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14 fevereiro 2023

A casa de Bragança no Brasil

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

“A vinda da família real foi um acontecimento iniciado em 29 de novembro de 1807, e o seu desembarque em terras brasileiras ocorreu em 22 de janeiro de 1808, na cidade de Salvador. A vinda foi consequência direta do Período Napoleônico e do desentendimento existente entre França e Portugal na questão do Bloqueio Continental. Com isso, a família real portuguesa mudou-se para o Brasil e instalou-se no Rio de Janeiro, junto à toda estrutura de governo de Portugal. Isso iniciou o Período Joanino e resultou em uma série de transformações, como a abertura dos portos brasileiros, que contribuíram para levar o Brasil na direção de seu processo de independência" [2]

Até o período em que se deu a Independência, vivia-se um cenário com algumas características invariáveis: o Brasil continuava a ser um país agrário, com produção monocultora voltada para a exportação e apoiada no braço escravo. Enquanto isso, a Europa do início do século XIX se transformara no teatro das guerras napoleônicas. Em 1807, o rei de Espanha, de joelhos, pedia apoio ao imperador francês; o rei da Prússia tinha fugido da capital ocupada pelos soldados franceses; o Stathouder holandês estava refugiado em Londres; o rei das duas Sicílias exilado em Nápoles; a Escandinávia buscava um herdeiro entre os membros da tropa de elite de Napoleão. A fragilidade portuguesa, em contraste com a robustez militar do inimigo, deixava entrever a invasão. O projeto de transferir a Corte para o Brasil tomou forma quando as tropas napoleônicas, vindas de território espanhol, avançaram sobre a capital. Embora o embarque tenha sido atropelado, a decisão de atravessar o Atlântico não foi imposta pelo pânico. Havia muito se estudava essa possibilidade. Às vésperas da partida, a esquadra portuguesa estava pronta, aparelhada com o tesouro e a biblioteca real. Apesar da ação conspiratória de alguns grupos que desejavam aderir à França, d. João foi avisado com antecedência da chegada de Junot, o general francês. Segundo vários cronistas da época, instalou-se certa confusão, com muitos fidalgos fazendo-se transportar às pressas para os navios, onde não havia mais lugar. O povo de Lisboa manifestava com lágrimas, dor e desolação seu sentimento diante da partida do príncipe. Mas, ao aportar na Bahia, não era um refugiado que chegava, e sim o chefe de um Estado nacional em funções que resolveu migrar para cá.

De acordo com vários viajantes estrangeiros que aqui estiveram, na primeira metade do século XIX a paisagem urbana brasileira era então bem modesta. Com exceção da capital, Rio de Janeiro, e de alguns centros – onde a agricultura exportadora e o ouro tinham deixado marcas, caso de Salvador, São Luís e Ouro Preto –, a maior parte das vilas e cidades não passava de pequenos burgos isolados com casario baixo e discreto, como São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. Mesmo na futura Corte, o Rio de Janeiro, as mudanças eram mais de forma do que de fundo. As notícias divulgadas pela Gazeta do Rio de Janeiro (1808-22), órgão da imprensa da época, eram tediosas. Até a inauguração do Real Teatro de São João, palco onde se exibiam companhias estrangeiras e artistas, como a “graciosa Baratinha” ou as “madames Sabini e Toussaint”, as atividades culturais cariocas não eram suficientes para quebrar a monotonia cotidiana. Além dos saraus familiares e do popular entrudo – uma espécie de carnaval –, o evento social mais importante continuava a ser a missa dominical. A capital era cortada por ruas estreitíssimas, lembrando a mouraria lisboeta, e as vivendas não tinham vislumbre de arquitetura decorativa. Os conventos eram numerosos, mas apenas habitáveis. A talha dourada das igrejas, inferior às da Bahia, provocava entre os devotos um estímulo às obras de embelezamento. Bairros como Botafogo ou Catete eram considerados arrabaldes, encerrando casas de campo que procuravam abrigo sob a frondosa vegetação. O Passeio Público representava a melhor área de lazer da população. Pelas ruas, sentados sobre barris, os aguadeiros esperavam sua vez diante dos chafarizes que traziam “a linfa mais cristalina” do Alto da Tijuca. Seus gritos se misturavam ao ruído de escravos, mendigos e ciganos. Nas noites de luar, era à beira d’água que famílias se reuniam, entoando modinhas e lundus ao som de violão.

Foi nesse Rio de Janeiro que desembarcaram, a 8 de março de 1808, o futuro monarca e a família real, trazendo em sua bagagem a prataria de uso privado e uma formosa biblioteca para encher horas mortas. O desembarque traduziu-se em imensa festa popular. Os habitantes da capital, atendendo às ordens do conde dos Arcos, receberam o príncipe regente com demonstrações de entusiasmo. As ruas estavam atapetadas de areia da praia e ervas aromáticas, colchas de Goa tremulavam nas varandas e os sinos repicavam. Sob um pálio escarlate se acomodavam o juiz de fora e os vereadores da Câmara. À medida que a Corte descia dos navios era recebida com uma chuva de flores e plantas odoríferas. Na frente da igreja do Rosário, sacerdotes paramentados com capas de seda incensavam os recém-chegados, enquanto o ar era sacudido por fanfarras, foguetes e o matraquear da artilharia. A chegada da Corte foi retratada num folheto publicado pela Imprensa Régia em 1810 (Relação das festas...) em que, sob a forma de uma carta, um narrador conta que a cidade celebrou com nove dias de luminárias a chegada de Sua Alteza Real: em pequenos vasos com óleo de baleia e pavios acesos figuravam o retrato do rei enfeitados com rosas, a África de joelhos oferecendo suas riquezas, a América oferecendo seu coração e os ditos: “América feliz tens em teu seio, do novo império o fundador sublime [...] O povo era tanto nestes nove dias de luminárias que cercava o palácio em grande multidão [...] uns iam sentar-se a bordo do cais, a contemplar o prateado dos mares, outros se entretinham a ouvir a música [...] que vinha de um coreto decentemente ornamentado [...] os louvores do grande e incomparável príncipe”. Desde a chegada de d. João, seu aniversário, no dia 13 de maio, passou a ser celebrado com festividades públicas. Em 1808, registrou-se que consistiram em uma grande parada, com audiência e beija-mão à Corte, aos membros dos tribunais e às pessoas mais condecoradas naquele ano. Em 1809, o programa de festejos manteve-se inalterado, tendo sido apenas enriquecido com a inauguração de uma fonte no Campo de Santana, cerimônia que teve “o numeroso concurso do povo”. Dez anos depois de estabelecida a família real entre nós, inovou-se a mesma festa com a introdução de um “teatro de Corte”.

Na vida da família real misturavam-se representantes da elite urbana constituída por alguns comerciantes de grosso trato como Brás Carneiro Leão, futuro barão de São Salvador de Campos. Coube à inglesa Maria Graham, em sua segunda viagem ao Brasil, em 1823, alguns registros sobre o cotidiano urbano. Os salões de Brás Carneiro Leão, por exemplo, eram decorados ao gosto francês, revestidos de papéis de parede e molduras douradas, além de móveis de origem inglesa e francesa. A neta do anfitrião, como boa filha da elite, falava bem francês e fazia progressos em inglês. Localmente, porém, o exemplo era raro, queixava-se, em 1813, John Luccock, afirmando que a maioria das mulheres costumava desnudar sua falta de educação e instrução. Saber ler – comentava, amargo –, só o livro de reza, uma vez que pais e maridos temiam o mau uso da escrita para comunicar-se com amantes. Debret, por seu turno, confirmava o despreparo intelectual das mulheres de elite. Até 1815, e malgrada a chegada da família real, a educação se restringia a recitar preces de cor e calcular de memória, sem saber escrever nem fazer as operações. A “ignorância”, segundo ele, era incentivada por pais e maridos receosos da temida correspondência amorosa. Mesmo os mais ricos não tinham maiores divertimentos. “A vida que se leva aqui é muito monótona; poucas são as distrações e quase não há reuniões”, resmungava em 1819 o prussiano Theodor von Leithold, de passagem pelo Rio de Janeiro. Resumiam-se essas reuniões nas conversas nas lojas, antes da ceia e depois de retiradas das portas as mercadorias empoeiradas, ou aos jogos de gamão ou whist. O teatro, um velho, sujo e mal ventilado casarão de Manoel Luiz Ferreira ao pé do Paço, tinha uma orquestra deficiente e levava espetáculos de gosto duvidoso. Ao seu lado, relata-nos Leithold, funcionava um café que garantia aos mais aficionados jogos clandestinos. Apesar do meio social insípido, a população fluminense era alegre, expansiva, excitável e ruidosa. Submetia-se, sem maiores resistências, à vida custosa e pouco confortável. Os aluguéis eram altíssimos e comia-se mal. A carne de vaca era de má qualidade, a boa manteiga era importada e o leite, intragável. Só as frutas e os legumes eram abundantes. Além disso, o café era quase tão caro quanto em Lisboa. “Não há cantinho do universo onde se seja pior alimentado e pior alojado por preços tão excessivos”, queixava-se o inglês John Mawe, que, a pedido do conde de Linhares, se dispusera a administrar a Real Fazenda de Santa Cruz.

Pois foi nesse “cantinho” que se instalou d. João. Primeiramente no Paço da cidade, cujo conforto deixava a desejar para a numerosa família real, seus criados e cortesãos. Depois, graças à generosidade do negociante Elias Antônio Lopes, passou a morar em sua Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão. Os coches colocados à sua disposição para o transporte na cidade eram pobres, sem adornos, “ridículos”. Para a rainha-mãe fora reservada a única carruagem vinda de Lisboa; era puxada por duas mulas ordinárias e dirigida por um lacaio de vestimenta velha e desbotada. Ia sempre acompanhada de uma dama e precedida de doze soldados mal montados e fardados de forma ainda pior. O transporte do príncipe regente era ainda mais pobre; consistia em uma carruagem antiga, com as competentes cortinas de couro. A princesa, sua esposa, não tinha carruagem; quando não ia com o esposo, contentava-se em sair a cavalo. Todos os demais indivíduos da família real, em número de dez, resignavam-se a andar a pé. Num gesto sutil de alguém incomodado com o seu entorno, um ano depois de sua chegada, d. João mandou, por decreto municipal, substituir por janelas de vidraça os antigos muxarabiês árabes e as gelosias de madeira, que, “além de serem incômodas, prejudiciais à saúde pública, interceptando a livre circulação do ar”, enfeavam a cidade. As compensações estéticas encontravam-se na capela da igreja do Carmo ou no Paço, em que o soberano, um apaixonado por música, abandonava-se às composições do pardo José Maurício ou aos acordes de Marcos Portugal. O espaço foi rapidamente transformado em sala de ópera, passando a denominar-se Capela Real. Como atividade pública e social complementar havia ainda as tertúlias – uma espécie de reunião literária – com os padres carmelitas da Lapa (entre os quais frei Pedro de Santa Maria, matemático, frei Custódio Alves Serrão, naturalista, e frei Leandro do Sacramento, botânico) ou no convento franciscano de Santo Antônio, abrigo de uma plêiade de homens cultos, como frei José Mariano da Conceição Veloso ou Mont’Alverne.

