Translate

16 agosto 2024

Da guerrilha à abertura

Por
DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato


O governo nascido do golpe de 1964 foi definido certa vez como o “Estado Novo da UDN”. Essa definição tem sua razão de ser. Durante duas décadas, políticos udenistas – representantes de parcelas importantes das elites empresariais e agrárias – dificilmente chegam a conseguir apoio de mais de 30% do eleitorado brasileiro. Entretanto, através da ditadura militar, puderam implementar várias de suas propostas em matéria de política econômica, como a diminuição do valor real dos salários e a ampla abertura da economia aos investimentos estrangeiros.

A aliança entre udenistas e militares tem ainda outras repercussões. Apesar de oportunistas e golpistas, os partidários da UDN são admiradores de democracias liberais. Tal posicionamento impede a adoção de um modelo fascista no Brasil. Mesmo nos momentos de maior intolerância, a ditadura militar, por meio da rotatividade dos presidentes, evita o caudilhismo, não deixando também de reconhecer a legalidade da oposição parlamentar. A extinção dos partidos tradicionais, em 1965, é acompanhada da criação de duas novas agremiações: Arena (Aliança Renovadora Nacional) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Este último representa boa parte dos grupos que lutam pelo retorno à normalidade democrática.

A direção central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), logo após o Golpe Militar, dá início à autocrítica diante do esquerdismo e condena a resistência armada. Todavia, tal postura não foi unânime, fazendo com que dirigentes abandonassem o partido, como nos casos de Carlos Marighella (indo para a Aliança Nacional Libertadora – ANL) e Apolônio de Carvalho (indo para o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário – PCBR). Critica-se, então, o que se denominava etapismo, uma estratégia que prega a revolução por etapas, cabendo ao PCB apoiar a burguesia no processo de constituição de uma sociedade liberal, antifeudal e anti-imperialista, deixando para um futuro distante a luta pela implantação do socialismo. Para os dissidentes, a estratégia do PCB facilitava a implantação da ditadura, pois subordinava o movimento operário aos acordos de cúpula com as lideranças populistas. Avalia-se que a burguesia depende de sua associação com a agricultura de exportação e com o capitalismo internacional, não havendo por parte do empresariado qualquer inclinação pela ruptura com as classes dominantes. O populismo radical de Goulart representa, quando muito, aspirações de segmentos minoritários e mais atrasados da burguesia nacional.

A ausência de resistência ao Golpe Militar faz esse tipo de interpretação ganhar adeptos. Entre 1965 e 1967, amplia-se o número de dissidências atingindo até organizações formadas anos antes. Várias delas tinham raízes internacionais e não eram um fenômeno particularmente novo. No Brasil, desde os anos 1930, movimentos trotskistas dão origem a partidos rivais do PCB, como a Liga Comunista Internacionalista ou o Partido Operário Leninista. Com o surgimento de novos países comunistas, que, às vezes, não aceitam as mudanças de rumo da política soviética, as dissidências proliferam. No início dos anos 1960, além do PCB e do Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT), havia o Partido Comunista do Brasil (PC do B) – primeiro de inspiração chinesa e depois albanesa –, a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (Polop) e, por fim, a Ação Popular (AP), moderada, pelo menos em sua fase inicial, e vinculada ao que veio a ser conhecido como catolicismo progressista.

Nesses grupos nascem propostas de luta armada. Há, sem dúvida, inúmeros matizes entre uma tendência política e outra. No entanto, a perspectiva de uma revolução iminente parece ser um traço comum às diversas siglas. Paradoxalmente, esse engajamento radical mantém vínculos com algumas ideias do desprezado PCB e do nacionalismo desenvolvimentista. Generaliza-se, por exemplo, a noção de que o capitalismo brasileiro entrara em uma fase de estagnação. A não realização das reformas de base é responsável por isso. Acreditava-se que as classes dominantes dependiam de um governo ditatorial para continuar existindo, sendo em vão a luta pelo retorno à democracia.

