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05 dezembro 2022

Motins e Rebeliões na Colônia

Por DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1]


Guerra dos Emboabas [2]

Muito já se disse que a história do Brasil foi escrita sem sangue e sem lágrimas. Que, entre nós, o desejo de paz sempre foi maior do que as tensões. Errado. O Brasil Colônia foi atravessado por episódios de descontentamento e revolta. Tais manifestações tinham dois focos de origem: um “externo” e outro “interno”. O primeiro nascia da exploração cada vez maior de Portugal sobre o Brasil. Neste caso, autoridades coloniais agiam com violência através de rigorosas práticas mercantilistas que se traduziam em arrocho fiscal, associadas a corrupção, nepotismo e prepotência. Razões não faltavam. O empobrecimento crescente de Portugal desde a perda de suas receitas na Ásia, as constantes invasões e guerras contra os holandeses ou espanhóis, assim como a presença de uma corte lisboeta cada vez mais parasitária eram boas desculpas para que a Metrópole extorquisse ao máximo a Colônia ou, às vezes, tentasse isso sem sucesso. Ao longo do século XVIII, tais razões se desdobraram. O enriquecimento proveniente dos negócios coloniais se configurou como uma etapa constitutiva do capitalismo moderno, que teria no Novo Mundo uma fonte quase inesgotável de recursos. Já o foco “interno”, em parte, incide sobre outras razões para tais rebeliões. Ele vem sendo afinado por historiadores debruçados sobre esse incrível palco de tensões que foram as Minas Gerais. Aí, as razões para motins e revoltas decorriam do fato de a voracidade fiscal se vincular a crises de abastecimento de alimentos. A extorsão fiscal gerou enormes tensões e a fome coletiva estimulou a mobilização popular. Não nos esqueçamos, tampouco, que nos sertões mineiros cresciam grupos de poderosos, armados até os dentes, que, apoiados em contingentes de escravos e capangas, eram capazes de fazer a lei com as próprias mãos. Questionavam, assim, a ordem e os impostos que lhes eram exigidos. Antes mesmo da expansão mineradora, o quadro de tensões já estava delineado. Quatro grandes conflitos ocorreram durante o século XVII. O primeiro deles ocorreu em São Paulo, em 1641, período em que d. João IV de Bragança restaurou o trono de Portugal. A capitania possuía um largo contingente de espanhóis, temerosos de perder terras e bens. Temia-se também interromper o ativo comércio entre o Sudeste e o rio da Prata, na figura dos chamados peruleiros. Os espanhóis Juan Rendón e Francisco Rendón de Quevedo indicaram para ser “rei” dos paulistas um outro descendente de espanhóis, Amador Bueno de Ribeira, ou simplesmente Amador Bueno. Apesar do grande prestígio que detinha na sociedade vicentina, Bueno refugiou-se no convento dos beneditinos, recusando a honraria e o temido ato separatista. Com seu apoio, as autoridades rapidamente impuseram ordem na capitania.

Vinte anos mais tarde, sob o governo de Salvador Correia de Sá e Benevides, nomeado governador pela terceira vez, foi a vez do Rio de Janeiro. O motivo foi de outra natureza. O governador, homem rico e poderoso, tinha fama de corrupto e, quando assumiu, ordenou a cobrança de novos impostos. Mal deu as costas, partindo para São Paulo, onde deveria examinar o estado da capitania, tiveram início reuniões chefiadas por Jerônimo Barbalho Bezerra em sua propriedade, na Ponta do Bravo, em São Gonçalo. Jerônimo destacara-se na luta contra os holandeses e era filho de Luís Barbalho Bezerra, governador no período de 1643 a 1644. A finalidade era depor Sá e Benevides. Essa, que ficou conhecida como Revolta da Cachaça, teve voltas e reviravoltas. Para começar, a multidão exigiu a anulação dos impostos anteriormente cobrados; impostos que deveriam aumentar as despesas com a tropa, reforçando, portanto, o controle sobre os moradores. Em seguida, o movimento canalizou insatisfações dos produtores de cachaça, proibidos de venderem o produto por concorrer com o vinho português, uma das primeiras moedas de troca no tráfico de escravos africanos.