O Paço de São Cristóvão distava hora e meia da cidade. Aí instalaram-se o rei, seu filho, d. Pedro, e a infanta Maria Teresa, viúva de d. Pedro Carlos de Espanha, com um filho, menino de 8 anos, e o futuro d. Miguel, de 6 anos e vítima, segundo o prussiano Leithold, de uma voraz solitária. A rainha, por seu lado, residia com as duas outras filhas, dona Micaela Maria, de 18 anos, e dona Josefa, de 15, no Paço da cidade. Com ela, vivia também a tia do regente, viúva do príncipe d. José. O edifício tinha aprazível situação, gozando de vista sobre a cidade e o porto; de ambos os lados estendiam-se altas montanhas e vales povoados de chácaras e tinha um só andar com catorze janelas de frente. Em 1819, foram construídas alas laterais para aumentar-lhe a superfície. Antes de se chegar ao Paço, atravessava-se um extenso terraço; uma escadaria circular, com balaústres de ferro pintados de verde e ornamentados com ouro, dava acesso à porta do palácio e, através dessa, à galeria que ocupava toda a extensão da fachada. De um lado dessa modesta galeria abriam-se as ditas janelas, de outro, enfileiravam-se, na parede, pinturas a óleo representando cenas religiosas. O rei costumava sair a passeio num carro aberto e saudava os passantes com a maior amabilidade. Atrás dele seguia uma espécie de guarda de corpo uniformizada e com espadas desembainhadas. Andava pouco, pois sofria de gota. Acompanhado do pequeno infante espanhol, só se aventurava a fazer exercício quando seu estado de saúde permitia. Vivia sob dieta severa e quase não bebia vinho. Era de extrema gentileza com visitantes. Com Leithold conversou em francês, mostrando-se interessado por sua trajetória e opinião sobre o Brasil. O beija-mão, cerimônia igualmente de rigor na Espanha, tinha lugar todas as noites às oito horas, em São Cristóvão e, nas grandes cerimônias, no chamado Paço da cidade. Se não se sentisse bem, adormecesse ou se sobreviesse uma tempestade, o que lhe produzia forte impressão, o rei encerrava-se em seus aposentos e não recebia ninguém. A brilhante assembleia reunida na galeria de São Cristóvão, onde não havia nem bancos nem cadeiras, era então despedida sem nenhum acanhamento e muitas vezes depois de longa espera, conta-nos, atônito, Leithold.

Os membros da família real devem ainda ter participado de vários bailes e banquetes, muitos deles oferecidos por membros da nobreza ou diplomatas estrangeiros servindo no Brasil. No aniversário do príncipe regente da Inglaterra, por exemplo, “fez aqui o ministro daquela corte, mr. Strangford, uma função esplendíssima, ou seja, um baile e a ceia servidos pelos ingleses”, menciona o português Luís dos Santos Marrocos em sua correspondência. O visconde de Vila Nova da Rainha, por sua vez, recebeu em seu palácio em Botafogo a princesa d. Carlota com suas filhas e criadas, ao som de excelente orquestra vocal, dança e refrescos. Qualquer baile, e principalmente aqueles a que assistiam membros da família real, obedecia a um ritual claramente definido pela etiqueta da época. Tocava-se a “sinfonia de abertura” e determinadas pessoas abriam o baile. Seguiam-se minuetos, valsas e outras contradanças pela ordem estabelecida pelos mestres-salas. Cabia-lhes convidar cada senhora para cada uma dessas danças, dando-lhes os pares, que eram sempre diferentes. Evitavam-se danças de longa duração por conta de fadigas. O baile era geralmente acompanhado de um banquete, no qual homens e mulheres comiam em separado.

Os momentos de júbilo, assim como os de tristeza, vividos em público pelos Bragança, foram vivamente registrados pela pena do cônego Luís Gonçalves dos Santos, professor de gramática latina do seminário da Lapa, mais conhecido pela alcunha de padre Perereca. Bodas, aniversários e enterros, luminárias, foguetórios e pompas fúnebres por ele descritas, constituíam-se claramente num pacto social entre o rei e seus súditos. O culto ao rei e seus ritos seculares eram a expressão do simbolismo dos laços entre a monarquia portuguesa e seu povo no além-mar. Nessas circunstâncias de festas públicas, o rei orava, regozijava-se, ria e chorava, irmanado com seus súditos e funcionando como um instrumento de propaganda em causa própria. As solenidades da Corte, tais como o enlace da princesa Maria Teresa, o casamento do príncipe real, os desfiles alegóricos no Campo de Santana, a aclamação em 1818, verdadeiros restos da liturgia absolutista, traziam para a praça pública, em várias cenas teatralizadas, a ideia de que rei e reino eram uma coisa só. Em público, a personalidade do monarca configurava-se o lugar de encontro da estrutura de poder e das pressões conjunturais que esta sofria. Seus gestos em relação ao povo, sua simpatia e afabilidade para com a Corte, sua devoção religiosa perpetuavam seu poder pessoal.

A relação do regente com essa Corte feita de magistrados, funcionários, monges, visitantes estrangeiros e grandes proprietários de terra, alguns brasileiros, outros lusos, constituía-se num campo de relações clientelistas. A manipulação das tensões entre aqueles nascidos na América portuguesa, que deviam favores, ou a sua ascensão, ao rei, tais como os comerciantes de grosso trato do porto do Rio de Janeiro, cujas casas Sua Majestade frequentava, e aqueles que se orgulhavam de títulos de nobreza e que com a família real haviam transposto o Atlântico, permitiam ao monarca governar centralizando decisões. Sua preocupação era dupla: não deixar a Corte portuguesa chegar a um grau de decadência ameaçador, pois seu desaparecimento comprometeria sua própria existência e a significação de sua função. Era, contudo, preciso dominar a velha aristocracia emigrada, destituída, no Brasil, de cargos administrativos ou militares. D. João consolidou, então, um sistema fundado na desigualdade e codificado pela hierarquia, fazendo as diferenças parecerem “naturais”, chanceladas que estavam por sua presença física na Colônia. Entre um grupo e outro, o monarca manobrava. A economia de amizades e as trocas clientelares eram uma das marcas da monarquia portuguesa. Dar, receber e restituir eram atos que comandavam as relações sociais entre o monarca e seus súditos, provocando um contínuo reforço nos laços que os uniam em crescente espiral de poder; espiral subordinada a uma estratégia de ganhos simbólicos que se estruturava sob os atos de gratidão e serviços.

Um especialista no período não se furta em dizer que não conheceu despacho, reservado ou confidencial, de embaixador, ministro ou encarregado de negócios estrangeiros para seu governo que não se refira com respeito e elogios a d. João. “É curioso verificar que nenhum mesmo tenta fazê-lo, de leve que seja, ridículo”, afirma o autor. “Com justiça, nada se encontrava de burlesco neste personagem.” A lista de adjetivos que faz do personagem é longa: atencioso, benevolente, curioso, bem informado, bonacheirão, desconfiado, sensível a ponto de chorar fácil e frequentemente, como fez na morte da mãe, na partida das filhas para a Espanha ou ao abraçar o enfermo marquês de Aguiar. E, finalmente, sagaz por cercar-se de gente competente. Os adjetivos, contudo, não esclarecem seu comportamento cotidiano e doméstico. Mas, como seria, para o rei português, viver o que se entendia, na época, por “privacidade”, ou seja, o trato de si e de sua família?

Durante sua permanência no Brasil, d. João incentivou o aumento das escolas régias – equivalentes, hoje, ao ensino médio –, apoiando também o ensino de primeiras letras e as cadeiras de artes e ofícios. O príncipe regente criou, ainda, nosso primeiro estabelecimento de ensino superior, a Escola de Cirurgia, na Bahia, em 1808. No Rio, ampliava-se a Academia Militar, enquanto na Bahia e no Maranhão solidificavam-se escolas de artilharia e fortificação. Bibliotecas e tipografias começaram a funcionar, sendo a Imprensa Régia, na capital, responsável pela impressão de livros, folhetos e periódicos, nela publicados entre 1808 e 1821. Com o rei vieram, igualmente, diversos artistas portugueses de valor, entre os quais Joachim Cândido Guilhobel e Henrique José da Silva, aos quais se juntaram os brasileiros José Leandro de Carvalho e Francisco Pedro do Amaral. Em 1816, chegou a Missão Artística Francesa, chefiada por Joachim Lebreton, secretário do Instituto de Belas-Artes da França, pouco depois falecido. Eram seus componentes Nicolas-Antoine Taunay e Jean Baptiste Debret, ambos pintores; Auguste-Marie Taunay, escultor; Grandjean de Montigny, arquiteto que muito influenciou a construção civil na cidade; Charles Simon Pradier, gravador como Zéfherin Ferrez; e Marc Ferrez, ornamentista. O pintor Arnauld Julien Pallière, vindo para cá também nessa época, foi o responsável pelo palco urbanístico da Vila Real da Praia Grande, atual Niterói. Em 13 de junho de 1808, com a denominação de Jardim de Aclimação, é inaugurado o Jardim Botânico, com espécimes transplantados da Índia, das ilhas Maurícias e da Guiana Francesa: eram muscadeiras, canforeiras, cravos-da-índia, mangueiras, abacateiros, além de especiarias finas e outros produtos exóticos. Para plantar e colher as folhas do chá, vieram também chineses.

Em 1815, foi criado o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, legalizando o fim da condição colonial. O Brasil, contudo, continuava mal unificado internamente. A Corte carioca mantinha um controle rígido sobre as demais capitanias, submetendo-as a encargos fiscais e monopólios. Os colonos não se entendiam com as mudanças sugeridas pelo governo do Rio de Janeiro e acumulavam-se as críticas aos novos dominadores. O mal-estar se agravou com a queda nos preços do açúcar e do algodão depois do fim das guerras napoleônicas e com o aumento de impostos para custear a dispendiosa intervenção militar que valeu a incorporação do Uruguai ao Brasil, como Província Cisplatina. Antigos antagonismos explodirão no processo de independência, nosso próximo assunto.


