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11 novembro 2022

Cidades Coloniais

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato  [1]

Centro Histórico de Salvador [2]

Façamos a viagem de volta, do campo para a cidade [ver O século sertanejo]. Uma primeira pergunta: como eram as cidades do tempo dos nossos arquiavós? Os documentos coloniais não deixam dúvidas. Para além de um “ajuntamento de homens no mesmo lugar com casas contíguas ou vizinhas”, a cidade era também um “povoado no qual a boa fortuna é mãe da inveja e a má fortuna, do desprezo. Lugar em que para ser grande é preciso tiranizar os pequenos, e para ter com que passar é necessário andar, buscar, correr e lidar”. Enfim, a opinião oficial da época não era exatamente das melhores, e com razão. Muitas cidades portuguesas, assim como suas congêneres coloniais, eram o cenário de uma tremenda desordem, espaço de permanentes disputas e conflitos sociais. Além disso, as cidades reuniam os grupos mais empobrecidos da sociedade. O que levava as autoridades metropolitanas, como fez o marquês de Lavradio, de maneira preconceituosa, a comparar os moradores da Bahia a “macacos” e “vermes”, queixando-se de ter que governar um “povo grosseiro e ingrato”. Comentário não muito diferente do registrado, três anos mais tarde, no Rio de Janeiro, cujo cenário urbano foi considerado “sumamente pobre” e marcado por “clima e gente infernal”.

Prolongando a tradição medieval, nossas cidades, na sua grande maioria, foram construídas não em áreas planas, como recomendava Vitrúvio – autor do tratado De architectura (27 a. C.), em voga desde o Renascimento –, mas em lugares altos e de difícil acesso. Morro abaixo, serpenteavam ruelas e becos sobre os quais aglomeravam-se casas toscas. O casario apertado fazia sombra às vias estreitas e escuras, nas quais se jogava, dia e noite, todo tipo de lixo. Inúmeros cronistas registraram seu mal-estar. Anchieta dizia que Salvador estava “mal situada num monte”. Em 1610, o francês Pyrard de Laval queixava-se de seu difícil acesso, e seu conterrâneo Froger, décadas mais tarde, dizia que lá não havia uma única rua direita. Com todos os defeitos, Salvador foi, até 1763, a capital da possessão portuguesa, e nela se concentravam a alta fidalguia lusitana, o alto clero e os magistrados que administravam a Colônia. Os lucros com o açúcar incentivaram a construção de edifícios oficiais e religiosos, assim como de algumas luxuosas residências. Estas, na forma de sobrados geminados de três ou quatro pavimentos, começam a ser erigidas no século XVII. O solar dos Sete Candeeiros é um exemplar deste tipo de obra. Outro exemplo de arquitetura residencial suntuosa se encontra no Solar do Unhão, com suas quatro fachadas livres e originalmente morada do desembargador Pedro de Unhão Castelo Branco. Pequenas capelas foram erigidas desde os primeiros anos: a da Conceição, junto ao porto, na faixa litorânea, origem da atual igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia; a da Ajuda, na Cidade Alta, que funcionou como matriz e como igreja dos jesuítas, antes da construção da Sé e da igreja do colégio dos padres da Companhia. A Sé, edificada depois da chegada do bispo Fernandes Sardinha, foi iniciada por Tomé de Souza e assim descrita por Mem de Sá, em 1570: “Fiz a Sé dessa cidade de pedra e cal, com três naves e de boa grandura”. Escrevendo em 1587, Gabriel Soares de Sousa complementava, sobre o Colégio dos Jesuítas: “tem esse colégio grandes dormitórios e muito bem acabados, parte dos quais ficaram sobre o mar com grande vista; cuja obra é de pedra e cal [...] com uma formosa e alegre igreja, onde se serve ao culto divino, com mui ricos ornamentos, a qual os padres têm sempre mui limpa e cheirosa”.

A existência de casario com arquitetura mais rebuscada levava ao surgimento de opiniões favoráveis ao meio urbano colonial. Segundo o professor português Luís dos Santos Vilhena, morador da capital baiana em 1790, a maior parte dos sobrados desembocava na Praia, ou Cidade Baixa. Sete calçadas levavam desta à Cidade Alta. “Há nela”, explicava o autor, “muitos edifícios nobres, grandes conventos e templos ricos e asseados”. Salvador tinha ainda três praças: a Nova da Piedade, onde os regimentos faziam exercícios militares; a do Palácio, em torno da qual se concentravam a residência dos governadores, a Casa da Moeda, a Câmara, a Cadeia, o Paço da Relação, o corpo da Guarda principal, outras tantas casas particulares e seis ruas que se comunicavam com toda a cidade; o Terreiro de Jesus, cercado pelo colégio e igreja dos jesuítas, posteriormente à sua expulsão transformado em Hospital Militar, a igreja dos Terceiros de São Domingos, a igreja da Irmandade de São Pedro dos Clérigos e inúmeras casinhas bordejando sete ruas que ali desembocavam. Nas cercanias da cidade encontrava-se o bairro de São Bento, planície aprazível cortada por ruas largas, onde se tinham estabelecido belas residências e algumas igrejas; o bairro da Praia, endereço de opulentos comerciantes, o de Santo Antônio, menos importante. A preocupação de Vilhena era, contudo, com a construção demasiada em terreno impróprio. Segundo ele, encarapitadas morro acima, por “evidente milagre, não rolavam” morro abaixo. “Visto que todas são feitas de tijolo, sobre delgados pilares do mesmo, levantados em precipícios escarpados, e sem terreno para segurança dos alicerces cuja vista infunde terror ao mais afoito e destemido”, queixava-se. Sua preocupação era tão maior quanto nas fachadas de tais sobrados sobrepunham-se varandas com grades, cobertas com telhadinhos. A escuridão dava ao “tapume de rótulas”, como o chamava, um aspecto fúnebre. Ainda criticando a fragilidade do urbanismo de Salvador, lembrava que, se “troassem canhões” de nações inimigas sobre a Cidade Alta, esta arruinaria a Cidade Baixa. A grande animação da vida urbana ficava por conta de inúmeras quitandas – em substituição a um grande mercado –, nas quais negras vendiam carnes, nacos de baleia e de peixes, hortaliças ou toucinho. Nas lojas finas ofereciam-se sedas de Gênova, linhos e algodões da Holanda e Inglaterra, tecidos de Paris e Lyon, mesclados de ouro e prata. O fausto e a falta de comodidade urbana andavam de mãos dadas.

