma forma de melhor conhecer
e explicar o funcionamento de nossa sociedade. Graças a isso,
assistimos – em uma sociedade que praticamente dispunha apenas de
cursos superiores de medicina, direito e engenharia – ao surgimento
de uma geração de sociólogos, economistas e administradores. Esses
intelectuais, uma vez cooptados pelo aparelho burocrático getulista,
são responsáveis pelos primeiros projetos de planejamento estatal
na área econômica. Graças a esse planejamento, empresas estatais
passam a ocupar espaços estratégicos na produção de energia e
matérias-primas.
Em
relação à área econômica mais desenvolvida do país, a política
getulista foi generosa. No início da década de 1930, é retomada a
política de valorização do café, abandonada repentinamente por
Washington Luís. Graças à manutenção do elevado nível de renda
local, coube a São Paulo liderar o processo de formação do mercado
nacional voltado para a substituição das importações.
Paralelamente a isso, o governo garante, por meio da política fiscal
e cambial, a transferência de renda para o setor industrial. A
importância do empresário paulista cresce a olhos vistos: nos anos
1940 eles passam a responder por metade da produção fabril
brasileira, o que significava um aumento de 50% em relação aos
índices registrados em 1920. Não foi somente na economia que a
intervenção estatal getulista se notabiliza. Em certas áreas
registram-se, igualmente, mudanças profundas. Este foi o caso da
educação. Durante a gestão de Gustavo Capanema – ministro da
Educação e da Saúde entre 1934 e 1945, que congrega intelectuais
do porte de Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Heitor
Villa-Lobos –, são planejadas e implementadas importantes
alterações, como a ampliação de vagas e a unificação dos
conteúdos das disciplinas no ensino secundário e no universitário.
Isso para não mencionar a criação do ensino profissional,
consubstanciado em instituições como Senai, Senac e Sesc.
A
aproximação de Getúlio com o que havia de mais moderno na época –
inclusive no sentido autoritário dessa modernidade – se expressa
através da criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
Voltado para a propaganda política através dos novos meios de
comunicação, como o rádio e o cinema, o DIP foi responsável pela
organização de rituais totalitários de culto à personalidade do
ditador. Essa instituição também submete a cultura popular à
censura, conforme ficou registrado nas alterações impostas às
letras de sambas. Exemplo disto é a conhecida modificação –
exigida pelos agentes do DIP – do texto da música Bonde de São
Januário, composta em 1940 por Ataulfo Alves e Wilson Batista. Na
letra original do samba, o refrão era “O Bonde de São Januário/
leva mais um otário/ que vai indo trabalhar”; após a
interferência do DIP, o texto passou a ser “O Bonde de São
Januário/ leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar”.
Como
seria de esperar, Getúlio esteve longe de agradar a todos os
segmentos da elite dominante. Os setores agrários acusam a indústria
de desviar braços do campo, ao mesmo tempo em que percebem estar
financiando as importações de insumos fabris e investimentos do
Estado na infraestrutura industrial. Mesmo entre os empresários, o
fundador do Estado Novo esteve longe de ter unanimidade. A legislação
trabalhista onera a atividade industrial, reduzindo o ritmo de
acumulação nesse setor. Além disso, a política econômica
agressiva tem efeitos regionais nefastos, implicando o declínio de
estados que não conseguem acompanhar o ritmo competitivo do
crescimento. Assim, é bastante revelador o fato de que, na década
de 1940, enquanto São Paulo controla quase metade da produção
industrial, a participação do Rio de Janeiro diminui pela metade. O
mesmo ocorre nas regiões nordestinas, onde se registra, no referido
período, uma diminuição de 40% na atividade industrial. No Rio
Grande do Sul, a queda nesse setor é de 20%.
Não
é de estranhar, portanto, que ao longo do Estado Novo se
multiplicassem as vozes descontentes com o rumo tomado pelo governo.
Contudo, a legislação que acompanhou o golpe facultava à oposição
uma alternativa de poder, pois a ditadura instalada em 1937,
curiosamente, tinha data marcada para acabar. Segundo a Constituição
outorgada, previa-se para 1943 a realização de um plebiscito em que
o regime seria posto à prova nas urnas. Em 1942, a decretação do
estado de guerra – ou seja, de preparação do Brasil para lutar na
Europa contra o nazifascismo – permite a transferência dessa
consulta para o período imediatamente posterior ao término dos
conflitos.
