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25 abril 2024

Revolução dos Bichos (IX)

Por: George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

    Capítulo IX [3]

O casco rachado de Golias levou um bom tempo para curar. Os animais haviam começado a reconstrução do moinho no dia seguinte ao término das comemorações da vitória. Ele se recusou a tirar um dia de folga sequer do trabalho e fez questão de não deixar que os outros vissem como estava sofrendo. À noite, ele admitiu para a Esperança que o casco o incomodava muito. A Esperança tentou tratar o casco com uma pasta que ela preparava mastigando ervas, e tanto ela quanto Benjamin incitaram Golias a trabalhar menos. “Os pulmões de um cavalo não duram para sempre”, ela lhe disse. Mas isso entrou por um ouvido de Golias e saiu pelo outro. Tinha, segundo ele mesmo, apenas uma ambição na vida – ver a construção do moinho bem avançada antes de chegar à idade de se aposentar.

No início, quando as leis da Fazenda dos Animais foram formuladas pela primeira vez, a idade de aposentadoria havia sido fixada aos doze anos para cavalos e porcos, aos quatorze para vacas, aos nove para os cães, aos sete para as ovelhas e aos cinco para as galinhas e os gansos. Tinham combinado pensões generosas para aposentados por velhice. Até agora, nenhum animal havia realmente se aposentado e usado o benefício, mas o assunto era cada vez mais discutido recentemente. Agora que o pequeno campo depois do pomar havia sido reservado para a cevada, havia rumores de que um canto do grande pasto seria cercado e transformado em um pasto para animais aposentados. Diziam que a pensão de um cavalo seria de dois quilos de milho por dia e sete quilos de feno no inverno, além de uma cenoura ou até, quem sabe, uma maçã, nos feriados públicos. Golias faria doze anos no final do próximo verão.

Enquanto isso, a vida era difícil. O inverno estava tão frio quanto o último, e a comida era ainda mais escassa. Mais uma vez, todas as rações foram reduzidas, exceto as dos porcos e dos cães. Igualar a quantidade de ração entre todos os animais, explicou Berro, seria contrário aos princípios do animalismo. De qualquer forma, ele não teve grandes dificuldades para provar aos outros animais que na realidade eles não tinham escassez de alimento, por mais que parecesse que sim. Por enquanto, certamente, havia sido considerado necessário fazer um reajuste das rações (Berro sempre chamou isso de “reajuste”, nunca de “redução”), mas se comparassem com a época de Jones veriam que a melhoria era enorme. Lendo os números com uma voz estridente e veloz, ele provou em detalhes que tinham mais aveia, mais feno e mais nabos do que tinham antes, que trabalhavam menos horas, que sua água potável era de melhor qualidade, que viviam mais tempo, que uma proporção maior de filhotes sobreviviam à infância, que tinham mais palha em suas baias e sofriam menos com pulgas. Os animais acreditavam em cada palavra. Verdade seja dita, Jones e tudo o que representava já tinha quase desaparecido de suas memórias. Eles sabiam que a vida hoje em dia era dura e difícil, que muitas vezes tinham fome e frio, e que estavam trabalhando sempre que não estivessem dormindo. Mas, sem dúvida, era pior nos velhos tempos. Eles ficavam felizes em acreditar que sim. Além disso, naqueles dias eram escravos e agora eram livres, e isso fez toda a diferença, como Berro não deixou de ressaltar.

Agora tinham bem mais bocas para alimentar. No outono, as quatro porcas tinham dado à luz, gerando trinta e um porquinhos no total. Os porcos jovens eram malhados e, como Napoleão era o único javali da fazenda, era fácil adivinhar a paternidade da cria. Anunciaram que mais tarde, quando tivessem adquirido tijolos e a madeira, construiriam uma sala de aula no jardim da fazenda. Por enquanto, os jovens porcos recebiam instruções do próprio Napoleão na cozinha da casa. Eles se exercitavam na horta e eram desencorajados a brincar com os outros filhotes. Também nesta época, foi estabelecido como regra que quando um porco e qualquer outro animal se encontrassem no mesmo caminho, o outro animal deveria ficar ao lado e abrir passagem; e também que todos os porcos, de qualquer escalão, deveriam ter o privilégio de usar fitas verdes em seus rabos aos domingos.

A fazenda tinha tido um ano de bastante sucesso, mas ainda tinha pouco dinheiro. Precisavam comprar tijolos, areia e cal para a sala de aula, além de começar a economizar novamente para a maquinaria do moinho de vento. Precisavam comprar também óleo de lâmpada e velas para a casa, açúcar para a mesa de Napoleão (ele proibiu que outros porcos comessem açúcar, afirmando que isso os deixaria gordos), além das compras de rotina, como ferramentas, pregos, cordas, carvão, arame, ferro-velho e biscoitos para cães. Venderam uma meda de feno e parte da colheita de batata, e subiram o contrato dos ovos para seiscentos por semana, de modo que naquele ano as galinhas mal chocaram o número suficiente de ovos para manter a quantidade de filhotes no mesmo nível.

As rações, reduzidas em dezembro, foram novamente reduzidas em fevereiro e, para economizar óleo, foi proibido acender lanternas nas baias. Mas os porcos estavam confortáveis o suficiente, e na verdade pareciam estar engordando. Uma tarde, no final de fevereiro, um aroma quente, rico e apetitoso, que os animais nunca haviam cheirado antes, se espalhou pelo pátio ao redor da pequena casa de fermentação que ficava além da cozinha, que já havia sido desativada no tempo de Jones. Alguém disse que era o cheiro de cevada cozida. Os animais farejavam o ar com fome e se perguntavam se um purê quente estava sendo preparado para seu jantar. Mas nenhum purê quente apareceu, e no domingo seguinte foi anunciado que a partir de agora toda a cevada seria reservada para os porcos. O campo além do pomar já havia sido semeado com cevada. E logo veio a notícia de que cada porco receberia agora uma ração de um litro de cerveja diariamente, além de meio galão para o próprio Napoleão, que o bebia na terrina da sopa de louça fina da Royal Crown Derby.

Mas se havia dificuldades a serem suportadas, elas acabavam sendo compensadas pelo fato de que a vida tinha mais dignidade agora do que antes. Havia mais canções, mais discursos, mais procissões. Napoleão havia ordenado que uma vez por semana fosse realizado algo chamado Demonstração Voluntária, cujo objetivo era celebrar as lutas e triunfos da Fazenda dos Animais. Na hora marcada, os animais deixariam seu trabalho e marchariam em torno das instalações da fazenda em formação militar, com os porcos à frente, seguidos pelos cavalos, pelas vacas, ovelhas e aves. Os cães circundariam a procissão e os galos pretos de Napoleão liderariam a fila. Golias e Esperança sempre levavam entre eles uma bandeira verde marcada com um casco e um chifre e a legenda: “Viva o camarada Napoleão!” Em seguida havia a recitação de poemas compostos em honra de Napoleão, um discurso de Berro com detalhes dos últimos aumentos na produção de alimentos e, ocasionalmente, um disparo da arma. As ovelhas eram as maiores devotas da Demonstração Voluntária, e se alguém reclamasse (como alguns animais às vezes faziam quando não havia porcos ou cães por perto) que elas desperdiçavam tempo e significavam ficar de pé no frio, as ovelhas com certeza gritariam o clássico “Quatro patas bom, duas patas ruim”! Mas, de modo geral, os animais apreciavam estas comemorações. Eles acharam reconfortante lembrar que, no fim das contas, eles eram seus próprios mestres e que o trabalho que faziam era em benefício próprio. E as canções, as procissões, as listas de produtividade de Berro, o estrondo da arma, o canto do galo e o tremular da bandeira fazia com que eles pudessem esquecer que suas barrigas estavam vazias, pelo menos por parte do tempo.

Em abril, a Fazenda dos Animais foi proclamada uma República, e tornou-se necessário eleger um presidente. Havia apenas um candidato, Napoleão, que foi eleito por unanimidade. No mesmo dia, foi divulgado que novos documentos haviam sido descobertos, revelando mais detalhes sobre a cumplicidade de Bola de Neve com Jones. Parecia que Bola de Neve não só havia tentado fazer com que os animais perdessem a Batalha do Estábulo por meio de um estratagema, como os animais haviam imaginado anteriormente, mas também tinha lutado abertamente do lado de Jones. Na verdade, era ele quem tinha sido o verdadeiro líder das forças humanas, e tinha proferido as palavras “Viva a Humanidade!” durante a batalha. As feridas nas costas de Bola de Neve, que alguns dos animais ainda lembravam ter visto, tinham sido infligidas pelos dentes de Napoleão.

