Por Colin Brown [1]
“Locke havia lido as obras de Descartes e estava tão convencido como o filósofo francês de que a ordem do mundo corresponde a ordem do pensamento. Mas não cria que houvesse tal cousa como ideias inatas. Segundo ele, todo conhecimento procede da experiência. Essa experiência pode ser tanto a que nos dão os sentidos como a que nos dá nossa mente ao conhecer-se a si mesma (o que ele chama ‘sentido interno’). Mas na mente não existe ideia alguma antes que a experiência nos conduza a ela…” (GONZÁLEZ) [2].
Continuando nosso estudo sobre o empirismo, queremos destacar neste post o pioneiro do movimento chamado John Locke.
John Locke (1632-1704) [3] era filho de um pequeno proprietário de terras no interior, que também era advogado. Foi para a universidade de Oxford quando o puritanismo [4] estava nos seus dias áureos, e o vice-chanceler da Universidade era o grande John Owen. Entre outras coisas, Locke estudou medicina, e acabou ganhando seu doutorado nesta matéria, John Locke também era uma figura semipública. Mas nos últimos anos da dinastia real dos Stuart, achou mais prudente morar na Holanda, e não voltou senão depois da Gloriosa Revolução de 1688 [5]. Enquanto estava na Holanda teve tempo e tranquilidade para completar seu tratado filosófico importantíssimo, An Essay Concerning Human Understanding (1690), e sua primeira Letter on Toleration (1689). Publicou subsequentemente outras cartas sobre a mesma matéria, e tratados sobre a educação e o governo civil. The Reasonableness of Christianity (1695) foi seguido pelas obras póstumas Paraphrase and Notes on the Epistles of St. Paul (1705-7) e A Discourse on Miracles (1706).
Hoje, Locke é principalmente lembrado por ser o pioneiro da abordagem empirista ao conhecimento. Em Oxford, ficou impressionado com a leitura de Descartes, mas sua própria abordagem foi seguindo uma direção bem diferente. Rejeitou a ideia racionalista de que a mente tinha carimbadas sobre ela, desde o nascimento, certas noções primárias, evidentes por si mesmas. Pelo contrário, retratava a mente como sendo uma peça em branco que recebia de fora as suas impressões. “Suponhamos, portanto,” escreveu na sua retórica característica do século XVII, que a mente é, por assim dizer, um papel branco isento de caracteres, sem quaisquer ideias, como vem a ser suprida? De onde obtém aquela vasta quantidade que a imaginação ativa e ilimitada do homem pintou sobre ela com uma variedade quase infinita? De onde todas as matérias da razão e do conhecimento? Respondo a isto com uma só palavra: da experiência; nela, todo o nosso conhecimento é fundamentado e a partir dela, em última análise, a própria menta deriva. Nossa observação empregada em questões de objetos externos e sensíveis, ou nas operações internas da nossa mente, percebidas por nós mesmos, e sobre as quais nós mesmos refletimos, é aquilo que fornece ao nosso entendimento matérias para pensar. Estes dois grupos de questões são as fontes de todo o conhecimento, de onde emanam todas as ideias que temos, ou podemos naturalmente ter. Noutras palavras, o que conhecemos são ou ideias (impressões na mente de “amarelo, branco, calor, frio, macio, duro, amargo doce, e todas aquelas qualidades que chamamos de sensíveis”) ou as reflexões da própria mente sobre elas. A partir dai, Locke tirou a conclusão que a mente humana não tem outro objetivo imediato senão suas próprias ideias e de que “o conhecimento é a percepção da concordância ou discordância de duas Ideias”.
Ao argumentar assim, Locke estava adiantado naquilo que às vezes é chamada a teoria representativa do conhecimento. A própria mente não tem conhecimento direto do mundo externo, porque nunca tem a capacidade de passar por cima dos sentidos e ficar fora deles. Aquilo que a mente percebe são os dados que os sentidos transmitem a ela, para então trabalhar com eles e interpretá-los. Antes de questionarmos a validade desta abordagem e voltarmos nossa atenção ao modo segundo o qual foi desenvolvida por empiristas posteriores, vale a pena fazer uma pausa para ver como Locke defendia a cristianismo contra os céticos dos seus dias.
Locke fazia uma distinção entre a fé e a razão. Definia esta última [a razão] como sendo “a descoberta da certeza ou probabilidade das proposições ou verdades as quais a mente chega por meio da dedução feita de tais ideias, que obteve por meio das suas faculdades naturais, viz, pela sensação ou pela reflexão. A fé, por outro lado, é o assentimento dado a qualquer proposição não calculada assim pelas deduções da razão, mas, sim, por causa de o proponente merecer crédito, como proveniente de Deus através dalgum modo extraordinário da comunicação. A este modo de os homens descobrirem as verdades chamamos de Revelação”.
Uma ou duas páginas antes, Locke tinha feito a distinção adicional entre aquilo que é de acordo com a razão, aquilo que está acima da razão, e aquilo que é contrário à razão. De acordo com a razão, são as proposições cuja veracidade podemos descobrir, por examinarmos e seguirmos até a origem ideias que temos a partir da sensação e da reflexão; e por dedução natural acharmos verdadeiras ou prováveis. Acima da razão, estão as proposições cuja veracidade ou probabilidade não podemos derivar mediante a razão, a partir daqueles princípios. Contrárias à razão, são as proposições que são inconsistentes com, ou irreconciliáveis com, nossas ideias claras e distintas. Destarte, a existência de um Deus único está de acordo com a razão; a existência de mais de um Deus, contrária [ou contraria] à razão; a ressurreição dos mortos, acima da razão.