Novos protestos ocorreram enquanto Bezerra cruzava a baía com outros rebeldes para exigir a deposição do governador interino, Tomé Correia de Alvarenga. Apavorado, este se refugiou no mosteiro de São Bento, enquanto o povo congregado o “removia”. Recusando-se a atender à intimação, Alvarenga respondeu por escrito que não podia convir com sua própria expulsão, pedindo ainda que não “houvesse desinquietação”. Insatisfeita, a população aclamou para governador Agostinho Barbalho Bezerra, irmão de Jerônimo e muito benquisto. Agostinho, contudo, titubeou. Temia represálias e, escondido no convento franciscano de Santo Antônio, alegava não ser a pessoa indicada para o cargo. A multidão ameaçava: se Agostinho não aceitasse, havia de morrer. “Não queriam outro governador senão a ele, enquanto Sua Majestade não mandasse o contrário”. Não se sabe se Agostinho buscava conciliação com Salvador Correia de Sá e Benevides, que oficialmente continuava a ser o governador do Rio de Janeiro. Sabe-se, porém, que o último, alimentado pelas informações trazidas por mensageiros índios dos padres jesuítas, esperou habilmente o bom momento de voltar ao Rio. Enquanto isso não acontecia, o governo instituído pelo povo e a nova Câmara eleita se esforçavam por manter a normalidade da vida na cidade. Em 1º de janeiro de 1661, a cidade acordou sob o rufar de tambores que anunciavam a leitura dos bandos – avisos – do governador. Sá e Benevides perdoou os moradores da cidade, condenando, contudo, os cabeças do movimento: Jerônimo Barbalho, Jorge Ferreira de Bulhões, Pedro Pinheiro, as autoridades nomeadas pelos insurretos, entre outros, “todos considerados inconfidentes do real serviço”. Também revogou as medidas tributárias e perdoou Agostinho Barbalho. Pacientemente, esperou mais quatro meses para que a resistência popular se dobrasse. Em abril, com a ajuda de forças militares vindas do Reino, invadiu de surpresa a cidade e, depois de pequenos combates pelas ruas, reconquistou o poder. Arrancou do convento franciscano os rebeldes e, graças a uma junta militar irregular, condenou Jerônimo, que foi enforcado, decapitado e depois esquartejado, enquanto os demais prisioneiros eram enviados a Salvador e, de lá, para a prisão do Limoeiro, em Lisboa. Aí, os revoltosos foram ouvidos pelas autoridades portuguesas: o comércio da cachaça foi liberado e não demorou muito para Sá e Benevides ser substituído por um novo governador.

A crise carioca deve ter inspirado a revolta contra o governador de Pernambuco, Jerônimo de Mendonça Furtado, apelidado de Xumbergas, pelos bigodes à la Schomberg, oficial alemão que comandara as tropas lusas na Restauração. As causas, mais uma vez, tinham origem nas inúmeras arbitrariedades praticadas entre 1664 e 1666, anos de sua administração. Ele administrava como um tirano, interferindo no Judiciário, sequestrando bens, tais como engenhos e lavouras de cana, prendendo desafetos, tudo em troca de dinheiro. Com o apoio dos dois filhos e alguns amigos, recunhou moedas, o que era um privilégio da Coroa, empossou ilegalmente um amigo no cargo de ouvidor e, para cúmulo, mancomunou-se com o marquês de Mondvergue, comandante de uma frota, para entregar a terra aos franceses. Uma terrível epidemia de bexigas – nome de época dado à varíola –, identificada pela crença popular aos fluidos exalados por Xumbergas, selou sua queda. Envolvendo importantes senhores de engenho, a conspiração tinha também por alvo escapar ao pagamento de impostos atrasados. Homens como João Fernandes Vieira e André de Barros Rego alegavam que já tinham arcado com a maior parte das despesas para expulsar os holandeses. Durante uma cerimônia religiosa, Xumbergas foi preso. A Câmara de Olinda comunicou ao governador-geral sua deposição, que foi festejada com versos populares: “O Mendonça era Furtado? Pois do Paço o furtaram; / governador governado / Para o Reino o despacharam”. Não houve retaliação da Metrópole contra os revoltosos, mas as tensões internas decorrentes dos diferentes interesses entre os grupos locais começavam a frutificar.