Em meados do verão, o corvo Moisés reapareceu repentinamente na fazenda, após uma ausência de vários anos. Ele permaneceu bastante inalterado: ainda não trabalhava e ficou falando como sempre sobre a Montanha Doce de Açúcar. Ele se empoleirava em um toco, abanava suas asas negras e falava de hora em hora com qualquer um que o ouvisse. “Lá em cima, camaradas”, ele dizia solenemente, apontando para o céu com seu grande bico – “lá em cima, do outro lado daquela nuvem escura ali – lá em cima está a Montanha Doce de Açúcar, aquele lugar feliz onde nós, pobres animais, descansaremos para sempre de nosso trabalho”! Ele até alegou ter estado lá em um de seus voos mais altos, e ter visto os campos infinitos de trevo e os pedaços de bolo de linhaça e açúcar crescendo em árvores. Muitos dos animais acreditavam nele. No momento, suas vidas eram, assim achavam, cheias de fome e trabalho; não era certo e justo que um mundo melhor existisse em outro lugar? Uma coisa que era difícil de entender era a atitude dos porcos para com Moisés. Todos eles declararam desdenhosamente que suas histórias sobre o Montanha Doce de Açúcar eram mentiras, e ainda assim permitiam que ele permanecesse na fazenda, sem trabalhar, com uma mesada diária de um pouco de cerveja.

Depois que seu casco sarou, Golias trabalhou mais do que nunca. Na verdade, todos os animais trabalharam como escravos naquele ano. Além do trabalho regular da fazenda e da reconstrução do moinho de vento, havia a escola para os porcos jovens, que foi iniciada em março. Às vezes, era difícil superar as muitas horas com pouca comida, mas Golias nunca vacilou. Em nada do que ele dizia ou fazia havia qualquer indício de que sua força não era mais a mesma de antes. Apenas sua aparência estava um pouco alterada; seu pelo era menos brilhante do que costumava ser, e suas grandes pernas pareciam ter encolhido. Os outros diziam: “O Golias vai voltar ao peso normal quando a grama da primavera chegar”; mas a primavera chegou e ele não engordou nem um pouco. Às vezes, na encosta que leva ao topo da pedreira, quando ele se apoiava com seus músculos contra o peso de algum pedregulho grande, parecia que nada o mantinha em pé além da vontade de continuar. Em tais momentos, dava para ver seus lábios formando as palavras: “Vou trabalhar mais”; mas ele não tinha mais voz. Esperança e Benjamin o advertiram mais de uma vez para cuidar de sua saúde, mas Golias não prestou atenção. Seu aniversário de doze anos estava se aproximando. Ele não se importava com o que aconteceria, desde que um bom estoque de pedras fosse acumulado antes que ele entrasse na aposentadoria.

No final de uma noite de verão, um rumor repentino de que algo havia acontecido com Golias correu pela fazenda. Ele tinha saído sozinho para arrastar uma carga de pedra até o moinho de vento. E é claro que o boato acabou se mostrando verdadeiro. Alguns minutos depois, dois pombos vieram correndo com a notícia: “Golias caiu! Ele está deitado de lado e não consegue se levantar”!

Cerca da metade dos animais da fazenda correu para o morro onde estava o moinho de vento. Ali estava Golias, caído entre os eixos da carroça, seu pescoço esticado, incapaz até mesmo de levantar a cabeça. Seus olhos estavam vidrados e seu corpo estava molhado de suor. Um jato de sangue fino saia de sua boca. Esperança caiu de joelhos ao seu lado.

“Golias!”, gritou. “Como você está?”.

“Meu pulmão”, disse Golias em voz fraca. “Mas isso não importa. Acho que você vai conseguir terminar o moinho sem mim. Há um bom estoque de pedras acumuladas. Eu tinha apenas mais um mês de trabalho, de qualquer forma. Para dizer a verdade, eu estava ansioso pela minha aposentadoria. E talvez, como Benjamin também está envelhecendo, eles o deixem se aposentar ao mesmo tempo para ser um companheiro para mim”.

“Temos que conseguir ajuda imediatamente”, disse Esperança. “Alguém corre contar para o Berro o que aconteceu”.

Todos os outros animais correram imediatamente de volta à fazenda para dar a notícia. Somente Esperança permaneceu, além de Benjamin, que se deitou ao lado de Golias e, sem falar nada, manteve as moscas longe dele com seu longo rabo. Após cerca de um quarto de hora, Berro apareceu, cheio de simpatia e preocupação. Ele disse que o camarada Napoleão recebeu a notícia da desgraça de um dos trabalhadores mais leais da fazenda com muita angústia e já estava tomando providências para enviar Golias para ser tratado no hospital em Willingdon. Os animais se sentiram um pouco desconfortáveis com isso. Com exceção de Mollie e Bola de Neve, nenhum outro animal havia deixado a fazenda, e eles não gostavam de pensar em seu camarada doente nas mãos de seres humanos. Entretanto, Berro logo os convenceu de que o cirurgião veterinário de Willingdon poderia tratar o caso de Golias muito melhor do que qualquer um na fazenda. E cerca de meia hora depois, quando Golias se recuperou um pouco, ele conseguiu se levantar com dificuldade e mancar de volta para sua baia, onde Esperança e Benjamin haviam preparado uma boa cama de palha.

Durante os dois dias seguintes, Golias permaneceu em seu estábulo. Os porcos haviam enviado um grande frasco de remédio cor-de-rosa que haviam encontrado no baú de remédios no banheiro, e Esperança o administrou duas vezes ao dia após as refeições. À noite, ela deitava-se na baia de Golias e falava com ele, enquanto Benjamin mantinha as moscas longe. Golias confessou não se arrepender do que havia acontecido. Se tivesse uma boa recuperação, provavelmente viveria mais três anos, e ansiava pelos dias de paz que passaria no canto do grande pasto. Seria a primeira vez que ele teria tempo livre para estudar e melhorar sua mente. Ele pretendia, disse ele, dedicar o resto de sua vida a aprender as vinte e duas letras restantes do alfabeto.

Entretanto, Benjamin e Esperança só podiam ficar com Golias após o horário de trabalho, e ele foi levado embora ao meio-dia. Os animais estavam todos trabalhando, colhendo nabos sob a supervisão de um porco, quando ficaram surpresos ao ver Benjamin vir galopando da direção das instalações da fazenda, zurrando no alto de sua voz. Foi a primeira vez que eles viram Benjamin agitado – na verdade, foi a primeira vez que alguém o viu galopar. “Rápido, rápido!”, gritou ele. “Venham imediatamente! Estão levando o Golias embora!” Sem esperar por ordens do porco, os animais interromperam o trabalho e correram de volta para as instalações. E como era de se esperar, encontraram lá no pátio um grande reboque fechado, puxado por dois cavalos, com um letreiro ao lado e um homem suspeito com um chapéu coco sentado na posição de condutor. E a baia de Golias já estava vazia.

Os animais se aglomeravam ao redor do veículo. “Adeus, Golias!”, eles gritaram juntos. “Adeus!”.

“Tolos! Tolos!” gritaram Benjamin, se mexendo inquieto e dando patadas no chão com seus pequenos cascos. “Tolos! Vocês não veem o que está escrito na lateral da carroça?”

Os animais fizeram uma pausa e houve um grande silêncio. Muriel começou a soletrar as palavras. Mas Benjamin a empurrou para o lado e, em meio a um silêncio mortal, leu:

“’Alfred Simmonds, Abate de Cavalos e Caldeira de Cola, Willingdon. Negociante de peles e farinha de ossos. Canil disponível’. Vocês não entendem o que isso significa? Eles estão levando o Golias para o abatedouro!”

Um grito de horror irrompeu de todos os animais. Neste momento, o homem chicoteou seus cavalos e o veículo saiu do pátio rapidamente. Todos os animais seguiram, gritando o mais alto que conseguiam. Esperança forçou seu caminho para a frente. A carroça começou a ganhar velocidade. Ela se agitou para correr e alcançou um galope. “Golias!”, ela chorou. “Golias! Golias! Golias!”. E justamente neste momento, como se tivesse ouvido o tumulto lá fora, o rosto dele, com a faixa branca no nariz, apareceu na pequena janela na parte de trás da carroça.

“Golias!” gritou Esperança com uma voz terrível. “Golias! Saia! Saia rapidamente! Eles estão te levando para a morte!”