Também no Recife, a riqueza do açúcar tratara de concentrar a população e promover a construção de altos sobrados, chamados sobrados magros, que conviviam com uma multidão de mocambos de escravos e homens pobres. Nos sobrados, o comércio ocupava o térreo; no primeiro andar, o escritório com apartamentos para caixeiros e sucessivamente alcovas e salas; no último andar, em função do calor excessivo, localizava-se a cozinha. Ia longe a época em que Gabriel Soares de Sousa definia Recife, no século XVI, como um simples povoado de “pescadores e oficiais de ribeira”. No início do século XVII, a capital pernambucana era considerada por frei Vicente do Salvador como o porto mais frequentado do Brasil. Diferentemente de outras tantas cidades coloniais, Recife estabeleceu uma relação especial com as águas, principalmente as do Capibaribe, que emolduravam o espaço urbano. No bairro de Santo Antônio ficava o palácio da Boa Vista. O Recife propriamente dito – onde ainda fica o porto – estava unido a Olinda por um istmo de areia de praia facilmente encoberto pelo mar em dias de ressaca forte. Santo Antônio, a Mauritstadt de Nassau, concentrava as lojas de comércio, sendo que expressiva atividade – portas adentro ou portas afora – era exercida por mulheres, entre as quais muitas negras quitandeiras e prostitutas. Na época em que chegaram os holandeses, Santo Antônio, antiga ilha de Antônio Vaz, não passava de um vasto pântano coberto pelas marés. Nas proximidades erguia-se o convento de São Francisco e algumas casas de morada. Na direção de Afogados, passava-se ao pé do forte das Cinco Pontas. O palácio da Boa Vista, de longe a maior construção, estava mais no interior, pontilhado de casas grandes, com quintais extensos e até sítios. Um braço do Capibaribe cortava o sudoeste daquele subúrbio e, ao norte, um afluente do rio Beberibe e os manguezais de Santo Amaro das Salinas – local de desembarque de escravos africanos – iam, aos poucos, separando a ilha que abrigava o palácio da Boa Vista da terra firme até chegar à divisa com Olinda, a antiga capital.

Ao redor desse núcleo, estendiam-se as terras verdes dos engenhos. Os rios escoavam, como estradas, a produção açucareira até o porto do Recife; os senhores preferiam morar em lugar mais salubre: as colinas de Olinda. O incêndio provocado pelos holandeses em 1631, nesta última, fez desabrochar Recife, que cresceu ao longo das águas. O nó da antiga povoação feito de um conjunto de armazéns, depósitos de açúcar e pequenas casas de pescadores fora substituído, no tempo dos flamengos, pela rua dos Judeus, com suas residências, comércio e sinagoga. Ao longo do rio, debruçavam-se moradias de todos os tipos mirando o movimento imenso de canoeiros escravos ou livres, levando gente, víveres, mercadorias, água potável e animais em todas as direções. O Poço da Panela, de águas cristalinas, era o lugar onde as famílias abastadas se refugiavam durante os tórridos verões. O Varadouro, barragem natural a separar a água doce da salobra, foi melhorado por sucessivos governadores, tornando-se não só o manancial da cidade como porto das canoas que iam e vinham de Recife. Nas margens do Capibaribe de águas caudalosas, sobretudo em época de cheia, concentravam-se as lavadeiras da cidade, assim como os mocambos – feitos de barro batido, mariscos, cipós, madeira e folhas –, em que moravam escravos e famílias pobres.

Ancorada entre os charcos formados pelo Tamanduateí, o Pinheiros, o Juqueri e o Cotia, São Paulo parecia aos olhos dos viajantes estrangeiros melhor aglomeração urbana do que suas congêneres. No alto de uma pequena elevação sobressaíam as torres de suas oito igrejas, seus dois conventos e três mosteiros. Casas em taipa branqueada com tabatinga, uma espécie de argila clara, davam-lhe ares de incrível limpeza. As ruas, no entender de vários observadores, eram “largas, claras, calçadas, espaçosas e asseadas”. Aqui e ali, chafarizes reuniam a multidão de escravos e mulheres em busca d’água. O do largo da Misericórdia era dos mais concorridos. O clima ameno e saudável também impressionava: “O clima de São Paulo é um dos mais amenos da terra”, exclamavam Spix e Martius, depois de torrar sob o intenso calor carioca. Transposto o riacho do Tamanduateí, entrava-se na parte mais animada: o mercado ou rua das casinhas – com lojas de víveres – que se esparramavam pela rua do Buracão ou ladeira do Carmo. As casas de moradia dos que tinham mais posses costumavam ter dois andares dotados de balcões, onde se instalavam homens e mulheres. Neles tomavam a fresca da manhã e da tarde e assistiam ao desfilar das procissões em dias de festa de santos. Outras possuíam corredores laterais sustentados por pilares em madeira, assim como umbrais de portas e janelas decoradas. Até o início do século XVIII, muitos índios eram carpinteiros e seu estilo deixou registros na ornamentação das casas. Quanto ao seu interior, Saint-Hilaire, viajante francês do século XIX, descreveu-as como limpas e mobiliadas com gosto. As paredes, pintadas com cores claras e guarnecidas de rodapés nas casas novas, contrastavam com as das antigas, ornadas com arabescos e desenhos. Singelas construções religiosas dominavam o contorno da capital: a catedral da Sé, o mosteiro de São Bento, os conventos de São Francisco, Carmo e Santa Teresa e, mais afastado, o da Luz. O cedro garantia a fabricação de altares e retábulos. Capelas particulares, como a de Fernão Paes de Barros, eram elegantemente decoradas com folhas de ouro, exóticas chinesices e tetos pintados. Outras construções se sobressaíam ao casario uniforme e austero: eram elas o palácio do Governo, a cadeia, o quartel e o hospital militar. Segundo um cronista, as igrejas pouco tinham de notável. Para além da colina central descobria-se, ao norte da cidade, o Jardim Botânico construído em 1799 por Antônio Manuel de Mello Castro e Mendonça, governador da capitania; do lado do Brás, da Consolação ou Santa Ifigênia, pequenas chácaras com seus pomares e roças bem cuidadas indicavam a presença de moradores. Mais longe, além dos rios que banhavam o sopé da colina, freguesias periféricas sediavam fazendas que abasteciam, com seus produtos, o mercado de alimentos.

A presença de terreiros e praças, tão comum em nossas cidades, notadamente nas costeiras, não se fará sentir nos núcleos de mineração que se formaram de pequenos arraiais, como Ouro Preto e São João del-Rei. Ocorrendo o ouro em regiões montanhosas, os arraiais nasciam ora junto aos regatos, ora nas encostas. Entre eles se formou uma rede de ruas irregulares e íngremes, nas quais se encravavam pequenos pátios. Em meio ao emaranhado de vielas, travessas e becos se equilibravam, a princípio, casas de pau a pique cobertas de telhas do barro facilmente encontrado na região, as casas de sopapo, posteriormente trocadas, pelo menos entre a elite, por construções mais duráveis. Ao longo do século XVIII, as austeras paredes de taipa começaram a abrir-se em janelas e vãos que davam às casas mineiras uma extraordinária harmonia. Os povoados rapidamente se transformaram em vilas, concentrando colonos e imigrantes que, com seus escravos, vinham em busca de ouro, e autoridades que ali se instalavam para controlar a extração aurífera. Nessas mudanças, os casarões se assobradaram e, como em outras partes do Brasil, instalava-se um negócio no térreo. Ipês, braúnas, cedros e casca-de-cobra foram madeiras largamente utilizadas na construção de residências, igrejas e edifícios públicos. Seus interiores ganhavam tetos lisos ou com painéis ricamente decorados com grinaldas, desenhos geométricos, colunas e figuras de animais. Com o mesmo objetivo de embelezar, a esteira de bambu achatado, processo trazido pelos portugueses do Oriente, recebia curiosas pinturas. Os imóveis eram acessados por corredores, muitas vezes pavimentados com hematitas e quartzos rolados. Uma escada metida entre as paredes levava ao primeiro andar. Nele se encontravam o salão de visitas – de frente para a rua – e a sala de jantar, nos fundos, abrindo-se para uma varanda. Os quartos de dormir abriam-se para o primeiro recinto. As cozinhas, para a varanda. Aí também se localizava o quartinho em que eram depositados os vasos de serviço íntimo e onde, em gamelas ou bacias de arame, se tomava banho. Uma outra escada ligava a varanda ao pátio interno. Para além do pátio, estendia-se a horta familiar. Debaixo da casa, junto ao galinheiro, às cocheiras e ao quarto de arreios, localizava-se o espaço onde os escravos dormiam. Segundo especialistas, com poucas variantes, esse foi o tipo de construção comum à elite nos distritos do ouro e dos diamantes. A partir da segunda metade do século XVIII, o uso da pedra lavrada de tradição minhota foi frequente em igrejas, casas solarengas, edifícios públicos e fazendas nas regiões de tapanhoacanga. Este é o caso, por exemplo, do sítio do padre Faria, do Taquaral, e do arraial da Passagem de Mariana.