A novidade do período é que os grupos revolucionários recém-formados recrutam militantes predominantemente na classe média. Havia ainda, em partidos que aderiam à luta armada, o predomínio de estudantes e professores universitários. Esses segmentos, segundo os processos da justiça militar, respondem por 80% do Movimento de Libertação Popular (Molipo), 55% do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e 53% do Comando de Libertação Nacional (Colina), para mencionarmos apenas alguns exemplos.

Outro dado importante é a predominância de menores de 25 anos nos diversos agrupamentos revolucionários. O aparecimento de numerosos jovens, não necessariamente pobres ou miseráveis, dispostos a lutar contra os poderes constituídos não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. De certa maneira, isso traduz certas mudanças que ocorriam na juventude em escala mundial. Durante a maior parte do século XX, o ensino universitário foi acessível a um grupo extremamente reduzido; nos anos 1960, porém, essa situação começa a se modificar. O caso brasileiro é típico: entre 1948 e 1968, o número de estudantes universitários passa de 34 mil para 258 mil; no mesmo período em que a população brasileira dobra, o número de jovens que frequentavam universidades aumenta oito vezes. O crescimento desse segmento torna-o cada vez mais capaz de influenciar politicamente a sociedade.

Tão importante quanto essa mudança é a alteração do quadro político mundial. A partir dos anos 1940, o mundo é sacudido por revoluções nacionalistas na Ásia e na África. O impossível parecia ocorrer: países pobres do Terceiro Mundo conseguem vencer antigos colonizadores europeus. Coroando essas transformações, em 1959, um pequeno grupo de guerrilheiros faz uma revolução em Cuba, enfrentando a oposição do tradicional partido comunista local e dos Estados Unidos, que na época desfruta o título de maior potência econômica e militar do mundo.

Mais ainda: a revolução é um fenômeno da alta cultura. Entre seus partidários estão refinados romancistas, filósofos e artistas europeus e norte-americanos. No Brasil, algumas das produções culturais extraordinariamente bem-sucedidas – como o cinema de Glauber Rocha, a música de João Gilberto e o teatro de Augusto Boal – revelam o lado positivo da ruptura radical com o passado. Mesmo nos meios nacionalistas – como é o caso dos intelectuais vinculados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado em 1955 – respira-se o ar da utopia. A identidade nacional é vista como a ruptura com o passado e não como a sua recuperação, conforme almejavam os românticos do século XIX.

Ao longo dos anos 1960, tal visão é difundida por meio do cinema, teatro e jornalismo, assim como por palestras e debates promovidos pelos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE). A valorização desse novo nacionalismo também representa uma resposta à forte influência cultural norte-americana, interpretada como uma ameaça à identidade nacional, pois, ao contrário da europeização do século precedente, não se restringe a grupos de elites, destinando-se ao conjunto da população.

Vista a partir de hoje, a luta armada parece algo politicamente ingênuo ou até incompreensível, mas, na época, é fortemente marcada pelo sentimento nacional e de justiça social, em um mundo onde revoluções que pareciam impossíveis estavam ocorrendo. Como, porém, se organiza essa luta? Em primeiro lugar, é necessário lembrar que defender a revolução imediata nem sempre implica pegar em armas. Os agrupamentos de esquerda que assim agiram, geralmente adotaram os princípios do foquismo, teoria elaborada a partir do exemplo da revolução cubana, em que um pequeno grupo guerrilheiro inicia um processo revolucionário no campo.