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Texto complementar: O Rio de Janeiro na época de D. João.

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Veja também:


Notas:

[1]  Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de:  DEL PRIORI, Mary e
      VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora 
          Planeta do Brasil, 2010, pp., 110 a 116, Capítulo 15.

[2]  Vinda da família real para o Brasil. In: <https://www.historiadomundo.com.br/idade-                   contemporanea/vinda-da-familia-real-para-o-brasil.htm>. Acesso em 14/02/2023.


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São
          Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

13 fevereiro 2023

O Rio de Janeiro na época de D. João

Com a chegada da família real portuguesa e cerca de 15 mil acompanhantes, a vida no Rio de Janeiro sofreu grandes mudanças. É o que nos relata o texto que segue [1]

  

"É no Paço dos Governadores (chamado de Paço  dos  Vice-Reis
desde que a capital mudou de Salvador para o Rio) que a família
real se hospeda, ao chegar à cidade. Pintura guache do início do
século XIX (Crédito: Frans Josef Frühbeck)” [2]

Nessa época, a cidade oferecia poucas distrações: as famílias ricas iam a espetáculos, embora fossem de má qualidade, frequentavam bailes familiares, e os homens, reuniões de jogo. Praticamente não existia a vida noturna por causa da falta de iluminação. Nas procissões e nas festas religiosas, toda a população da cidade tomava parte. Quando foi inaugurado o Passeio Público, algumas famílias logo o transformaram em ponto de encontro entre parentes e conhecidos que lá se reuniam à tardinha para contar os fatos do dia e as últimas notícias.

Esse tipo de vida calma e aparentemente sem preocupações foi de um dia para o outro revolucionado pela chegada da família real portuguesa e toda a sua corte. Para atender às exigências, foram logo construídas novas casas e reformadas as existentes. Os balcões fechados com madeira trançada, as rótulas, começaram a ser substituídos por janelas com vidraças. Começaram a aparecer também residências isoladas, longe do centro, em meio a jardins, com muitas árvores e gramados.

Seguiu-se toda uma série de modificações introduzidas pelos comerciantes vindos sobretudo da Inglaterra e da França, após a abertura dos portos. No centro da cidade, na rua do Ouvidor, instalaram-se inúmeras lojas cheias de artigos europeus e orientais, dos mais finos. Surgiram livrarias, perfumarias, tabacarias, lojas de calcados, oficinas de costureiras e de modistas, salões de barbeiros e cabeleireiros. Tudo isso foi modificando, aos poucos, gostos, hábitos e costumes da população, introduzindo na cidade noções de conforto desconhecidas até e então.

Para assegurar o progresso material foi necessário um número maior de pedreiros, carpinteiros, ferreiros, de pessoas, em suma, especializadas em vários ofícios; daí foi surgindo aos poucos uma nova camada social, a pequena classe média, intermediária entre os escravos e os ricos e nobres.

As famílias de posses começaram a dar maior importância ao interior das casas, às peças de mobiliário, à decoração dos cômodos e, o que é importante, também aos trajes cotidianos e caseiros. Guarda-roupas e cômodas ocuparam os lugares tomados antes por arcas e baús. Consoles, pianos, poltronas, sofás, lustres, grandes espelhos foram importados da Londres e de Paris; na mesa tornou-se usual a louça inglesa, e nas residências mais ricas adotaram-se banheiras em substituição às tinas para banho.

A presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro ofereceu à população oportunidades várias de divertir-se: festas, comemorações cívicas, procissões, desfiles, espetáculos teatrais mais frequentes, concertos. A mulher pôde sair de seu isolamento, de seu mundo restrito a tarefas domésticas; nas residências particulares havia saraus com recitais de piano e canto, danças e jogos; os parentes e vizinhos começaram a visitar-se com mais frequência.

A cadeirinha foi proibida de ser usada no centro da cidade para facilitar a passagem de veículos. Nas ruas, começaram a circular carruagens puxadas por cavalos. A cidade foi se tornando, assim, mais colorida, mais alegre e mais comunicativa. (...)

Daí por diante, os filhos de senhores de engenho, dos fazendeiros e dos estancieiros vieram educar-se nos centros urbanos e, aos poucos, as capitais das províncias se modificaram sob a influência das transformações do Rio de Janeiro. Mas o Rio, como capital do império, será o pólo de atração dos grandes proprietários de terras que, após a Independência, ocuparão os cargos políticos de maior projeção.


Notas:

  • [1] HOLANDA. Sérgio Buarque de. História do Brasil. São Paulo, Nacional... p 148-50).
  • [2] O Rio de Janeiro como cenário real. In: <https://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/historia-do-brasil/rio-de-janeiro/2474-o-rio-de-janeiro-como-cenario-real>. Acesso em: 13/02/2023.

07 fevereiro 2023

A última fase colonial

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

A Inconfidência Mineira transformou-se em símbolo máximo de resistência para os mineiros, a exemplo da Guerra dos Farrapos para os gaúchos, e da Revolução Constitucionalista de 1932 para os paulistas. A Bandeira idealizada pelos inconfidentes foi adotada pelo estado de Minas Gerais" [2].


As últimas décadas do século XVIII foram marcadas por acontecimentos internacionais com reflexos no Brasil. Em 1776, as Treze Colônias romperam o domínio inglês, aprovando a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. A Inglaterra, por sua vez, desde meados do século XVIII envolvida no processo de revolução industrial, após sérios conflitos, acatou a independência e acelerou a luta contra o tráfico de escravos, abolindo-o, pioneiramente, em 1807. A essa derrota do sistema colonial moderno nas Américas seguiu-se, em 1791, a revolta dos escravos de São Domingos, com a consequente proclamação de independência do Haiti. Tal rebelião ecoava os acontecimentos da Revolução Francesa nas colônias americanas; graças a ela a escravidão foi temporariamente extinta nas colônias francesas entre 1794 e 1802. Em breve, o velho regime colonial estaria com seus dias contados. A conjuntura econômica e política agravava a situação do lado de cá do Atlântico, pois tinha início a passagem de um regime de monopólios para o de livre concorrência e do trabalho escravo para o assalariado. Livre-cambismo, igualdade civil, trabalho livre, liberdade e propriedade eram considerados direitos naturais do indivíduo. Para o nascente capital industrial, do qual a Inglaterra era o maior representante, a abertura dos mercados das colônias era urgente, tanto para comprar matérias-primas quanto para vender manufaturados.

Um dos efeitos mais imediatos da importância inglesa no cenário internacional foi a dependência cada vez maior de Portugal em relação a esse seu aliado, o que repercutia na concessão de licenças para que comerciantes ingleses se instalassem em portos brasileiros. Graças a isso, navios estrangeiros ancoravam na costa, de Belém a Paranaguá, no atual Paraná, carregando e descarregando um número bastante variado de mercadorias que iam de alimentos a ferramentas e de tecidos a aço. Partiam levando açúcar, tabaco, anil, madeira, cacau, pimenta, ouro e diamantes. Sangrava, assim, o mercantilismo, indiferente à indignação que provocavam em Lisboa ou às leis e regras monopolistas que se abatiam sobre os brasileiros. A presença britânica, em detrimento do monopólio luso, o enorme contrabando de ouro e açúcar – o mais importante produto de exportação, mais relevante do que o próprio ouro –, o incremento do comércio interno que, como vimos, aumentara o caráter deficitário das transações metropolitanas com a Colônia, acentuavam as características de uma crise do sistema, crise que foi explorada por três conspirações, todas com efeitos imediatos insignificantes, mas capazes de revelar não só a grande influência dos ideais de liberdade disseminados pela Revolução Francesa, como a ideia de que uma eventual independência da América portuguesa começava a tomar forma.

A primeira delas ocorreu em Minas Gerais, em 1788-89, sob os olhos de um governador recém-chegado de Portugal, Furtado de Mendonça. A Inconfidência Mineira registrou articulações e motivações externas e internas ao mundo colonial. Entre as primeiras, conta-se o encontro de um brasileiro, estudante em Montpellier, com Thomas Jefferson. Sob o pseudônimo de Vendek, o jovem José Joaquim Maia reuniu-se em segredo, na cidade de Nîmes, com o enviado dos Estados Unidos à França, para pedir-lhe apoio para uma insurreição. Embora falando em seu próprio nome, Jefferson respondeu-lhe que uma revolução vitoriosa não “seria desinteressante para os Estados Unidos” e, sem maiores promessas, apenas notificou as intenções de Vendeck ao Congresso: “Os brasileiros tencionam instigar uma sublevação e consideram a revolução norte-americana como um precedente para a sua; se houver uma revolução bem sucedida, será formado um governo republicano”. Se tal contato não teve maiores desdobramentos, ele revela que um número razoável de estudantes brasileiros na Europa aproximara-se das chamadas ideias iluministas. Um deles era Domingos Vidal Barbosa, proprietário de terras em Juiz de Fora, grande admirador do abade Raynal, um popularizador do ideário das Luzes. Outro estudante era José Álvares Maciel, formado em Coimbra, filho do capitão-mor de Vila Rica, suspeito de ser membro da maçonaria, sociedade secreta cujos ideais libertários inspirariam a Revolução Francesa e, em menor escala, a Inconfidência. De volta ao Brasil, Barbosa e Maciel encontraram ambiente propício às novas ideias entre sacerdotes, militares, intelectuais e moradores de Minas. A capitania, que fora durante muito tempo uma das fontes da riqueza colonial, possuía uma elite constituída por homens instruídos. Para ficar num exemplo, no ano de 1786, 12 dos 27 brasileiros matriculados em Coimbra eram mineiros. Não se tratava de uma ocorrência isolada: dos vinte e quatro envolvidos na Inconfidência Mineira, oito lá haviam estudado. Tal gente se somava aos leitores locais, possuidores de bibliotecas bem fornidas de livros proibidos e perseguidos pelo governo português por seu conteúdo libertário. O cônego Luís Vieira era leitor de Voltaire e Condillac; entre os futuros inconfidentes, como Tiradentes, circulava um exemplar da obra Recueil des lois constitutives des États-Unis de l’Amérique, publicada em Filadélfia, em 1778, contendo leis e artigos da Confederação.