A prosperidade da vida urbana mineira incentivou uma série de melhoramentos arquitetônicos e domésticos: as fachadas começaram a ganhar sacadas rendilhadas em pedra-sabão, grades em ferro de inspiração italiana, ornamentos em cantaria nas soleiras. Jardins à francesa, recortados em canteiros de variadas flores, chamavam a atenção dos viajantes, como os da casa dos Motta, em Ouro Preto. Em Goiás, cidades do ouro, como Jaraguá, viram surgir o uso da malacacheta em lugar de vidros na janela e de seixos rolados na ornamentação de vestíbulos. Fontes inspiradas na escola de escultura de Mafra murmuravam, refrescando as tardes. Residências médias e grandes abrigavam capelas com altares em jacarandá ou cedro onde senhores e escravos assistiam à missa. Nas casas sem capela, o quarto dos santos, em que uma cômoda alta sustentava oratórios e imagens, atendia às promessas e orações de todos. Numerosas oficinas de carpintaria davam conta de encomendas de estátuas, terços, coroas e rosários. A mobília, inspirada em desenhos importados de Portugal, ganhava desenhos em auto-relevo, garras de leão ou burro, embelezando camas, cadeiras, cômodas, contadores e bufetes. Espelhos e ferragens sofisticam-se. As arcas, onde se guardavam roupas finas e bens preciosos, também ganhavam decorações com tachas douradas. Para alegrar as paredes, religiosos italianos vendiam quadros de procedência europeia. A prata convertia-se em baixelas, serviços de penteadeira e arreios, sendo produzidos por prateiros baianos e mineiros. O linho cultivado nos distritos do Rio das Mortes e o algodão de Montes Claros transformavam-se em finas alfaias domésticas. Em Mariana, Prados e Congonhas do Campo, pequenas olarias forneciam louça grossa para o uso diário.

Até a descoberta do ouro em Minas Gerais, a cidade do Rio de Janeiro não tinha muitos encantos. Possuía, no século XVII, uma fortaleza bem guarnecida de canhões e um centro comercial muito animado por embarcações vindas do Rio da Prata e de Angola. Da América espanhola, especialmente do Peru, vinham muitas patacas de prata para pagar escravos clandestinos. A importância desse comércio ficou gravada na devoção a Nossa Senhora de Copacabana – de origem boliviana –, mais tarde instalada na pequena capela da praia do mesmo nome. Para a África era enviada a farinha de mandioca, produzida no Recôncavo Fluminense, e lá vendida, segundo o cronista Brandônio, por “alto preço”. Igualmente do Rio saía parte do tabaco baiano destinado a comprar escravos em Angola. Até meados do século XVII, a cidade possuía quinze igrejas e instituições religiosas: o colégio dos jesuítas, no extinto morro do Castelo, o mosteiro de São Bento, o convento do Carmo, a igreja de Nossa Senhora da Conceição ou da Cruz dos Militares que sinalizavam a prosperidade da cidade. Seu perfil, contudo, era ainda de um Rio de Janeiro rural. A cidade tinha, há pouco tempo, descido dos morros, onde a plantara inicialmente Mem de Sá, para invadir várzeas e vales entre montes. Ao longo da ribeira, plantavam-se trapiches encarregados de armazenar açúcar. Entre o quadrilátero dos morros do Castelo, Santo Antônio, de São Bento e da Conceição delineavam-se as primeiras vias: a rua Direita, da Vala, da Misericórdia. No atual Catete instalaram-se olarias que abasteciam a cidade com tijolos e telhas. Na lagoa de Socopenapã (mais tarde, Rodrigo de Freitas) moía o engenho del Rei restaurado por Martim de Sá. Duas capelas importantes foram, então, construídas: a da Candelária, erguida, em promessa, pelo abastado Antônio Martins da Palma, que pagava um voto que fizera durante terrível travessia do Atlântico, e a da Penha, que desde sua construção, por Baltazar de Abreu Cardoso, ganhou fama de santuário milagroso. Medidas de higiene combatiam com timidez o péssimo estado sanitário: isolaram-se doentes de varíola em lazaretos e obrigou-se o destripamento em alto-mar das baleias caçadas ao largo da costa: “para que o mau cheiro que exalavam não infeccionasse a cidade”. A Cadeia Pública e a Casa da Câmara desceram do Castelo e se instalaram na várzea, no antigo terreiro da Polé, depois praça do Carmo e atual XV de Novembro. Na Ilha Grande, erigiu-se um estaleiro, destinado a fabricar galeões e fragatas empregados no comércio marítimo e no policiamento do litoral brasileiro. Os primeiros quilombos, constituídos por negros fugidos dos engenhos, começavam a concentrar-se nas margens do Paraíba.

No início do século XVIII intensificaram-se o tráfico negreiro para a extração do ouro e o aumento da produção do açúcar fluminense. Como ficou a cidade? Crescida, inchada, ela via aumentar dia a dia os problemas com limpeza. Os viajantes estrangeiros consideravam o Rio de Janeiro, como disse dela um inglês, “a mais imunda associação humana vivendo sob a curva dos céus”. Em contraste com a belíssima baía azul e montanhosa, as casas eram feias. As ruas, sujas, atraíam porcos ou outros animais domésticos que vinham comer os restos de lixo jogados porta afora. O desasseio das praias, em cujas águas se derramavam os dejetos domésticos, preocupava as autoridades: “despejos cujos eflúvios voltam para a cidade e a fazem pestífera”. Melhorados em 1743, os armazéns do rei se transformaram em residência dos governadores e, a partir de 1763, em residência dos vice-reis. Branca, retangular e baixa, a construção era modesta e seus vastos salões abrigavam pouca mobília. À sua direita, na linha do casario voltado para a praia, erguiam-se os telhados íngremes da casa dos Telles. Ao lado, portas abertas indicavam a estalagem do francês Philippe, bodegueiro conhecido dos imigrantes portugueses que buscavam os caminhos para Minas Gerais. Um chafariz na praça reunia escravos que vinham buscar água em sonoro tumulto.