Todos os animais repetiram o grito de “Saia, Golias, saia!”, mas o veículo já estava ganhando velocidade e se afastando deles. Ninguém sabia se ele havia entendido o que a Esperança havia dito. Mas, um momento depois, seu rosto desapareceu da janela e os animais ouviram o som tremendo de bater de cascos dentro do veículo. Ele estava tentando dar um chute para fora. Havia uma época em que alguns pontapés dos cascos dele teriam facilmente esmagado a carruagem. Mas infelizmente sua força o havia deixado; e em poucos momentos o som dos cascos de bater os tambores ficou mais fraco e morreu. Em desespero, os animais começaram a pedir para os dois cavalos que puxavam a carroça parassem. “Camaradas, camaradas!” gritaram eles. “Não levem seu próprio irmão para a morte!” Mas eles eram brutos, estúpidos, ignorantes demais para perceberem o que estava acontecendo, apenas taparam seus ouvidos e aceleraram seu ritmo. O rosto de Golias não apareceu mais na janela. Alguém pensou tarde demais em correr na frente da carruagem e fechar o portão de cinco grades; mas a carruagem já havia passado por ela e desaparecido rapidamente pela estrada. O Golias nunca mais foi visto.

Três dias depois, foi anunciado que ele havia morrido no hospital em Willingdon, apesar de ter recebido toda atenção que um cavalo poderia ter. Berro veio para anunciar a notícia aos outros. Ele tinha, disse ele, estado presente durante as últimas horas de vida de Golias.

“Foi a visão mais comovente que já vi”, disse Berro, levantando sua pata e enxugando uma lágrima. “Fiquei no seu leito de morte até o último momento. E no final, quase fraco demais para falar, ele sussurrou no meu ouvido que sua única tristeza foi ter caído antes que o moinho estivesse terminado. ‘Avante, camaradas!’, ele sussurrou. ‘Avante, em nome da Revolução. Viva a Fazenda dos Animais! Longa vida ao camarada Napoleão! Napoleão está sempre certo’. Essas foram suas últimas palavras, camaradas”.

Aqui o comportamento de Berro mudou repentinamente. Ele caiu em silêncio por um momento, e seus olhinhos ousaram olhar desconfiados de um lado para o outro antes de prosseguir.

Tinha chegado ao seu conhecimento, disse ele, que um rumor tolo e perverso havia circulado no momento da remoção de Golias. Alguns dos animais haviam notado que a carroça que o levou estava identificada como “Abate de Cavalos”, o que fez com que chegassem à conclusão de que Golias estava sendo enviado para o abatedouro. Era quase inacreditável, disse Berro, que qualquer animal pudesse ser tão estúpido. Certamente, ele chorou indignado, balançando sua cauda e pulando de um lado para o outro, certamente eles conheciam seu amado Líder, o camarada Napoleão, melhor do que isso? Mas a explicação era realmente muito simples. A carroça havia pertencido anteriormente ao abatedouro, e havia sido comprada pelo cirurgião veterinário, que ainda não havia apagado o antigo nome. Assim que o erro surgiu.

Os animais ficaram imensamente aliviados ao ouvir isso. E quando Berro passou a dar detalhes explícitos do leito de morte de Golias, dos cuidados admiráveis que ele havia recebido e dos medicamentos caros pelos quais Napoleão havia pago sem pensar no custo, suas últimas dúvidas desapareceram e o pesar que sentiram pela morte de seu camarada foi suavizado pelo pensamento de que pelo menos ele havia morrido feliz.

O próprio Napoleão apareceu na reunião na manhã do domingo seguinte e pronunciou uma breve oração em honra de Golias. Não havia sido possível, lamentavelmente, disse ele, trazer de volta os restos mortais de seu camarada para serem enterrados na fazenda, mas ele havia ordenado que uma grande coroa de flores fosse feita com os louros do jardim para ser colocada sobre o túmulo de Golias. E dentro de alguns dias os porcos pretendiam realizar um banquete memorial em sua honra. Napoleão terminou seu discurso com um lembrete das duas máximas favoritas de Golias, “Vou trabalhar mais” e “O camarada Napoleão está sempre certo” – lemas que, disse ele, seria bom se cada animal adotasse como seus.

No dia marcado para o banquete, uma carruagem do merceeiro veio de Willingdon e entregou uma grande caixa de madeira na casa da fazenda. Naquela noite, houve o som de um canto tumultuoso, que foi seguido pelo que parecia uma violenta briga e terminou por volta das onze horas com algum vidro quebrando. Ninguém se mexeu na casa da fazenda antes do meio-dia do dia seguinte, e a notícia de que de alguma maneira os porcos tinham conseguido o dinheiro para comprar outra caixa de uísque para eles correu pela fazenda.

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Veja também o vídeo a seguir com áudio sobre a leitura do capítulo IX:


Notas:

  • [1] George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.

  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.

  • [3] ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo IX, pág. 128 a 145. Veja o livro completo aqui.

22 abril 2024

Revolução dos Bichos (VIII)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

Capítulo VIII [3]

Poucos dias depois, quando o terror causado pelas execuções havia passado, alguns dos animais se lembraram – ou achavam que se lembraram – que o Sexto Mandamento decretava que “Nenhum animal matará outro animal”. E, embora ninguém mencionasse isso na presença de porcos ou cães, sentiam que as mortes recentes não respeitavam o mandamento. Esperança pediu a Benjamin que lesse o Sexto Mandamento, e quando Benjamin, como de costume, disse que se recusava a se intrometer em tais assuntos, ela foi buscar Muriel. Muriel leu o mandamento para ela: “Nenhum animal matará outro animal sem causa”. De uma forma ou de outra, as duas últimas palavras haviam escapado da memória dos animais. Mas eles viram agora que o Mandamento não tinha sido violado; pois claramente havia uma boa razão para matar os traidores que se ligaram a Bola de Neve.

Ao longo deste ano os animais trabalharam ainda mais do que haviam trabalhado no ano anterior. Reconstruir o moinho de vento, com paredes mais grossas do que antes, e terminá-lo na data marcada, sem negligenciar o trabalho regular da fazenda, foi um esforço tremendo. Em alguns momentos, achavam que trabalhavam mais e se alimentavam pior do que nos dias de Jones. Nas manhãs de domingo, Berro, segurando uma longa tira de papel com sua pata, lia para eles listas de números comprovando que a produção de cada classe de alimentos havia aumentado em duzentos, trezentos ou quinhentos por cento. Os animais não viam motivos para desacreditá-lo, especialmente porque não conseguiam mais se lembrar muito bem das condições anteriores à Revolução. Mesmo assim, em vários dias eles preferiam ter menos dados e mais comida.

Todas as ordens eram agora emitidas através de Berro ou um dos outros porcos. O próprio Napoleão não era visto em público mais de uma vez a cada quinze dias. Quando aparecia, era acompanhado não apenas por sua comitiva de cães, mas também por um galo preto que marchava à sua frente e agia como uma espécie de trompetista, deixando sair um “cocoricó” alto antes de Napoleão falar. Ouviram falar que até mesmo na casa Napoleão usava cômodos separados dos outros porcos. Ele comia suas refeições sozinho, com dois cachorros à sua espera, e sempre comia do serviço de jantar do Crown Derby, que antes ficava no armário de vidro da sala de visitas. Também foi anunciado que a arma seria disparada todos os anos no aniversário de Napoleão, assim como nas outras duas datas comemorativas.

Nunca se falava de Napoleão simplesmente como “Napoleão”. Agora ele era “nosso Líder, Camarada Napoleão”, e os porcos gostavam de inventar títulos como “Pai de Todos os Animais”, “Terror da Humanidade”, “Protetor do Povo das Ovelhas”, “Amigo dos Patinhos”, e assim por diante para ele. Em seus discursos, Berro falava com lágrimas nos olhos sobre sabedoria de Napoleão, a bondade de seu coração e o profundo amor que ele sentia por todos os animais em todos os lugares, até mesmo e especialmente os animais infelizes que ainda viviam na ignorância e escravidão em outras fazendas. Tinha se tornado comum dar a Napoleão o crédito de cada conquista bem-sucedida e de cada golpe de sorte. Se ouvia frequentemente uma galinha comentando com outra: “Sob a orientação de nosso líder, o camarada Napoleão, eu pus cinco ovos em seis dias”; ou duas vacas, desfrutando de uma bebida no açude, exclamando: “Como o sabor desta água é excelente, graças à liderança do camarada Napoleão”! O sentimento geral da fazenda foi bem expresso em um poema intitulado Camarada Napoleão, composto por Minimus. O poema é o seguinte:

Amigo dos miseráveis!

