Translate

04 janeiro 2024

Os militares no poder

Por: Mary Del Priori e Renato Venancio

 


Em 25 de agosto de 1961, o país entra em profunda crise política. A renúncia de Jânio implica a posse do vice-presidente, João Goulart. Em viagem diplomática à China, Goulart é hostilizado por importantes segmentos das forças armadas e do meio empresarial. Há razão para tanto? É preciso lembrar que ele foi responsável pelo aumento de 100% do salário-mínimo, motivo suficiente para ser identificado à nebulosa política denominada república sindicalista. Além disso, pertence à corrente nacionalista, partidária da realização de reformas de base da sociedade brasileira, que contrariavam poderosos interesses.

Os ministros militares se manifestaram contra a posse. Tal recusa, porém, estava longe de contar com o apoio unânime das forças armadas. Goulart foi eleito pelo voto direto, levando a ala legalista do Exército a se posicionar a seu favor. Explorando habilmente essa divisão, Leonel Brizola, que no início dos anos 1960 desponta como nova liderança nacional do PTB, consegue o apoio do III Exército. O então governador do Rio Grande do Sul cria a Rede da Legalidade, lançando, através dos meios de comunicação de massa, uma campanha nacional em defesa da posse do novo presidente.

O golpe de 1961 é, dessa maneira, evitado. No entanto, foram necessárias concessões políticas por parte de João Goulart. A mais importante delas foi a adoção do parlamentarismo, através do qual se transfere para o Congresso Nacional e para o presidente do Conselho de Ministros, aí eleito, boa parcela das prerrogativas do Poder Executivo.

Aproximadamente duas semanas após a renúncia de Jânio Quadros, o novo presidente assume o cargo e novas conspirações se iniciam. Um aspecto crucial relativo à adoção do parlamentarismo é aquele que prevê, nove meses antes do término do mandato presidencial, a realização de um plebiscito no qual se confirmaria a manutenção dessa forma de governo.

A experiência parlamentarista, implementada às pressas, se revela um fracasso. A crise econômica conjuga-se à quase paralisia do sistema político. Auxiliado por tais circunstâncias e pela campanha que faz, João Goulart consegue não só antecipar o plebiscito, como também dele sair vitorioso. Em janeiro de 1963, o Brasil volta a ser presidencialista. Dessa data até março de 1964, assistimos a uma progressiva radicalização entre os setores nacionalistas e antinacionalistas. Para compreendermos a razão de tanto conflito, devemos retornar no tempo e analisar as propostas políticas e econômicas desses dois grupos, assim como as alianças a que deram origem.

Conforme mencionamos no capítulo anterior, por volta de 1945 a economia brasileira torna-se predominantemente industrial. A partir dessa época, as discussões se voltam para a aceleração do processo de desenvolvimento econômico. Pois bem, uma das soluções propostas implica a associação com o capital internacional, enquanto a outra consiste em proteger a economia desse tipo de intervenção, valorizando a ação do Estado como promotor da industrialização. Entre numerosos defensores desta forma de desenvolvimento, havia os partidários da reorganização de nosso mundo rural. Para eles, o campo brasileiro mantinha estruturas econômicas pré-industriais, impedindo a integração da população aí existente ao mercado consumidor. Mais ainda: nossa agricultura, baseada em grandes propriedades e na lavoura de exportação, abastecia precariamente a cidade, elevando o custo de vida e fazendo com que, entre os trabalhadores, sobrassem poucos recursos para a aquisição de produtos industriais. A formação de latifúndios improdutivos tinha outro efeito negativo: desviava capitais das atividades econômicas mais dinâmicas. Em outras palavras, sem a reforma agrária, a economia brasileira estaria fadada à estagnação ou então a uma crescente dependência em relação aos investimentos estrangeiros.

O debate a respeito da alteração de nossas estruturas agrárias está longe de ser meramente técnico. Em torno dele se chocam interesses econômicos e paixões políticas. Não por acaso, nem mesmo governos transformadores, como os de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, instituíram projetos dessa natureza. Na verdade, pode-se afirmar o inverso. Desde os anos 1930, a ênfase dada à industrialização leva, na maioria das vezes, a restrições ao crédito rural e a uma política cambial desfavorável aos produtores agrícolas. Assim, para a manutenção das taxas de lucro, deve-se aumentar o nível de exploração dos trabalhadores, o que estimula, por sua vez, movimentos migratórios e sentimentos de revolta.

Conforme vimos, após a abolição, o campo brasileiro nem sempre adota o trabalho assalariado. Em várias partes, colonos, rendeiros, meeiros e moradores de favor é que de fato substituem o braço cativo. Nesse meio, fazendeiros cobram prestações de serviços em troca de moradia, alteram livremente os acordos de partilhas das colheitas ou despedem trabalhadores sem indenização alguma. Em 1955, a revolta contra essa situação cristaliza-se na forma de Ligas Camponesas, organizadas por Francisco Julião, advogado com longa experiência na defesa dos trabalhadores e pequenos proprietários rurais. Inicialmente, as Ligas se estabelecem em Pernambuco e Paraíba, para depois se espalharem por outras regiões brasileiras, como Rio de Janeiro e Goiás. Seu lema é levar “justiça ao campo” através da reforma agrária, “na lei ou na marra”, o que implicava invasões de propriedades rurais, criando um clima de terror em parte da elite brasileira.

Outro aspecto interessante dessa nova organização é que ela foge ao controle das tradicionais instituições populistas, como era o caso dos sindicatos vinculados ao PTB. De fato, pode-se afirmar que as Ligas e seu líder são hostis a João Goulart. Em 1962, essa postura ganha alcance nacional. Francisco Julião, eleito deputado federal pelo PSB, apoia vitoriosamente o prefeito de Recife, Miguel Arraes, na disputa do cargo de governador. João Goulart enfrenta, agora, oposição à direita e à esquerda; talvez por isso, o presidente reforça sua base de apoio popular se aproximando do PCB. Para compreender a aliança entre populistas e comunistas precisamos retornar no tempo.

O primeiro ensaio dessa aproximação ocorreu em 1945, por ocasião do fim do governo de Getúlio Vargas. No entanto, a cassação do registro legal do partido em 1947 leva os comunistas a uma fase de radicalização. A partir de 1952, ainda na ilegalidade, o Partidão – como então era popularmente conhecido – dá início à revisão dessa linha política, reaproximando-se de correntes políticas populistas, principalmente aquelas vinculadas ao nacionalismo ou ao movimento sindical.