As lojas dos mercadores abrigavam-se do sol forte sob toldos de pano riscado. Tabuletas indicavam os ofícios: barbearia, chapelaria, oficina de bate-folhas. Indicavam também “Bom e Barato!”. Na porta, caixeiros de tamanco aguardavam as ordens dos patrões, na sua maioria portugueses do Minho ou das Ilhas. Nos cantos de muitas ruas, oratórios com velas acesas lembravam aos devotos a oração das seis da tarde. Na esquina do Rosário com a Quitanda havia um em louvor de Nossa Senhora da Abadia; no canto de Ourives com Assembleia, outro em honra de Nossa Senhora do Monte Serrate; o da fuga para o Egito, na rua do Piolho, e assim por diante. As fachadas das residências quase desapareciam por trás das grades dos muxarabiês, pelas quais as senhoras e suas escravas observavam, sem ser vistas, o movimento da rua. As paredes duplas, responsáveis por indescritível calor, raramente tinham decoração. Quando muito, forravam-nas com chitão ou damasco. O salão de receber, vazio de mobiliário, somava-se à pequena sala de jantar. No centro da construção, pátios ajudavam a iluminar e arejar os fechados ambientes. Sem numeração, as casas eram conhecidas pelos nomes dos que nelas residiam ou pelo comércio que ali se praticava.

Num porto onde o tráfico de escravos era determinante, onde ficava tal mercado? O Valongo, nome que o sinistro local recebeu, localizava-se entre o outeiro da Saúde e o morro do Livramento. Erigido sob as ordens do marquês de Lavradio, quando se instalou no Rio em 1769, consistia em armazéns alinhados, beirando a praia, cada um com sua porta aberta para receber a mercadoria humana vinda da África. Depois da travessia em condições terríveis, os cativos encaveirados eram engordados com farinha, banana e água, podendo ganhar “até cinco libras por semana”. Cartazes do lado de fora anunciavam a chegada de “negros bons, moços e fortes”, e de preços com “abatimento”.

No Rio de Janeiro ou em outras cidades coloniais, a massa de escravos dominava boa parcela dos ofícios urbanos. Atarefados, oferecendo seus serviços ou os produtos feitos na casa do senhor, cumprindo obrigações, levando recados, carregando água, os cativos estavam em toda parte. Sua presença associada ao transporte privado é constante nas gravuras sobre o período. Eram eles que carregavam o banguê, velha liteira, particular ou de aluguel, cujo telhado de couro em forma de baú protegia do sol quem ia dentro. Portavam nos ombros as cadeirinhas, mais refinadas, feitas de couro de vaca e forradas de damasco carmesim, cujas cortinas fechavam-se a cada vez que nelas se transportava uma dama. Levavam, também, a serpentina, espécie de palanquim indiano com cortinas, tendo um leito de rede. O madeiramento em que se pendurava o traste e que era valentemente erguido pelos cativos possuía esculturas: pombas, anjos, flores, frutos, obras de talha, enfim. Fardas de melhor qualidade e perucas francesas vestiam os andas, escravos encarregados de transportar senhores abastados. Mas cruzava-se pelas ruas com outros tipos de carregadores: os de pesados tonéis amarrados em tramas de corda e pau. E os dos tigres: barris carregados de lixo doméstico normalmente enterrados em buracos nas praias das cidades litorâneas. Uma bandeira preta indicava a saturação dos mesmos.

Nas estradas das capelas, nos becos sujos, encontravam-se pelo chão aqueles que tinham se tornado os dejetos da escravidão. Doentes, aleijados, moribundos eram deixados a mendigar ou a morrer pelas ruas da cidade. Misturavam-se a outros pedintes, muitos deles imigrantes sem sorte e sem trabalho, camponeses pobres, crianças abandonadas, soldados expulsos das tropas. Todos personagens das nossas cidades. As camadas mais despossuídas da população encontravam-se, depois das ave-marias, nas tabernas, nas vendas, nas casas de alcouce ou de prostituição: eram espaços de sociabilidade onde se bebia cachaça barata, cantava-se ao som da viola, em São Paulo, ou da marimba, no Rio de Janeiro, e jogavam-se dados e cartas. O chão de terra batida, sobre o qual se cuspinhava o fumo mascado, recebia não poucas vezes o corpo de um ferido de briga ou de uma prostituta cujos serviços eram prestados ali perto. Em muitos desses locais misturavam-se os dialetos africanos com a fala reinol. Soavam atabaques, rabecas, berimbaus.

Durante o dia, as ruas das cidades se animavam com outros sons. O peditório dos irmãos das confrarias era um deles. Bandeja à mão, esmolavam de pés descalços para suas festas: a do Divino, a do Rei Congo, a do Santíssimo. A voz insistente também pedia: “Para a cera de Nossa Senhora! Para as obras da capela! Para as alminhas de Deus!”. Campainhas informavam sua presença, que era respondida pela criançada gritando: “Pai Nosso! Pai Nosso!”. O santo viático, quando passava, também causava comoção. Irmãos de opa anunciavam pelo triste badalo da campainha que estavam levando os últimos sacramentos a um moribundo. Uma multidão consternada seguia atrás em oração. Nas artérias mais importantes cruzavam-se os funcionários do governo, os soldados da milícia da terra, frades e padres seguidos de beatas, mazombos – enriquecidos graças ao açúcar, ao ouro ou ao tráfico de escravos –, mulatos, mamelucos, cabras, peões, oficiais mecânicos, ciganos, degredados e milhares de escravos. Mulheres, as trabalhadoras, cativas, forras ou brancas pobres, vendiam, elas também, os seus serviços de lavadeiras, doceiras, rendeiras, prostitutas, parteiras, cozinheiras, etc. Pouco se viam senhoras e sinhás. Reclusas, não deixavam de realizar tarefas domésticas, expondo-se apenas em dias de festa religiosa.

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Veja também:



Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

  • [1Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 61 a 69, Capítulo 9. 

22 outubro 2022

A Ascensão dos Porcos, uma fábula da floresta

Por Caio Coppola, 21/10/2022


Coppola narra o conto do JavaPorco que desbancou Tucanos, foi sucedido por uma Anta, preso por um Marreco, solto por Corvos e agora disputa o comando da Floresta com uma Garça!

O Chefe JavaPorco convocou uma grande reunião dos bichos para comunicar suas intenções de, mais uma vez,tomar o poder. Tão logo iniciou o discurso alegando inocência, uma garça enfurecida irrompeu na clareira a passos largos assustando a todos.

A Garça era um animal diferente - ela voava, como a elite dos pássaros, e também caminhava no lodo, como os animais do chão. Mas o que realmente impressionava a bicharada era outra coisa: apesar de passar o dia todo andando na sujeira do pântano, suas penas ainda eram brancas e limpas.

Após uma pausa dramática, a Garça, de asas abertas, gritou a plenos pulmões.

"... Seu porco LARÁPIO, você nunca foi rei, você não passa de uma CHEFE-DE-BANDO! Você é um CORROMPIDO e um ALIADO DA ALCATEIA que aterroriza os animais de bem. Você defende a invasão de tocas e quer liberar cogumelos tóxicos que deixam nossos filhotes vulneráveis a predadores. Você não é livre, porco... você é um DESENJALAUDO! E eu te desafio a uma votação pelo reino dessa magnífica floresta!”.

As palavras da Garça acirraram os ânimos e dividiram os bichos. Sob pretexto de manter a ordem pública, o Tribunal dos Corvos determinou que a votação fosse realizada só uma semana depois, e de tabela, proibiu que a Garça se referisse ao JavaPorco como LARÁPIO, CORROMPIDO, DESENJAULADO, CHEFE-DE-BANDO e ALIADO DE ALCATEIA.

Silenciada, a Garça foi difamada pelas gralhas e papagaios que espalhavam e repetiam mentiras a seu respeito. Na véspera do seu confronto com o JavaPorco, a esbelta ave sofreu um atentado contra sua vida e foi envenenada por uma picada de serpente encantada. A Garça sobreviveu, mas… Veja o vídeo:


21 outubro 2022

O Chefe Lula ainda fala e manda?