Fonte dos afáveis!

Senhor da lavagem!

Razão da canção

Do ardoroso rouxinol

Com teus olhos é farol,

Como a luz no céu do Sol

Camarada Napoleão!

Tu és em tuas venturas

Tudo que ama as criaturas:

Palha pro aconchego, farta refeição.

Não importa o animal

Descansa só ou em casal

Sob teu amparo bestial

Camarada Napoleão!


Antes mesmo que espichasse

Para altura de uma alface

Ou de uma garrafa, o jovem leitão

Compreendido terá

Sincero te seguirá

E o guincho primo será

Camarada Napoleão!”

Napoleão aprovou este poema e fez com que ele fosse inscrito na parede do grande celeiro, na extremidade oposta aos Sete Mandamentos, junto de um retrato de si mesmo, em perfil, executado por Berro em tinta branca.

Enquanto isso, através da mediação de Whymper, Napoleão estava envolvido em complicadas negociações com Frederick e Pilkington. A pilha de madeira ainda estava à venda. Dos dois, Frederick era o mais ansioso para conseguir a pilha, mas se recusava a oferecer um preço razoável. Ao mesmo tempo, havia rumores recentes de que Frederick e seus homens estavam tramando para atacar a Fazenda dos Animais e destruir o moinho de vento, cuja construção havia despertado nele um ciúme furioso. Sabia-se que o Bola de Neve ainda estava se escondendo na Fazenda Pinchfield. No meio do verão, os animais ficaram alarmados ao saber que três galinhas haviam se apresentado e confessaram que, inspiradas por Bola de Neve, haviam entrado em um complô para assassinar Napoleão. Elas foram executadas imediatamente e novas precauções para a segurança de Napoleão foram tomadas. Quatro cães guardavam sua cama à noite, um em cada ponta, e um jovem porco chamado Remela recebeu a tarefa de provar toda sua comida antes de comê-la, para conferir se não estava envenenada.

Mais ou menos nessa época, foi informado que Napoleão tinha conseguido vender a pilha de madeira ao Sr. Pilkington; ele também estava negociando um acordo regular para a troca de certos produtos entre a Fazenda dos Animais e Foxwood. As relações entre Napoleão e Pilkington, embora só fossem conduzidas através de Whymper, eram agora quase amigáveis. Os animais desconfiavam de Pilkington como um ser humano, mas o preferiam a Frederick, a quem tanto temiam quanto odiavam. À medida que o verão continuava e a construção do moinho de vento se aproximava do fim, os rumores de um ataque traiçoeiro iminente se tornaram cada vez mais fortes. Ouviram dizer que Frederick pretendia trazer vinte homens, todos armados com armas, para lutar contra os animais e que ele já havia subornado os magistrados e a polícia, então se ele conseguisse obter os títulos de propriedade da Fazenda dos Animais, ninguém faria perguntas. Além disso, histórias terríveis estavam vazando de Pinchfield sobre as crueldades que Frederick praticava contra seus animais. Ele havia açoitado um cavalo velho até a morte, havia matado suas vacas de fome, havia matado um cão jogando-o na fornalha, se divertia à noite fazendo os galos lutarem uns com os outros com lascas de lâmina de barbear presas em suas esporas. O sangue dos animais fervia de raiva quando ouviam essas coisas, e às vezes pediam permissão para saírem unidos para atacar a Fazenda Pinchfield, expulsar os humanos de lá e libertar os animais. Mas Berro os aconselhou a evitar ações precipitadas e a confiar na estratégia do camarada Napoleão.

No entanto, o sentimento contra Frederick continuava grande. Numa manhã de domingo, Napoleão apareceu no celeiro e explicou que nunca havia considerado, em nenhum momento, vender a pilha de madeira para Frederick; ele considerava abaixo de si, disse, ter relações com malandros dessa naipe. Os pombos que ainda eram enviados para espalhar a notícia da Revolução foram proibidos de pisar em qualquer lugar da Foxwood, e também foram ordenados a abandonar seu antigo slogan de “Morte à Humanidade” em favor de “Morte a Frederick”. No final do verão, mais uma das maquinações de Bola de Neve veio à tona. A colheita de trigo estava cheia de ervas daninhas, e foi descoberto que em uma de suas visitas noturnas ele havia misturado sementes de ervas daninhas com as sementes de milho. Um ganso, que tinha sido informado sobre a trama, confessou sua culpa a Berro e imediatamente cometeu suicídio engolindo sementes mortíferas. Os animais também descobriram que Bola de Neve nunca tinha recebido a ordem de “Herói Animal, Primeira Classe”, como muitos acreditavam até então. Esta era apenas uma lenda que havia sido espalhada algum tempo depois da Batalha do Estábulo pelo próprio Bola de Neve. Até então, ele havia sido censurado por mostrar covardia na batalha. Mais uma vez alguns dos animais ouviram isto com certa perplexidade, mas Berro logo foi capaz de convencê-los de que suas lembranças estavam erradas.

No outono, por conta de um esforço tremendo e exaustivo – pois a colheita tinha que ser feita quase ao mesmo tempo – o moinho de vento estava pronto. A maquinaria ainda tinha que ser instalada, e Whymper estava negociando sua compra, mas a estrutura foi concluída. Apesar de todas as dificuldades, apesar da inexperiência, das ferramentas primitivas, do azar e da traição de Bola de Neve, o trabalho tinha sido terminado no prazo! Cansados, mas orgulhosos, os animais davam voltas em torno de sua obra-prima, que parecia ainda mais bela aos seus olhos do que da primeira vez. Além disso, as paredes eram duas vezes mais grossas do que antes. Desta vez, só explosivos a derrubariam! E quando pensaram em como haviam trabalhado, em todo o desânimo que superaram, e a enorme diferença que o moinho faria em suas vidas quando as velas estivessem girando e os dínamos correndo – quando pensaram em tudo isso, seu cansaço os abandonou e eles pularam em volta do moinho de vento, proferindo gritos de triunfo. O próprio Napoleão, acompanhado por seus cães e seu galo, desceu para inspecionar o trabalho concluído; ele parabenizou pessoalmente os animais por sua realização, e anunciou que o moinho seria chamado de Moinho Napoleão.

Dois dias depois, os animais foram todos convocados para uma reunião especial no celeiro. Eles ficaram surpresos quando Napoleão anunciou que havia vendido a pilha de madeira a Frederick. No dia seguinte, as carroças de Frederick chegariam e começariam a levá-la. Durante todo o período de sua aparente amizade com Pilkington, Napoleão tinha feito um acordo secreto com Frederick.

Todas as relações com a Fazenda Foxwood haviam sido rompidas; mensagens ofensivas haviam sido enviadas à Pilkington. Os pombos foram avisados para evitar a fazenda Pinchfield e alterar seu slogan de “Morte a Frederick” para “Morte a Pilkington”. Ao mesmo tempo, Napoleão assegurou aos animais que as histórias de um ataque iminente à Fazenda dos Animais eram completamente falsas, e que as histórias sobre a crueldade de Frederick para com seus próprios animais haviam sido muito exageradas. Todos estes rumores tinham provavelmente tido origem com Bola de Neve e seus agentes. Parecia que, no fim das contas, Bola de Neve não estava, afinal, escondido na Fazenda Pinchfield, e na verdade nunca havia estado lá em sua vida; ele estava vivendo – em considerável luxo, assim se dizia – em Foxwood, e tinha sido um hóspede de Pilkington por alguns anos.

Os porcos estavam em êxtase por causa da astúcia de Napoleão. Ao parecer amigável com Pilkington, ele tinha forçado Frederick a aumentar seu preço em doze libras. Mas a qualidade superior da mente de Napoleão, disse Berro, foi demonstrada pelo fato de que ele não confiava em ninguém, nem mesmo em Frederick. Frederick queria pagar pela madeira com algo chamado cheque, que parecia ser um pedaço de papel com a promessa de pagamento por escrito. Mas Napoleão era esperto demais para ele. Ele havia exigido o pagamento em notas de cinco libras, que deveriam ser entregues antes que a madeira fosse retirada. Frederick já havia pago; e a soma que ele havia pago era suficiente para comprar as máquinas para o moinho de vento.

Enquanto isso, a madeira estava sendo transportada em alta velocidade. Quando tudo se foi, outra reunião especial foi realizada no celeiro para que os animais inspecionassem as notas bancárias de Frederick. Sorrindo de forma bela, e vestindo suas duas condecorações, Napoleão repousou em uma cama de palha na plataforma, com o dinheiro ao seu lado, empilhado com cuidado em um prato de porcelana da cozinha da fazenda. Os animais foram passando lentamente, e cada um olhou seu conteúdo. Golias estendeu seu nariz para cheirar as notas do banco, e as frágeis coisas brancas se agitaram e fizeram barulhos com sua respiração.