Para tanto, primeiramente, são necessários recursos financeiros. Em 1967, inicia-se uma série de roubos a bancos por parte dos grupos guerrilheiros, processo que se arrasta até o início dos anos 1970 e resulta em cerca de trezentos assaltos (ou, como se dizia na época, desapropriações revolucionárias), com a arrecadação de mais de 2 milhões de dólares. Na prática, a guerrilha – salvo no caso do Araguaia – não se estende ao campo. À medida que o sistema repressivo realiza prisões, o emprego sistemático da tortura faz com que mais e mais revolucionários sejam capturados. Em 1969, a própria dinâmica do movimento guerrilheiro é alterada, passando a ter como objetivo resgatar os companheiros das masmorras militares. Os assaltos a bancos vão dando lugar a sequestros – dentre os quais os dos embaixadores norte-americano, alemão e suíço no Brasil –, cujos resgates são a libertação de prisioneiros políticos.

Alegando a ameaça comunista e acentuando uma tendência de endurecimento, que vinha desde o ano anterior – com a eleição do general Costa e Silva em 25 de maio de 1966 –, o governo militar se torna cada vez mais ditatorial. Nesse contexto é fortalecida a doutrina de segurança nacional, que torna prioridade entre as forças armadas a luta contra a ameaça interna, e não mais a defesa contra inimigos estrangeiros. Assiste-se também à ampliação das redes de espionagem e de repressão. Paralelamente ao Serviço Nacional de Informações (SNI), criado em 1964, atuam agora outras organizações, como o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), a Operação Bandeirantes (Oban) e o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), somente para citarmos algumas siglas.

Até a oposição legal deixa de ser aceita. A Frente Ampla composta por Carlos Lacerda e João Goulart, que defende bandeiras democráticas, como eleições diretas, anistia e nova Constituição, é proibida em 1968. A recessão e o declínio do poder de compra dos salários fazem, por sua vez, com que o movimento sindical renasça. Greves envolvendo milhares de operários ocorrem em Minas Gerais e São Paulo. No mesmo período, manifestações estudantis cruzam o país, culminando com a Passeata dos 100 mil em 26 de agosto de 1968. A resposta dos militares: maior endurecimento do regime. Em 13 de dezembro é assinado o AI-5: com ele, o presidente da República passa a poder, a bel-prazer, fechar desde Câmaras de Vereadores até o próprio Congresso Nacional, nomear interventores para qualquer cargo executivo, cassar os direitos políticos de qualquer cidadão e também suspender o recurso ao habeas corpus.

Mas se 1968 é o ano do auge repressivo da ditadura, é também o da retomada do crescimento econômico. O modelo econômico adotado rende finalmente seus frutos e o Brasil, até 1973, apresenta taxas bastante elevadas de desenvolvimento industrial, superando mesmo os 10% ao ano. Fala-se em milagre econômico, mas um milagre que, alguns anos mais tarde, cobraria seu preço.

O aumento dos investimentos das multinacionais, como se previa desde os anos 1950, não é acompanhado pelo crescimento do setor de insumos industriais e de energia, e o resultado disso é a necessidade de importar esses produtos e petróleo. A economia brasileira entra aí em um labirinto de endividamento.

O milagre econômico também amplia, em relação aos padrões da economia brasileira da época, o mercado de produtos industriais de custo elevado, como os automóveis. Tal decisão gera um quadro perverso, no qual a concentração de renda torna-se necessária para garantir o funcionamento do sistema econômico. Bem ou mal, porém, a ditadura conta com algum grau de aprovação popular. No início dos anos 1970, embalados pela vitória da Arena, partido de sustentação do governo, os militares empenham-se em campanha de legitimação do novo regime. O general Emílio Garrastazu Médici, presidente empossado em outubro de 1969, lança a campanha “Brasil, grande potência” e também, com a abertura da Transamazônica, tenta reviver a euforia da época da construção de Brasília.