Fatores regionais e internos, sobretudo econômicos, vieram rapidamente somar-se aos externos. O declínio da extração aurífera provocava violenta reação da população, permanentemente obrigada ao pagamento anual do imposto de 100 arrobas de ouro (1.500 quilos) à Real Fazenda. Diante da resistência dos mineiros, foi aprovada em 1750 a temida derrama, isto é, a cobrança forçada e geral das arrobas deficitárias. Informa um historiador que em 1789, ano da conspiração, o total em atraso era de 528 arrobas de ouro (quase 8 toneladas!) e, para cobrá-las, o secretário de Estado Martinho de Melo e Castro havia enviado enérgicas instruções. A essa causa, junte-se o péssimo governo que tinha tido Minas, sob a batuta de Luís da Cunha e Menezes, o Fanfarrão Minésio, contra o qual Tomás Antônio Gonzaga, ouvidor e poeta envolvido na conspiração, escreveu as Cartas chilenas. O novo governador, Luís Antônio Furtado de Mendonça, visconde de Barbacena, tornara-se malvisto não só pela expectativa da derrama que estava encarregado de lançar, como por preferir o isolamento na Fazenda da Cachoeira do Campo.

Reunidos em pequenos encontros secretos, os conjurados mais discutiam a teoria do que a prática. Falou-se sem dúvida em independência, mas havia controvérsias sobre a forma de governo a adotar; Álvares Maciel parecia republicano, enquanto o cônego Vieira era monarquista. A abolição da escravidão também gerava dúvidas: uns eram a favor e outros contra. O programa mais revelava os impulsos imediatos e, sobretudo, regionais que tinham levado esse grupo a se afastar da Coroa portuguesa. Os regulamentos da exploração diamantífera seriam abolidos. A exploração de jazidas de ferro e salitre, assim como a instalação de manufaturas, seria estimulada. Erguer-se-ia uma fábrica de pólvora e uma universidade, esta em Vila Rica, assim como se procederia transferência da capital para São João del-Rei. Todas as mulheres que tivessem certo número de filhos receberiam um prêmio do Estado. Não haveria exército permanente, mas todos os cidadãos deveriam possuir armas e, quando necessário, integrariam a milícia nacional. Cada cidade teria seu próprio parlamento subordinado ao parlamento supremo da capital. E, o mais importante: todos os devedores do Tesouro real seriam perdoados. As críticas ácidas à Metrópole podiam indicar um esboço de “nacionalismo econômico”, como já disseram historiadores. O alferes Joaquim José da Silva Xavier, por sua habilidade de dentista alcunhado Tiradentes, dizia que o Brasil era tão pobre, apesar de possuir tantas riquezas, porque “a Europa como uma esponja lhe estava chupando toda a substância, e os Exmos. Generais, de três em três anos, traziam uma quadrilha... que depois de comerem a honra, a fazenda e os ofícios que deviam ser dos habitantes, se iam rindo deles para Portugal”.

A Inconfidência Mineira teve três delatores: o português Joaquim Silvério dos Reis, que com sua denúncia obteve o perdão de importantes dívidas à Fazenda Real; o também português Basílio de Brito Malheiros do Lago e Inácio Correia Pamplona, nascido nos Açores. Quando denunciada, a conjura ainda engatinhava. Estava longe de se tornar uma rebelião incendiária. Prenderam-se os envolvidos e tiveram início os inquéritos ou as devassas. Alguns conjurados apressaram-se a escrever ao governador, revelando tudo o que sabiam, com o objetivo de se isentar de suas culpas. Depois da comutação de várias penas de morte em degredo perpétuo ou temporário, somente Tiradentes foi executado, em 1792. Silva Xavier, que, ao longo das acareações negara, a princípio, sua participação, passou depois a se inculpar assumindo uma responsabilidade superior a sua posição social e de saber. Para a defesa dos acusados, foi nomeado o advogado da Santa Casa de Misericórdia, José de Oliveira Fagundes, que habilmente procurou diminuir o crime dos réus alegando que a conspiração “não havia passado de conversas e loucas cogitações, sem que houvesse ato próximo nem remoto começo de execução”.

A 18 de abril de 1792, reuniu-se a alçada para a leitura das sentenças. Foram condenados à morte, pela forca, Tiradentes, o tenente-coronel Freire de Andrade, José Álvares Maciel, Alvarenga Peixoto, Abreu Vieira, Francisco Antônio de Oliveira Lopes, Luís Vaz de Toledo Piza, os dois Resende Costa, Amaral Gurgel e Vidal Barbosa – onze ao todo. Ao degredo perpétuo na África foram sentenciados sete réus, inclusive Gonzaga e o coronel Aires Gomes. Quanto aos eclesiásticos, sabe-se que na primeira sentença três foram condenados à morte: os padres Carlos Corrêa de Toledo e Melo, José da Silva e Oliveira Rolim e José Lopes de Oliveira; e dois a degredo perpétuo: o cônego Vieira da Silva e o padre Manuel Rodrigues da Costa. Todavia, remetidos a Lisboa, permaneceram vários anos enclausurados.

Desde 1790, a rainha d. Maria havia decidido comutar a pena de morte dos chefes da conjura em degredo perpétuo, com exceção dos que apresentassem agravantes. Estava neste caso, por sua própria vontade, o alferes Silva Xavier. Eis por que, assistido espiritualmente pelos franciscanos do Rio de Janeiro, Tiradentes preparou-se para a morte. Sua execução ocorreu no antigo largo do terreiro da Polé a 21 de abril de 1792. A caminho dela, parou na igreja da Lampadosa, frequentada por “pretos minas”, para suas últimas orações. Foi enforcado e seu corpo esquartejado, sendo suas partes exibidas nos locais onde havia feito pregação revolucionária. Nos meses seguintes, foram enviados para as possessões portuguesas na África sete condenados, dos quais apenas dois regressaram ao Brasil: José de Resende Costa Filho e o padre Manuel Rodrigues da Costa, posteriormente eleitos deputados às Cortes de Lisboa.

Mas não era só em Minas que se liam os livros proibidos de Raynal e Mably ou se discutiam as ideias de igualdade e liberdade. A capital da América portuguesa também tinha seu fórum sobre o assunto. Era a Sociedade Literária do Rio de Janeiro, fundada em 1786 por Luís de Vasconcellos e Souza, vice-rei da época, com o intuito de discutir “a filosofia em todos os seus aspectos”. Se antes da Inconfidência alguns de seus membros, baseados na confiança mútua, ousavam debruçar-se sobre assuntos como “a igualdade dos homens”, a partir de 1791, com a revolta de São Domingos, os mesmos temas passaram a inspirar profundo mal-estar: “O que sucedeu lá [na América Francesa], demonstrou o que pode acontecer-nos e Deus permita que eu nunca veja”, anotava em tom temeroso Manuel José de Novais de Almeida. O fato é que, dois anos depois da execução de Tiradentes, os membros da Sociedade Literária, por ordem do segundo conde de Resende, foram presos e submetidos a longos e exaustivos interrogatórios. Sua liberdade foi outorgada por d. Rodrigo de Souza Coutinho, futuro conde de Linhares e neto de brasileira.

Na Bahia, por sua vez, os mesmos ideais eram discutidos numa loja maçônica, os Cavaleiros da Luz, sediada nos arrabaldes da Barra. O fato de ter num francês, Antoine René Larcher, seu fundador, e de o porto de Salvador receber constantemente a visita de navios que descarregavam, em segredo, gazetas e livros provenientes do Velho Continente, acentuava entre os maçons o interesse pelos ideais da Revolução Francesa. Tal clima, favorável às ideias libertárias, assim como a notícia da participação dos sans-culottes – nome que se dava, durante a Revolução Francesa, aos republicanos oriundos das camadas populares – na derrubada da monarquia, acabou por inspirar, em Salvador, outra conjuração: a dos Alfaiates. Distintamente do que houve em Minas, na Bahia levantaram-se representantes dos grupos mais humildes: artífices, soldados, mestres-escolas, assalariados, em grande maioria mulatos, gente exasperada contra a dominação portuguesa e a riqueza dos brasileiros. Seu ideal era a construção de uma sociedade igualitária e democrática em que as diferenças de raça não estorvassem as oportunidades de emprego nem de mobilidade social. Tal como na França, reproduziu-se aqui, também, um profundo sentimento anticlerical. Os discípulos dos chamados “francesismos” não respeitavam os dias de festa religiosa que exigiam jejum de carne, apedrejavam os nichos de imagens sacras nas esquinas das ruas, onde era hábito rezar o terço, atacavam publicamente os dogmas da Igreja, afirmando que não havia Juízo Final, Inferno ou Céu. Conta um observador contemporâneo aos fatos que eles não hesitavam em dizer, ainda, “que as mulheres casadas não eram obrigadas à fidelidade conjugal”, ou que “Cristo Sr. Nosso não estava real e perfeitamente no sacramento da Eucaristia, sim num pedaço de pão”.

Governava então a Bahia d. Fernando José de Portugal e Castro, futuro vicerei, ministro, conde e marquês de Aguiar, quando na manhã de 12 de agosto de 1798 começaram a aparecer pela cidade, em lugares públicos e igrejas, pasquins manuscritos tornando pública a sedição. Eram os Avisos ao povo bahianense. Dirigidos ao “povo republicano da Bahia” em nome do Supremo Tribunal da Democracia Baiana, o papel – como se chamava esse tipo de pasquim – clamava pelo fim do “detestável jugo metropolitano de Portugal”. “Todos os cidadãos e, em especial, os mulatos e negros” eram informados de que “não haverá diferenças, haverá liberdade, igualdade e fraternidade”. Quanto à escravidão, os sediciosos baianos, diferentemente dos mineiros, não tinham dúvidas: “todos os negros e castanhos serão libertados para que não exista escravidão de tipo nenhum”. “Democrático, livre e independente” deveria ser o governo, enquanto os membros do clero que pregavam contra a liberdade eram ameaçados. Concluía, exclamando que “a época feliz da nossa liberdade está prestes a chegar; será o tempo em que serão irmãos, o tempo em que todos serão iguais”. Um desses papéis, em forma de carta ao prior dos carmelitas descalços da Bahia, proclamava-o “futuro geral em chefe da Igreja baianense”. Outro, dirigido ao próprio governador, informava-o de que, num plebiscito do dia 19, fora ele invocado como “presidente do Supremo Tribunal da Democracia Baianense”.