No então Estado do Maranhão e Grão-Pará, assim reunidos com o objetivo de melhorar as defesas da costa e dos contatos com a metrópole, temos um excelente exemplo dos efeitos das tensões internas ao mundo colonial. Aí, o imenso território amazônico e as rusgas entre jesuítas e autoridades sobre a escravização ou não dos índios tornaram-se o cenário ideal para detonar conflitos. Desde 1652, as rixas em matéria de sucessão eram permanentes. Vereadores abusavam chamando os governadores ao Senado da Câmara por “questões de somenos”. Além disso, eles tinham que lidar com a resistência das câmaras às leis de proteção aos índios, com a agravante de que muitos deles usavam “índios livres” em seus serviços. O clero não jesuíta, corrupto, quando não traficava drogas da floresta ou outras riquezas, colaborava para a sensação de desordem. Duas questões vão acelerar o processo: a lei de 10 de abril de 1680, consolidada na Junta das Missões do ano seguinte, proibindo o cativeiro dos índios e entregando a jurisdição espiritual e temporal de suas aldeias aos jesuítas. A segunda foi o monopólio trazido pela Companhia Geral de Comércio do Estado do Maranhão, em 1682. Através dela, introduzia-se grande quantidade de escravos na região e proibia-se aos particulares realizar comércio de toda uma série de mercadorias: tecidos, barras de ferro ou de cobre e até simples facas e velas de cera. Do seu lado, os produtores eram obrigados a vender todos os gêneros – baunilha, cacau, cravo de casca, cana-de-açúcar, algodão e tabaco – à Companhia. Esta ganhava ao ter o monopólio do fornecimento de escravos africanos e de artigos necessários ao consumo no Estado do Grão-Pará e Maranhão, ali vendidos por preços altíssimos. A pobreza da região suscitou registro até na pena do padre Antônio Vieira, que descreveu, sem dó, a fome que se abatia sobre a sociedade. Os privilégios concedidos à Companhia só agravavam o quadro. Quando de sua chegada a São Luís, o novo governador, Francisco de Sá e Menezes, junto com o representante da Companhia, Pascoal Pereira Jansen, foi procurado por uma comissão de representantes do povo que protestava contra o estado de coisas. Jansen, com o apoio do governador, subornou alguns vereadores, silenciando outros com ameaças de prisão e deportação. Um senhor de engenho e vereador, Manoel Beckman, também conhecido por Bequimão, particularmente atingido por não poder usar mão de obra indígena em suas terras, resolveu reunir outros prejudicados pela situação. Reuniões que contavam com o apoio dos franciscanos, dos carmelitas, do clero secular e até do bispo, que condenavam o monopólio. No dia 25 de fevereiro de 1684 teve início a revolta. Aproveitando-se da ausência do governador, instalado em Belém, os revoltosos depuseram-no e ao capitão-mor Baltazar Fernandes, expulsaram os jesuítas e decidiram pelo fim das atividades da Companhia no Maranhão. Formou-se uma Junta dos Três Estados com representantes do clero, o frade carmelita Inácio da Assunção, dos grandes proprietários – Beckman e Eugênio Maranhão –, assim como por Belquior Gonçalves e Francisco Deiró, representantes das camadas populares. Thomas Beckman, irmão de Manoel, zarpou para Lisboa para explicar o ocorrido ao rei. Tão logo chegou, foi aprisionado e embarcado de volta junto com o novo governador, Gomes Freire de Andrade. Sem encontrar resistência, Andrade abafou a rebelião. Como de hábito, prendeu e enforcou os cabeças, degredou e prendou os que sobraram. O resultado? Os jesuítas voltaram ao Maranhão, mas a Companhia foi suprimida.

Alguns anos depois, paulistas e emboabas – ou seja, portugueses e outros forasteiros – se defrontaram num sangrento combate por causa do ouro das Minas. Tudo começou com um pedido feito pela Câmara da vila de São Paulo à Coroa para que esta restituísse aos paulistas as regiões mineradoras. O pedido não foi atendido e os requerentes viram suas lavras invadidas. Junto com seus senhores, os escravos também tomavam partido. De um lado, índios tapuias e carijós, de outro, negros escravos. Menos endividados e mais afinados com a Metrópole, os emboabas, comandados por Manoel Nunes Viana, proclamado governador, tomaram a dianteira da ação. O Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil traz sobre esse temido personagem várias histórias: teria assassinado uma filha por sabê-la de relações com um rapaz pobre e de baixa condição; mandava afogar escravos e desafetos numa lagoa perto de sua fazenda em Januária, para serem comidos por piranhas; recolhia doentes ricos da região e apressava-lhes as mortes para ficar com suas fortunas. Nos arrais de Sabará e Cachoeira do Campo os paulistas foram derrotados, recuando para a região do Rio das Mortes. Em janeiro de 1709, as tropas do sargento-mor Bento do Amaral Coutinho cercaram dezenas de paulistas perto da futura São João del-Rei. Depois de rendidos e de depor suas armas, foram esmagados no Capão da Traição, episódio sangrento que marcou o fim dos conflitos. A consequência imediata foi a criação, em novembro de 1709, da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, com normas para a distribuição de lavras e a reintegração dos paulistas expulsos. Estabeleceu-se, também, a cobrança do quinto real sobre o ouro recolhido nas bateias, o envio de companhias de infantaria para garantir a ordem colonial e a proibição do porte de armas pelos escravos. Nesse mesmo ano, São Paulo era elevada à capital dessa nova capitania, e, em 1711, os arraiais mineiros – Ribeirão do Carmo, atual Mariana, Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto e Nossa Senhora da Conceição de Sabará – eram elevados à dignidade de vila. Inseguros nessa terra que não mais lhes pertencia, as bandeiras paulistas seguiram buscando ouro até encontrá-lo, a partir de 1719, em Goiás e Mato Grosso.