Essa postura, em parte, decorre da análise teórica predominante no PCB. Desde os anos 1920, intelectuais comunistas procuram interpretar a sociedade brasileira à luz dos conceitos marxistas e leninistas. Tal leitura é afetada pelo fraco conhecimento de textos originais de Marx e pela adoção incondicional da linha política soviética. Nesse contexto, a interpretação que se torna dominante nos círculos comunistas é a de considerar as sociedades latino-americanas como pré-capitalistas. Tal conceituação implica, porém, brutais simplificações da realidade. Uma delas consiste em não ver diferenças entre países que apresentam níveis variados de desenvolvimento econômico. Brasil, Argentina, Guatemala ou Paraguai, por exemplo, são arrolados indistintamente. Pior ainda, adota-se a linha evolutiva europeia como sendo universal, o que leva a classificar o conjunto das sociedades latino-americanas como feudais. Na prática, tal interpretação implica reconhecer a necessidade de uma etapa capitalista para que, em um momento não definido do futuro, fosse possível atingir o socialismo; assim como os positivistas de cem anos antes, os comunistas são fortemente influenciados por concepções evolucionistas.

Ora, de forma simplificada, podemos afirmar que, para o PCB, os membros da UDN e parte do PSD representam os interesses feudais, ao passo que o PTB aglutinaria os grupos pertencentes à nascente burguesia nacional. Não é de estranhar, portanto, que os comunistas vissem com bons olhos a ascensão de João Goulart, defensor da reforma agrária e hostil ao capital internacional. Além disso, a aproximação do PCB com o PTB atende a necessidades práticas, como era o caso da legalização partidária dos comunistas.

Goulart procurava tirar vantagens dessa aliança. Um exemplo disso refere-se às mencionadas Ligas Camponesas. No início dos anos 1960, comunistas e trabalhistas levam a cabo uma bem-sucedida campanha de filiação sindical dos trabalhadores do campo. Na época do fim do parlamentarismo, enquanto as Ligas contam com 80 mil associados, registra-se a existência de 250 mil trabalhadores agrícolas sindicalizados, o que enfraquece o segmento oposicionista Julião Arraes em sua própria base eleitoral.

A aproximação entre PTB e PCB revela o fracasso do presidente em promover uma política moderada. Goulart naufraga em suas articulações com a Frente Parlamentar Nacionalista, integrada até mesmo por udenistas favoráveis às reformas estruturais da sociedade brasileira. O mesmo ocorre em sua tentativa de criar a União Sindical dos Trabalhadores, confederação destinada a enfraquecer o Comando Geral dos Trabalhadores, controlado por comunistas. Na política econômica, seu resultado também é medíocre. A equipe de seu primeiro ministério, liderada por San Thiago Dantas e Celso Furtado, tenta, sem sucesso, implementar o plano trienal, que prevê a captação de recursos internacionais, assim como austeridade no gasto público, crédito e política salarial. Tal fracasso tem graves repercussões, registrando-se então uma recessão e uma taxa de inflação alarmante.

Cada vez mais isolado entre as elites, Goulart procura apoio na ala radical do trabalhismo, liderada por Leonel Brizola – defensor da mobilização popular como uma forma de pressão pelas reformas de base. Em outubro de 1963, as conspirações contra seu governo proliferam. Pressionado pela ala legalista do Exército, o presidente ensaia decretar estado de sítio, mas é sabotado no Congresso pelo próprio partido, perdendo assim o pouco de prestígio que lhe resta junto às forças militares.

Apesar de sua frágil situação, Goulart não reavalia o projeto reformista. Desde a posse, o presidente mantém uma postura ambígua, ora tentando desenvolver uma política moderada, ora apelando para a mobilização popular para forçar o Congresso a aprovar reformas. Em parte devido à inflação, e também à ambiguidade populista, greves se multiplicam. Assim, é possível afirmar, por exemplo, que entre 1961 e 1963 ocorrem mais movimentos grevistas do que no período compreendido entre 1950 e 1960. No que diz respeito às greves gerais – ou seja, aquelas envolvendo várias categorias socio-profissionais –, o crescimento é de 350%! Não é difícil imaginar os transtornos criados nos serviços básicos de saúde e de transportes coletivos por esse tipo de prática, tornando o presidente bastante impopular junto às classes médias e camadas representativas dos trabalhadores. Observa-se, ainda, durante seu governo, o declínio acentuado da repressão aos grevistas, dando munição aos que disseminavam entre as elites o medo em relação à implantação de uma república sindicalista no Brasil.

No início de 1964, o presidente encaminha ao Congresso um projeto de reforma agrária e é derrotado. Através de mobilizações de massa pressiona o Poder Legislativo. No comício de 13 de março, que reúne cerca de 150 mil participantes, anuncia decretos nacionalizando refinarias particulares de petróleo e desapropriando terras com mais de 100 hectares que ladeavam rodovias e ferrovias federais. As medidas são acompanhadas por declarações bombásticas, como as de Brizola, defendendo a constituição de um Congresso composto de camponeses, operários, sargentos e oficiais militares. A direita reage a esse tipo de manifestação, organizando, com apoio da Igreja Católica e de associações empresariais, “marchas da família com Deus pela liberdade”, por meio das quais condenam o suposto avanço do comunismo no Brasil.

Em um lance extremamente infeliz, Goulart estende a mobilização sindical aos quartéis. Em fins de março, apoia a revolta de marinheiros, deixando que esses últimos participem da escolha do novo ministro da Marinha; além disso, mobiliza os sargentos do Rio de Janeiro. A quebra da hierarquia militar é o item que faltava para que os conspiradores conseguissem apoio da ala legalista das forças armadas. Em 31 de março é deposto o presidente. A UDN, por intermédio de dois governadores, Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Carlos Lacerda, da Guanabara, participa ativamente do golpe, e, em 15 de abril, o general Castello Branco, identificado à ala legalista, assume a Presidência da República. Dentre os poderes atribuídos a ele havia o de cassar direitos políticos e afastar os militares identificados ao governo deposto. Essa depuração envolve milhares de oficiais, soldados e deputados, e seu resultado concreto foi criar um desequilíbrio no Congresso e nas forças armadas a favor dos antigos grupos antinacionalistas.

Esse desequilíbrio de forças no interior do Exército gera uma situação complexa. Inicialmente, o núcleo conspirador apresentou a intervenção militar como defensiva em face de um iminente golpe que Goulart estaria planejando, e previa, por exemplo, eleições presidenciais em 1965. No entanto, os grupos antinacionalistas – agora denominados linha-dura – alimentam um projeto político duradouro. Nos documentos imediatamente lançados após o golpe, os partidários dessa visão assumem o papel de liderar a sociedade brasileira: “a revolução” – afirma um desses textos – “se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação”.

