Por George Orwell [1]
In: Gazeta do Povo [2]
Capítulo 4 [3]
Até o fim do verão, a notícia do que havia acontecido na Fazenda dos Animais havia se espalhado pela metade do condado. Todos os dias Bola de Neve e Napoleão mandavam pombos voarem com a instrução de se misturar com os animais das fazendas vizinhas, contar-lhes a história da Revolução e ensinar-lhes “Animais da Inglaterra”.
O Sr. Jones passou a maior parte deste tempo sentado perto do barril do Leão Vermelho em Willingdon, se lamentando para qualquer um que ouvisse sobre a monstruosa injustiça que havia sofrido ao ser expulso de sua propriedade por um bando de animais inúteis. Os outros agricultores simpatizaram com ele a princípio, mas não lhe deram muito auxílio. No fundo, cada um deles se perguntava secretamente se não poderia de alguma forma usar o infortúnio de Jones em benefício próprio. Foi uma sorte que os proprietários das duas fazendas vizinhas à Fazenda dos Animais estivessem sempre em péssimas condições. Uma delas, que se chamava Foxwood, era uma fazenda grande, negligenciada e antiquada, com um bosque que cresceu mais do que deveria, pastos desgastados e sebes em condições vergonhosas. Seu proprietário, o Sr. Pilkington, era um fazendeiro gentil e tranquilo que passava a maior parte de seu tempo pescando ou caçando, de acordo com a estação do ano. A outra fazenda, que se chamava Pinchfield, era menor e melhor conservada. Seu proprietário era um tal de Sr. Frederick, um homem duro e astuto, envolvido constantemente em processos judiciais e com fama de conduzir barganhas difíceis. Eles não gostavam muito um do outro, a ponto de ser difícil chegarem a qualquer acordo, mesmo em defesa de seus próprios interesses.
No entanto, ambos estavam profundamente assustados com a Revolução na Fazenda dos Animais e muito ansiosos em evitar que seus próprios animais soubessem demais sobre o assunto. No início, eles fingiam rir da situação para desprezar a ideia de animais administrando uma fazenda sozinhos. Tudo isso acabaria em quinze dias, disseram eles. Eles disseram que os animais da Fazenda Solar (eles insistiam em chamá-la pelo nome antigo; não toleravam o nome “Fazenda dos Animais”) estavam lutando constantemente entre si e que estavam morrendo de fome rapidamente. Quando o tempo passou e os animais evidentemente não tinham morrido de fome, Frederick e Pilkington mudaram de tom e começaram a falar da terrível maldade que agora surgia na Fazenda dos Animais. Foi divulgado que os animais praticavam canibalismo, torturaram-se uns aos outros com ferraduras vermelhas de fogo, e compartilhavam as fêmeas. Foi o resultado da Revolução contra as leis da natureza, disseram Frederick e Pilkington.
No entanto, nunca se acreditou completamente nestas histórias. Rumores de uma fazenda maravilhosa, onde os seres humanos tinham desaparecido e os animais administravam seus próprios negócios, continuaram a circular em formas vagas e distorcidas, e durante todo aquele ano uma onda de rebeldia correu pelo campo. Touros que sempre tinham sido fáceis subitamente se tornaram selvagens, ovelhas quebraram cercas e devoraram o pasto, vacas chutaram o balde, os cavalos se recusavam a pular os obstáculos e derrubavam seus cavaleiros para o lado. Acima de tudo, a melodia e até mesmo as palavras de “Animais da Inglaterra” eram conhecidas por todos os lugares. A música se espalhou com uma velocidade surpreendente. Os seres humanos não conseguiram conter sua fúria quando ouviam esta canção, embora fingissem que a achavam ridícula. Eles não conseguiam entender, diziam eles, como até mesmo os animais conseguiam cantar tais porcarias desprezíveis.
Qualquer animal que fosse pego cantando recebia um castigo imediato. E, mesmo assim, a canção era irreprimível. Os melros a assobiavam nas cercas, os pombos a murmuravam nos olmos. Ela se infiltrou nas marteladas dos ferreiros e na melodia dos sinos das igrejas. E quando os seres humanos a ouviam, tremiam secretamente, ouvindo nela uma profecia de sua futura desgraça.