Enquanto no Sudeste as brigas giravam em torno do ouro, no Nordeste, tensões entre comerciantes e plantadores preparavam a Guerra dos Mascates – de 1710 a 1711. À sombra dos holandeses, Recife havia crescido e prosperado. Um dos grupos que mais se beneficiaram do desenvolvimento comercial que então ocorrera foi o dos mascates: uma alusão aos portugueses que viviam de mascatear, vendendo seus artigos em domicílio. A denominação pejorativa tinha sido dada pelos senhores de engenho, cuja riqueza fora em parte arruinada pela guerra contra os batavos. Em contrapartida, mascates (na verdade, muitos deles eram grandes comerciantes) os chamavam de pés-rapados. Nessa época, a concorrência antilhana só fizera piorar a situação dos antigos senhores, que passaram a endividar-se com os comerciantes. Empréstimos eram contraídos para o financiamento da produção de açúcar até a nova colheita e a venda da produção anterior. Os mascates eram credores impiedosos. Arrochavam seus devedores, que eram obrigados a pagar-lhes quando quisessem ou a entregar-lhes a mercadoria por um preço vil. Além disso, a mineração fizera subir o preço dos escravos que, em parte, desde o final do Seiscentos, eram drenados para a região das minas. Empobrecido, o grupo dos senhores de engenho só tinha um trunfo: o poder político e administrativo continuava na Câmara de Olinda, controlada por eles. Por diversas vezes, os mascates tentaram romper a legislação que subordinava Recife – onde se concentravam – a Olinda. Uma lei datada de 1705 confirmava, contudo, a proibição aos moradores de Recife de usufruir o direito invocado, alegando-se que eles não pertenciam à nobreza: não possuíam solares, nem brasões de armas, nem escravos, cavalos ou privilégios reais. Mas possuíam o poder econômico e, em nome dele, tentaram mudar as regras do jogo. Sob o governo de Francisco de Castro Morais – de 1703 a 1707 – e depois de Sebastião de Castro e Caldas, que assumiu a partir de 1707, os mascates pressionaram para obter mais poder, apoiados por grandes comerciantes metropolitanos e membros do Conselho Ultramarino. De fato, Castro e Caldas começou a favorecê-los em contratos para cobrar impostos ou no preenchimento de cargos de administração. A tensão subia. Em fevereiro de 1710, chegou a Olinda uma carta elevando Recife à categoria de vila com o nome de Santo Antônio do Recife. Cabia ao governador estabelecer seus novos limites. Ele não perdeu tempo. Mandou levantar um pelourinho – privilégio de vilas e cidades – na praça central e instalou a Câmara com dois pernambucanos e dois portugueses. A reação dos senhores de engenho não tardou: o governador sofreu um primeiro atentado do qual saiu ferido, enquanto a elite açucareira reunia lavradores livres e escravos em milícias. Um segundo atentado o fez fugir em direção a Salvador, levando consigo alguns leais mascates. O conhecido senhor de engenho Bernardo Vieira de Melo, acompanhado de alguns seguidores, sugeriu que se entregasse o poder aos “polidos franceses” em detrimento dos “malcriados e ingratíssimos mascates”. A maioria de seus pares preferiu entregar o governo ao bispo, d. Manuel Alves da Costa, hostil ao governador deposto. Um ano depois se deu a revanche dos mascates. Por sua interferência e de seus aliados metropolitanos foi indicado Félix José Machado de Mendonça Eça Castro e Vasconcellos como governador. Não satisfeitos, corromperam autoridades civis e militares em seu favor, notadamente as forças negras e indígenas, os Henriques e os Camarões, além de preparar-se, com estoques de alimentos e armas, para sitiar Olinda. Combates recrudesceram até a chegada de Vasconcellos em outubro de 1711. Dissimulado, o governador parecia manter a mesma distância dos dois grupos, mas não custou a revelar sua simpatia pelos mascates. Alegando ter descoberto uma conspiração contra sua vida, prendeu e perseguiu pés-rapados. Um bando chefiado por Manuel Gonçalves, de apelido Tundacumbe, percorreu o sertão invadindo e queimando engenhos, estuprando mulheres e assassinando moradores. Em Olinda, 150 adversários foram enviados para a fortaleza das Cinco Pontas. Bernardo Vieira de Melo e seu filho, André, foram para a prisão em Lisboa, onde tiveram morte misteriosa. Embora elevada a vila, Recife guardou o gosto amargo do sentimento antiportuguês.