De fato, o Golpe Militar de 1964 pode ser acusado de muitas coisas, menos de ter sido uma mera quartelada. Havia muito, tal intervenção era discutida em instituições, como a Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1948, ou o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), fundado em 1962 por lideranças empresariais. Outro indício de que o golpe vinha sendo tramado havia tempos ficou registrado nos documentos da operação “Brother Sam”, através da qual se prevê, caso houvesse resistência, que o governo norte-americano “doaria” 110 toneladas de armas e munições ao Exército brasileiro. Por ser fruto desse planejamento prévio, não é surpreendente que a instituição militar apresente um projeto próprio de desenvolvimento para o país – aliás, compartilhado pela maioria do empresariado nacional. Em larga medida, tal projeto consiste em retomar o modelo implantado em fins da década de 1950, aquele definido como tripé, baseado na associação entre empresas nacionais privadas, multinacionais e estatais.

Com o objetivo de tornar esse modelo mais eficaz, é meticulosamente organizada a repressão ao movimento sindical e à oposição política. Contudo, a implantação da ditadura não ocorre imediatamente após a deposição do presidente. Os conspiradores dependem dos grupos legalistas, muitos deles defensores do retorno do poder civil nas eleições presidenciais seguintes. Além disso, a ausência de resistência – em 3 de abril de 1964, João Goulart se exila no Uruguai – desarma a linha-dura. Mas isso dura pouco. Em 1965, graças às depurações nas forças armadas, os militares identificados ao general Costa e Silva têm força suficiente para alterar os rumos da revolução. A derrota que enfrentam nas urnas alimenta ainda mais essa tendência. No referido ano, candidatos oposicionistas vencem em estados e cidades importantes, como na Guanabara, em Minas Gerais e na capital paulista. Boa parcela dos brasileiros demonstra seu descontentamento com o governo instituído em 31 de março. Como resposta, foram impostos os Atos Institucionais nos 2 e 3, que abolem os partidos existentes e as eleições diretas para presidente, governador e prefeito de capitais. Não restavam dúvidas, os militares tinham vindo para ficar...


Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010. Cap. 30, pág. 198 a 203.

14 dezembro 2023

Segunda Guerra Mundial

Por Alcides Barbosa de Amorim




O século XX assistiu duas grandes guerras de proporções mundiais. A primeira guerra durou entre 1914 e 1918, e embora a criação da Liga das Nações, em 1919, tinha como um dos objetivos evitar novas guerras, isto não aconteceu. De 1939 a 1945, o mundo assistiu a chamada segunda guerra, da qual falaremos a seguir.

Desde o fim da Primeira Guerra Mundial, Hitler trazia na cabeça a obsessão de livrar a Alemanha da humilhação do Tratado de Versalhes. Esse tratado foi imposto pela França e Inglaterra em 1919, após a derrota da Alemanha.

Em setembro de 1939 a Alemanha invadia a Polônia, fazendo eclodir a Segunda Guerra mundial. Era o começo de uma guerra, a mais destrutiva da história, que envolveu países de vários continentes e que só terminou em 1945, com a rendição incondicional da Alemanha e do Japão.

No plano político, a principal consequência do conflito mundial foi o fim da supremacia da Europa ocidental no mundo...


Veja o texto completo, em PDF, em:

= = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Segunda Guerra Mundial

= = = = = = = = = = = = = = = = = = =


09 dezembro 2023

Tentações militares e outras tentações

Por:  Mary Del Priori Renato Venancio


Governo Populista: imagem adaptada

O fim do Estado Novo sugeria que as antigas oligarquias tinham chance de retornar ao comando político. Mas isso só na aparência, pois o Brasil dos anos 1940 era profundamente diferente daquele que havia existido durante a Primeira República. Dentre essas mudanças, talvez a mais importante tenha sido a que dizia respeito ao novo eleitorado que então surgira.

Em consequência das reformas educacionais e da incorporação do voto feminino, os índices de participação eleitoral, em declínio desde fins do Império – quando os analfabetos foram excluídos do direito de votar –, aumentam sensivelmente. Por volta de 1945, além de mais numerosos do que nunca, os eleitores brasileiros também apresentam um perfil cada vez mais urbano. Um exemplo extremo dessa situação pode ser percebido ao compararmos o estado do Amazonas com a cidade do Rio de Janeiro: enquanto a primeira unidade possuía 28.908 eleitores, o Distrito Federal desfrutava de um colégio eleitoral de 483.374 homens e mulheres.

Como seria de esperar, tal mudança implica uma alteração profunda no perfil dos candidatos e dos votantes. Estes ficam cada vez menos sujeitos aos coronéis, enquanto aqueles não mais precisam ser originários da elite agrária, dependendo agora do próprio carisma, da representatividade junto aos trabalhadores ou de uma máquina clientelista capaz de conceder favores e empregos. Uma vez mais se deve reconhecer a sagacidade do antigo ditador em perceber essas transformações, explorando-as habilmente. A conjugação entre a propaganda política, que fazia dele o “protetor dos pobres”, e a utilização de sindicatos e de institutos de previdência garante seu prestígio entre os eleitores urbanos, tornando-o parcialmente independente das antigas oligarquias. Mais ainda: através do PTB, Getúlio imprime uma dimensão nacional a seu projeto político.

Após o fim do Estado Novo, a amarga experiência eleitoral vivida pelos egressos do antigo Partido Republicano Paulista, em contraste com o retorno do ex-ditador ao poder, ilustra esse estado de coisas. Por isso, para muitos pesquisadores, a década de 1950 é um momento de consolidação de uma prática política definida como populismo: multiplicam-se os políticos que apelam para as massas urbanas e não mais consideram as elites como portadoras de um modelo a ser seguido.

No caminho de retorno de Getúlio Vargas existia, porém, um obstáculo: o Exército. Como vimos, os generais o haviam deposto em 1945. Seu retorno à presidência em 1951 implicava negociações. Estas, por sua vez, são bem-sucedidas. Para muitos militares, Getúlio, por ser um político com forte apelo popular, servia como antídoto ante o risco do comunismo. Em 1945, o PCB, apesar de legalizado às vésperas das eleições, consegue eleger catorze deputados e Luís Carlos Prestes como senador; o que representa o voto de aproximadamente 12% do eleitorado brasileiro, sendo que em algumas cidades, como o Rio de Janeiro, tal cifra atinge 20%.

Nessa época, um impasse sobre os rumos que devia tomar a sociedade brasileira divide o Exército. Até o início dos anos 1940, o debate a respeito do desenvolvimento nacional é dividido em duas correntes: uma defende a “vocação agrícola” de nossa sociedade e a outra se posiciona a favor da industrialização acelerada. Ora, durante o governo Dutra, a primeira posição perde o sentido, pois a maior parte da economia brasileira passa a depender do desenvolvimento industrial.