“… Aí o Lula, que era o presidente do Sindicato dos urubus, resolveu falar. Bateu as asas três vezes… tlec… tlec… tlec… E todos se calaram. Quando aquela porção de bicos estava toda virada para o lado dele e todos os urubus ficaram quietos, ele falou:

– “Urubuzada, atenção, por favor!...” 

Em 1992, numa aula de Sociologia, lemos na classe uma fábula chamada “A Greve dos urubus”, de autoria do ecologista José Lutzenberger (In: A greve dos urubus). Num determinado ponto do texto, o Lula, líder do sindicato dos urubus toma a palavra e faz seu discurso inflamado, depois surge a música de outro urubu chamado Gilberto Jiló enquanto os demais urubus deixaram de catar (ciscar e comer) o lixo da praia. Resolveram continuar em greve.

Lembrei-me desta fábula nesta semana, ao perceber que o Lula real ainda fala (um tanto rouco, e em meios às mentiras) e manda muito: na imprensa, na maioria dos professores e universidades, nos diversos tribunais por todo o país, no sistema eleitoral (TREs e TSE) e tem um STF para chamar de seu.

Quero só destacar apenas algumas ações do Lula que manda e não pede nestes últimos dias. Lula, seu partido, o PT e seus puxadinhos... mandam e:

Etc., etc., etc. Evitamos muitas informações aqui pois estamos em perigo…, Sabemos que a Jovem Pan e dezenas de canais já foram censurados, enquanto se ouve de milhões que apoiam o “líder do sindicato dos urubus” igualmente milhões de batidas de asas “tlec… tlec… tlec…”; e se calando, enquanto seu líder continua falando. Estes acham até uma delíca, tudo que está acontecendo

Quem sabe podemos pelo menos sugerir o vídeo do deputado Marcel Van Hattem a seguir, que fala diferente.





14 outubro 2022

O Ministério da Verdade

Por

Cristóvão Tezza [1], Gazeta do Povo


Foto disponível no artigo, ver Nota 2

 

"O Grande Irmão está vendo você..." (G. Orwell, pg.27).

 

Hoje, lendo um dos artigos de a Gazeta do Povo, Pedidos de censura do PT podem ser prenúncio sobre regulação da mídia que Lula propõe, de Leonardo Desideri, acabei me reportando ao livro presenteado também pelo mesmo Jornal, 1984, de George Orwell. Ao mesmo tempo, descobri outra matéria publicada em 2012, que trazia uma explicação de Cristóvão Tezza de como o Ministério da Verdade1 já era sentido na época. Vamos ao texto:

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No clássico 1984, de George Orwell, a pessimista distopia sobre um mundo totalitário que controla o cidadão em cada gesto, existe um ‘Ministério da Verdade’. Sua função? Mentir. O Ministério da Verdade é encarregado de modificar a história passada de modo a deixá-la de acordo com a vontade do poder. Os números antigos de jornais e revistas são sempre modificados; estatísticas alteradas; discursos omitidos; e até mesmo o sentido das palavras sofre uma aguda vigilância. A ‘novilíngua’ é uma máquina semântica de achatar significados. Bem, o Brasil não precisa se preocupar. Para quem já tem um ‘Ministério da Pesca’ [isto, em 2012], não há necessidade de alegorias complementares. E, felizmente, temos liberdade absoluta para rir, que faz bem à alma.

O assustador delírio ficcional de Orwell me veio à lembrança ao ler que um procurador do Ministério Público Federal entrou com uma ação contra... contra quem mesmo? Contra o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. O motivo: em suas acepções para a palavra ‘cigano’, o dicionário, depois de listar as definições correntes, anota as de sentido pejorativo: ‘trapaceiro’, ‘velhaco’, colocando a data (1899) em que este uso é documentado na língua pela primeira vez. Para o Ministério Público, esta definição seria ofensiva, preconceituosa, de cunho racista. Sim, e é mesmo; justo por isso, o dicionário informa o leitor de que se trata de um sentido pejorativo. É exatamente esta a função de um dicionário da língua: anotar os usos concretos da língua, em seus momentos históricos. Tanto melhor ele será quanto mais definições contemplar, e o Houaiss é um dicionário extraordinário para a cultura brasileira x é o nosso primeiro grande dicionário, elaborado com um padrão de exigência e com um ouvido para a vida real da língua como nenhum dos antecessores. Mas, para o procurador, a quinta acepção que o dicionário registra ao definir ‘cigano’ afrontaria a Constituição brasileira.

A acusação não é apenas absurda; é perigosa, pelo seu precedente de controle da linguagem. Assim, chegaremos à ‘novilíngua’ de Orwell. Se o leitor consultar no mesmo Houaiss, por exemplo, a palavra ‘polaca’, verá que ela define, pela ordem, a mulher nascida na Polônia, a dança chamada ‘polonesa’, a Constituição do Brasil promulgada em 1937 (era chamada de ‘constituição polaca’ por seguir a linha da Constituição da Polônia); e, finalmente, com a indicação de uso ‘pejorativo’ e ‘obsoleto’, o dicionário registra que ‘polaca’ pode ser ‘mulher da vida’, ‘meretriz’. Esta acepção surgiu no final do século 19, designando as vítimas (‘loiras’, daí o nome ‘polacas’) do tráfico de mulheres da Europa para o Brasil. Se a moda pega, o novo Ministério da Verdade logo vai propor varreduras semânticas e fogueiras purificadoras. O meu medo é que, de grão em grão, excomunguem A polaquinha, obra-prima de Dalton Trevisan.

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Bem, se em 2012, Cristovão Tezza já tinha percebido a ação do tal Ministério da Verdade, o que diremos, hoje, em 2022, em tempo de República Alexandrina! E por falar nisto, aproveito mais uma contribuição de outro, aliás, outra colunista da Gazeta do Povo, Cristina Graeml, com o vídeo a seguir [3], no momento em que o Ministério da Verdade ganha muitos adeptos: PT, TSE, grande imprensa (isto mesmo, outros órgãos da imprensa) etc.

… a censura do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a uma publicação da Gazeta do Povo no Twitter, atendendo a pedido da campanha do PT. O ministro do TSE, Paulo de Tarso Sanseverino, concordou com a alegação dos advogados da campanha petista de que é inverídico que Lula apoie o ditador da Nicaragua, Daniel Ortega e proibiu o post refrente à reportagem cujo título era: Ditadura apoiada por Lula tira sinal da CNN do ar.

Vejamos:

Notas:

  • [1] Cristovão Tezza “… nasceu em Lages, Santa Catarina, em 1952. Em junho de 1959, morreu seu pai; dois anos depois, a família se mudou para Curitiba, ParanáColunista da Gazeta do Povo, autor de muitíssimos artigos, incluindo este sobre o Ministério da Verdade (ou da Mentira?), publicado em 05/03/2012... Veja mais em: <http://cristovaotezza.com.br/p_biografia.htm>. Acesso em: 14/10/2022.
  • [3]  TSE censura post no Twitter da Gazeta do Povo a pedido do PT. Gazeta do Povo. Acesso em: 14/10/2022.