No mesmo ano de 1710 levantou-se em São Paulo um fazendeiro irado contra o aumento abusivo do preço do sal, produto que estava nas mãos da temida aliança entre comerciantes reinóis e negociantes coloniais. A história se repetia: alvo de monopólio, o sal era também centro de manipulações que aumentavam seu preço enquanto se diminuía a quantidade de produto embarcado para ser vendido em Santos ou São Paulo. Ou, então, ele ficava lá armazenado esperando a alta dos preços. A queixa era geral. Câmaras denunciavam que os pobres e os escravos comiam, muitas vezes, sem sal, em função do seu alto preço! Proprietário de imensa escravaria e terras em Jacareí, Bartolomeu Fernandes de Faria resolveu reagir diante da omissão das autoridades. Tomou a cidade de Santos, arrombou os armazéns e vendeu o sal a preço compatível. Voltou serra acima, carregado do produto e destruindo pontes e caminhos para livrar-se do assédio das autoridades. Foi preciso uma carta de d. João V pedindo a prisão do fazendeiro, que, entrincheirado em sua propriedade e favorecido pela simpatia popular, passou doze anos driblando a justiça metropolitana. Aos 80 anos, foi levado a ferros para Salvador, de onde seria enviado a Portugal. Na capital baiana, foi vitimado por doença contagiosa e seu enterro foi custeado pela sociedade local, solidária a sua causa. Como se vê, o aumento do sal causara tensões também na capital da Colônia. Em 1711, o envolvimento da metrópole na Guerra de Sucessão da Espanha exigira gastos que foram traduzidos na América portuguesa em aumentos de impostos. A taxa sobre o sal subira de 480 para 720 réis. E não foi só; também subira o imposto cobrado sobre os escravos trazidos da Costa da Mina e de Angola, de três para seis cruzados por cabeça, além de 10% de impostos sobre qualquer mercadoria importada. Pasquins ameaçadores foram afixados nos muros e o descontentamento popular foi tão grande que suspeitos de conivência com tal aumento tiveram suas casas invadidas. Na praça de Salvador, o povo e oficiais de milícias gritavam que não queriam tributos, conta-nos o governador geral Pedro de Vasconcellos. A cobrança foi suspensa, mas voltou a ser imposta sob o governo do vice-rei d. Pedro Antônio de Noronha, marquês de Angeja.

Ainda sob os tacões de Vasconcellos, um novo motim estourou. Em 1711, o Rio de Janeiro foi invadido por um corsário francês, René Duguay-Trouin, em busca de ouro e de vingança de um compatriota, Jean Duclerc – pirata, também a serviço do rei da França –, assassinado nas masmorras da cidade, que tentara invadir no ano anterior. Com temor de um ataque a Salvador, um levante da população local exigiu do governador Vasconcellos a organização de uma força militar capaz de arrancar o Rio de Janeiro das mãos dos franceses. O governador alegava que, não tendo recursos, nada poderia fazer. Os patriotas, como ficaram conhecidos, ofereceram os próprios bens para custear a expedição, mas não foi preciso. Depois de receber uma fortuna em ouro e açúcar, Duguay-Trouin zarpou para a Europa antes que o exército de 300 homens partisse de Salvador. Mas, na Bahia, o governador-geral reagiu com violência. Depois de rápida devassa, condenou ao degredo em Angola, a açoites e penas pecuniárias os três cabeças da rebelião: Domingos da Costa Guimarães, Luís Chafet e Domingos Gomes. Em 1732, o Rio de Janeiro assistiu à queda de mais um governador. Luiz Vahia Monteiro aportou à capitania em janeiro de 1725. Pela truculência de suas atitudes ante os poderosos logo recebeu a alcunha de “O Onça”: “Lá vem o Onça”, “cuidado com o Onça”. Tinha duas preocupações maiores: a defesa da cidade e o combate ao contrabando do ouro, e, por conta delas, colecionou desafetos. Sua ênfase em multiplicar fortificações o fez bater de frente com os beneditinos, que tinham uma horta na ilha das Cobras, ponto militar estratégico na defesa da baía de Guanabara. Considerando essa ocupação ilegal e desejando ampliar aí uma fortaleza, expulsou os padres de São Bento, que favoreciam também o contrabando de ouro. Bateu-se com igual ferocidade contra famílias poderosas como os Pizarro e Correia de Sá, que recebiam de maneira ilegal “terras foreiras”, ou seja, grandes terrenos urbanos. Tais conchavos envolviam membros da Câmara, também insatisfeitos com a proibição de moradias em terras localizadas além do Muro da Cidade, além dos morros da Conceição, Santo Antônio e Castelo. Perseguiu igualmente os envolvidos com fundições de ouro ilegais, assim como todos os que ajudavam os descaminhos do metal amarelo. Seu zelo foi mal recompensado. Seus inimigos escreveram ao Conselho Ultramarino e, ajudados pelos membros da Câmara e pelas ordens religiosas que o detestavam, ele foi deposto em 1732. O Onça morreu de desgosto.