Três dias depois, houve uma terrível algazarra. Whymper, com o rosto pálido como um cadáver, veio correndo pelo caminho de bicicleta, atirou-a no pátio e correu diretamente para a casa da fazenda. No momento seguinte, um estrondo de fúria soou pelos cômodos de Napoleão. A notícia do que havia acontecido acelerou em torno da fazenda como um incêndio. As cédulas eram falsas! Frederick tinha levado a madeira por nada!

Napoleão convocou os animais imediatamente e em uma voz terrível pronunciou a sentença de morte sobre Frederick. Quando capturado, disse ele, Frederick deveria ser fervido vivo. Ao mesmo tempo, ele os advertiu que, após este ato traiçoeiro, poderiam esperar pelo pior. Frederick e seus homens poderiam fazer seu tão esperado ataque a qualquer momento. Sentinelas foram colocadas em todos os acessos à fazenda. Além disso, quatro pombos foram enviados para Foxwood com uma mensagem conciliadora, na esperança de restabelecer boas relações com Pilkington.

Logo na manhã seguinte, começou o ataque. Os animais estavam tomando café da manhã quando os observadores chegaram correndo com a notícia de que Frederick e seus seguidores já tinham passado pelo portão de cinco grades. Os animais saíram com ousadia ao seu encontro, mas desta vez não tiveram a vitória fácil que tinham tido na Batalha do Estábulo. Havia quinze homens, com meia dúzia de armas, e eles abriram fogo assim que chegaram a cinquenta metros de distância. Os animais não puderam enfrentar as terríveis explosões e balas e, apesar dos esforços de Napoleão e Golias para reanimá-los, eles logo deram para trás. Alguns já estavam feridos. Eles se refugiaram nas instalações da fazenda e espreitaram cautelosamente por fora de fendas e buracos nas madeiras. Todo o grande pasto, incluindo o moinho de vento, estava nas mãos do inimigo. No momento seguinte, até mesmo Napoleão parecia estar perdido. Ele andava de um lado para o outro sem dizer nada, sua cauda rígida se agitava. Os animais olhavam melancólicos na direção da Foxwood. Se Pilkington e seus homens os ajudassem, o dia ainda poderia ser ganho. Mas neste momento os quatro pombos, que haviam sido enviados no dia anterior, voltaram, um deles levando um pedaço de papel de Pilkington. Nele estava rabiscado a lápis: “Bem feito!”.

Enquanto isso, Frederick e seus homens tinham parado sobre o moinho de vento. Os animais os observavam, e um murmúrio de consternação se espalhou. Dois dos homens montaram um pé-de-cabra e um martelo de marreta. Eles iam derrubar o moinho de vento.

“Impossível!” gritou Napoleão. “Construímos paredes grossas demais para isso. Eles não conseguiriam derrubá-lo em uma semana. Coragem, camaradas!”.

Mas Benjamin estava observando atentamente os movimentos dos homens. Os dois com martelos e pés-de-cabra estavam fazendo um buraco perto da base do moinho de vento. Lentamente, e com um ar quase de diversão, Benjamin acenou com a cabeça.

“Bem que eu imaginei”, disse ele. “Vocês não veem o que eles estão fazendo? Eles logo vão colocar pólvora naquele buraco”.

Os animais esperavam aterrorizados. Agora era impossível aventurar-se fora do abrigo das instalações. Após alguns minutos, os homens foram vistos correndo para todos os lados. Depois houve um rugido ensurdecedor. Os pombos rodopiaram no ar, e todos os animais, exceto Napoleão, se atiraram de barriga para baixo e esconderam seus rostos. Quando se levantaram novamente, uma enorme nuvem de fumaça negra estava pendurada onde o moinho de vento havia estado. Lentamente, a brisa o afastou. O moinho de vento não estava mais lá!

Ao verem as ruínas, os animais ganharam uma nova coragem. O medo e o desespero que haviam sentido antes foram superados por sua fúria contra este ato vil e desprezível. Um poderoso grito de vingança subiu, e sem esperar por ordens, eles se atiraram de uma só vez na direção dos inimigos. Desta vez eles não atentaram para as balas que caiam como granizo. Foi uma batalha feroz e amarga. Os homens atiravam repetidas vezes e, quando os animais chegavam perto, os acertavam com paus e suas botas pesadas. Uma vaca, três ovelhas e dois gansos foram mortos, e quase todos ficaram feridos. Até mesmo Napoleão, que estava dirigindo as operações da retaguarda, teve a ponta de sua cauda atingida. Mas os homens também não saíram incólumes. Três deles tiveram a cabeça partida por golpes dos cascos de Golias; outro foi chifrado na barriga por uma vaca; outro teve suas calças quase arrancadas por Mimi e Lulu. E quando os nove cães da guarda própria de Napoleão, instruídos a fazer um desvio sob a cerca, de repente apareceram no flanco dos homens, rosnando ferozmente, o pânico os atingiu. Eles viram que estavam correndo risco de serem cercados. Frederick gritou para que seus homens saíssem de lá enquanto o caminho estava limpo, e no momento seguinte o inimigo estava covardemente correndo pela própria vida. Os animais os perseguiram até o final do campo, e deram alguns pontapés finais enquanto eles forçavam o caminho pela sebe espinhenta.

Eles tinham vencido, mas estavam cansados e sangrando. Lentamente eles começaram a mancar de volta para a fazenda. A visão de seus camaradas mortos estirados pela grama levou alguns deles às lágrimas. E eles ficaram no lugar onde antes o moinho de vento se erigia por algum tempo em um silêncio triste. Sim, ele tinha desaparecido; até o último vestígio de todo o trabalho tinha desaparecido! Até mesmo as fundações foram parcialmente destruídas. E, desta vez, não poderiam usar as pedras na reconstrução, porque elas também haviam desaparecido. A força da explosão as tinha atirado a distâncias de centenas de metros. Era como se o moinho de vento nunca tivesse existido.

Ao se aproximarem da fazenda, o Berro, que estava ausente durante a luta, veio pulando em direção a eles, assobiando sua cauda e sorrindo com satisfação. E os animais ouviram, da direção das instalações, a solene explosão de uma arma.

“Por que essa arma está sendo disparada?” disse Golias.

“Para celebrar nossa vitória!” gritou Berro.

“Que vitória?”, disse Golias. Seus joelhos estavam sangrando, ele havia perdido uma ferradura e rachado o casco, e uma dúzia de pelotas se alojaram em sua pata posterior.

“Como assim ‘que vitória’, camarada? Não expulsamos o inimigo de nosso solo – o solo sagrado da Fazenda dos Animais?”.

“Mas eles destruíram o moinho de vento. E nós trabalhamos nele por dois anos!”.

“O que importa? Vamos construir outro moinho de vento. Construiremos seis moinhos de vento se tivermos vontade. Você não percebe, camarada, que fizemos algo poderoso. O inimigo estava ocupando este mesmo terreno em que nos encontramos. E agora – graças à liderança do camarada Napoleão – nós ganhamos de volta cada centímetro!”.

“Então nós ganhamos de volta o que já tínhamos antes”, disse Golias.

“Essa é a nossa vitória”, disse Berro.

Eles mancaram para o pátio. As pelotas sob a pele de Golias se esmigalharam dolorosamente. Ele viu à sua frente o trabalho pesado de reconstruir o moinho de vento a partir das fundações, e já se imaginava executando a tarefa. Mas pela primeira vez lhe ocorreu que ele já tinha onze anos de idade e que talvez seus grandes músculos não fossem exatamente o que já haviam sido.

Mas quando os animais viram a bandeira verde voando e ouviram a arma disparando novamente – foram sete vezes ao todo – e o discurso que Napoleão fez, parabenizando-os por sua conduta, pareceu-lhes, depois de tudo, que haviam conquistado uma grande vitória. Os animais mortos na batalha receberam um funeral solene. Golias e Esperança puxaram a carroça que serviu de carro funerário, e o próprio Napoleão caminhou à frente da procissão. Dois dias inteiros foram dedicados às celebrações. Houve cantos, discursos e mais disparos da arma, e uma maçã foi dada para cada animal como um presente especial, além de um punhado de milho para cada ave e três biscoitos para cada cão. Foi anunciado que a batalha seria chamada a Batalha do Moinho de Vento, e que Napoleão havia criado uma nova decoração, a Ordem da Bandeira Verde, que ele havia conferido a si mesmo. Nos regozijos gerais, o infeliz caso das cédulas falsas foi esquecido.