10 outubro 2022

O Século Sertanejo

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

Ciclo do gado [2]


Diferentemente dos intrusivos paulistas, os criadores de gado nordestinos adentraram não nas matas e alagados, mas nas vastas extensões de terra distantes do fértil litoral. Faziam-no mansamente. Faziam-no, aliás, desde a montagem dos primeiros engenhos. Em 1549, com a instalação do governo-geral, começou a lenta expansão da pecuária no Nordeste. Uma das figuras emblemáticas dessa forma de conquista do sertão foi o português Garcia d’Ávila, que, tendo recebido umas terras de pasto nos campos de Itapoã das mãos do governador Tomé de Souza, logo as estendeu até a enseada de Tatuapara, onde ergueu uma construção com traços medievais: a Casa da Torre. Em poucos anos, tornou-se um dos mais ricos homens da Bahia. Dele dizia-se ter tanto gado que “não lhe sabe o número, e só do bravo e perdido sustentou as armadas Del-Rei”. Devagarzinho, manadas baianas, imensas e silenciosas, percorreram léguas e léguas do território brasileiro, espalhando-se entre o que hoje é o Piauí e as nascentes do rio São Francisco, em Minas Gerais.

O sertão, significando na época as terras apartadas do litoral, era o palco dessa nova ocupação. A vida ali não era fácil. O cotidiano desenrolava-se sob sol ardente e em solo árido. De agosto a dezembro, a falta d’água era tanta que muitas pessoas quase não tinham o que beber. Junto com a seca vinham as crises de abastecimento. Quase nada florescia, nem crescia. A regularidade das estiagens era apavorante: anos como os de 1660, 1671, 1673 e 1735 deixaram marcas. Preocupadas, as autoridades anotavam em correspondências oficiais: “Há dois anos que se experimenta nesta capitania e em todo o Estado uma total falta de água, por cuja causa se destruíram as plantas e não produziram as safras, além do que há grande falta de carne e de farinha”. As dificuldades alimentares aparecem em outros registros, como aquele de 1697 em que um padre anotava sobre os sertanejos: “comem estes homens só carne de vaca com laticínios e algum mel que tiram pelos paus; a carne ordinariamente se come assada, porque não há panelas em que se coza. Bebem água de poços e lagoas, sempre turva e muito assalitrada. Os ares são muito grossos e pouco sadios. Desta sorte vivem esses miseráveis homens, vestindo couros e parecendo tapuias”. A pobreza sertaneja era um dado real, embora escapasse ao relato do padre europeu a luta dos homens para adaptar-se ao meio ambiente. Para ficar em poucos exemplos, que se pense no uso de fibras vegetais substituindo tecidos de vestir, nas redes de fibra de caroá, no cardápio agreste de carne de tatu ou peba e da paçoca de carne de sol pilada com farinha e rapadura.

Nas áreas menos atingidas pela seca, o gado dominava a terra. A imensidão das fazendas de gado do Nordeste já tinha chamado a atenção do jesuíta Antonil por se estenderem de Olinda à freguesia de Nossa Senhora da Vitória, no “certão do Peauhy”: “E posto que sejam muitos os currais da parte da Bahia, chegam a muito maior número os de Pernambuco, cujo sertão se estende pela costa desde a cidade de Olinda até o rio de São Francisco oitenta léguas, e continuando, da barra do rio de São Francisco até a barra do rio Iguaçu, contam-se duzentas léguas. De Olinda para o oeste até o Piauí, freguesia de Nossa Senhora da Vitória, cento e sessenta léguas, e pela parte do norte estende-se de Olinda até o Ceará Mirim oitenta léguas e daí até ao Açu trinta e cinco, e até o Ceará Grande oitenta. E por todas vem a estender-se desde Olinda até esta parte quase duzentas léguas”.

A cidade de Oeiras – primeira capital do Piauí – originou-se de uma única fazenda, denominada Cabrobó, fundada por sesmeiros dos descendentes de Garcia d’Ávila. O antigo núcleo da fazenda, seus casarões, currais e casas de moradores e agregados geraram a vila de Moxa, nome do riacho que banha a região e que serviu de primeira designação para a capital piauiense. Casas de barro cobertas de palha, currais de pedra ou madeira, pequenas roças de mandioca, feijão e milho funcionavam como âncora para o gado que se criava solto. Pastagens sem limites funcionavam como campos de engorda onde o vaqueiro só pisava para buscar bezerros novos e fazer nova choupana. Fazendas grandes agregavam tendas de ferreiro e carpinteiro, cercadas para separação de reses, reservas de pasto e lavouras de subsistência. Muitas delas ainda possuíam engenhos movidos a boi ou a água para a produção de açúcar mascavo, assim como dispunham de casas de farinhada e alpendres ou tendas com rodas de fiar algodão. Os fios eram tingidos com urucum, jenipapo ou caju. As que não tinham sal à flor da terra, compravam da barca do sal que subia e descia o Parnaíba. Na época das chuvas – anunciadas pelo desabrochar da flor do mandacaru –, aprontavam-se arreios, ferraduras e couros. Nos meses de abril e maio, conhecidos como fins d’água, floresciam juremas e magnólias a perfumar os caminhos. As campinas eram chamadas de campos mimosos. Nas noites escuras, o som agudo dos berrantes sinalizava a direção para os viajantes perdidos. Técnicas e equipamentos tão importantes nos engenhos eram substituídos pela habilidade específica do vaqueiro. Habilidade em tratar vaca parida, em cuidar de umbigo de bezerro, em evitar bicheiras, em serrar chifres pontiagudos, em marcar as ancas dos animais com ferro quente. O curral era o cenário para toda essa atividade: “Em cada fazenda”, explicava o ouvidor Durão, no século XVIII, em sua Descrição da Capitania de São José do Piauí, “deve haver pelo menos três currais que tomam diversos nomes conforme o serviço que presta. Chama curral de vaquejada àquele em que se recebe o gado que tem de ser vendido, onde se tira o leite e onde se faz o rol de porteiras; curral de apartar aquele em que se recebe todo gado indistintamente para ao depois ser distribuído pelas diferentes acomodações; curral de benefício onde se recolhem os garrotes para serem ferrados e para se fazer as partilhas dos vaqueiros”.

Um quarto dos bezerros pertencia ao vaqueiro. O tamanho dos currais variava de acordo com o rebanho e o número anual de bezerros, chegando até a mil metros quadrados. Uma fazenda de baixa produção amansava, anualmente, cem bezerros; uma grande, mil. Cercas eram feitas em aroeira, cedro, candeia, louro, jatobá, jacarandá, enfim, madeiras nobres que, então, eram abundantes. Junto aos vaqueiros livres trabalhavam escravos, homens e mulheres. Os de serviço trabalhavam nas diferentes atividades da fazenda: roçar, abrir picadas, destocar, semear, serviços domésticos, etc. Havia, contudo, escravos vaqueiros divididos, junto com os livres, por sua utilidade: vaqueiro cabeça de campo de gado ou vaqueiro cabeça de campo d’éguas. E também os curtidores e os serventes. Segundo os viajantes Spix e Martius, de passagem pelo Piauí, em 1820, para cada mil cabeças bastavam dez escravos. Casamentos ou uniões consensuais entre homens e mulheres escravos garantiam relativa estabilidade familiar nas fazendas de gado. Das crianças nascidas, a grande maioria era empurrada para o trabalho no campo desde cedo, e muitos meninos de sete anos aparecem nos documentos como pequenos vaqueiros. Outra característica da área de pecuária era o número elevado de escravos alforriados, sobretudo no século XIX.