Devido às transformações implementadas ao longo do primeiro governo de Getúlio Vargas, o modelo de industrialização se depara com sérias dificuldades. Não se trata mais de simplesmente substituir os produtos de consumo importados por similares nacionais, mas sim de incrementar um modelo de desenvolvimento industrial articulado. Em outras palavras, tratava-se de saber como seria possível produzir internamente automóveis, navios e maquinário ligado à mecânica pesada, bens que dependiam de capitais elevados e de tecnologia avançada.

Diante de tais questões surgem profundas divisões no seio das elites brasileiras, incluindo aquelas pertencentes às forças armadas. De forma esquemática, é possível identificar aqueles que, de um lado, defendem o nacionalismo econômico e a intensiva participação do Estado no desenvolvimento industrial. Na outra posição estavam os partidários de que o segundo ciclo de nossa industrialização devia ser comandado exclusivamente pela iniciativa privada brasileira, associada a capitais estrangeiros.

Embora não fosse frontalmente contrário aos investimentos internacionais, Getúlio era identificado à corrente nacionalista. Foi justamente com base nos segmentos do Exército filiados a essa tendência que ele consegue apaziguar temporariamente os quartéis. No entanto, a trégua não dura muito. Dentre o grupo identificado ao segundo modelo de desenvolvimento industrial, havia uma parcela importante da elite civil, reunida em torno da UDN. De certa maneira, a fragilidade eleitoral desse grupo era compensada pelo prestígio que contava junto a importantes segmentos das forças armadas.

As circunstâncias políticas internacionais em grande parte favorecem a UDN. Conforme mencionamos anteriormente, durante a Segunda Guerra Mundial, na luta contra o nazifascismo, Estados Unidos e União Soviética se aproximam. A postura anticomunista por parte dos governos capitalistas declina. No Brasil, legaliza-se o PCB, ainda que por um curto período. No entanto, após a guerra, a posição norte-americana sofre uma inflexão: o comunismo torna-se a principal ameaça. Razões para isso? Por volta de 1950, o sistema comunista havia deixado de ser uma experiência isolada, sendo agora compartilhado por um número crescente de países do Leste Europeu, tais como Iugoslávia (1945), Bulgária (1946), Polônia (1947), Checoslováquia (1948), Hungria (1949) e República Democrática Alemã (1949); assim como asiáticos, Vietnã do Norte (1945), Coreia do Norte (1948) e China (1949).

O quadro mundial torna-se ainda mais delicado em razão do desenvolvimento de armas atômicas. Em 1945, os Estados Unidos, nos ataques a Hiroshima e Nagasaki, demonstraram as consequências desse poderio. Quatro anos mais tarde, foi a vez de a União Soviética revelar ao mundo seu arsenal atômico em testes no deserto do Cazaquistão. Em um contexto como esse, um confronto entre Estados Unidos e União Soviética colocaria em risco a sobrevivência do planeta. Essa situação leva à transferência dos conflitos para os países subordinados a cada uma dessas potências. Como seria de esperar, a nova política internacional concede pouca autonomia às áreas de influência; atitude que implica ver nas políticas nacionalistas ora uma guinada rumo ao capitalismo – no caso do bloco soviético –, ora um passo em direção ao comunismo – no caso do bloco norte-americano.

No início dos anos 1950, parte do Exército brasileiro e a União Democrática Nacional, que chegou a contar com um pequeno agrupamento de socialistas, depois estabelecido em partido próprio, transitam para posturas cada vez mais afinadas com o anticomunismo. Acusa-se Getúlio de tramar novos golpes, agora com base nos setores nacionalistas e sindicais.

Dessa forma, a Guerra Fria, que inicialmente contribui para o retorno do ex-ditador, visto como uma forma de contrabalançar a influência dos comunistas, torna-se um elemento desfavorável a sua continuidade no poder. Ciente dessa fragilidade, Vargas procura cooptar os opositores. No Exército, promove hierarquicamente, a partir de 1952, grupos antinacionalistas, e o mesmo é feito em relação aos políticos da UDN, a quem são oferecidas pastas ministeriais. A tentativa de cooptação estende-se aos comunistas: em 1952, deixa de ser obrigatória a apresentação de atestado ideológico – fornecido pela polícia – aos dirigentes sindicais.

Paralelamente a isso, é aprofundada a política econômica nacionalista, por intermédio de leis de grande impacto na opinião pública, como aquelas referentes à limitação de remessas de lucros de empresas estrangeiras ou à criação da Petrobras, que passa a deter o monopólio da exploração do petróleo brasileiro. A ousadia do presidente não para e, em 1953, Getúlio procura reforçar sua base popular indicando um jovem político com amplo apoio sindical para ocupar o cargo de ministro do Trabalho. Seu nome: João Goulart.

O novo líder trabalhista não esconde a opção política, atendendo reivindicações de reajustamento do salário-mínimo, aumentando-o em 100%. A crise se instala e o Exército, uma vez mais, é o porta-voz do descontentamento das elites. Em fevereiro de 1954, vem a público o Manifesto dos coronéis. O texto é um exemplo do radicalismo comum ao período da guerra fria. Queixando-se de que o aumento não era extensivo às forças armadas, os oficiais aproveitam a ocasião para denunciar a ameaça da “república sindicalista”, assim como a “infiltração de perniciosas ideologias antidemocráticas”, ou então para alertar a respeito do “comunismo solerte sempre à espreita...” pronto a dominar o Brasil.

Em vez de cooptar as elites, Getúlio consegue assustá-las.

Diante da crise, Vargas afasta João Goulart do cargo, mas mantém o aumento do salário-mínimo. A UDN, por meio de seu mais radical líder, Carlos Lacerda, multiplica as acusações de corrupção, de nepotismo e de uso de dinheiro público para promover jornais favoráveis ao governo. Por outro lado, as articulações políticas “acima dos partidos” acabam por afastar os aliados tradicionais. Em junho de 1954, o Congresso vota o impeachment de Getúlio Vargas. O pedido é rejeitado; mantêm-se, entretanto, fortíssimas pressões pela renúncia. Em agosto, um atentado a Carlos Lacerda, no qual estavam envolvidos elementos próximos a Vargas, sela definitivamente o destino do presidente. Um novo golpe militar é posto em marcha, mas acaba não dando certo. Vejamos por quê.

Nas forças armadas, paralelamente aos nacionalistas e antinacionalistas, havia aqueles dispostos a garantir que a Constituição fosse respeitada. Alguns autores definem esse segmento como “legalista”. A suspeita de que o presidente estava tramando um novo golpe levou os antinacionalistas a conseguirem apoio dos legalistas. É nesse contexto que se interpreta o suicídio de Getúlio Vargas, ocorrido em 24 de agosto de 1954: um derradeiro gesto político, através do qual ele consegue sensibilizar as massas populares, ao mesmo tempo em que esvazia a aliança golpista no interior das forças armadas.