Alguns dias depois, os porcos encontraram uma caixa de uísque nas adegas da casa da fazenda, negligenciada na época em que a casa foi ocupada pela primeira vez. Naquela noite, veio de lá um som alto de cantoria, na qual se misturavam acordes de “Animais da Inglaterra”, para a surpresa de todos. Por volta das nove e meia, Napoleão, usando um velho chapéu coco do Sr. Jones, foi visto saindo pela porta dos fundos, galopando rapidamente pelo pátio, e desaparecendo dentro de casa novamente. Pela manhã, um profundo silêncio pairava sobre a casa da fazenda. Nenhum porco parecia se mexer. Eram quase nove horas quando Berro fez sua aparição, andando devagar e desanimado, com olhos apagados, cauda caída e aparência de doente. Chamou os animais e disse-lhes que tinha uma terrível notícia a transmitir. O camarada Napoleão estava morrendo!

Um grito de lamentação tomou conta de todos. Colocaram palha do lado de fora das portas da casa e os animais andaram por ali na ponta das patas. Circulava o rumor de que Bola de Neve tinha finalmente conseguido envenenar a comida de Napoleão. Às onze horas, Berro saiu para fazer outro anúncio. Como seu último ato sobre a terra, o camarada Napoleão havia pronunciado um decreto solene: o consumo de álcool deveria ser punido com a morte.

À noite, no entanto, Napoleão parecia estar um pouco melhor e na manhã seguinte Berro avisou a todos que o líder estava se encaminhando para uma recuperação. Naquele dia de noite, Napoleão voltou ao trabalho, e no dia seguinte soube-se que ele havia instruído a Whymper a comprar em Willingdon alguns livretos sobre fabricação de cerveja e destilação. Uma semana depois, Napoleão deu ordens para que o pequeno campo atrás do pomar, que anteriormente era um pasto reservado para animais que já tinham passado da fase de trabalho, fosse arado. Deu-se a entender que o pasto estava exausto e precisava ser replantado; mas logo se soube que Napoleão pretendia semeá-lo com cevada.

Nessa época, ocorreu um estranho incidente que quase ninguém conseguiu entender. Uma madrugada, por volta da meia-noite, houve um estrondo no pátio, e os animais saíram correndo de suas baias. Era uma noite de luar. Ao pé da parede da extremidade do grande celeiro, onde estavam escritos os Sete Mandamentos, havia uma escada partida em dois. Berro, temporariamente atordoado, estava caído a seu lado, e perto dele havia uma lanterna, um pincel e um pote virado de tinta branca. Os cães imediatamente fizeram um círculo em volta do porco, e o acompanharam de volta à casa da fazenda assim que ele conseguiu andar. Nenhum dos animais conseguia imaginar o que isso significava, exceto o velho Benjamin, que acenou com a cabeça com um ar conhecedor, e parecia entender, mas não disse nada.

Alguns dias depois Muriel, lendo os Sete Mandamentos para si mesma, notou que havia mais um deles que os animais haviam decorado mal. Eles pensavam que o Quinto Mandamento era “Nenhum animal deve beber álcool”, mas havia duas palavras que eles haviam esquecido. Na verdade, o Mandamento era: “Nenhum animal deve beber álcool em excesso”.

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Veja também, o áudio da leitura do capítulo IX em:


Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.

  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.

  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo VIII, pág. 106 a 126. Veja o livro completo aqui.

19 abril 2024

Revolução dos Bichos (VII)

Por George Orwell [1]

In: Gazeta do Povo [2]

Capítulo VII [3]

Foi um inverno amargo. As tempestades foram seguidas por chuva e neve, e depois por uma geada que não se dissipou até meados de fevereiro. Os animais continuaram a reconstrução do moinho da melhor maneira que conseguiam, bem conscientes de que o mundo exterior os observava e que os seres humanos invejosos se regozijariam e triunfariam se o moinho não fosse terminado a tempo.

Por maldade, os seres humanos fingiram não acreditar que Bola de Neve tinha destruído o moinho, dizendo que ele tinha caído porque as paredes eram muito finas. Os animais sabiam que não era o caso. Ainda assim, foi decidido construir as paredes com três metros de espessura no lugar do meio metro anterior, o que significava coletar uma quantidade muito maior de pedra. Durante muito tempo, a pedreira ficou cheia de neve e nada podia ser feito. Conseguiram avançar um pouco no clima seco e gelado que se seguiu, mas foi um trabalho cruel, e os animais não podiam se sentir tão esperançosos como se sentiam antes. Eles estavam sempre com frio, e geralmente também com fome. Somente Golias e Esperança não perderam o ânimo. Berro fez excelentes discursos sobre a alegria do serviço e a dignidade do trabalho, mas os outros animais encontraram mais inspiração na força do Golias e em seu grito infindável de “Vou trabalhar mais”!

Em janeiro, a comida ficou aquém das expectativas. A ração de milho foi drasticamente reduzida, e foi anunciado que uma ração extra de batata seria distribuída para compensá-la. Descobriu-se então que a maior parte da colheita de batata havia congelado nos sacos, que não haviam sido bem cobertos. As batatas ficaram moles e pálidas e apenas algumas eram comestíveis. Os animais tinham cada vez menos para comer, sobrando pouco além de palha e beterrabas. A inanição estava à espreita.

Era vital esconder este fato do mundo exterior. Encorajados pelo colapso do moinho de vento, os seres humanos estavam inventando novas mentiras sobre a Fazenda dos Animais. Voltaram a dizer que todos os animais estavam morrendo de fome e doenças, e que estavam continuamente lutando entre si e tinham recorrido ao canibalismo e ao infanticídio. Napoleão estava bem ciente dos maus resultados que poderiam se seguir se os fatos reais da situação alimentar fossem conhecidos, e ele decidiu fazer uso do Sr. Whymper para espalhar uma impressão contrária. Até então os animais tinham tido pouco ou nenhum contato com a Whymper em suas visitas semanais: agora, porém, alguns poucos animais selecionados, a maioria ovelhas, foram instruídos a comentar casualmente em sua presença que as rações tinham aumentado. Além disso, Napoleão ordenou que os silos quase vazios no galpão fossem enchidos quase até a borda com areia, que depois era coberta com o que restava do grão e da farinha. Sob algum pretexto adequado, Whymper foi conduzido através do galpão e permitiu que se vislumbrasse os silos. Ele foi enganado, e continuou a informar ao mundo exterior que não havia escassez de alimentos na Fazenda dos Animais.

No entanto, no final de janeiro tornou-se óbvio que seria necessário obter mais grãos de alguma maneira. Nesses dias, Napoleão raramente aparecia em público, mas passava todo seu tempo na casa, guardada em cada porta pelos cães de aparência feroz. Quando surgia, era de maneira cerimonial, com uma escolta de seis cães que o cercavam de perto e rosnavam se alguém se aproximasse demais. Com frequência, ele nem sequer aparecia nas manhãs de domingo, emitindo suas ordens através de um dos outros porcos, geralmente o Berro.

Numa manhã de domingo o Berro anunciou que as galinhas, que estavam começando a botar ovos agora, deveriam entregar cada um deles para os porcos. Napoleão havia aceitado, através da Whymper, um contrato de quatrocentos ovos por semana. O preço destes pagaria por grãos e refeições suficientes para manter a fazenda funcionando até o verão, quando a situação ficaria mais fácil.

Quando as galinhas ouviram isto, elas levantaram um clamor terrível. Elas haviam sido advertidas anteriormente de que este sacrifício poderia ser necessário, mas não tinham acreditado que isso realmente aconteceria. Elas estavam apenas começando a preparar suas ninhadas para a primavera, e protestaram que tirar os ovos agora era assassinato. Pela primeira vez desde a expulsão de Jones, houve algo que se assemelhava a uma rebelião. Lideradas por três jovens galinhas minorcas, elas fizeram um esforço determinado para frustrar os desejos de Napoleão. Seu método era voar até o caibro para depositar seus ovos, que se desfaziam em pedaços quando chegavam ao chão. Napoleão agiu rápido e sem piedade. Ele ordenou que a ração das galinhas fosse suspensa e decretou que qualquer animal que desse um grão de milho sequer a uma galinha seria punido com a morte. Os cães ficaram de guarda para que estas ordens fossem cumpridas. Durante cinco dias as galinhas resistiram, depois capitularam e voltaram para os ninhos. Nove galinhas haviam morrido nesse meio tempo. Seus corpos foram enterrados no pomar, e foi informado que elas haviam morrido de coccidiose. Whymper não ouviu nada sobre este caso, e os ovos foram devidamente entregues em uma carroça do merceeiro, que ia até a fazenda uma vez por semana para pegá-los.