O gado tinha várias funções: seu couro servia para o ensacamento da produção de fumo e embalagem de alimentos nas viagens ultramarinas, a fabricação de malas, bolsas, laços e redes. No engenho, os animais eram comumente usados para a lavragem das canas e para virar as pesadas rodas. Naqueles vastos territórios, quem tinha algumas reses era considerado pobre. Os animais eram utilizados até a exaustão. O gado alimentava vilas e cidades em Pernambuco e Bahia, mas também, via rio São Francisco, as populações que, no final do século XVII, se instalaram em Minas Gerais. A cidade de Juazeiro, na Bahia, por exemplo, ganhou esse nome pela quantidade de juás e tamarindeiros que abrigavam o gado na passagem do rio São Francisco. Era um antigo pouso de tropa. Fortunas imensas se constituíram na pecuária. Mas o mais importante é que o pequeno comércio de gado mantinha uma grande população de camaradas, vaqueiros, agregados, livres e forros ocupada e acumulando bens.

Tal como no Nordeste, a criação de gado, cem anos após o início da colonização, conquistou o Sul da Colônia. Nessa área, os jesuítas foram os principais responsáveis pela disseminação das reses. E o fizeram para alimentar os aldeamentos de catequese. Abatiam-se, com este propósito, milhares de reses por ano. Havia tanto gado pastando nos campos que qualquer estrangeiro tratava de registrar o fato em suas anotações: “rebanhos incontáveis de gado, inverno e verão”, como dizia o padre Antônio Sepp. Num sistema de trocas comerciais mantido com os paulistas, também permutavam reses por algodão, para vestir os índios das reduções. Nas épocas em que os preadores vindos de São Paulo abatiam-se sobre os aldeamentos, caçando indígenas, os jesuítas retaliavam abandonando seu gado à vida selvagem. A vacaria do mar, que se estende do litoral atlântico até o rio Uruguai, se formou, segundo um historiador, pela dispersão de centenas de vacas leiteiras, abandonadas pelos jesuítas em 1637. Tais vacarias multiplicaram-se e não poucas vezes foram atacadas pelos espanhóis em guerra com os portugueses. Amparados por soldados tapes, comedores de carne verde – termo referente ao gado recém- -abatido –, tais rebanhos foram alvo de constante cobiça. Em meio às tensões de suas metrópoles, lusos davam aos espanhóis licenças para vaquear. Muitos, porém, raramente se contentavam com sua cota, preferindo vagar por conta própria caçando gado.

O primeiro quartel do século XVIII encontrou as vacarias quase dizimadas. Prevenidos, os jesuítas deslocaram seu criatório para Pinhais, deixando seu gado intocado, em reprodução, por oito anos. Ao final, tinham centenas de milhares de cabeças, e nem os ataques de índios nem o consumo das missões diminuía esse ritmo de crescimento. Quando houve sua expulsão, em 1759, só na Estância Grande de Yapeyú, os inacianos possuíam mais de 500 mil cabeças de gado vacum, 4 mil cavalos e 70 mil ovelhas. Ao chegar, quinze ou vinte anos mais tarde, luso-brasileiros encontraram os campos repletos de gado. Iniciou-se, então, um processo de mão dupla: o Estado retomou os trabalhos das fazendas reais de Bojuru e Capão Comprido, existentes desde 1737, a fim de alimentar tropas e famílias de soldados que vinham concorrendo para povoar o Rio Grande. Durante a segunda metade do século XVIII, juntas, as duas fazendas chegaram a ter milhares de animais, mas a má administração logo pôs tudo a perder. A valorização do preço do couro promoveu uma verdadeira carniçaria; matavam-se milhares de animais, inclusive vacas prenhes e vitelinhas, para arrancar-lhes o precioso revestimento. Inúmeros vice-reis protestaram. Denúncias, como a feita por um certo Sebastião Francisco Betamio, em 1780, contra capatazes negligentes em relação à diminuição do rebanho, ou insensíveis aos maus-tratos impostos a vacas leiteiras e cavalos, somavam-se à necessidade de um regulamento sólido, como o que quis aplicar o vice-rei Luís de Vasconcellos. Tudo em vão. O Estado gastava uma fortuna para alimentar com carne e farinha os soldados e moradores de Sacramento, enquanto seus próprios criatórios se arruinavam, vítimas de roubos e descaso.

Na outra mão, ou seja, contrariando o processo de decadência, em várias áreas o rebanho se multiplicava. Nas estâncias, sobretudo as instaladas nas cercanias do rio Pardo, abrigavam-se moradores ricos e senhores de milhares de cabeças de gado. Currais constituídos por cercados de madeiras e gravetos, isolados nos pampas, funcionavam não como centro de engorda, mas de domesticação dos rebanhos. Impunha-se a lei da querência: as reses passando pelo rodeio, sujeitando-se à sua ação centralizadora e não mais se dispersando. A lança, o laço e a boleadeira, instrumentos de adestramento e captura dos animais, eram magnificamente manejados pelos grupos de solitários campeadores, conhecidos como bombeiros. O estancieiro, diferentemente do preador ou do traficante, era homem plantado em terra própria. Terra com casas grandes, pomares e campos de trigo. Invernadeiro, ele comprava gado do preador para vendê-lo ao comprador – com seus tropeiros e tropas – ou ao traficante, abrigado temporariamente sob tendas de couro. Esses dois grupos, pilhadores de cavalos e matadores de bois, por suas arriadas – roubo de gado –, eram o tormento das autoridades. Eram pejorativamente chamados de intrusos. Por outro lado, foi graças a eles que a planície platina foi varrida de espanhóis e índios. Em multidão surda e difusa, se espalhavam pelas fronteiras, empurrando-as. Estabelecidos em falsas querências com o fim único de revendê-las aos colonizadores, chegavam a apossar-se de pedaços das estâncias reais. Uma cultura singular nascia na Cisplatina: a valorização do cavalo bom, cantado em prosa e verso, a forma de arriar o pingo com ornamentos em prata, rosas, estrelas e corações, enfim, aperos para cabeçadas, testeiras e peitorais. O campeador gaúcho, o autêntico guasca, se caracteriza, então, por seu amor ao pago e à querência, o hábito da carneagem – esfolar a rês –, do churrasco, do mogango com leite, do sombreiro de feltro, das botas de couro com vistosas chilenas de prata, do agudo punhal de cabo floreado.

O contínuo movimento de comércio com os paulistas, iniciado no começo do século XVIII, tornava possível essa civilização gaúcha. Entre 1724 e 1726 – relata um historiador –, a importação paulista anual foi de mil muares, dobrando até 1750. Daí até 1780, passou a 5 mil e, de 1780 a 1800, dobrou mais uma vez. De 1826 a 1845, estava acima de 30 mil animais. Se os muares equivaliam a 49,8% dos animais drenados para São Paulo, os bois correspondiam a 28,2% das importações e os cavalos a 22%. Na outra ponta desse lucrativo comércio encontramos os tropeiros. Mas quem eram?