Em 1974, as consequências mundiais do aumento do custo do petróleo, associadas à política irresponsável de endividamento externo, lançam a economia brasileira novamente em crise. Nessa época, os antigos grupos vinculados à ala legalista das forças armadas – na época definida como castellista, numa alusão ao marechal Castello Branco – recuperam o terreno perdido. A eleição, no referido ano, do general Ernesto Geisel é considerada um marco dessa transição. O novo presidente defende desde o primeiro dia de posse uma abertura política “lenta, segura e gradual”. Para tanto, enfrenta os grupos da linha-dura, altera os comandos militares e procura lentamente subordinar ao Ministério da Justiça os aparelhos repressivos militares, que haviam saído do controle.

Desde 1972, os movimentos armados urbanos não existem mais. A guerrilha, que sobreviveu apenas no Araguaia, foi destroçada em 1974. Os vários tentáculos repressivos passam a perseguir grupos que não participaram desse tipo de enfrentamento, como foi o caso dos militantes do PCB e de membros da Igreja. Por intermédio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a subjugação dos organismos repressivos ganha apoio da sociedade civil.

O processo de abertura, como prevê Geisel, não é linear. Expressivos segmentos militares agrupados em torno do general Sílvio Frota fazem oposição ao presidente, contando inclusive com o apoio de parte, igualmente expressiva, da Arena. A eles, Geisel eventualmente cede, endurecendo o regime, principalmente após o desempenho eleitoral do MDB nas eleições de 1974. Dois anos mais tarde é aprovada a denominada Lei Falcão, em alusão ao nome do ministro da Justiça da época. Através dessa lei ficam proibidos, em programas eleitorais televisivos, o debate e a exposição oral de propostas e críticas ao regime. Mais ainda: em 1977, reformas legais criam meios de a Arena manter presença majoritária no Congresso, apesar das derrotas eleitorais. Amplia-se a representação parlamentar do Norte e do Nordeste e institui-se a indicação de senadores pelo próprio governo, popularmente chamados de “senadores biônicos”.

Por meio dessa delicada engenharia política, Geisel garante a própria sucessão. O novo escolhido é o general João Baptista de Oliveira Figueiredo, empossado em 1979. Nessa eleição concorre o general Euler Bentes Monteiro, apoiado pelo MDB e segmentos importantes do empresariado brasileiro. Nem os mais beneficiados defendem a ditadura, cujo fim não demoraria muito a ocorrer.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, RenatoUma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010. Cap. 31, pág. 204 a 248.

12 agosto 2024

Infalibilidade: católicos x protestantes

Por: Alcides Amorim

Raio atinge a basílica de São Pedro, no Vaticano [1]


Infalibilidade [2] é o estado de ser isento de erro. Em inglês, “infalível” aparece na AV (“Authorized Version”) em At 1.3 com referência à ressurreição de Cristo. Todavia, não há palavra correspondente no grego, sendo omitida nas versões posteriores.

O fato de que a revelação de Deus em Jesus Cristo é infalível, no sentido geral de fornecer à humanidade o caminho infalível da salvação, é aceito por todos os cristãos, mas o lugar exato da infalibilidade é uma questão de controvérsia. Três principais linhas de pensamento podem ser discernidas, as quais correspondem a três divisões principais da cristandade. A Igreja Ortodoxa Oriental acredita que os concílios gerais da Igreja são guiados pelo Espírito Santo, de modo que não erram; a Igreja Romana acredita que o papa é pessoalmente preservado do erro por Deus; e o pensamento protestante depende da suficiência da Escritura Sagrada como guia da auto-revelação de Deus. Podemos inter-relacionar estas três teorias da seguinte maneira: os cristãos de todas as tradições atribuem às Sagradas Escrituras um lugar sem igual na determinação do evangelho, e existe um extenso corpo de fé em comum que delas é derivado. Esta fé em comum é escrita e definida ainda mais pelos concílios realizados nos primeiros séculos, dos quais pelo menos quatro recebem aprovação universal. A Igreja Ortodoxa continua a depender de concílios, a Igreja Latina finalmente chegou a definir o papado como o lugar exato da infalibilidade, ao passo que os protestantes confiam nas Escrituras como derradeira fonte de autoridade. Atenção especial deve ser dada à doutrina da infalibilidade papal e à doutrina protestante da suficiência e supremacia das Escrituras.