Após a Guerra dos Emboabas (1708-9), Minas Gerais tornou-se palco por excelência de tremenda violência coletiva. Ali, revoltas se sucederam, preparando um século de tensões. Longe dos focos do poder público, distantes dos mecanismos de controle burocrático, grupos privados colocavam em xeque as regras determinadas para mediar as relações entre a Colônia e a Metrópole. Somava-se a esse clima de instabilidade a indisciplina dos funcionários reais e as ondas de fome que varriam a região desde 1698. Mas o que saltou aos olhos e deu especificidade a Minas Gerais foram atritos entre os vários grupos da burocracia: governadores, agentes do fisco ou da justiça, funcionários e clero. Agentes da justiça gozavam de grande independência, ouvidores possuíam autonomia em relação aos governadores, punindo de maneira injusta. Os focos de poder que se viam fora do aparelho de Estado começaram a surgir dentro dele, impedindo, por conseguinte, que a autoridade e o controle portugueses se exercessem com plenitude. Um sensível equilíbrio se fazia em torno de certo “acordo de cavalheiros”: população e autoridades buscavam consenso sobre o limite da cobrança de impostos, a distribuição de terras e a garantia de abastecimento dos núcleos urbanos. A Metrópole respeitava a autonomia de setores da população inseridos em áreas de fronteira, “longe do rei”, e respeitava também os interesses dos poderosos e dos magistrados locais. Quando se rompia o acordo por aumento de impostos, falta de alimentos ou abuso de poder das autoridades, nascia um motim. Foi este, por exemplo, o caso ocorrido na Vila do Carmo em 1713. O ouvidor-geral, dr. Manoel da Costa Amorim, resolveu redistribuir algumas lavras, desalojando os mineiros que nelas trabalhavam, e teve como resposta uma revolta generalizada. O mesmo se deu em Itaverava, quando o escrivão das datas, responsável pela repartição de “algumas lavras velhas”, resolveu distribuí-las à revelia do desejo dos moradores. Em 1715, o povo das Minas se levantou contra o pagamento dos quintos por bateias, exigindo do governador, d. Brás Baltasar da Silveira, que as declarasse isentas desta forma de cobrança. As autoridades ficavam em apuros a cada vez que tentavam quebrar as regras impostas pelo uso e pelo costume.

A taxação ou carência de alimentos também ensejava distúrbios. Em setembro de 1721, a Câmara de Vila Real e o ouvidor-geral da Comarca de Rio das Velhas resolveram pôr em contrato o corte das carnes consumidas naquela vila, até então livremente comercializadas. Ao tomar conhecimento do estanco, imediatamente os moradores revoltaram-se por considerar tais contratos “odiosos e prejudiciais aos povos porque sempre [redundaram] em interesses particulares”. Naquele ano, um contrato de aguardente suscitou a mesma reação entre os moradores de São João del-Rei. Não foram poucas as vezes em que alimentos eram apreendidos e repartidos entre o povo enquanto funcionários eram postos a correr ou escapavam de atentados. O padrão, contudo, era o de atacar a propriedade daqueles que exploravam o povo, poupando-lhes a vida. Nesses motins evitava-se também questionar o domínio português. Era comum homens encapuzados, ao som de tambores, destruírem propriedades e documentos oficiais que representavam sujeição, aos gritos: “Viva el-Rei! Morte aos traidores”.