Durante todo esse tempo, Bola de Neve não foi mais visto. Corriam rumores de que ele estaria escondido em uma das fazendas vizinhas, Foxwood ou Pinchfield. Napoleão tinha então melhorado levemente seu relacionamento com os outros fazendeiros. Acontece que havia no pátio uma quantidade razoável de madeira que havia sido empilhada lá dez anos antes quando um bosque de faias foi desmatado. A madeira estava bem temperada, e Whymper havia aconselhado Napoleão a vendê-la; tanto o Sr. Pilkington quanto o Sr. Frederick estavam interessados em comprá-la. Napoleão estava hesitante entre os dois, incapaz de se decidir. Sempre que estava perto de fechar um acordo com Frederick, dizia-se que Bola de Neve estava escondido em Foxwood, quando ele se inclinava a fechar com Pilkington, dizia-se que Bola de Neve estava em Pinchfield.

De repente, no início da primavera, uma coisa alarmante foi descoberta. Bola de Neve frequentava a fazenda secretamente à noite! Os animais estavam tão perturbados que mal conseguiam dormir em seus estábulos. Todas as noites, dizia-se, ele vinha rastejando sob a escuridão e fazia todo tipo de travessuras. Roubava o milho, derrubava baldes de leite, quebrava os ovos, pisoteava canteiros, roía a casca das árvores frutíferas. Sempre que alguma coisa ruim acontecia, era atribuída a Bola de Neve. Se uma janela quebrasse ou um ralo entupisse, alguém com certeza diria que Bola de Neve tinha feito isso durante a noite, e quando a chave do galpão foi perdida, toda a fazenda estava convencida de que Bola de Neve a jogara no poço. Curiosamente, eles continuaram acreditando nisso mesmo depois que a chave mal guardada foi encontrada sob um saco de refeição. As vacas declararam unanimemente que o Bola de Neve entrou em seus estábulos e as ordenhou enquanto dormiam. Os ratos, que tinham sido problemáticos naquele inverno, supostamente estavam no time de Bola de Neve.

Napoleão decretou que haveria uma investigação completa sobre as atividades do Bola de Neve. Com a presença de seus cães, ele partiu e fez uma cuidadosa visita de inspeção nas instalações da fazenda, seguido a uma distância respeitosa pelos outros animais. De vez em quando, Napoleão parava e raspava o chão em busca de vestígios das pegadas de Bola de Neve, que, segundo ele, podia sentir pelo cheiro. Ele farejava cada canto, no celeiro, no galpão, nos galinheiros e na horta, e encontrou vestígios de Bola de Neve em quase todos os lugares. Ele colocava seu focinho no chão, dava várias fungadas profundas e exclamava com uma voz terrível: “Bola de Neve já esteve aqui! Eu posso cheirá-lo”, e quando dizia “Bola de Neve” todos os cães soltaram rosnados assustadores e mostraram seus caninos.

Os animais estavam completamente amedrontados. Parecia-lhes que Bola de Neve era uma espécie de influência invisível, pairando no ar sobre eles e ameaçando-os com todos os tipos de perigos. À noite, Berro os chamou e, com uma expressão alarmada em seu rosto, disse-lhes que tinha algumas notícias sérias a relatar.

“Camaradas!” gritou Berro, dando pequenos saltos nervosos, “uma coisa terrível foi descoberta. Bola de Neve se vendeu a Frederick da Fazenda Pinchfield, que está conspirando para nos atacar e tirar a fazenda de nós! Bola de Neve supostamente vai agir como guia quando o ataque começar. Mas fica pior. Tínhamos pensado que a rebelião de Bola de Neve era causada simplesmente por vaidade e ambição. Mas estávamos errados, camaradas. Sabem qual foi a verdadeira razão? Bola de Neve estava do lado de Jones desde o início! Era o agente secreto de Jones este tempo todo. Tudo isso foi provado por documentos que deixou para trás e acabamos de encontrar. Para mim isto explica muita coisa, camaradas. Não vimos por nós mesmos como ele tentou – por sorte sem sucesso – nos derrotar e nos destruir na Batalha do Estábulo?”

Os animais ficaram estupefatos. Esta foi uma maldade que ultrapassava de longe a destruição do moinho. Eles precisaram de alguns minutos para absorver completamente a notícia. Todos eles se lembravam, ou pensavam se lembrar, de ter visto Bola de Neve liderando a Batalha do Estábulo, como tinha se mobilizado e os encorajado a cada momento, e como ele não tinha parado nem mesmo por um instante quando os tiros da arma de Jones feriram suas costas. No início foi um pouco difícil entender como poderia estar do lado de Jones. Até mesmo Golias, que raramente fazia perguntas, ficou intrigado. Ele deitou-se, enfiou seus cascos dianteiros debaixo dele, fechou os olhos e, com um esforço duro, conseguiu formular seus pensamentos.

“Eu não acredito nisso”, disse ele. “Bola de Neve lutou bravamente na Batalha do Estábulo. Eu mesmo vi. Não lhe demos ‘Herói Animal, Primeira Classe’, logo depois?”.

“Esse foi o nosso erro, camarada. Pois sabemos agora – tudo está escrito nos documentos secretos que encontramos – que na realidade ele estava tentando nos atrair para a nossa derrota”.

“Mas ele estava ferido”, disse Golias. “Todos nós o vimos com sangue escorrendo”. “Isso era parte do arranjo”, gritou Berro. “O tiro de Jones só o acertou de raspão. Eu poderia mostrar isto por escrito, se você fosse capaz de ler. A ideia era que Bola de Neve, no momento crítico, desse o sinal de fuga para deixar o campo para o inimigo. E ele quase conseguiu – eu diria até mesmo, camaradas, ele teria conseguido se não fosse por nosso heroico líder, o camarada Napoleão. Você não se lembra como, exatamente no momento em que Jones e seus homens tinham entrado no pátio, Bola de Neve de repente virou e fugiu, e muitos animais o seguiram? E você não se lembra, também, que foi justamente naquele momento, quando o pânico se espalhava e tudo parecia perdido, que o camarada Napoleão avançou com um grito de ‘Morte à Humanidade’ e afundou seus dentes na perna de Jones? Certamente vocês se lembram disso, camaradas...” exclamou Berro, revirando-se de um lado para o outro.

Agora que Berro descreveu a cena de forma tão detalhada, parecia que os animais se lembravam dela. De qualquer forma, eles se lembraram que no momento crítico da batalha Bola de Neve havia se virado para fugir. Mas Golias ainda estava um pouco inquieto.

“Não acredito que Bola de Neve tenha sido um traidor desde o início”, disse finalmente. “O que ele tem feito desde então é diferente. Mas acredito que na Batalha do Estábulo ele era um bom camarada”.

“Nosso líder, Camarada Napoleão”, anunciou Berro, falando muito lenta e firmemente, “declarou categoricamente – categoricamente, camarada – que Bola de Neve foi o agente de Jones desde o início – sim, e desde muito antes da Revolução ter sido pensada”.

“Ah, isso é diferente”, disse Golias. “Se o camarada Napoleão diz, deve estar certo”.

“Esse é o verdadeiro espírito, camarada!” gritou Berro, mas se notou que ele lançou um olhar desconfiado para Golias com seus pequenos olhos cintilantes. Ele se virou para ir, depois fez uma pausa e acrescentou de forma impressionante: “Aviso todos os animais desta fazenda para manter seus olhos bem abertos. Pois temos razões para acreditar que alguns dos agentes secretos do Bola de Neve estão entre nós neste momento”!

Quatro dias mais tarde, no final da tarde, Napoleão ordenou que todos os animais se reunissem no pátio. Quando todos eles estavam reunidos, Napoleão emergiu da fazenda, vestindo todas as suas medalhas (pois ele havia se premiado recentemente tanto com “Herói Animal, Primeira Classe”, quanto com “Herói Animal, Segunda Classe”), e protegido por seus nove cães enormes, que emitiam rosnados que provocavam calafrios em todos os animais. Todos eles se acovardaram silenciosamente em seus lugares, parecendo saber antecipadamente que alguma coisa terrível estava prestes a acontecer.