Em
1941, começam as primeiras articulações para garantir a transição
política, e o próprio ditador esboça um partido nacional. Dois
anos mais tarde, o descontentamento das elites marginalizadas pelo
Estado Novo veio a público pelo Manifesto dos Mineiros. Nesse texto,
amplamente divulgado de norte a sul do país, políticos de renome
nacional, como Afonso Arinos, Bilac Pinto, Milton Campos e Magalhães
Pinto, criticavam o caráter autoritário do governo. Ao mesmo tempo,
manifestando uma nostalgia pelo regionalismo, que tanto caracterizou
o sistema de poder da República Velha, acusam Getúlio de
“espoliação do poder político de Minas Gerais”. Em 1944, a
estrutura partidária que comandaria a transição já estava
constituída. Como exemplo dessa confluência de poder, é registrada
a aproximação de José Américo de Almeida e Armando de Salles
Oliveira, políticos que desde 1937 haviam conseguido arregimentar as
oligarquias descontentes, embora concorrentes entre si. Eles e as
elites dissidentes, que desde a Revolução de 30 haviam sido
marginalizadas, agrupam-se na União Democrática Nacional (UDN).
Paralelamente a essa oposição, Vargas promove a reunião dos
interventores no Partido Social Democrático (PSD). Enquanto isso, as
estruturas sindical e previdenciária por ele criadas servem de base
para a formação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Tais
organizações, que estavam se esboçando em 1944, são legalizadas
no ano seguinte. A UDN lança candidato próprio às eleições
previstas para 1946, o mesmo ocorrendo com o PSD, mas a posição do
PTB é outra. Não lança candidato, mas defende a convocação de
uma Assembleia Constituinte ainda no governo de Getúlio, que seria
por isso prolongado um pouco mais. Tal movimento ganhou as ruas –
sendo popularmente denominado na época como “queremismo”, ou
seja, “queremos Getúlio” – e conta com o apoio do PCB. Esse
apoio é, aparentemente, surpreendente. Como vimos, Vargas foi
responsável por uma feroz repressão aos comunistas. No entanto, é
necessário lembrar que foi no seu governo que o Brasil entra em
guerra contra o nazifascismo, em uma aliança da qual participou a
União Soviética e, no final de sua gestão, também houve a anistia
e a legalização do PCB. Mais ainda: para os comunistas, os inimigos
políticos de Vargas reunidos na UDN representavam o que havia de
mais atrasado na sociedade brasileira.
Além
de mobilizar as massas urbanas, o ditador começa a fazer
modificações no comando da polícia do Distrito Federal. Crescem
suspeitas de que as eleições seriam manipuladas em prol da
continuidade do governo. Há muito, porém, as elites dissidentes e
opositoras se precaviam contra essa possibilidade. Não por acaso,
tanto a UDN quanto o PSD escolheram candidatos à presidência nas
fileiras militares: no primeiro caso trata-se do brigadeiro Eduardo
Gomes e, no segundo, do general Eurico Gaspar Dutra.
Em
1945, as forças armadas, embora tivessem enviado “apenas” 23.344
soldados para a Segunda Guerra Mundial, aproveitam a justificativa do
conflito internacional para formar um contingente interno de 171.300
homens. Para se ter uma clara noção do que representa esse número,
basta mencionar que ele é quatro vezes maior do que o de 1930 e o
dobro do que foi necessário para o golpe de 1937. Getúlio
experimenta o amargo sabor de uma intervenção militar feita por uma
instituição que ele havia ajudado a crescer. Em 29 de outubro de
1945, sob pressão do Exército, o criador do Estado Novo deixa o
poder. Sem candidato próprio, o PTB apoia Dutra, que, não por
acaso, consegue vencer as eleições presidenciais, enquanto Getúlio,
eleito para o Senado, quase não participa da Constituinte. O ditador
ruma para um exílio interno em São Borja, no Rio Grande do Sul, de
onde retornará – segundo ele próprio definiu – “nos braços
do povo” para um novo mandato presidencial. Panfletos da época
revelam o estranho equilíbrio de forças que se tenta construir. Num
deles divulgava-se a seguinte “oração”: “Protetor nosso que
estais em São Borja, honrado seja o vosso nome; venha a nós a nossa
proteção, seja feita a vossa vontade, assim no Sul como no Norte;
os direitos nossos de cada dia nos dai hoje; e perdoai-nos as nossas
imprudências, assim como nós perdoamos aos nossos perseguidores; e
não nos deixeis cair no comunismo, mas livrai-nos do capitalismo.
Amém”. Como veremos a seguir [In:
Tentações militares e outras tentações],
a ambiguidade do projeto político de Getúlio contribui para que se
compreenda seu retorno ao poder, assim como seu trágico desfecho.
Veja
também:
Fonte
/ Referência bibliográfica:- DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010. Cap. 28, pág. 185 a 190.