Dessa vez, o presidente acerta: os levantes populares após o suicídio inviabilizam a ação militar. No período que se estende até 1955 são preparadas novas eleições presidenciais; a UDN busca um candidato militar, na figura do general Juarez Távora, e o PTB, por sua vez, procura se aproximar do PSD, que tem como candidato Juscelino Kubitschek. Combatendo o salário-mínimo, o direito de greve e o ensino gratuito, os udenistas são novamente derrotados e Juscelino e o vice-presidente eleito, João Goulart, não encontram um ambiente político favorável. Em 11 de novembro de 1955, alegando a necessidade de maioria absoluta nas votações presidenciais, os quartéis voltam a dar sinais de descontentamento. Uma vez mais, a corrente militar antinacionalista procura o apoio dos legalistas, mas estes garantem a posse do novo presidente.

Como se pode perceber, após 1945, as intervenções militares no sistema político não são um fato isolado, mas sim uma prática rotineira, que se repetirá em 1961, alcançando em 1964 o sucesso esperado. Voltemos, porém, a Kubitschek. Ele representou uma ruptura? Ora, no melhor estilo do PSD mineiro, do qual ele era originário, a resposta é sim e não. Em outras palavras, o novo presidente procura conciliar bandeiras comuns aos nacionalistas e antinacionalistas. Promove os primeiros no Exército, aprofunda práticas de intervencionismo estatal, mas, ao mesmo tempo, abre a economia para os investimentos estrangeiros.

O novo governo, aliado do PTB, guarda traços populistas. No entanto, a política econômica representa uma alteração profunda em relação ao modelo precedente. Durante os dois governos Vargas, a prioridade do desenvolvimento nacional consiste no crescimento da indústria de base, produtora de aço ou de fontes de energia, como o petróleo e a eletricidade. Nesse primeiro modelo, a iniciativa estatal predomina e os recursos para o crescimento econômico advêm da agricultura de exportação. Pois bem, Juscelino Kubitschek altera essa forma de crescimento industrial, instituindo o que os historiadores economistas chamam de tripé: a associação de empresas privadas brasileiras com multinacionais e estatais, estas últimas responsáveis pela produção de energia e insumos industriais.

A diferença desse modelo em relação ao anterior reside no fato de os bens duráveis, como foi o caso da produção de automóveis por multinacionais, passarem a ser o principal setor do processo de industrialização. Graças ao investimento das empresas estrangeiras, a nova economia brasileira tornar-se-ia mais independente em relação às crises do setor agroexportador. No entanto, o modelo tripé tem consequências nefastas. Por dispor de fartos recursos, a produção das multinacionais podia crescer em ritmo mais acelerado do que a produção de base, implicando aumento das importações de insumos industriais, fator responsável pelo progressivo endividamento externo do Brasil. Mais ainda: para estimular a implantação dessas empresas, foi facilitada a remessa de lucros para as matrizes, o que implica o desvio de valiosos recursos da economia brasileira.

A curto prazo, porém, o modelo industrial de Juscelino foi um sucesso. A economia atinge taxas de crescimento de 7%, 8% e até 10% ao ano. Isso permite que um ambicioso Plano de Metas – popularmente conhecido como “50 anos em 5” – alcance um estrondoso sucesso. Rodovias são multiplicadas e o número de hidrelétricas cresce além do previsto, o mesmo ocorrendo com a indústria pesada. Na área de produção de alimentos, o presidente estimula uma tendência, existente desde os anos 1930, que consiste em ampliar a fronteira agrícola em direção a Goiás e Mato Grosso – o que, aliás, leva a novos extermínios de povos indígenas. Coroando essa política ambiciosa, a capital é transferida: no cerrado do Brasil Central, surge Brasília.

Diante de tais feitos, a própria UDN abandona provisoriamente o discurso anticomunista em prol de críticas à má gestão dos negócios públicos, à corrupção e à inflação que se intensifica no período. Apesar disso, respira-se certa tranquilidade política, pois o crescimento econômico também permite o aumento dos salários – que, em termos reais, no ano de 1959, atingem valores até hoje não ultrapassados –, reforçando o apoio dos trabalhadores ao PTB, base aliada do governo juscelinista.

Mas a calmaria não dura muito. Ao longo da redemocratização surgem vários partidos políticos que, na maior parte do tempo, não chegam a ameaçar o controle das três agremiações dominantes. Quase sempre de pouca duração, esses pequenos partidos às vezes tinham designações pitorescas, como União Social pelos Direitos do Homem, Partido Industrial Agrícola Democrático ou Partido Nacional Evolucionista, para mencionarmos apenas alguns exemplos. Vez por outra, porém, a fragmentação partidária permitia a ascensão de políticos não vinculados às organizações tradicionais. Um exemplo bem-sucedido dessa trajetória foi o de Jânio Quadros, eleito sucessivamente, a partir de 1947, vereador, deputado estadual, prefeito e governador pelo Partido Democrata Cristão.

O anticomunismo e a retórica moralista de Jânio em muito agradava aos udenistas. Misturando o discurso conservador com práticas populistas, Jânio consegue o impossível: ser de direita e conquistar o apoio das massas. Não é de se estranhar a aproximação da UDN, selando uma aliança para as eleições presidenciais de 1960. Do outro lado do espectro das forças políticas, reproduz-se a aliança PSD-PTB, com a indicação do general Lott, da ala nacionalista do Exército; pela segunda vez, também era candidato à presidência Ademar de Barros, líder populista paulista, concorrendo pelo Partido Social Progressista.

A vitória janista foi esmagadora: o candidato conseguiu 50% de votos a mais do que o general Lott, e mais que o dobro de Ademar de Barros. A UDN finalmente chega ao poder, mas trata-se de uma vitória ambígua. O novo presidente governa sem consultar a coligação de partidos que o elegeu e seu ministério inclui inimigos dos udenistas, assim como pessoas escolhidas pelo critério de amizade. No Exército, Jânio promove grupos antinacionalistas e, em relação ao Congresso, tem uma postura agressiva, declarando publicamente tratar-se de um “clube de ociosos”.

Visando combater os altos índices de inflação herdados do governo anterior, Jânio implementa uma política econômica austera. No plano internacional, desagrada à UDN, pois opta por uma política de não alinhamento aos Estados Unidos, valorizando acordos comerciais com países do bloco comunista. A política econômica coerente e a inovadora política diplomática convivem com medidas sem nenhuma importância, mas com grande repercussão nos meios de comunicação, como as proibições do uso de biquínis em desfile de misses, do hipnotismo em lugares públicos, de corridas de cavalos em dias de semana, de brigas de galo... Jânio também condecora Che Guevara, em uma aproximação com Cuba, talvez tentando repetir a política internacional ambígua de Getúlio Vargas, responsável por acordos vantajosos com os Estados Unidos.