1. Infalibilidade do papa

A doutrina da infalibilidade do papa foi definida pela Igreja Católica Romana no ano de 1870. Declara que o papa é capacitado por Deus a expressar infalivelmente o que a Igreja deve crer, quanto às questões de fé e moral, quando fala na sua capacidade oficial de “vigário de Cristo na terra” ou ex cathedra [3].

Por trás deste dogma estão três pressuposições discutidas por outros cristãos:

  • (1) que Cristo instituiu o cargo de “vigário” para Sua Igreja na terra;

  • (2) que este cargo é exercido pelo bispo de Roma; e

  • (3) que o vigário de Cristo é infalível nas suas declarações sobre fé e moral.

Os fundamentos nos quais a Igreja de Roma baseia estas pressuposições podem ser resumidos da seguinte maneira:
  • (1) A declaração de nosso Senhor a Pedro registrado em Mt 16.18: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”, subentende que Cristo fez de Pedro o cabeça da igreja ou o seu “vigário na terra”.

  • (2) Pedro foi bispo em Roma e, por isso, constituiu esta sé no bispado supremo sobre a terra, transmitindo aos seus sucessores a prerrogativa de ser o vigário de Cristo.

  • (3) O vigário de Cristo deve ser infalível pela própria natureza do caso.

Os três argumentos são necessários à doutrina da infalibilidade papal, e revelam uma falibilidade que torna impossível às Igrejas Ortodoxa e Protestante aceitá-los.

Recentemente, as atitudes católico-romanas diante da infalibilidade papal mudaram um pouco como resposta ao diálogo ecumênico, à investigação histórica e, mais recentemente, ao livro de Hans Küng [4]. O desafio de Küng, provocado pela regra papal sobre os anticoncepcionais, deu origem a um debate vasto e ainda sem solução dentro do catolicismo. Küng argumentou que o cargo didático do papa (magisterium), na realidade, tinha tomado muitas decisões oficiais contraditórias e errôneas no decurso dos séculos, e que os católicos devem, portanto, somente falar de uma “indefectibilidade da Igreja”, posição esta de semelhança marcante àquela de alguns protestantes, conforme têm indicado muitos católicos. O debate tem forçado todos os católicos a definirem com maior clareza exatamente aquilo que a infalibilidade papal envolve, de modo que possam cortar muitas ideias exageradas sobre ela; e muitos católicos progressistas têm procurado incluir bispos, teólogos e até mesmo a igreja inteira na sua ideia de uma tradição de fé verdadeira, infalivelmente preservada. Enquanto isso, os historiadores têm demonstrado que a indefectibilidade da igreja era o conceito reconhecido no Ocidente até cerca de 1200, quando, então, foi lentamente substituído pela infalibilidade da igreja e, finalmente, pela infalibilidade do papado, posição esta proposta pela primeira vez em cerca de 1300, mas calorosamente debatida nas escolas e nunca sancionada oficialmente senão em 1870.

2. Infalibilidade das Escrituras

Quando nos voltamos ao pensamento protestante ou evangélico no tocante a esta questão, descobrimos que, quando a palavra é usada, a infalibilidade é atribuída às Escrituras do AT e do NT, como o registro profético e apostólico. Assim acontece no quádruplo sentido:

  • (1) de que a Palavra de Deus infalivelmente atinge o seu propósito;

  • (2) de que nos dá testemunho fidedigno da revelação salvífica e da redenção divina em Cristo;

  • (3) de que ela nos fornece uma norma autorizada de fé e conduta; e

  • (4) de que através dela fala o Espírito de Deus infalível que a deu.