Também nessa ocasião, a conspiração, que contaria com seiscentos adeptos, foi denunciada e esmagada antes de propriamente começar. Como não estivesse disfarçada a letra desses escritos, os mesmos foram confrontados com requerimentos existentes na Secretaria do Governo da capitania, apurando-se parecerem de autoria de certo Domingos da Silva Lisboa, português, alferes de milícias. Como, entretanto, depois de sua prisão continuassem a aparecer outros pasquins, prendeu-se como seu autor o soldado Luís Gonzaga das Virgens. Completando esses indícios, um capitão de milícias, um soldado e um ferrador fizeram denúncias ao governador, comunicando-lhe que reuniões suspeitas vinham sendo realizadas no campo do Dique do Desterro, próximo ao convento do mesmo nome. Delas participavam soldados, alfaiates, pardos forros, escravos, etc. As reuniões começaram a ser vigiadas e não foi difícil identificar os principais frequentadores. Dois soldados e dois alfaiates se achavam gravemente comprometidos. Eram eles: o citado Luís das Virgens, autor dos pasquins, ex-desertor das milícias, pardo de 36 anos; Lucas Dantas do Amorim Torres, que se justificou por querer dar baixa do serviço militar, sem conseguir; João de Deus do Nascimento, alfaiate, pardo de 28 anos, partidário das ideias francesas de “igualdade e abundância” para todos, e Manuel Faustino dos Santos, alcunhado o Lira, pardo de 23 anos de idade. Além deles, envolveram-se mais 31 sediciosos, destacando-se o cirurgião formado em Coimbra, Cipriano José Barata de Almeida, posteriormente um dos mais ativos jornalistas políticos do Primeiro Reinado. Seguiam-no, na hierarquia social, dois tenentes, um cirurgião prático, também pardo, Sá Couto, o professor de gramática latina do Rio de Contas Francisco Moniz Barreto, e o militar Hermógenes Francisco de Aguilar Pantoja, possuidor de notas sobre as “ideias francesas”. A maior parte dos acusados era, contudo, composta por gente humilde, inclusive escravos.

As ideias francesas eram vagamente conhecidas por gente de parca instrução. Associavam-nas à garantia de liberdade e igualdade, o que os atraía, pois eram oprimidos por uma conjuntura econômica nefasta que elevava os preços e abaixava salários, alimentando o mal-estar popular. Durante os inquéritos, apurou-se que os conjurados projetavam realizar o saque da cidade para distribuir bens entre todos; se o governador não aderisse ao movimento, seria morto; as portas dos mosteiros e prisões seriam abertas liberando quem quisesse deixar suas celas. A originalidade do movimento consistia na defesa da abolição dos preconceitos de cor e da abertura comercial do porto de Salvador para navios de todas as nacionalidades. Em dezembro de 1798, o príncipe regente d. João determinou que os acusados fossem sentenciados pelo Tribunal da Relação da Bahia. O advogado José Barbosa de Oliveira defendeu-os brilhantemente, alegando que os réus não estavam à altura do crime que lhes era imputado. A sentença foi dada a 7 de novembro de 1799 e, no dia seguinte, foram “exemplarmente” enforcados e esquartejados os soldados Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas e os alfaiates João de Deus e Manuel Faustino. Sete outros réus, entre eles cinco pardos, inclusive Sá Couto, foram degredados para a África. José Raimundo Barata de Almeida foi degredado por três anos para a ilha de Fernando de Noronha. Seu irmão Cipriano Barata e o tenente Hermógenes, absolvidos. Os escravos envolvidos na revolta receberam açoites e seus senhores foram obrigados a vendê-los para fora da capitania. Os representantes da elite branca, pouco à vontade num movimento radical, receberam penas leves. A mão da justiça colonial batia pesadamente, mais uma vez, sobre as camadas populares que ousavam se levantar contra o regime.


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Veja também:


Notas:

[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO,
     Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 104
     a 109, Capítulo 14.

[2] Texto e imagem disponíveis em: <https://www.sohistoria.com.br/ef2/inconfidencia/>.
      Acesso em 07/02/2023.


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São
        Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

26 janeiro 2023

Mobilidade e diversificação

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato

Sociedade colonial [1]

Enquanto os conflitos fustigavam as distantes margens, evidenciava-se outra feição da sociedade. A Colônia se diversificara. As formas de ocupação que haviam garantido a presença portuguesa entre os séculos XVI e XVII, ou seja, o latifúndio e a monocultura, passaram a conviver crescentemente com outras atividades econômicas. No século XVIII, a mineração de ouro e diamantes só fez acentuar essa tendência. A necessidade de escravos, primeiro para o açúcar e depois para as minas, criou um grupo de homens poderosos: os negociantes de grosso trato, também chamados de comerciantes por grosso. Dominavam, ali, homens brancos de origem portuguesa que, inicialmente de Lisboa e posteriormente do Rio de Janeiro e da Bahia, negociavam com as mais diferentes praças, como Inglaterra, Alemanha, Itália e outros reinos europeus; seus agentes comerciavam desde alimentos, bebidas e escravos até mercadorias de luxo, tais como perucas e tecidos finos.

Tais comerciantes exploravam inúmeros negócios. Investiam em secos (ferramentas, tecidos, etc.) e molhados (alimentos, bebidas, etc.), priorizando, contudo, o tráfico de escravos e os empréstimos aos senhores de engenho. Muitos se tornaram correspondentes e banqueiros dos filhos dos senhores de engenho nordestinos que iam estudar na Europa. Suas lojas, espalhadas em diferentes cidades, desovavam produtos tão variados como abotoaduras, pregos, tesourinhas, cordas de viola e tabaco. Seus armarinhos distribuíam fitas, plumas, galas, toalhas e guardanapos. Muitos deles eram de origem judaica. Em Minas Gerais, por exemplo, a presença cristã-nova foi responsável pelos primeiros contratos de mineração, assim como pelos primeiros negócios e vendas de instrumentos. Estrategicamente instalados no coração da Colônia, esses mercadores compravam, vendiam, financiavam, emprestavam a juros, faziam hipotecas e negociavam, entre outros produtos, pedras preciosas e ouro, à vista ou a crédito. Aceitavam, ainda, pagamentos parcelados, sempre feitos em moedas de ouro ou em cédulas. Suas ligações iam do Peru à Europa, e lá, notadamente, Amsterdã. Houve alguns tão poderosos como Francisco Pinheiro, instalado em Salvador, com agências comerciais na Europa, África, Ásia e Américas. Sua rede comercial se estendia do Ceará à colônia de Sacramento, caminho para as colônias espanholas. Um tal poder de fogo só demonstrava que a Colônia não era passiva. As trocas comerciais internas e externas permitiam a relativa autonomia de várias regiões do Brasil.

Um intricado mundo de grandes comerciantes dominava as várias áreas da América portuguesa. Sua imensidão territorial gerou, contudo, o aparecimento de comerciantes volantes, gente acostumada a percorrer grandes distâncias levando seus produtos em uma ou outra direção. Na sua maioria, era gente branca, nascida no Brasil, e que aparece na documentação de época sob a denominação de “americano”. Em razão dos produtos que carregavam consigo, podiam também ser chamados viandantes, tratantes, comboeiros ou condutores. Os viandantes, como não precisavam de grande capital, preferiam trabalhar mediante comissão para o colega de grosso trato. Havia também os que eram contratados por terceiros e que percorriam enormes distâncias cobrando dívidas e entregando mercadorias. Ocupavam posição menos prestigiada do que a dos negociantes de grosso trato, de quem dependiam graças a um intricado sistema de débitos e créditos difícil de ser rompido. Entre os tratantes, à frente de negócios de risco, não faltaram os que colocaram a vida em perigo cobrando dívidas. Quantas vezes não eram recebidos a bala por seus devedores ou passavam por perigos como assaltos, tempestades e ataques de animais selvagens? Os camboeiros viviam basicamente de transportar escravos e iam munidos de pesados livros de contabilidade, capazes de dar conta de sua preciosa mercadoria humana. Os tropeiros, como já vimos, traziam muares e cavalos dos currais do Sul ou do Nordeste para os mercados urbanos.

Paralelamente às diversas formas de comércio volante, a urbanização havia, sobretudo, incrementado o mercado fixo. Este se dividia em lojas e vendas. As primeiras, grandes, encontravam-se nos centros urbanos, as segundas, menores, nas periferias. Ambas mercadejavam produtos secos e manufaturados como panos e ferramentas, além de bebidas e alimentos. Os inventários anexos aos testamentos revelam, por exemplo, que numa dessas lojas o comprador encontrava diversos produtos, tais como incenso, marmelada, canela, barris de cachaça, toucinho e sal, panelas, sabão e frascos de vinagre. Seus proprietários financiavam a atividade de comerciantes ainda menores que lhes traziam mercadorias dos portos distantes, além de manter caixeiros, escriturários e guarda-livros, encarregados de cobranças e listas de estoque. À frente desse comércio se destacavam as mulheres: brancas, mulatas ou negras, elas se instalavam nas periferias urbanas e nos caminhos mais frequentados, explorando, além de mercadorias, a venda de bebidas e a prostituição. As mulheres eram também maioria no pequeno comércio, no qual exploravam os escravos de ganho – cativos e cativas que circulavam pelas ruas oferecendo bebidas, alimentos e panos. Na escala mais baixa ficavam as “mulheres de tabuleiro”, responsáveis pela venda de pastéis, bolos, doces, mel e os quitutes regionais: em São Paulo, as saúvas tostadas, e, no Rio, o pão de ló. Esse pequeno comércio progrediu imensamente graças à intimidade que com ele possuíam mulheres de origem africana. Acostumadas aos grandes mercados a céu aberto, onde, sobre panos coloridos, as mercadoras negras expunham alimentos e produtos artesanais, dominando, de norte a sul, as ruas das cidades coloniais.

No comércio também vamos encontrar ciganos. Os primeiros a chegar, oficialmente, vieram degredados para o Maranhão, Pernambuco e Rio de Janeiro, no século XVIII. Em 1718, chegou à Bahia um grande grupo constituído por João da Costa Ramos, por alcunha João do Reino, acompanhado de mulher, filhos e parentes. As alcunhas eram corriqueiras, muitas delas degenerando em nome próprio: O Beijo, O Rola, O Catu, O Come-Pólvora, etc., ciganos célebres das Minas. Em Salvador, o grupo se alojava, segundo uma testemunha, em barracas no Campo dos Ciganos, “enorme e inculta praça que se estendia da rua do Cano até a Barreira do Senado”. Empregavam-se no trabalho de metais: eram caldeireiros, ferreiros, latoeiros; as mulheres rezavam quebranto e liam a sina. Muitas internaram-se nas matas ou pirateavam nas estradas ermas. No Rio, os calons, como eram chamados, instalaram-se primeiramente no Valongo e na grande área da Cadeia Velha; migraram depois para o campo de Sant’Ana e a rua dos Ciganos, atual da Constituição. Moravam em casas térreas de três portas que gostavam de deixar abertas dia e noite. Seu negócio era a exploração do ouro de Minas, a barganha de cavalos e o tráfico de escravos. O refugo de homens e cavalos era dado a um parente para ser vendido no interior.