Apesar do tom autoritário, quando não carnavalesco, de seu governo, o risco de instabilidade política parecia diminuir, a não ser por um importante detalhe: segundo a legislação da época, votava-se para vice-presidente separadamente do cabeça de chapa. Ora, na eleição de Jânio, João Goulart havia sido novamente eleito ao cargo. Após pouco mais de seis meses no governo, o presidente procura explorar a delicada situação renunciando.

Conforme o presidente, no livro História do povo brasileiro, seu objetivo era forçar uma intervenção militar: “primeiro, operar-se-ia a renúncia; segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório – visto que a João Goulart [...] não permitiriam as forças militares a posse, e, destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro, ou bem se passaria a uma fórmula, em consequência da qual ele mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro do novo regime institucional, ou bem, sem ele, as forças armadas se encarregariam de montar esse novo regime [...]”. O aprendiz de ditador fracassa devido à vacilação dos chefes militares. Instala-se, então, uma grave crise política, cujo desfecho tem uma data marcada: 31 de março de 1964.

Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

  • Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010. Cap. 29, pág. 191 a 197.

06 dezembro 2023

Bispos e Papas: (4) Evaristo

Bispo Evaristo

Por: Alcides Barbosa de Amorim


Bispo Evaristo [1]


Prosseguindo o estudo dos bispos romanos [2] – listados por Eusébio de Cesareia, no seu livro História Eclesiástica [3] –, e dos papas, queremos destacar neste post a pessoa do bispo Evaristo.

Eusébio, em sua obra História Eclesiástica [4], afirma que “… no terceiro ano do reinado acima mencionado [Trajano], Clemente, bispo de Roma, confiou o encargo episcopal a Evaristo e partiu desta vida após superintender a pregação da palavra divina por nove anos”. O governo de Trajano durou de 98 a 117. “O terceiro ano de Trajano foi 100-101, mas Clemente deve ter morrido antes, Evaristo provavelmente assumiu em 99” [5], estando seu antecessor ainda vivo. Algumas fontes (p. ex., esta) afirmam que Clemente morreu em 101.

Sobre o bispo Evaristo não encontrei muitas informações em fontes protestantes. Algumas católicas, como esta, mais esta e esta outra, por exemplo, baseiam-se no Liber Pontificalis, um livro das biografias dos papas que vão “… de São Pedro, até o Papa Estêvão V do século XV…”, e afirmam que Evaristo era grego originário de Antioquia, sofreu o martírio, embora este último fato é muito contestado. Morreu morreu em 105, e segundo uma tradição muito antiga, Evaristo teria sido mártir da fé durante a perseguição imposta pelo imperador Trajano, e que depois seu corpo teria sido abandonado perto do túmulo do apóstolo Pedro. Mas esta fonte parece não ser precisa, assim como a data de sua morte.

Bem, por esta fonte, Evaristo foi papa de 96/99 até 105/106, portanto, liderou a Igreja em Roma durante parte do governo do imperador Trajano (de 98 a 117). O contexto religioso da época de Trajano era de certa trégua em relação, por exemplo às perseguições aos cristãos e judeus, o que contradiz, neste caso, a versão do martírio de Evaristo, sob este imperador. Tomás de Aquino, por exemplo, via “… Trajano como um exemplo de pagão virtuoso…” (Veja aqui). Traja no é considerado por muitos historiadores como o melhor imperador romano [6]. O próprio Eusébio de Cesareia, no capítulo XXXIII do livro 3, trata de como “Trajano impediu que se perseguisse os cristãos”. Ao receber de Plínio Segundo, uma carta relatando a grande perseguição dos cristãos sem nada fazerem de perversos, e o grande número de martírios, a “… resposta de Trajano foi promulgar um decreto do seguinte teor: que não se perseguisse a tribo dos cristãos, mas que se castigasse quem caísse. Graças a isto extinguiu-se parcialmente a perseguição…”. Mas, talvez até pela trégua às perseguições e momento de certa paz aos cristãos, obras ou feitos do bispo Evaristo não tenham alcançado muito destaque.

Em síntese, esta fonte informa que Evaristo foi papa de 97 a 105, enquanto esta diz que foi de 98 a 105, ano de sua morte.


Veja também:


Notas / Referências bibliográficas:

  • [3] Na versão publicada pela CPAD em 1995, nas páginas 409/410, a editora fez uma lista de 29 bispos de Roma citados por Eusébio, e Evaristo é o número 4 da lista...
  • [4] CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica: os primeiros quatro séculos da Igreja Cristã. Rio de Janeiro: CPAD, 1999, Livro 3, Capítulo XXXIV.




25 novembro 2023

Trabalhadores do Brasil

Trabalhadores do Brasil

Por Mary Del Priori & Renato Venancio



A permanência de Getúlio Vargas no poder não teria sido possível sem o extraordinário sucesso econômico alcançado durante seu primeiro governo. Para se ter noção do significado profundo desta afirmação, basta mencionar que, por volta de 1945, nossa industrialização finalizava seu primeiro grande ciclo. Em outras palavras, pela primeira vez, a produção fabril brasileira ultrapassa a agrícola como principal atividade da economia. Nesse período também assistimos ao surgimento da indústria de base, ou seja, aquela dedicada à produção de máquinas e ferramentas pesadas, à siderurgia e metalurgia e à indústria química.

Surpreendentemente, essas transformações ocorreram em uma conjuntura internacional adversa. É bom lembrar que a crise de 1929 e a depressão econômica que a seguiu fizeram que, durante a primeira metade da década de 1930, os preços internacionais do café diminuíssem pela metade. Mesmo assim, a economia brasileira apresentou, entre 1930 e 1945, taxas de crescimento próximas a 5% ao ano. Contudo, esse desenvolvimento não ocorre de maneira equilibrada: a atividade industrial apresenta taxas de crescimento anual de três a sete vezes mais elevadas do que a agricultura. Esta, além de sofrer diminuição pela metade em relação aos anos 1920, registra uma forte tendência à estagnação.

A industrialização acelerada teve efeitos não só econômicos, mas também políticos e sociais. Como é sabido, a fábrica tem na cidade seu espaço privilegiado e, por isso, a Era Vargas – incluindo aí seu segundo governo, entre 1950 e 1954 – é caracterizada como uma época de intensa urbanização. Em 1920, por exemplo, apenas dois em cada dez brasileiros residiam em cidades; vinte anos mais tarde essa mesma relação era de três para dez; na década de 1940, tal proporção tornara-se equilibrada: quatro em cada dez brasileiros moravam em áreas urbanas. A formação de novas cidades e o crescimento das já existentes estimulavam, por sua vez, a multiplicação de trabalhadores não vinculados às tradicionais atividades agrícolas e de industriais que não eram fazendeiros, como Roberto Simonsen, fundador do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo – embrião da Fiesp. Tipo raro nos anos 1920, mas que se torna cada vez mais frequente na década seguinte.