Em anos recentes, a concentração sobre as questões históricas e científicas, e a suspeita da infalibilidade dogmática alegada pelo papa, têm levado a críticas severas de todo o conceito, mesmo quando é aplicado à Bíblia; e deve ser concedido que o próprio termo não é bíblico e não desempenha um papel de muita importância na própria teologia da Reforma. Mesmo assim, nos sentidos indicados, está bem adaptado para ressaltar autoridade e autenticidade das Escrituras. A Igreja aceita e preserva a Palavra infalível como o verdadeiro padrão da sua apostolicidade; porque a própria Palavra, isto é, a Sagrada Escritura, deve sua infalibilidade, não a qualquer qualidade intrínseca ou independente, mas ao assunto e Autor divinos, a quem o termo “infalibilidade” pode ser apropriadamente aplicado.

Ironicamente, os ataques contra a infalibilidade bíblica, que durante mais de um século vinham principalmente dos protestantes liberais, vieram nesta última década [anos 90] da parte de conservadores, que argumentam que somente “inerrância” (outra palavra não achada nas Escrituras) protege adequadamente a total veracidade e fidedignidade da Bíblia. Os evangélicos dos grupos principais, portanto, especialmente aqueles que aceitam alguns dos métodos e conclusões do estudo moderno das Escrituras, são forçados a defender o conceito tradicional da infalibilidade da Bíblia contra os liberais [veja item 3], como base necessária para receber a revelação divina, colocando-as contra conservadores como base adequada.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

3. Infalibilidade e inerrância das Escrituras [5]

Como protestante conservador, quero destacar a resposta bíblica (neste item 3) que complementa nosso ponto de vista sobre a infalibilidade e inerrância das Escrituras...

A palavra infalível significa "incapaz de erro". Se algo é infalível, ele nunca está errado e é, portanto, absolutamente confiável. Da mesma forma, a palavra inerrante, também aplicada à Escritura, significa "livre de erro". Simplificando, a Bíblia nunca falha.

A Bíblia afirma ser infalível em 2Pedro 1.19: “Assim, temos ainda mais firme a palavra dos profetas.” Pedro continua com uma descrição de como a Escritura passou a existir: "Antes de mais nada, saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito Santo" (2Pedro 1.20-21).

Além disso, vemos a infalibilidade implícita em 2Timóteo 3.16-17: "Toda a Escritura é inspirada por Deus" e tem o efeito de produzir um servo de Deus que seja "apto e plenamente preparado para toda boa obra." O fato de que Deus “inspirou” a Escritura garante que a Bíblia é infalível, pois Deus não pode inspirar um erro. O fato de que a Bíblia equipa servos de Deus "plenamente" para o serviço mostra que ela nos guia à verdade, não ao erro.

Se Deus é infalível, então assim será a Sua Palavra. A doutrina da infalibilidade da Escritura é baseada em uma compreensão da perfeição do caráter de Deus. A Palavra de Deus é "perfeita, e revigora a alma" (Salmo 19.7), porque o próprio Deus é perfeito. Teologicamente, Deus está intimamente associado com a Sua Palavra; o Senhor Jesus é chamado de "a Palavra" (João 1.14).

É importante salientar que a doutrina da infalibilidade diz respeito apenas aos documentos originais. Erros de tradução, de impressão e de datilografia são erros humanos óbvios e são, na maioria das vezes, facilmente localizados. No entanto, o que os escritores bíblicos escreveram originalmente era completamente livre de erro ou omissão, já que o Espírito supervisionou a sua tarefa. Deus é verdadeiro e perfeitamente confiável (João 14.6; 17.3), assim como a Sua Palavra (João 17.17).

A Bíblia afirma perfeição completa (em oposição a uma parcial) no Salmo 12:6, Salmo 19.7, Provérbios 30.5 e em muitos outros lugares. É factual do início ao fim e, de fato, nos julga (em vez de vice-versa): "Pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração" (Hebreus 4.12).