Basicamente, eram homens que viviam de tropear, ou seja, de comprar e vender diversos tipos de produtos. Podia ser gente do Nordeste ou do Sudeste. Enfocaremos, aqui, o papel dos tropeiros paulistas, responsáveis, junto com tropeiros mineiros, pelo enorme desenvolvimento da sociedade gaúcha. Denominavam-se paulistas os nativos da capitania, mas também portugueses e espanhóis que ali viviam. Os paulistas, dizia um cronista colonial, depois que lhes tiraram os terrenos auríferos, se voltaram em grande parte para o negócio e a criação de gados, aproveitando assim os muitos campos naturais da capitania e os feitais – campos feitos em detrimento da agricultura. Dedicaram-se também a comprar gados na capitania de São Pedro ou em Curitiba e, conduzindo-os por terra a essa capitania, vão vendê-las às outras. Tinham razão: os gados baianos que desciam o São Francisco não davam mais conta de alimentar as necessidades das populações nas áreas mineradoras. Além disso, o prodigioso desenvolvimento das correntes de circulação humana, durante o século XVIII, ensejava meios rápidos e abundantes de comunicação. Esses meios seriam cavalos e mulas. O problema de transporte desses grossos rebanhos foi assim resolvido: traziam as reses até Laguna e para galgar o paredão da Serra Geral, de maneira a oferecer-lhes o pasto que ia de Lages a Curitiba, abriram caminho acompanhando o rio Araranguá. O itinerário da cidade de São Paulo para o Continente do Viamão dá a medida da tremenda viagem das tropas: “Partiam de Sorocaba, seguiam na direção de Itapetininga, atravessavam o rio Itararé, tocavam em Ponta Grossa e nas proximidades de Curitiba e em seus campos povoados de currais; cortavam o vale do rio Negro, penetravam as florestas da serra do Espigão, entravam nas vastas regiões de Campos Novos Curitibanos e Lages. De lá, prosseguiam através dos rios das Canoas e das Caveiras até o estreito desfiladeiro do caudaloso Pelotas. Depois da garganta do Pelotas abriam-se os campos de Vacaria, na serra rio-grandense. Desciam cortando os rios das Antas e das Camisas até a verdejante planície do Guaíba. Por toda parte, de Sorocaba a Viamão, avistavam-se fazendas e currais de gado”.

Ao longo da estrada, pousos: pequenos núcleos de civilização e comércio. O milho, básico ao gado, era fonte de lucro. Aos domingos, um vigário rezava missa para locais e forasteiros. Nos ranchos – longos telheiros cobertos com varanda –, os tropeiros descarregavam, faziam-se fogueira e, num tripé à moda cigana, preparavam o de-comer: feijão com carne seca e angu de milho. A cachaça era usada em confraternizações ou como remédio. Grandes cestos ou bancos de madeira eram feitos de cama. Descarregados de seus fardos, os animais eram raspados com facão para tirar o pó e o suor. Prevalecia a regra da solidariedade: quem chegasse primeiro deixava lugar para as mulas de outras tropas, ajudando a descarregá-las quando necessário. Cargas eram arrumadas dentro do rancho com cuidados para não se misturar. As cangalhas secavam ao sol e eram depois empilhadas. Nas vendas encontrava-se um pouco de tudo para enfrentar a estrada: aguardente, doces, velas, livros de reza. Pelo chão, mantas de toucinho, pequenos barris de açúcar grosso e sal, espingardas e munição.

As mulas vindas do Sul eram comercializadas, grosso modo, na feira de Sorocaba. A dezoito léguas de São Paulo, a cidade foi o cenário das mais importantes feiras de muares dos séculos XVIII e XIX. Os animais partiam do Sul nos meses de chuva, quando as pastagens começam a verdejar. Uns preferiam vir direto, chegando entre janeiro e março, outros estacionavam nos campos de Lages, ao sul de Santa Catarina, para que os animais se refizessem. As tropas não eram trazidas para dentro da vila, estacionando nas imediações, nos currais dos campos d’El Rei. Tinha lugar para a engorda preparatória para a festa, além da domesticação dos burros, na qual os sorocabanos eram mestres. Uma escola de peões evoluiu junto com as feiras. Aprendia-se a domar mulas para a sela ou para a cangalha. No primeiro caso, exigia-se elegância no andar; no segundo, resistência e força. Junto aos animais, os peões e capatazes erguiam suas barracas. De dia, eram os exercícios de doma, a alimentação de milho e sal, o preparo de rédeas e correias. À noite, acendia-se o fogo, preparava-se o quentão, gemia a viola. Ali juntavam-se caboclos, peões e camaradas, nomes genéricos dos que não eram patrões. Os tropeiros iam para a cidade. Muito provavelmente detinham-se a examinar arreios e apetrechos que se vendiam nessas ocasiões: as sacadas, ou selas de madeira chapeadas a prata, facões, redes, ponchos, caronas de pele de onça e mantas sorocabanas. Pois é com essa aparatosa indumentária que Charles Landseer os pintou, orgulhosos e elegantes num rancho, em 1825. Seus lucros se perdiam em grossas apostas nas patas dos cavalos, pois não faltavam corridas nas raias de areia. Algumas ruas na saída da vila concentravam as “perdidas” nas casas de alcouce. Nelas, sexo, jogo e bebida se misturavam.

Uma vez vendidas, as mulas serviam para tudo. Carregavam gente, pedras ou produtos de subsistência, como cereais, carne, sal, açúcar. Portavam todos os instrumentos de trabalho utilizados na mineração ou nos engenhos. Levavam os produtos que, dos portos litorâneos, partiam para mercados no exterior: fumo, aguardente, açúcar, anil, algodão e, no início do século XIX, café. Transportavam pólvora e armamento e artigos de necessidade no cotidiano, como vestimentas, móveis, arreios, utensílios de casa. Levavam também artigos de luxo, como cravos – por assim dizer, o avô do piano – e livros franceses proibidos, por exemplo, os de Rousseau.

A importância econômica e social desse século sertanejo não deixa dúvidas. Sertanejos, guascas e tropeiros estiveram por trás do funcionamento de engenhos de açúcar, do desenvolvimento das atividades mineiras e do abastecimento do interior do Brasil. A circulação interna da Colônia, assim como o transporte de produtos e bens só podia ser feito em lombo de mula. O abastecimento de Minas e dos grupos militares estacionados no Sul dependia da carne bovina. A fazenda de gado do Nordeste criou uma massa de pequenos e médios proprietários. O mesmo se deu no Sul e no Sudeste. Aí, particularmente, essa gente alargou nossas fronteiras. Funcionando como uma verdadeira correia transmissora de negócios, valores e informações, tropas e tropeiros carregavam informações, cartas e recados, ligando as pessoas nos pontos mais diversos da Colônia. No século XVIII, as tropas de mulas foram responsáveis pela profunda animação que tomou conta do pequeno e do grande comércio, assim como da sociedade que começava a nascer nos sertões, antes tão ermos e tão longe do rei. Inúmeros registros dão conta da presença das tropas pelos caminhos. Em 1717, em viagem de São Paulo a Minas, o governador d. Pedro de Almeida observava ter cruzado com mais de mil animais em seu caminho, fora os oitocentos que vira arranchados em Guaratinguetá. Cem anos mais tarde, um cronista registrava tropas de cinquenta animais que viajavam, sem cessar, entre São João del-Rei e Rio de Janeiro. Em 1858, o tráfico entre Rio e São Paulo era feito no lombo de dezenas de milhares de bestas. A dívida do sertão em relação aos tropeiros estendeu-se até a chegada do trem na segunda metade do século XIX.

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Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 54 a 60, Capítulo 8.
  • [2] Imagem disponível em: <https://www.resumoescolar.com.br/historia-do-brasil/pecuaria-no-brasil-colonial/>. Acesso em 28/09/2022.


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