Os pensadores talvez discordem quanto àquilo que deve ser colocado em cada compartimento. Eu mesmo desejaria qualificar mais aquilo que quero dizer com "razão” e “ser razoável”. Uma ideia é razoável quando se pode comprovar sua veracidade de antemão. Também pode ser chamado razoável se é justificado pela experiência. Pode ser que contenha implicações que não foram sondadas ou que somos incapazes de examinar no momento. Mesmo assim, se a observação e a experiência justificarem a conclusão, pode ser dito que esta é racional. É neste sentido que eu concordaria com Locke que a existência de Deus está em conformidade com a razão. Há porém, muitos aspectos da fé cristã que, conforme indica Locke, estão acima da razão. O método de Locke era aceitar tais coisas pela autoridade daquilo em que podia acreditar mediante a razão.
A razão é a revelação natural, mediante a qual o Pai da luz, e Fonte de todo o conhecimento, comunica a humanidade aquela porção da verdade que colocou dentro do alcance das faculdades naturais; a revelação é a razão natural estendida por um novo grupo de descobertas comunicadas imediatamente por DEUS, cuja veracidade é garantida pela razão por causa do testemunho e provas que elas dão quanto a terem vindo da parte de DEUS.
Para Locke, os milagres do cristianismo não eram (conforme parecem ser para muitos que gostariam de ser apologistas do cristianismo hoje) algo pelo qual se pede desculpas. Depois de a sua credibilidade ter sido devidamente examinada os milagres são evidências em prol da fé cristã. “Onde o milagre é admitido, a doutrina não pode ser rejeitada, acompanha a certeza de uma atestação divina dada àquele que aceita o milagre, e não podemos questionar a sua veracidade”. Voltaremos a esta questão na ocasião de discutirmos Hume.
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Na verdade, John Locke foi um personagem tão importante, que podemos dizer que ele não foi apenas o pai do empirismo, mas também o pai do liberalismo político, precursor do iluminismo inglês e, ainda influenciador intelectual (jurídico) da Independência dos Estados Unidos. As ideias de Locke no campo político foram revolucionárias. Enquanto criticava o direito absolutistas dos reis, afirmava que a soberania não reside no Estado mas na população, através dos poderes Executivo, Legislativo (o mais importante deles) e Judiciário. Veja, por exemplo estas frases abaixo e o vídeo na sequência:
“Os indivíduos têm o direito natural de possuir propriedade, e isso nunca pode ser tirado deles sem o próprio consentimento”.
“Onde não há lei, não há liberdade”.
"Consideramos estas verdades como evidentes, que todos os homens são criados iguais, que seu Criador lhes concede certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade" (Declaração de Independência dos EUA, inspirada em John Locke).
“Não se revolta um povo inteiro a não ser que a opressão seja geral”.
Notas / Referências bibliográficas:
- [1] “O Dr. Colin Brown é professor de Teologia Sistemática no Fuller Theological Seminary, em Pasadena, Califórnia, USA. Entre outros livros, é autor de Karl Barth and the Christian Message. Editor de History, Criticism and Faith e o responsável pela edição em inglês do Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, publicado por esta Editora [Vida Nova], ao qual também contribuiu vários artigos.” (BROWN. In: Nota 3, contracapa).
- [2] GONZÁLEZ, Justo L.E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo: a era dos dogmas e das dúvidas – Vol. 8. São Paulo: Vida Nova, 1984 (1ª ed.), pág. 132 e 133). In:<A era dos dogmas e das dúvidas: a opção racionalista >. Acesso em: 12/07/2024.
- [3] BROWN, Colin. Filosofia e Fé Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1985, pág. 44 a 46 (Texto adaptado).
- [4] O puritanismo foi “… um movimento de reforma, frouxamente organizado, que se originou durante a Reforma inglesa do século XVI. O nome surgiu dos esforços para ‘purificar’ a Igreja da Inglaterra realizados por aqueles que achavam que a reforma ainda não tinha sido completada. Posteriormente, os puritanos também passaram a buscar a purificação de si mesmos e da sociedade…” (RENNIE, I. S. Puritanismo. In: Enciclopédia Histórico-Teológica. Editor Walter A. Elwell. Vol. III. São Paulo: Vida Nova: 1988, Pág. 208 e 209. Sobre o contexto histórico e religioso da época, na Inglaterra, veja o texto de Justo González, em A era dos dogmas e das dúvidas (IV): a revolução puritana. Acesso em: 11/07/2024.
- [5] A Revolução Gloriosa foi a última fase da Revolução Inglesa, iniciada em 1642, que ocorreu com a deposição de Jaime II e a ascensão de Guilherme de Orange ao poder na Inglaterra, e que pôs fim ao poder absolutista e dando origem à monarquia constitucional, ou seja, o rei permaneceria no trono inglês, mas com poderes reduzidos. Veja mais em: González, A revolução puritana. In: Nota 4.