A Bíblia é a única fonte objetiva de tudo o que Deus nos deu sobre Ele e Seu plano para a humanidade. Como a infalível Palavra de Deus, a Bíblia é inerrante, autoritária, confiável e suficiente para atender às nossas necessidades.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

A infalibilidade papal, sobretudo a de Jorge Mario Bergoglio, atual Papa Francisco, está sendo questionada? Além do raio citado acima, houve outro em Buenos Aires, terra de Bergoglio, ocorrida no dia de seu aniversário. Veja o vídeo e as explicações a seguir:




Notas / Referências bibliográficas:

  • [1] O raio que atingiu a cúpula da Basílica de São Pedro, no Vaticano ocorreu em 11 de fevereiro de 2013, horas depois de o Papa Bento XVI anunciar sua renúncia em uma reunião de cardeais. No portal católico Sapientiae Christianae, o artigo sob tema Os tradicionalistas, a infalibilidade e o papa, é encabeçado com esta foto, simbolizando a quebra da infalibilidade do papa, e introduzido pela frase: “Os próprios homens que aparentam possuir autoridade na Igreja ensinam erros e impõem leis nocivas. Como reconciliar isso com a infalibilidade?”. Disponível em: <https://sapientiaechristianae.org/2022/11/21/os-tradicionalistas-a-infalibilidade-e-o-papa/>. Acesso em: 07/08/2024. Veja também o vídeo no final do artigo.

  • [2] PROCTOR, W.C.G. e ENGEN, J. Van. Infalibilidade. In: ELWELL, Walter. A. (Editor). Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. II. São Paulo. Vida Nova, 1990, p. 329 a 331 (texto adaptado).

  • [3] "A expressão [e x cathedra] significa ‘do trono’ e é usada para descrever certas declarações ou pronunciamentos feitos pelo papa em suas atribuições na terra como cabeça da igreja e vigário de Cristo. Tais declarações são aceitas pelos católicos romanos como infalíveis. No entanto, não há nenhum critério infalível mediante o qual seja possível determinar quando uma declaração realmente é ex-cathedra. Nem todas as declarações papais são consideradas dentro desta categoria especifica” (TOON, P. Ex Cathedra. In: ELWELL, Walter. A. (Editor). Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. II. São Paulo. Vida Nova, 1990, p.130).

  • [4] Hans Küng (1928 – 2021) foi um teólogo suíço, filósofo, professor de teologia. Muito polêmico, mesmo assim, entre 1962 e 1965, trabalhou como perito para o o Concílio Vaticano II. No final da década de 1960, Küng iniciou uma reflexão rejeitando o dogma da Infalibilidade Papal, publicada no livro Infallible? An Inquiry ("Infalibilidade? Um inquérito") em 18 de janeiro de 1970. Em consequência disso, em 18 de dezembro de 1979 foi revogada a sua licença pela Igreja Católica Apostólica Romana de oficialmente ensinar teologia em nome dela, mas permaneceu como sacerdote e professor, a partir de 1979, de teologia ecumênica, em Tubinga até a sua aposentadoria em 1996. Mais em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Hans_K%C3%BCng>. Acesso em: 07/08/2024.

05 agosto 2024

Bispos e Papas (9): Pio

 Por: Alcides Amorim

Bispo Pio [1]

Veremos mais um bispo romano constante na lista de Eusébio de Cesareia, no seu livro História Eclesiástica. [2]. Desta feita, o 9º bispo: Pio. Depois de Higino, “… após ele Pio” (HE: 5, VI).

Não podemos confundir Antonino Pio, imperador romano que governou o império entre 138 e 161, com o Bispo Pio ou São Pio I, o 9º bispo da lista de Eusébio, mas considerado o 10º papa da Igreja Católica. Como vimos, é possível que seu antecessor Higino tenha morrido em 142, ano que começa o bispado de Pio I e segue até 154 ou 155. na verdade, as datas não batem. Eusébio diz “… a morte de Pio [aconteceu] em Roma, no décimo quinto ano de seu episcopado…” (EC: 4, XI). Neste caso, teria sido em 157 ou o início de seu episcopado tenha sido antes de 142. Mas, não vejo estas diferenças de datas tão importantes...