Napoleão ficou de pé, vigiando com firmeza sua plateia; em seguida, proferiu um choramingar agudo. Imediatamente os cachorros se aproximaram, agarraram quatro porcos pela orelha. Guinchando de dor e terror, foram levados até os pés de Napoleão. As orelhas dos porcos estavam sangrando; os cães haviam provado sangue e por alguns momentos pareciam ter enlouquecido. Para o espanto de todos, três deles se atiraram sobre Golias. Ele os viu chegando e levantou seu grande casco, pegando um dos cães no ar e o prendendo ao chão. O cão gritou por misericórdia e os outros dois fugiram com o rabo entre as pernas. Golias olhou para Napoleão para saber se ele deveria esmagar o cão até a morte ou deixá-lo ir. Napoleão pareceu mudar de semblante, e ordenou com veemência que soltasse o cão, então Golias levantou o casco e o cão se afastou, machucado e uivando.

Então o tumulto acabou. Os quatro porcos esperaram, tremendo e com cara de culpados. Napoleão agora os convidava a confessar seus crimes. Eles eram os mesmos quatro porcos que haviam protestado quando Napoleão aboliu as reuniões dominicais. Sem mais, confessaram que estavam em contato secreto com Bola de Neve desde sua expulsão, que haviam colaborado com ele na destruição do moinho de vento e que haviam firmado um acordo com ele para entregar a Fazenda dos Animais ao Sr. Frederick. Acrescentaram que Bola de Neve havia admitido em particular que havia sido o agente secreto de Jones por muitos anos. Quando terminaram sua confissão, os cães prontamente arrancaram suas gargantas, e Napoleão perguntou, com uma voz terrível, se algum outro animal tinha algo a confessar.

As três galinhas que tinham sido as líderes da tentativa de rebelião dos ovos agora se apresentaram e declararam que Bola de Neve aparecera para elas em sonho e as incitara a desobedecer às ordens de Napoleão. Elas também foram massacradas. Então um ganso se apresentou e confessou ter roubado seis espigas de milho durante a colheita do ano passado e as comido durante a noite. Então uma ovelha confessou ter urinado no bebedouro – impelida, segundo ela, por Bola de Neve – e duas outras ovelhas confessaram ter assassinado um velho carneiro, um seguidor dedicado de Napoleão, perseguindo-o em volta de uma fogueira quando ele estava sofrendo de tosse. Todos eles foram mortos no local. E assim continuou a história das confissões e das execuções, até uma pilha de cadáveres se formar diante dos pés de Napoleão e o ar ficar pesado com o cheiro de sangue, que era desconhecido ali desde a expulsão de Jones.

Quando tudo acabou, os animais restantes, exceto os porcos e os cães, foram embora juntos. Eles estavam abalados e inconsoláveis. Eles não sabiam o que era mais chocante – a traição dos animais que haviam se juntado a Bola de Neve ou a cruel retribuição que haviam acabado de testemunhar. Antigamente, havia muitas cenas igualmente terríveis de derramamento de sangue, mas parecia que era muito pior agora que isso estava acontecendo entre eles. Desde que Jones havia deixado a fazenda, nenhum animal havia matado outro animal até hoje. Nem mesmo um rato havia sido morto. Eles tinham se encaminhado para o pequeno morro onde estava o moinho de vento semipronto e, em comum acordo, todos se deitaram juntos e se aconchegaram – Esperança, Muriel, Benjamin, as vacas, as ovelhas e toda a ninhada de gansos e galinhas – todos, de fato, exceto a gata, que desaparecera de repente pouco antes de Napoleão chamar a reunião. Durante algum tempo, ninguém falou. Somente Golias permaneceu de pé. Ele se agitava de um lado para o outro, balançando sua longa cauda preta contra os lados e, ocasionalmente, proferindo um pequeno gemido de surpresa. Finalmente, ele disse:

“Eu não entendo. Eu não teria acreditado que coisas assim pudessem acontecer em nossa fazenda. Isso deve ser alguma falha em nós mesmos. A solução, a meu ver, é trabalhar com mais afinco. De agora em diante, vou me levantar uma hora mais cedo”.

E ele partiu em seu trote até a pedreira. Lá, recolheu duas cargas sucessivas de pedra e as arrastou para o moinho antes de repousar para a noite.

Os animais se amontoaram ao redor da Esperança sem falar nada. O monte onde estavam deitados dava-lhes uma ampla vista de toda a zona rural. A maior parte da Fazenda dos Animais estava dentro de sua visão – o longo pasto que se estendia até a estrada principal, o campo de feno, o bosque, o açude, os campos arados onde o trigo jovem crescia grosso e verde, e os telhados vermelhos dos edifícios da fazenda com a fumaça saindo das chaminés. Era uma noite clara de primavera. A grama e as cercas estavam douradas pelos raios de sol. A fazenda – e com uma espécie de surpresa eles se lembraram de que isso se tratava da sua própria fazenda, cada centímetro dela era própria propriedade dos animais – nunca pareceu mais desejável para eles. Enquanto Esperança olhava colina abaixo, seus olhos se encheram de lágrimas. Se ela pudesse expressar seu pensamento, teria dito que este não era o seu objetivo quando se propuseram, anos atrás, a trabalhar para derrubar a raça humana. Estas cenas de terror e massacre não eram o que eles esperavam naquela noite em que o velho Major os incitou pela primeira vez à rebelião. Se ela própria tinha alguma expectativa do futuro, tinha sido de uma sociedade de animais livres da fome e do chicote, todos iguais, cada um trabalhando de acordo com sua capacidade, os fortes protegendo os fracos, como ela tinha protegido a ninhada perdida de patinhos com sua perna dianteira na noite do discurso do Major. Em vez disso – ela não sabia por que – tinham chegado a um momento em que ninguém ousava falar o que pensava, em que cães bravos e ferozes vagavam por toda parte, em que se tinha que ver camaradas serem despedaçados depois de confessar crimes chocantes. Não havia nenhum pensamento de rebeldia ou desobediência em sua mente. Ela sabia que, mesmo assim, as coisas estavam muito melhor do que estavam nos dias de Jones e que o mais importante era impedir o retorno dos seres humanos. O que quer que acontecesse, ela permaneceria fiel, trabalharia duro, cumpriria as ordens que lhe foram dadas e aceitaria a liderança de Napoleão. Mas mesmo assim, não era isso que ela e os outros animais esperavam. Não era para isso que trabalhavam. Não era para isso que construíram o moinho e enfrentaram as balas da arma de Jones. Tais eram seus pensamentos, embora lhe faltassem as palavras para expressá-los.

Finalmente, acreditando que isso era um substituto para as palavras que não conseguia encontrar, ela começou a cantar “Animais da Inglaterra”. Os outros animais sentados ao seu redor pegaram a deixa e cantaram o hino três vezes – de forma afinada, mas lenta e em luto, de uma forma que nunca tinham cantado antes.

Eles tinham acabado de cantá-la pela terceira vez quando Berro, acompanhado por dois cães, se aproximou deles com cara de quem tinha algo importante a dizer. Ele anunciou que, por um decreto especial do camarada Napoleão, “Animais da Inglaterra” havia sido abolida. A partir de agora, era proibido cantá-la.

Os animais foram tomados de surpresa.

“Por quê?” gritou Muriel.

“Não é mais necessário, camarada”, disse Berro com firmeza. “’Animais da Inglaterra’ era a canção da Revolução, que já está completa. A execução dos traidores esta tarde foi o ato final. O inimigo, tanto externo quanto interno, foi derrotado. Em ‘Animais da Inglaterra’ expressamos nosso anseio por uma sociedade melhor nos dias que virão. Mas essa sociedade foi agora estabelecida. Claramente, esta canção não tem mais nenhum propósito”.

Por mais assustados que estivessem, alguns dos animais teriam protestado, mas neste momento as ovelhas emitiram seu habitual balido de “Quatro patas bom, duas patas ruim”, que durou vários minutos e pôs um fim à discussão.

Assim, “Animais da Inglaterra” não foi mais ouvida. Em seu lugar Minimus, o poeta, tinha composto outra canção que começou:

Fazenda dos Animais, Fazenda dos Animais,

Por mim não farás mal jamais!

e isto foi cantado todos os domingos de manhã após o içar da bandeira. Mas de alguma forma nem as palavras nem a melodia pareciam chegar aos pés de “Animais da Inglaterra”.

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Veja a seguir, o áudio do capítulo VII:


Notas:

  • [1George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.
  • [2O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.
  • [3ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo VII, pág. 86 a 104. Veja o livro completo aqui.