A vida urbana também trouxe para a cena outros atores. Os artesãos, por exemplo. Tanoeiros, calafates, alfaiates, carpinteiros, prateiros, ourives e sapateiros espalhavam-se pelas ruas mais importantes, nelas se agrupando por atividade. No século XIX, de um desses grupos capazes de dar vida e colorido às ruas coloniais, Ferdinand Denis deixou um delicioso retrato: “Nas classes artesanais existe uma que desempenha o grande papel: é a dos barbeiros. As barbearias substituem com frequência os cafés. É ali que se relatam as notícias e muitas vezes é ali que elas se fazem”. No que arrematava outro francês, Debret: “É certo de aí encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas. Dono de mil talentos, ele tanto é capaz de consertar a malha escapada de uma meia de seda, como de executar, no violão ou na clarineta, valsas e contradanças francesas em verdade arranjadas a seu jeito”. Mulheres, da mesma forma, ofereciam em lojas seus serviços de bordadeiras, costureiras, chapeleiras e fabricantes de flores de penas, escamas ou asas. As responsáveis por tais lojas, segundo um viajante inglês, “eram geralmente mulatas”.

No campo também foram registradas mudanças. Aí vamos encontrar tanto grandes senhores de escravos quanto pequenos proprietários, que contavam apenas com a mão de obra familiar ou combinavam diversas formas de trabalho livre com a escravidão. Vários desses pequenos produtores produziam para consumo interno da Colônia. Minas Gerais, por exemplo, enfrentando a crise do ouro de meados do século XVIII, expandiu a produção de milho, feijão, queijos e carnes salgadas de porco que eram drenadas para a capital carioca. São Paulo tampouco se acanhou com o esgotamento das lavras mineiras. O ritmo crescente do aumento de sua população demandou, bem ao contrário, uma agricultura fornecedora de alimentos para novas bocas. No território paulista, a agricultura rústica ganhou impulso. Pequenas roças, abertas em clareiras de mata, produtoras de alimentos básicos para a família e com algum excedente para o mercado interno, conviviam com fazendas açucareiras voltadas para a exportação. Na maior parte das vezes, dispersos e isolados, os grupos de roceiros – denominados “caiçaras” no litoral e “caipiras” no interior – acabavam por se tornar quase uma autarquia, dependendo da vila mais próxima apenas para efetuar trocas: mandioca, feijão, bananas e laranjas por ferro, sal, instrumentos agrícolas, armas e pólvora. De maneira geral, esses roceiros se vestiam com camisas e calças de algodão e ambos os sexos cobriam a cabeça com chapéus de feltro desabado. A alimentação era a mesma, seja na cuia de caipiras ricos, seja na de pobres. Cinco ingredientes básicos compunham o cardápio diário: fubá, mandioca, feijão, toicinho e açúcar, que formavam as quatro refeições servidas tanto a senhores quanto a escravos. Os produtos dependiam da técnica disponível, que se resumia ao machado para abater árvores e preparar lenha, a enxada, a foice e o rudimentar bastão para a semeadura. As terras eram medidas com braças de cipó, enquanto a caça e a pesca baseavam-se no facão, numa arma de fogo, em anzóis e redes. Às vezes, um ou dois escravos complementavam a mão de obra familiar nessas pequenas propriedades. Um calendário agrícola, herdado dos índios, dava lógica ao ciclo de plantações: os tubérculos eram semeados no primeiro ano da roça, entre agosto e setembro, ao passo que os cereais e as leguminosas, o café e a cana, eram plantados, geralmente, no ano seguinte. Garantia-se, dessa forma, a alimentação do grupo familiar no primeiro ano. Derrubadas e queimadas eram feitas nos meses secos: julho e agosto. A dispersão desses moradores irritava as autoridades “ilustradas e fisiocratas”, que a culpavam pela “pobreza” local. O primeiro deles, chegado em 1765, Morgado de Mateus, queixava-se: “observei as povoações e achei que todas são pequenas, ainda as de maior nome, faltas de gente, e sem nenhum modo de ganhar a vida: os campos incultos, tudo coberto de mata brava, a lavoura por mau método, só se planta em mato virgem, pelo pouco que custa e pela repugnância que têm de se sujeitar ao maior trabalho de cultivarem os campos como nesse Reino. Apenas colhe cada um para seu sustento próprio, muito pouco sobeja para vender ao público. Ninguém trata de aproveitar os efeitos do país, por cuja causa se acha o povo reduzido à mais lastimosa pobreza”.

Contudo, pobreza bem maior era registrada em áreas urbanas, onde não havia a alternativa da agricultura de subsistência. Em alguns dos antigos núcleos auríferos de Minas, assombrava o número elevado de mulheres paupérrimas vivendo da prostituição. Houve mesmo pais que, desesperados, recorriam à caridade da Câmara para vestir suas filhas cobertas por andrajos e sem condições de apresentar-se em público. Os pequenos, abandonados ou órfãos, assim como os membros dos grupos menos favorecidos, não tinham a quem apelar, vivendo de esmolas e de expedientes escusos; famílias pobres amontoavam-se em cafuas espalhadas pelas encostas dos morros, cobertas com capim, tendo por chão a terra imunda e esburacada. Em 1788, por exemplo, o bispo de Mariana, Minas Gerais, referia-se aos “pobres impossibilitados [...] famílias de homens pardos, pretos, libertos, nascidos na miséria, criados na indigência e sem a menor subsistência”. Os viajantes cansaram-se de descrever a população “deploravelmente raquítica e pobre”, cujo olhar doentio resultava da alimentação miserável. Mesmo quando paravam para beber água, à beira de uma rústica choupana, o morador vinha logo lhes estender a mão em peditório. O maior cuidado desses europeus que cruzaram o litoral e o interior do Brasil era o de não ser roubados quando cozinhavam os alimentos que levavam.

Em Salvador, por sua vez, James Prior, chegado em 1813, comparou os miseráveis a “pobres e esquálidos objetos”, chocando-se com “as crianças seminuas suplicando caridade”. Segundo um especialista, os pobres, que haviam vivido a experiência da escravidão ou que descendiam de gente com raízes na África, constituíam a maioria da população indigente que mendigava pelas ruas da capital baiana. Agrupados nos adros de igrejas, nas ruas onde havia mais transeuntes e que levavam às praças e fontes, nos largos onde se abrigavam às portas das instituições de poder, os pedintes respondiam a verdadeiros rituais. Vestiam-se com decência para não provocar repulsa, repetiam os mesmos refrões – “uma esmola, pelo amor de Deus” –, passavam aos sábados pelas sacristias onde se distribuíam as esmolas da semana; as mulheres, no caso, levavam ao colo seus pequenos. Muitas vezes, obtinham como resposta um “Deus lhe favoreça”, sinal de que não iam obter nada, tendo, então, que emendar com um “Amém”, seguindo adiante em busca de melhor sorte. Ganhavam também ao acompanhar enterros, pois não eram poucos os fiéis que compensavam seus pecados mandando aos testadores que, uma vez falecidos, fossem transportados ou velados por mendigos. Era prova de “humildade”. Legados pios eram normalmente distribuídos entre os mais pobres.

A esses pobres, como observara Vilhena em fins do século XVIII, juntavam-se os vadios, indivíduos, segundo a legislação portuguesa, sem ocupação, sem senhor e sem moradia própria. Itinerância e ociosidade eram comportamentos julgados inadequados à ordem social, mas eram, também, a realidade de milhares de famílias que enchiam os campos e as cidades. Em tempos difíceis, essa gente metamorfoseava-se em andarilhos, mendigos e ladrões. Esses “pés leves”, “pés ligeiros” ou “gente sem eira, nem beira”, como eram conhecidos, possuíam sua lógica própria. Não se deixando explorar ou dominar pelo poder senhorial, distanciando-se da escravidão, reafirmando sua condição de livres, tornavam-se intoleráveis ao sistema. Eles violavam abertamente a premissa tão cara à sociedade patriarcal segundo a qual todo homem tinha que ter seu lugar, sua família e seu senhor. Mesmo a Igreja ajudava a patrulhar o trânsito desses “vagabundos” entre diferentes freguesias, exigindo-lhes a apresentação de papéis que comprovassem que haviam comungado pela Quaresma. Caso contrário, não obtinham licença para esmolar. A preocupação em dar-lhes utilidade era constante na correspondência das autoridades. Em 1770, d. José Luís de Menezes, conde de Valadares e governador de Minas Gerais, escrevia ao Morgado de Mateus: “De mulatos, cabras e mestiços abunda esta capitania fazendo-se muitos deles, pela sua vadiação e ociosidade, dignos de se fazerem sair desta capitania e de se empregarem com coisas úteis”.


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Veja também:

  • Sobre o papel da Igreja no período colonial, veja o capítulo 4 do meu trabalho: Fundamentalismo Protestante...Fonte / Referência bibliográfica:
    DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.
  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Fonte:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010,pp., 97 a 102, Capítulo 13.

[2]Obra de Jean-Baptiste Debret, que viveu no Brasil entre 1816 e 1831. O artista retratou a mulher, esposa e mãe no cotidiano da casa-grande ou dos assobradados das cidades coloniais.” Texto e imagem disponíveis em: <https://www.coladaweb.com/historia-do-brasil/sociedade-colonial-brasileira>. Acesso em 26/02/2023.