No começo de outubro, quando o milho foi cortado e empilhado e parte dele já estava debulhado, um bando de pombos chegou rodopiando pelo ar e pousou no pátio da Fazenda dos Animais fazendo um grande alvoroço. Jones e todos os seus homens, além de alguns trabalhadores de Foxwood e Pinchfield, tinham entrado pelo portão de cinco grades e estavam subindo o caminho largo que dava na fazenda. Todos eles estavam carregando varas, exceto Jones, que estava marchando adiante com uma arma nas mãos. Obviamente, eles iam tentar recapturar a fazenda.
Os animais já esperavam isso há muito tempo e já tinham feito todos os preparativos. Bola de Neve, que havia estudado um livro velho sobre as campanhas de Júlio César que havia encontrado na fazenda, estava encarregado das operações defensivas. Ele deu suas ordens rapidamente, e em poucos minutos todos os animais estavam a postos.
Quando os seres humanos se aproximaram das instalações da fazenda, Bola de Neve lançou a primeira onda de ataque. Todos os pombos, um total de trinta e cinco, voaram de um lado para o outro sobre as cabeças dos homens, defecando neles em pleno ar; enquanto os homens lidavam com isso, os gansos, que estavam escondidos atrás da cerca, correram para fora e bicaram ferozmente suas panturrilhas. Entretanto, esta foi apenas uma manobra simples, destinada a criar uma pequena desordem, e os homens expulsaram os gansos com facilidade. Bola de Neve lançou agora sua segunda linha de ataque. Muriel, Benjamin e todas as ovelhas, Bola de Neve à frente, correram em direção aos homens, os espetando e dando chifradas por todos os lados, enquanto Benjamin se virou de costas e lhes deu vários coices com seus pequenos cascos. Mas mais uma vez os homens, com suas varas e botas com esporas, eram fortes demais para eles; e de repente, com um guincho do Bola de Neve, que era o sinal de retirada, todos os animais se viraram e fugiram pelo portão de entrada para o pátio.
Os homens deram um grito de triunfo. Eles viram, ou ao menos assim pensavam, seus inimigos em fuga, e correram atrás deles em desordem. Isto era exatamente o que Bola de Neve queria. Assim que se encontravam no meio do pátio, os três cavalos, as três vacas e o resto dos porcos, que estavam deitados numa emboscada no estábulo, de repente emergiram em sua retaguarda, fechando-lhes o caminho. Bola de Neve deu agora o sinal para o ataque. Ele mesmo foi direto para Jones. Jones o viu chegar, levantou a arma e atirou, deixando marcas sangrentas nas costas de Bola de Neve. Uma ovelha caiu morta. Sem parar por um instante, Bola de Neve atirou seus quase 100 quilos contra as pernas de Jones. Jones foi jogado em uma pilha de esterco e a arma voou de suas mãos. Mas o espetáculo mais assustador de todos foi Golias, levantando-se sobre suas patas traseiras e golpeando com seus grandes cascos de ferro como um garanhão. Seu primeiro golpe acertou um rapaz que trabalhava com Foxwood bem no crânio, o derrubando na lama sem vida. Vendo isso, vários homens soltaram seus bastões e tentaram fugir. O pânico os atingiu, e no momento seguinte todos os animais os perseguiam juntos em volta do pátio. Eles foram chifrados, chutados, mordidos, pisoteados. Não havia um animal na fazenda que não se vingasse deles da sua própria maneira. Até mesmo a gata saltou de repente de um teto para os ombros de um dos fazendeiros, afundando suas garras em seu pescoço, fazendo com que ele desse um grito horrível. Assim que o portão ficou livre, os homens ficaram felizes em sair correndo em disparada do pátio em direção à rua principal. E assim, depois de cinco minutos de invasão, eles vergonhosamente se retiraram da mesma maneira com que vieram, com um bando de gansos assobiando atrás deles e bicando suas pernas durante todo o caminho.
Todos os homens tinham ido embora, exceto um. De volta ao pátio, Golias cutucava o jovem rapaz de leve com seu casco, tentando virá-lo para cima. O garoto não se mexeu.
“Ele está morto”, disse Golias tristemente. “Eu não queria fazer isso. Esqueci que estava usando ferraduras de ferro. Quem vai acreditar que eu não fiz isso de propósito?”
“Sem sentimentalismos, camarada!” gritou Bola de Neve, cujas feridas ainda sangravam. “Guerra é guerra. Ser humano bom é ser humano morto”.
“Eu não tenho desejo de tirar a vida de ninguém, nem mesmo dos homens”, repetiu Golias com os olhos cheios de lágrimas.