Getúlio Vargas, na esperança de se contrapor ao poder oligárquico, valoriza a aliança com os grupos urbanos e, paralelamente, mantém sua aproximação com o Exército. Para cada segmento específico é traçada uma estratégia política. No caso dos trabalhadores urbanos, em 1930 cria-se o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Dois anos mais tarde, Vargas adota mudanças na legislação favoráveis ao operariado: estabelece, por exemplo, a jornada de oito horas na indústria e no comércio. Tais concessões têm preço elevado, já que, no mesmo ano em que é atendida uma reivindicação defendida pelo movimento operário desde fins do século XIX, se estabelecem os primeiros traços do sindicalismo corporativo. Segundo a nova determinação legal, sindicatos de patrões e operários, divididos por categorias profissionais, ficam sujeitos às federações e confederações que, por sua vez, se subordinam ao Ministério do Trabalho. Ao longo de seu primeiro governo, Vargas diminui cada vez mais a possibilidade de existência de sindicatos não vinculados a esse modelo, até que, em 1939, dois anos após a decretação do Estado Novo, determina a existência de um único sindicato por categoria profissional.

Tal mudança é acompanhada pela criação do imposto sindical, através do qual é descontado anualmente um dia de trabalho da folha de pagamento dos operários, encaminhado para financiar a estrutura sindical. O ditador generalizava, dessa forma, o modelo corporativo para o conjunto das entidades representativas dos trabalhadores. De instrumentos de luta, os sindicatos dos anos 1940 passam à condição de agentes promotores da harmonia social e instituições prestadoras de serviços assistenciais.

Com certeza, os líderes sindicais formados na antiga tradição anarquista veem criticamente essas mudanças, encarando-as como uma maneira de cooptação e de manipulação dos interesses da classe trabalhadora. No entanto, entre a massa operária, a postura parece ser outra. Para muitos, familiarizados com as associações mutualistas, Getúlio Vargas atendia a certas expectativas, como no caso da generalização dos institutos de previdência, garantindo aos trabalhadores o direito à aposentadoria. Além disso, através da legislação que acompanha a implantação dos sindicatos corporativos, Vargas consegue sensibilizar inúmeros militantes oriundos das lutas socialistas. A Consolidação das Leis Trabalhistas [CLT], firmada em 1943, viabiliza isso. Nela determina-se que, a partir de então, o trabalhador dispensado deveria ser indenizado, a mulher operária teria direito a serviços de amparo à maternidade, assim como se restringe a exploração do trabalho infantil. Isso para não mencionar a criação de uma justiça do trabalho, com o intuito de intermediar os conflitos entre patrões e empregados. Getúlio Vargas, dessa maneira, surge aos olhos de muitos como um protetor, como aquele que criara, via Ministério do Trabalho, uma espécie de mutualismo sindicalista em escala nacional.

Os empresários também viram parte de suas expectativas atendidas. Conforme já mencionamos, o grupo mais poderoso deles, sediado em São Paulo, não havia apoiado a Aliança Liberal. Durante a Revolução Constitucionalista, uma vez mais, as associações empresariais paulistas demonstraram seu descontentamento diante da tendência centralizadora do governo provisório. Situação bem diferente foi registrada em 1937, quando então as principais lideranças industriais paulistas não se opuseram à implantação do Estado Novo. Por trás dessa atitude, com certeza, havia o medo em relação ao que se chamava na época de ameaça comunista, e também o reconhecimento dos sucessos econômicos alcançados.

Getúlio Vargas em muito se diferencia dos presidentes da República Velha. Exemplos de planejamentos bem-sucedidos não faltam. Em certas ocasiões, o ditador aproveita-se da tensa situação internacional do período anterior à Segunda Guerra Mundial para conseguir vantagens. Oscilando entre o apoio aos países liberais e aos do eixo nazifascista, o governo brasileiro consegue recursos norte-americanos para instalação, em 1941, da Companhia Siderúrgica Nacional, cujos efeitos na área industrial foram extremamente benéficos. Getúlio também foi hábil em descobrir e integrar a seu projeto político-econômico intelectuais descontentes e reformistas. Tais grupos originavam-se de instituições tecnológicas, como a Escola de Minas de Ouro Preto, ou eram fruto de ramificações do Modernismo dos anos 1920. Conforme é sabido, esse movimento deu origem a tendências que valorizavam a análise científica, proporcionada pelas nascentes ciências sociais, como uma forma de melhor conhecer e explicar o funcionamento de nossa sociedade. Graças a isso, assistimos – em uma sociedade que praticamente dispunha apenas de cursos superiores de medicina, direito e engenharia – ao surgimento de uma geração de sociólogos, economistas e administradores. Esses intelectuais, uma vez cooptados pelo aparelho burocrático getulista, são responsáveis pelos primeiros projetos de planejamento estatal na área econômica. Graças a esse planejamento, empresas estatais passam a ocupar espaços estratégicos na produção de energia e matérias-primas.

Em relação à área econômica mais desenvolvida do país, a política getulista foi generosa. No início da década de 1930, é retomada a política de valorização do café, abandonada repentinamente por Washington Luís. Graças à manutenção do elevado nível de renda local, coube a São Paulo liderar o processo de formação do mercado nacional voltado para a substituição das importações. Paralelamente a isso, o governo garante, por meio da política fiscal e cambial, a transferência de renda para o setor industrial. A importância do empresário paulista cresce a olhos vistos: nos anos 1940 eles passam a responder por metade da produção fabril brasileira, o que significava um aumento de 50% em relação aos índices registrados em 1920. Não foi somente na economia que a intervenção estatal getulista se notabiliza. Em certas áreas registram-se, igualmente, mudanças profundas. Este foi o caso da educação. Durante a gestão de Gustavo Capanema – ministro da Educação e da Saúde entre 1934 e 1945, que congrega intelectuais do porte de Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Heitor Villa-Lobos –, são planejadas e implementadas importantes alterações, como a ampliação de vagas e a unificação dos conteúdos das disciplinas no ensino secundário e no universitário. Isso para não mencionar a criação do ensino profissional, consubstanciado em instituições como Senai, Senac e Sesc.