Em 1720 ocorreu uma sublevação que começou a unir as duas faces da mesma moeda. A sedição de Vila Rica nasceu quando Pedro Miguel de Almeida Portugal, conde de Assumar e governador da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, trouxe instruções para aplicar novas medidas: reforçar o poder do governador, extinguindo postos de oficiais de ordenanças e criando, em seu lugar, um Regimento de Dragões de Cavalaria, assim como estabelecer a obrigatoriedade de levar o ouro extraído, a fim de ser moldado em barras, marcado com selo real e “quintado”, às Casas de Fundição. Rumores encheram as serras. Ninguém queria viajar longas distâncias, passando por caminhos arriscados, até uma dessas referidas casas e aí ficar à mercê de funcionários inescrupulosos. Instigados pelos frades descontentes e pelos poderosos, os mineiros começaram a pegar em armas e a fazer demonstrações de desagrado a tais medidas. Os dragões intervieram e os primeiros tumultos pareciam ter arrefecido. Contudo, no dia de São Pedro, 28 de junho de 1720, em meio ao foguetório e à festa que servia para encobrir a intenção dos rebeldes, explodiu a sedição. As intenções eram claras: matar o ouvidor, expulsar o governador, anular os registros nos quais se cobravam impostos aos mineradores, suprimir o monopólio do sal, da aguardente e do fumo pela Coroa, entre outros. À frente do movimento, um rico português endividado em trinta arrobas de ouro com o governo: Pascoal da Silva Guimarães, senhor de mais de 2 mil escravos e de duas grandes fazendas. Tinha também um filho alcaguete, que o denunciou, mas em vão. As autoridades – governador e ouvidor – nada fizeram para prender os implicados no movimento. Cauteloso, o conde de Assumar preferiu reunir muitos homens com a finalidade de esmagar, de um só golpe, os sediciosos. Invadiu Vila Rica no dia 16 de julho, casas foram queimadas, ruas inteiras destruídas e prisões feitas. A mais espetacular foi a de Felipe dos Santos Freire, um português representante das camadas populares e acusado de ser o maior instigador da revolta. Teve punição exemplar. Condenado à morte, foi enforcado e seu corpo feito em pedaços. Outros envolvidos foram presos e enviados ao porto do Rio de Janeiro a fim de embarcar para Portugal. Alguns morreram na prisão – como frei Vicente Botelho –, outros foram anistiados, como ocorreu com o ouvidor Manoel Mosqueira Rosa e frei Francisco de Monte Alverne. A revolta de Vila Rica não passou em branco. Em consequência, criou-se a Capitania das Minas do Ouro, independente de São Paulo, e se protelou a criação das casas de fundição até 1725.

A partir de 1736, uma “tempestade temerosa”, como disse alguém, varreu os inóspitos sertões do rio São Francisco. Foram motins seguidos que contavam – e essa foi sua peculiaridade – com a participação ativa e violenta das camadas mais baixas da população. Mulatos, mamelucos, índios, enfim, a “gente miúda” assustou muita gente grande. O palco de tais tensões não eram mais engenhos de açúcar, como no Nordeste, ou serras escarpadas nas quais formigavam os mineiros, mas áreas agropastoris. Tropeiros e criadores tocavam seus bois, como vimos, desconhecendo limites. A descoberta de ouro em Goiás levou, em 1734, o conde de Sarzedas a ordenar um só caminho para a passagem do gado via São Paulo. Sua intenção era clara: controlar a evasão de ouro e a sonegação de impostos pelo caminho do São Francisco. Em vão. Picadas laterais deixavam passar bois, escravos e outras mercadorias necessárias em regiões de mineração, como sal e farinha. Produção e intermediação fizeram aparecer núcleos comerciais como Barra do Rio das Velhas, Brejo do Salgado ou Morrinhos, pelos quais se escoavam gêneros de subsistência. Mas essa gente pagava poucos impostos. No começo da década de 1730, o início do declínio da extração do ouro levou as autoridades a aumentar a tributação. Martinho de Mendonça de Pina e de Proença seria o governador responsável pela implementação do novo sistema. Por meio dele, senhores ficavam sujeitos ao pagamento anual de três a quatro oitavas de ouro por escravo, assim como se taxavam libertos e vendas. Os que atrasassem os pagamentos teriam os bens penhorados. Em cada distrito, um intendente subordinado ao governador controlava os moradores. A taxa de capitação não podia ser mais impopular; pagava o pobre o mesmo que o rico. Mais uma partida de dragões foi enviada ao sertão para persuadir a população.

O primeiro motim eclodiu em março de 1736 em Capela das Almas, seguido do ocorrido no sítio de Montes Claros. Em julho do mesmo ano, novecentos homens, sendo que “mais de quinhentos arcos e flechas”, uns a pé, outros a cavalo, se manifestaram em São Romão, futura sede das inquietações. A demanda era só uma: o “alívio da capitação”. Faziam-na, segundo uma testemunha, com “ajuntamentos, armas e gritos”. Espiões espalhados pela região davam notícia aos revoltosos dos movimentos feitos pelas autoridades e suas tropas. Em Capela das Almas e na Barra do Rio das Velhas, os amotinados, avisados com antecedência, fugiram em suas canoas quando de sua aproximação. Apesar de entender a resistência desses a quem chamava de “pés-rapados, mulatos, filhos de homens livres que eram muito, muito pobres”, o governador pedia a seus imediatos que deles se cobrassem os impostos. Em Pitangui, 3 mil homens ameaçaram o governador, intendentes e ministros. Em fins de 1737, circulavam rumores de uma sedição em Vila do Carmo – atual cidade de Mariana – que seria um desdobramento dos motins do sertão.