“Onde está a Mollie?” exclamou alguém.
Mollie, de fato, tinha desaparecido. Por um breve momento houve um grande alarde; temia-se que os homens a tivessem prejudicado de alguma forma, ou até mesmo a levado com eles. No entanto, ela foi no fim encontrada escondida em seu estábulo com a cabeça enterrada entre o feno na manjedoura. Ela fugiu assim que a arma disparou. E quando os outros pararam de procurá-la, descobriram que o rapaz, que na verdade estava apenas atordoado, já havia se recuperado e fugido.
Os animais agora tinham se reunido com grande excitação, cada um recontando suas próprias façanhas na batalha a plenos pulmões. Uma celebração improvisada de vitória foi organizada imediatamente. A bandeira foi hasteada e “Animais da Inglaterra” foi cantada várias vezes, e depois a ovelha morta recebeu um funeral solene – um espinheiro também foi plantado em seu túmulo. Bola de Neve fez um pequeno discurso, enfatizando a necessidade de que todos os animais estivessem prontos para morrer pela Fazenda dos Animais, se fosse necessário.
Os animais decidiram por unanimidade criar uma condecoração militar, “Herói Animal, Primeira Classe”, que foi conferida ali mesmo a Bola de Neve e Golias. Consistia em uma medalha de latão (na realidade, eram algumas placas para os cavalos que foram encontradas na sala de arreio), para ser usada nos domingos e feriados. Havia também o “Herói Animal, Segunda Classe”, que foi conferido postumamente à ovelha morta.
Havia muita discussão sobre como chamar a batalha. No final, o nome escolhido foi “Batalha do Estábulo”, já que foi lá que a emboscada havia sido desencadeada. A arma do Sr. Jones havia sido encontrada na lama, e sabia-se que havia um suprimento de cartuchos dentro da casa. Foi decidido posicionar a arma aos pés do mastro, como uma peça de artilharia, e dispará-la duas vezes ao ano – no dia 12 de outubro, o aniversário da Batalha do Estábulo, e no Solstício de Verão, o aniversário da Revolução.
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Veja também a leitura do capítulo 4 do livro em:
Notas:
- [1] George Orwell: “...escritor nascido em uma colônia inglesa na Índia, é considerado um dos mais importantes romancistas da vertente distópica da literatura mundial, caracterizada pela narração de enredos em que os personagens vivenciam situações em espaço e tempo futuros, nos quais não há possibilidade para a utopia, ou seja, para o sonho e para a esperança. Nessa linha, destacam-se suas duas obras-primas, traduzidas para vários idiomas e transpostas para as telas do cinema mais de uma vez: o romance A revolução dos bichos, publicado em 1945, e o romance 1984, publicado em 1949.” Veja mais aqui.
- [2] O que diz o livro Revolução dos Bichos? “O conhecido livro do inglês George Orwell, A Revolução dos Bichos (1945), é um dos legados atemporais mais importantes que escritores do século passado nos deixaram. Na obra, Orwell faz uma crítica ao stalinismo. Então socialista, o inglês – nascido na Índia durante o domínio britânico – se desilude com a ideologia ao ver o totalitarismo soviético e satiriza o sucessor de Lênin. Na alegoria, o autor apresenta uma revolução idealizada por um porco, o Major (que pode representar tanto Marx como Lênin), que convoca os bichos da granja em que vive a expulsar seu proprietário, o humano Sr. Jones (que seria Nicolau II, imperador do Czar). Porco Major morre em seguida e dois outros suínos tomam a frente: Napoleão (representando Stálin) e Bola de Neve (que seria Trotski). A estória segue o roteiro soviético… Napoleão expurga Bola de Neve, deturpa as leis a seu favor e se torna um ditador. Os demais bichos (galinhas, gado, cavalo…) se rendem à autocracia sem questionar, de forma passiva. Cada vez trabalham mais, exaustivamente e com alimento controlado; enquanto isso, Napoleão toma posse das dependências do Sr. Jones, agindo, portanto, de forma mais exploradora e cruel que o antigo chefe. A ironia está no fato de que a máxima da revolução era ‘duas pernas/patas mau’ – referindo-se a seres humanos”. Leia mais em: Rodrigo Constantino – Gazeta do Povo.com.
- [3] ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Gazeta do Povo. Capítulo IV, pág. 44 a 52. Veja o livro completo aqui.