Eusébio (HE: 4, XI), destaca que no tempo de Pio, de seu antecessor Higino e sucessor Aniceto, havia muitas questões teológicas como as heresias de Valentim, Cerdão e Marcião. Ele destaca também a posição firme de Justino (filósofo e teólogo), que veio a ser chamado Justino Mártir. Este escreveu contra as heresias de Marcião, o qual foi ex-comungado por Pio I em julho de 144. Ao que parece, Pio conheceu e conviveu com Justino Mártir, uma vez que este morreu 10 anos depois de Pio (165) e colaborou teologicamente com ele para a sentença de Marcião, declarando-o um herege.

Pio I era italiano, filho de Rufino e irmão de Hermas [3], que escreveu sua obra muito conhecida e que está entre os escritos dos pais apostólicos [4] chamada O Pastor.

Não temos muitas informações acerca de Pio I. As que consegui, além destas acima, principalmente baseadas nas fontes mencionadas nas Nota 1 [5] e Nota 6 [6], e resumi-as abaixo:

Pio I:

  • era natural de Aquileia, Itália, e teve 15 anos de pontificado;

  • enfrentou a heresia do gnóstico Marcião, que contrapunha Deus do Antigo Testamento com Cristo;

  • estabeleceu normas para a conversão dos Judeus e determinou o modo para calcular a data da Páscoa – num domingo;

  • Diferentemente do que vimos acima, há fontes (Ex. Notas 4 e 5), que afirmam que ele era (provavelmente) filho de “… Judas, dito desposyni, 15º Bispo de Jerusalém (132-135), sucessor de São Tiago, o Justo; portanto, Pio I seria um dos famosos ‘príncipes’ medievais aparentados com Jesus Cristo”.

  • Seu bispado (ou pontificado) foi exercido durante os reinos dos imperadores Antonino Pio e Marco Aurélio.

  • Segundo esta fonte, ele foi martirizado.

    - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Veja também o vídeo a seguir:


Notas / Referências bibliográficas:

  • [2Na versão publicada pela CPAD em 1995, nas páginas 409/410, a editora fez uma lista de 29 bispos de Roma citados por Eusébio, e Pio é o número 9 da lista...
  • [4Quando falamos nos Pais Apostólicos, geralmente nos referimos a alguns autores cristãos do fim do primeiro século e do Início do segundo, cujos escritos chegaram até nós. Estes escritos em sua grande maioria de natureza incidental (cartas, homilias) são de valor para nós porque, ao lado do Novo Testamento, são as fontes mais antigas que possuímos como testemunho da fé cristã. (…) Os mais importantes destes escritos são os seguintes:
- A Primeira Epístola de Clemente, escrita em Roma, por volta de 95. 
- As Epístolas de Inácio; sete cartas a vários destinatários, escritas por volta de 115 durante a viagem de Inácio a Roma e para sua morte de mártir já prevista. 

- A Epístola de Policarpo, escrita em Esmirna, por volta de 110. 

- A Epistola de Barnabé, provavelmente escrita no Egito, por volta de 130. 

- A Segunda Epístola de Clemente, escrita em Roma ou Corinto, por volta de 140. 

- O Pastor de Hermas, escrito em Roma, por volta de 150. 

- Fragmentos de Papias, escritos em Hierapolis na Frigia, por volta de 150, citados nas obras de Eusébio e Irineu (entre outros). 

- A Didaché (Os Ensinamentos dos Doze Apóstolos»), escrita na primeira metade do século, provavelmente na Siria.” (HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre: Concórdia: 2003. Pág. 13 e 14 - [Negritos meus]).