A aproximação de Getúlio com o que havia de mais moderno na época – inclusive no sentido autoritário dessa modernidade – se expressa através da criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Voltado para a propaganda política através dos novos meios de comunicação, como o rádio e o cinema, o DIP foi responsável pela organização de rituais totalitários de culto à personalidade do ditador. Essa instituição também submete a cultura popular à censura, conforme ficou registrado nas alterações impostas às letras de sambas. Exemplo disto é a conhecida modificação – exigida pelos agentes do DIP – do texto da música Bonde de São Januário, composta em 1940 por Ataulfo Alves e Wilson Batista. Na letra original do samba, o refrão era “O Bonde de São Januário/ leva mais um otário/ que vai indo trabalhar”; após a interferência do DIP, o texto passou a ser “O Bonde de São Januário/ leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar”.

Como seria de esperar, Getúlio esteve longe de agradar a todos os segmentos da elite dominante. Os setores agrários acusam a indústria de desviar braços do campo, ao mesmo tempo em que percebem estar financiando as importações de insumos fabris e investimentos do Estado na infraestrutura industrial. Mesmo entre os empresários, o fundador do Estado Novo esteve longe de ter unanimidade. A legislação trabalhista onera a atividade industrial, reduzindo o ritmo de acumulação nesse setor. Além disso, a política econômica agressiva tem efeitos regionais nefastos, implicando o declínio de estados que não conseguem acompanhar o ritmo competitivo do crescimento. Assim, é bastante revelador o fato de que, na década de 1940, enquanto São Paulo controla quase metade da produção industrial, a participação do Rio de Janeiro diminui pela metade. O mesmo ocorre nas regiões nordestinas, onde se registra, no referido período, uma diminuição de 40% na atividade industrial. No Rio Grande do Sul, a queda nesse setor é de 20%.

Não é de estranhar, portanto, que ao longo do Estado Novo se multiplicassem as vozes descontentes com o rumo tomado pelo governo. Contudo, a legislação que acompanhou o golpe facultava à oposição uma alternativa de poder, pois a ditadura instalada em 1937, curiosamente, tinha data marcada para acabar. Segundo a Constituição outorgada, previa-se para 1943 a realização de um plebiscito em que o regime seria posto à prova nas urnas. Em 1942, a decretação do estado de guerra – ou seja, de preparação do Brasil para lutar na Europa contra o nazifascismo – permite a transferência dessa consulta para o período imediatamente posterior ao término dos conflitos.

Em 1941, começam as primeiras articulações para garantir a transição política, e o próprio ditador esboça um partido nacional. Dois anos mais tarde, o descontentamento das elites marginalizadas pelo Estado Novo veio a público pelo Manifesto dos Mineiros. Nesse texto, amplamente divulgado de norte a sul do país, políticos de renome nacional, como Afonso Arinos, Bilac Pinto, Milton Campos e Magalhães Pinto, criticavam o caráter autoritário do governo. Ao mesmo tempo, manifestando uma nostalgia pelo regionalismo, que tanto caracterizou o sistema de poder da República Velha, acusam Getúlio de “espoliação do poder político de Minas Gerais”. Em 1944, a estrutura partidária que comandaria a transição já estava constituída. Como exemplo dessa confluência de poder, é registrada a aproximação de José Américo de Almeida e Armando de Salles Oliveira, políticos que desde 1937 haviam conseguido arregimentar as oligarquias descontentes, embora concorrentes entre si. Eles e as elites dissidentes, que desde a Revolução de 30 haviam sido marginalizadas, agrupam-se na União Democrática Nacional (UDN). Paralelamente a essa oposição, Vargas promove a reunião dos interventores no Partido Social Democrático (PSD). Enquanto isso, as estruturas sindical e previdenciária por ele criadas servem de base para a formação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Tais organizações, que estavam se esboçando em 1944, são legalizadas no ano seguinte. A UDN lança candidato próprio às eleições previstas para 1946, o mesmo ocorrendo com o PSD, mas a posição do PTB é outra. Não lança candidato, mas defende a convocação de uma Assembleia Constituinte ainda no governo de Getúlio, que seria por isso prolongado um pouco mais. Tal movimento ganhou as ruas – sendo popularmente denominado na época como “queremismo”, ou seja, “queremos Getúlio” – e conta com o apoio do PCB. Esse apoio é, aparentemente, surpreendente. Como vimos, Vargas foi responsável por uma feroz repressão aos comunistas. No entanto, é necessário lembrar que foi no seu governo que o Brasil entra em guerra contra o nazifascismo, em uma aliança da qual participou a União Soviética e, no final de sua gestão, também houve a anistia e a legalização do PCB. Mais ainda: para os comunistas, os inimigos políticos de Vargas reunidos na UDN representavam o que havia de mais atrasado na sociedade brasileira.

Além de mobilizar as massas urbanas, o ditador começa a fazer modificações no comando da polícia do Distrito Federal. Crescem suspeitas de que as eleições seriam manipuladas em prol da continuidade do governo. Há muito, porém, as elites dissidentes e opositoras se precaviam contra essa possibilidade. Não por acaso, tanto a UDN quanto o PSD escolheram candidatos à presidência nas fileiras militares: no primeiro caso trata-se do brigadeiro Eduardo Gomes e, no segundo, do general Eurico Gaspar Dutra.

Em 1945, as forças armadas, embora tivessem enviado “apenas” 23.344 soldados para a Segunda Guerra Mundial, aproveitam a justificativa do conflito internacional para formar um contingente interno de 171.300 homens. Para se ter uma clara noção do que representa esse número, basta mencionar que ele é quatro vezes maior do que o de 1930 e o dobro do que foi necessário para o golpe de 1937. Getúlio experimenta o amargo sabor de uma intervenção militar feita por uma instituição que ele havia ajudado a crescer. Em 29 de outubro de 1945, sob pressão do Exército, o criador do Estado Novo deixa o poder. Sem candidato próprio, o PTB apoia Dutra, que, não por acaso, consegue vencer as eleições presidenciais, enquanto Getúlio, eleito para o Senado, quase não participa da Constituinte. O ditador ruma para um exílio interno em São Borja, no Rio Grande do Sul, de onde retornará – segundo ele próprio definiu – “nos braços do povo” para um novo mandato presidencial. Panfletos da época revelam o estranho equilíbrio de forças que se tenta construir. Num deles divulgava-se a seguinte “oração”: “Protetor nosso que estais em São Borja, honrado seja o vosso nome; venha a nós a nossa proteção, seja feita a vossa vontade, assim no Sul como no Norte; os direitos nossos de cada dia nos dai hoje; e perdoai-nos as nossas imprudências, assim como nós perdoamos aos nossos perseguidores; e não nos deixeis cair no comunismo, mas livrai-nos do capitalismo. Amém”. Como veremos a seguir [In: Tentações militares e outras tentações], a ambiguidade do projeto político de Getúlio contribui para que se compreenda seu retorno ao poder, assim como seu trágico desfecho.


Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

  • DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010. Cap. 28, pág. 185 a 190.