14 dezembro 2022

Fronteiras Coloniais


Por 

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]

Trado de Madri [2]


As fronteiras brasileiras devem muito mais à coragem e ao sofrimento de desbravadores do que a decisões de gabinete. Sabia-se, desde o início da colonização, que as linhas imaginárias do Tratado de Tordesilhas não eram uma fronteira concreta: a ocupação é que a definiria. A aventura começa com Pedro Teixeira, que, entre 1637 e 1639, subiu o Amazonas e atingiu Quito, no vice-reino do Peru, pelas águas do Napo e do Aguarico. De lá baixando em direção a Belém, deu início à monumental irradiação que resultou, ao norte, na fundação do povoado de Franciscana, fronteira das duas monarquias ibéricas, novamente independentes em 1640. Nesse fim da Amazônia, ambas as coroas assinalaram, pacificamente, as fronteiras de seus domínios. Tal posse foi observada por multidões de índios silenciosos.
O Sul foi o palco de maiores instabilidades. Plantados ao sul do Paranapanema, volta e meia os jesuítas espanhóis avançavam para o ocidente. Os bandeirantes, por sua vez, afundavam-se nos pampas. Bandeiras de correria, destinadas a escravizar índios, ou de povoamento, voltadas para ocupação efetiva do solo, espalharam homens por várias localidades, como o paulista Francisco Dias Velho, que em 1651 ocupou a ilha de Santa Catarina. A união das duas coroas adensou o tráfico na bacia do rio da Prata, e o governador do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá, pensou em conquistá-la. Empurrando a penetração, sertanistas e missionários percorriam as águas do rio Tapajós, do Madeira, a bacia do rio Negro e do Solimões. O ideal era atingir, pelo sul ou pelo norte, as minas de Potosí. O envolvimento da Espanha na guerra franco-holandesa, de 1672 a 1678, abriu espaço para que os portugueses se fizessem cada vez mais presentes no Sul. Conta-se até que Antônio Raposo Tavares, em uma de suas expedições contra as missões jesuíticas de Guairá e Itatim, teria rudemente ameaçado os jesuítas, dizendo-lhes: “havemos de expulsar-vos de uma terra que nos pertence, e não a Castela”.
Em 1676, o monarca d. Afonso VI consolida o domínio do Sul “nas terras [...] até a boca do rio da Prata”. Nesse ano, cria-se o bispado do Rio de Janeiro, cujo limite meridional era o estuário. A Câmara do Rio solicitou ao monarca que fixasse a fronteira no Prata, fortificando sua margem esquerda, enquanto d. Manuel Lobo, novo governador das vilas meridionais, era orientado a fundar uma colônia para a instalação dos “vassalos portugueses nos ermos domínios”. Em 1º de janeiro de 1680 se instala a Nova Colônia de Sacramento a Portugal, no litoral do atual Uruguai. O revide dos espanhóis não tardou. Apoiado pelos índios das Missões, o governo platino expulsou os invasores. Quem não foi preso, estava morto. Os portugueses ameaçaram romper com Madri e iniciaram-se conversas diplomáticas. Com a mediação de Roma, Paris e Londres, assinou-se, em maio de 1681, um tratado provisório – Tratado de Lisboa –, graças ao qual libertaram-se os prisioneiros, devolveram--se as terras da colônia de Sacramento e voltou-se à velha discussão de por onde passaria a linha de Tordesilhas.
Na Europa, outros acontecimentos viriam perturbar as questões de fronteiras no Sul. A Guerra de Sucessão espanhola, entre 1701 e 1713, foi uma delas. Com a morte de Carlos II, o trono de Madri teve como sucessor o francês duque de Anjou, neto de Luís XIV e futuro Felipe V. Ora, tal mudança naturalmente abriria os mercados coloniais espanhóis às mercadorias francesas. Essas pretensões contrariavam, porém, os planos de Guilherme III de Orange, rei da Inglaterra, que imediatamente armou uma coalizão com a Holanda, o Império Habsburgo, ou Santo Império Romano-Germânico, e a Savoia. Dependente econômica e politicamente da Grã-Bretanha, Portugal concordou em dar apoio ao candidato de Habsburgo à sucessão de Carlos II, que falecera sem deixar filhos, entrando em conflito com a Espanha.
As consequências? Sacramento foi atacada por forças espanholas em 1704, sendo ocupada depois de cinco meses de apertado cerco. O Tratado de Utrecht (1713-15) pôs fim à guerra e a colônia de Sacramento voltou aos antigos donos. Inconformados com a presença portuguesa e desejosos de lhe impor limites, os castelhanos fundaram, em 1726, a cidade de Montevidéu, a leste de Sacramento. A criação de Montevidéu isolou os domínios do Sul em relação a centros como São Vicente e Rio de Janeiro, fragilizando uma posição que viria a ser ameaçada novamente entre 1735 e 1737. Em janeiro de 1736, os lusos receberam reforços vindos da Bahia, de Pernambuco, mas, sobretudo, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em meio às lutas, uma expedição de socorro comandada pelo brigadeiro Silva Paes fundou, em 1737, a fortaleza de Rio Grande de São Pedro, ponto chave para a ocupação do atual Rio Grande do Sul. A partir daí, a região tornou-se palco de inúmeros acordos de paz seguidos de contendas entre espanhóis e portugueses, através de suas tropas regulares ou de seus colonos. À sombra dessas tensões se desenvolviam estâncias de gado e campos agrícolas que tanto serviam para o abastecimento local quanto para o dos contendores. O armistício assinado em 1737 restaura a situação anterior. Retira-se a cavalaria constituída por índios enviados das Missões. Nesse ano, mandado pelo general Gomes Freire de Andrade, que administrou metade do Brasil durante trinta anos, o brigadeiro Silva Paes desce com a finalidade de atacar Montevidéu e construir a referida fortaleza de Rio Grande, denominada Jesus, Maria e José. A região torna-se uma base para a conquista do “continente”, como era designada a região, em oposição à ilha de Santa Catarina. Levas de açorianos, mas também gente do Rio, Bahia, São Paulo, Minas e de Sacramento dão início à ocupação das terras.
De acordo com um conhecido historiador, toda essa região evolui sob o signo da organização armada. Colocou-se uma série de dispositivos militares em marcha. O brigadeiro Silva Paes foi designado governador da recém-criada capitania de Santa Catarina (1739-49). O Rio Grande de São Pedro (atual Rio Grande do Sul), por sua vez, se tornou capitania em 1737. Havia razões para tantos cuidados na implantação das estruturas de poder metropolitanas. Embora a situação fosse de paz na Europa – em 1729, o então futuro rei espanhol, Fernando VI, casara-se com uma princesa portuguesa –, as autoridades anteviam problemas. De fato, eles não demoraram a surgir. O Tratado de Madri (1750) permutara a colônia de Sacramento, à margem do rio da Prata, pelo território das missões jesuíticas de aquém-Uruguai, onde viviam cerca de 30 mil guaranis. Erradicá-los foi tarefa desumana, que exigiu esforços do general Gomes Freire, chefe da comissão portuguesa para os limites meridionais.
Ao descer para o Rio Grande em 1752, Gomes Freire tinha intenção de assegurar para a monarquia portuguesa “mais uma província”. De fato, sua presença agilizou obras de defesa e povoamento do continente. Mas só. O problema residia, como bem percebera o futuro Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, e, então, primeiro-ministro de d. José I, no destino a ser dado aos índios e às missões. Ele queixava-se de que, uma vez introduzidos em Sacramento, os espanhóis deixariam os portugueses “às presas com os tapes sobre a entrega e a pacífica conservação das aldeias”. Por “tapes” queria dizer jesuítas. O destino da Guerra Guaranítica, da qual foram personagens importantes, veremos logo adiante.
Se dois séculos e meio depois do início da colonização Portugal perdeu a margem esquerda do Prata, ele ganhou toda a bacia amazônica. Na mesma época em que se fundava Sacramento, os governadores do Norte buscavam defender suas terras. Tinha início a chamada Questão do Oiapoque. Empurrando fronteiras, o colonizador francês, após tentar colonizar Rio de Janeiro e Maranhão, tinha sido impelido para o norte. Em 1624, foram criados os primeiros povoados na atual Guiana Francesa. Sua ambição, contudo, era chegar ao Amazonas, passando por Macapá. Animados pela leitura do livro recém-traduzido para o francês do padre Acuña, Nuevo descubrimiento del gran rio de las Amazonas (1641), grupos franceses desceram até a fortaleza de Gurupá, na confluência do rio Xingu, para fazer escravos entre os índios domesticados. Tem início, então, uma série de pequenos movimentos. Os portugueses da região previnem a Metrópole dos riscos de invasão, por intermédio do governador Francisco de Sá e Menezes. Em resposta, quatro fortes começam a ser construídos, sendo abastecidos com canhões e munição. Em carta régia, o monarca ordenava que se impedisse a “entrada a esses estrangeiros, e se persistirem os prendam, mas que não procedam contra eles a pena capital”. A ideia era a de manter um sistema de boa vizinhança, evitando agressões deliberadas. Em 1691, vindo da França, onde fora feito marquês e governador de Caiena, De Ferroles avisava o governador do Maranhão, Antônio de Albuquerque, que seria preciso definir fronteiras. Intimidado, o governante português retrucava que isso era problema a ser resolvido nas cortes. O primeiro preparava-se para atacar, o segundo para se defender. Muitos desses contatos foram atestados pelo padre Aluísio Conrado Pfeil, catequista inaciano, mas, sobretudo, matemático de primeira grandeza que ajudou Albuquerque a municiar-se com cartas e cálculos na contenda geográfica com os franceses. Macapá caiu sob um ataque surpresa em 1697. Em tom categórico, o comandante do grupo invasor, capitão Lamothe Caigron, admoestava os lusos: “Depois de eu vos ter escrito muitas vezes, Senhor, que El-Rei meu amo não permitia que fizésseis edificar fortaleza na banda ocidental deste rio [...] ordenou-me Sua Majestade de expulsar os portugueses o que me tem obrigado vir cá [...] mandei avisar ao sr. Manoel (Pestana, encarregado da defesa) de me entregar a fortaleza, o que ele recusou fazer; portanto cheguei eu mesmo à porta dela para com isso obrigá-lo a não esperar o fogo de meus soldados”. Antes, contudo, que Luís XIV conseguisse credenciar diplomaticamente a conquista, Albuquerque, com soldados e índios flecheiros, retomou Macapá. Os franceses foram despachados de volta a Caiena. Um tratado provisório assinado em 1700 postergava a solução, que só foi encontrada com a assinatura do mencionado Tratado de Utrecht, quando se consolidou definitivamente a fronteira do Oiapoque.
E os espanhóis? Estes pareciam ter se desinteressado da Amazônia. A verdade é que os sertanistas que partiam de Belém, ou os bandeirantes vindos de Mato Grosso, não encontravam em seu caminho maiores obstáculos criados por castelhanos. O mesmo se dava na bacia do rio Branco. Foram, contudo, franciscanos e jesuítas os que plantaram missões em Chiquitos, Moxos, Mainas, Putumayo e Orenoco. Suas reduções, extremamente bem organizadas, respondiam ao avanço faminto dos lusos por Mato Grosso, Guaporé, Madeira, Solimões e pelo vale do rio Negro. Dessa presença nasciam naturalmente algumas asperezas. Na bacia do Madeira, por exemplo, Francisco de Melo Palheta – em viagem oficial atingiu, em 1722, as missões jesuíticas espanholas do Moxo – advertiu, então, os inacianos locais de que estavam em terras pertencentes à Coroa portuguesa e que poderiam ser desalojados pelos governantes paraenses. Por outro lado, também eram os próprios religiosos que assinalavam os avanços dos portugueses aos espanhóis. Entre 1731 e 1734, a Audiência de Quito, responsável pela parte castelhana de águas e terras amazônicas, alertou sua metrópole sobre os perigos representados por tais incursões, fartamente documentadas nos relatórios jesuítas. As autoridades espanholas sugeriam medidas imediatas diante da penetração dos homens do Brasil. Apesar do susto, pouco se fez. Embora, na Espanha, o Conselho das Índias tenha determinado a recuperação das terras mato-grossenses e amazônicas, e apesar da gritaria dos jesuítas espanhóis e das advertências emanadas de Quito, nenhuma providência concreta foi tomada. Acuada pela questão platina, a Espanha esquecia o espaço amazônico. O esquecimento era reforçado pelo fato de não ter encontrado aí nem o Eldorado, nem o país da Canela. Eis por que o tinham passado tão negligentemente aos religiosos lusos.
Deste lado não se perdia tempo. Diferentemente da recomendação feita no sentido de evitar lutas com os franceses no cabo do Norte, as autoridades portuguesas propunham-se expelir os espanhóis do Solimões e avançar as fronteiras do sul, norte e oeste até o Napo. Cartas régias e decisões do Conselho Ultramarino, tomadas entre 1648 até 1739, não escondiam o interesse na ocupação da região. As autoridades demonstravam a maior segurança quanto à soberania sobre o Amazonas. Em 1750, quando os espanhóis acordaram, era tarde. A fronteira fora deslocada. Finda a Guerra de Sucessão, reabriram-se as negociações sobre os limites ultramarinos. Partiu para Madri, como encarregado de negociar as fronteiras, o visconde de Vila Nova de Cerveira, Tomás da Silva Teles. Ia munido de instruções do secretário del-Rei Alexandre de Gusmão, lembrando que “nas terras já povoadas por qualquer das partes, cada uma conservaria o que tivesse ocupado”. As negociações conduziram a assinatura do Tratado de Madri a 13 de janeiro. Nele, ambas as partes reconheciam ter violado Tordesilhas, na Ásia e na América, acordando que, doravante, os limites passariam a vigorar sobre o tratado assinado. Determinou-se, também, que, em caso de guerra entre as coroas, na Europa, a paz continuaria reinando na América. Comissões demarcadoras, constituídas por cartógrafos e astrônomos, médicos, engenheiros, desenhistas e militares, deram início à marcação dos limites. Na região entre Castilhos Grande e a foz do Ibicuí eclodiu um sério problema. Os indígenas dos Sete Povos das Missões Orientais do Uruguai fincavam pé. Rebelaram-se contra as ordens que lhes foram dadas, inclusive pelos jesuítas, de se transferir para outros locais dentro dos domínios da Espanha, cedendo a área para os portugueses. O padre Altamiro marcou, duas vezes, prazos para a saída: em 1752 e 1754. Em vão. Armados, aguardaram os comissários. Estes também, em vão, tentaram pacificá-los, optando por uma ação militar, já programada de antemão. O governador das Províncias do rio da Prata, José de Andonaegui, marchou pelo rio Uruguai até São Borja. Gomes Freire fechou o cerco por Santo Ângelo. Iniciadas as operações, uma ordem vinda da Europa anunciou que as forças deveriam agir unidas. Em 1756, as missões de Santo Ângelo, São Borja, São João, São Lourenço, São Luiz Gonzaga, São Miguel e São Nicolau foram arrasadas. Sua destruição foi cantada em prosa e verso no poema antijesuítico O Uraguai, de Basílio da Gama. Mas se os rebeldes haviam sido esmagados com sucesso, o mesmo não se pode dizer das demarcações. Temeroso de uma reação indígena, o comissário português negava-se a receber a posse das Missões; com isso crescia a desconfiança de que Sacramento não seria entregue aos espanhóis. Somaram-se a isso as intrigas do novo governador de Buenos Aires, d. Pedro de Cevallos. Suspenderam-se, em consequência, as demarcações.
Enquanto isso, na Amazônia, desencontravam-se o comissário espanhol d. José de Iturriaga e Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do futuro marquês de Pombal e capitão-general do estado do Maranhão. Mas as tropas ou “partidas” encarregadas da demarcação mapeavam a região incentivando a ereção de vilas e uma nova capitania, São José do Rio Negro, criada em 1755. Atendendo ao Tratado de Madri, os jesuítas retiraram-se de sua missão de Santa Rosa, às margens do Guaporé, cedendo espaço para a construção do forte de Nossa Senhora da Conceição sob as ordens do governador Rolim de Moura.
Ambos os episódios, no sul e no norte, serviram para desencadear uma feroz perseguição aos jesuítas, acusados por Espanha e Portugal de insuflar a resistência indígena e dificultar as demarcações. A Companhia pagou um preço altíssimo por tanta resistência. Para começar, os jesuítas foram proibidos de entrar nos Paços dos Reis e de serem confessores da família real; a Ordem religiosa teve que se submeter a uma reforma interna e foram, por fim, acusados da tentativa de regicídio contra d. José I, no qual foram também implicados os marqueses de Távora, o duque de Aveiro e outros membros da velha nobreza lusa que se opunham à ascensão de Pombal. Em setembro de 1759, foi decretada sua expulsão de Portugal e dos domínios portugueses. No Brasil, executou-se a ordem no ano seguinte, com mais de seiscentos jesuítas saindo do Pará, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. A tensão entre os dois reinos ibéricos aumentou com a morte de d. Fernando VI. Seu sucessor, Carlos III, optou por hostilizar Portugal, alegando insatisfação com os limites fixados. O Tratado do Pardo, de 1761, anulava o de Madri.
Os anos de 1762 a 1777 foram marcados por choques com espanhóis no sul e no oeste. Com enorme superioridade militar, d. Pedro Cevallos atacou e ocupou a fortaleza platina portuguesa, Sacramento. Enquanto isso, em Fontainebleu, assinava-se o termo que punha fim à Guerra de Sete Anos entre França e Inglaterra (1756-63), e, como de praxe, os países ibéricos alinhados às grandes potências europeias sofriam os desdobramentos de seus acordos diplomáticos. Aí se convencionou que as colônias portuguesas na América “se tornarão a pôr no mesmo pé em que estavam, na conformidade dos tratados precedentes”. Na margem direita do Guaporé, hoje regiões mato-grossenses e rondonienses, não faltaram movimentos de tropas. Os espanhóis tentaram obter de volta o forte Santa Rosa. A expulsão dos jesuítas deixou a região abandonada e eles não conseguiram nem tomá-la, nem repovoá-la. Ignorando as determinações europeias, Cevallos seguia conquistando regiões havia mais de século e meio ocupadas por lusos: os fortes de Santa Teresa e São Miguel, hoje em território uruguaio, a povoação de Rio Grande de São Pedro e a vizinha margem esquerda da lagoa dos Patos. Ao saber do tratado de paz assinado na França, Cevallos limitou-se a devolver Sacramento, alegando obedecer às linhas dos obsoletos tratados. De pouco valeram os protestos portugueses nas cortes espanholas. Escaramuças determinaram a recuperação de margens da lagoa dos Patos, mas Rio Grande de São Pedro era o nó da questão. Foi preciso a ação do novo comandante das forças luso-brasileiras, tenente-general João Henrique Boehm, alemão a serviço de Portugal, aliado à marinha, para efetivar sua recuperação em 1776.
A Espanha seguiu protestando contra a retomada do Rio Grande. Ignorando as determinações diplomáticas, preparou-se para a maior expedição de guerra jamais enviada à América do Sul. Nomeado primeiro vice-rei do rio da Prata, d. Pedro Cevallos comandaria 13 mil homens transportados em 116 navios. A ideia era atacar as costas brasileiras. Sem grande apoio da Metrópole ou da marinha inglesa, perdeu-se a ilha de Santa Catarina, facilmente abocanhada pelos espanhóis. Por sorte, no caso, ventos contrários, os atacantes não puderam arremeter contra o Rio Grande. Por outro lado, a Nova Colônia do Santíssimo Sacramento, atacada, rendeu-se de forma definitiva em junho de 1777, seguindo ordens do último governador português, Francisco José da Rocha. Os conquistadores não tiveram dúvidas: arrasaram as fortificações e obstruíram o porto. Para finalizar, adentraram o sul de Mato Grosso, ocupando o forte de Nossa Senhora dos Prazeres às margens do rio Iguatemi.
Enquanto isso, na Europa, novos fatos engendravam modificações que afetariam a questão das fronteiras. Com a morte do rei d. José I, subia ao trono, pela primeira vez, uma mulher, d. Maria, cuja primeira iniciativa foi fechar a secretaria de Estado comandada pelo marquês de Pombal. Preocupada com a independência de suas colônias norte-americanas, a Inglaterra procurava pacificar Portugal; a França, por seu lado, interessada em contar com apoio dos futuros Estados Unidos, buscava aliança com a Espanha. Ambas queriam uma solução para as fronteiras coloniais dos reinos ibéricos. O resultado dessas mediações foi a ida a Madri do plenipotenciário d. Francisco Inocêncio de Souza Coutinho que, com o ministro conde de Florida Blanca, negociou um tratado preliminar de limites dos domínios ultramarinos das duas coroas, firmado em Santo Ildefonso, a 1° de outubro de 1777. Por ele, a Espanha devolvia a ilha de Santa Catarina, ficando com a colônia de Sacramento e a região dos Sete Povos das Missões Orientais do Uruguai. Portugal saía penalizado ao perder Sacramento. A Espanha estendia definitivamente sua autoridade sobre a bacia do Prata. Não faltaram divergências entre comissários de ambos os lados para traçar limites, que só ficaram demarcados em 1801, quando da assinatura do Tratado de Badajoz.

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Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

Notas:

[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 90 a 96, Capítulo 12.

[2] Depois de várias disputas e acordos entre Portugal e Espanha, o Tratado de Madri, assinado entre os dois Reinos, praticamente definiu o tamanho atual do Brasil, exceto o Acre, que veio a incorporar o território brasileiro em 1904. Imagem disponível em: <http://www-storia.blogspot.com/2013/02/tratado-de-madrid-em-1580.html>. Acesso em 05/12/2022.