Motins, rebeliões e sedições também podiam ser fruto da rebeldia militar. Na Bahia, em 1728, levantou-se a tropa do chamado Terço Velho – terço era a denominação de um corpo de tropa composto por dez companhias de 250 homens – contra o soldo baixo e pago com irregularidade. Terminou-se com o enforcamento dos cabeças: o cabo de esquadra mulato Antônio Pereira, de alcunha Barriga de Areia, e o soldado Anastácio Pereira. Quartos de seus corpos foram pendurados às portas de São Bento, Carmo e do Arsenal da Marinha, emblemas do castigo exemplar aplicado a membros de uma força que deveria garantir a paz, e não quebrá-la. Enfim, como afirmavam as autoridades portuguesas: sujeitar “gente tão intratável” era tarefa difícil. Desafio que irá se acentuar na segunda metade do século, quando o antagonismo entre reinóis – portugueses que exerciam cargos dirigentes na administração, na justiça, na Igreja e nos comandos militares – e os nascidos na Colônia atinge grandes proporções. Em fins do século XVIII, autoridades portuguesas observavam, cada vez mais apreensivas, choques entre garimpeiros e oficiais nas regiões das Minas. Várias décadas de fiscalismo abusivo por parte da Metrópole multiplicaram as desavenças entre colonos e autoridades administrativas. Uma luta surda opunha governantes e governados, populações locais e agentes da Metrópole. A situação, como veremos adiante, começava a tornar-se explosiva.

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Veja também:


Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

[1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 79 a 89, Capítulo 11.

[2] "… No século XVIII, os paulistas (Bandeirantes) descobriram ouro na região que passou a se chamar Minas, logo após a divulgação da presença do ouro no interior do Brasil, a ‘corrida’ e a disputa pelo metal precioso iniciou; várias pessoas e aventureiros vieram das capitanias nordestinas e de Portugal em busca do enriquecimento. Tal ambição trouxe conflitos e destruição. Quando chegaram às regiões auríferas, nordestinos e portugueses foram denominados pelos paulistas de ‘emboabas’, denominação pejorativa que se referia aos forasteiros que invadiram a região, em tupi a palavra emboaba significa ‘pássaros de penas emplumadas’”. Veja mais sobre ‘Guerra dos Emboabas’ em: <https://brasilescola.uol.com.br/guerras/guerra-dos-emboabas.htm>. Acesso em 05/12/2022.

23 novembro 2022

Ler, Escrever e Criar

Por DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato [1].


José de Anchieta [2]

Foi graças à instalação de conventos de jesuítas, franciscanos, carmelitas e beneditinos, que brotou o primeiro embrião da vida cultural no mundo colonial. Vieram com as ordens religiosas os primeiros livros. Livros capazes de instruir e de ensinar a rezar. Manuais de confissão, livros de novenas e orações, breviários relatando a vida dos santos e catecismos tinham por objetivo ajudar a catequizar e pacificar as almas. Apesar da forte presença da literatura sacra, já quando das primeiras visitas do Santo Ofício da Inquisição às partes do Brasil, apareciam denúncias de outras leituras. De leituras proibidas no Brasil, pois Estado e Igreja sempre tomaram livros e saberes como fonte de inquietação e pecado, censurando-os e perseguindo quem os lesse. Um exemplo? Em 1593, vários moradores da Bahia foram acusados de ler o romance A Diana, de Jorge de Montemayor, um clássico profano do Renascimento europeu. Seu tema: um picante caso de amor. Entre seus leitores achou-se uma mulher, dona Paula de Siqueira, que muito “folgava” com o tal livro! Certo Nuno Fernandes possuía as Metamorfoses, de Ovídio, enquanto seu conterrâneo, Bartolomeu Fragoso, para escapar ao controle da censura, preferia rasgar as páginas, depois de lidas, do seu exemplar do temido A Diana. Apesar de encontrarem-se no distante sertão, em São Paulo também havia alguns leitores de obras como os Mistérios da Paixão de Cristo, sermões e até mesmo Os Lusíadas, de Camões.

Todavia, conspirava contra a presença de livros o elevado número de analfabetos – categoria na qual poderíamos incluir a quase totalidade dos escravos e escravas coloniais. Enquanto uns poucos leitores disputavam obras impressas ou cópias manuscritas, outros se debruçaram maravilhados sobre as aventuras narradas pelos folhetos de cordel, como a Donzela Teodora, a de Roberto, o Diabo ou a da Princesa Magalona, que ainda hoje circulam pelo Nordeste e eram então enviados pelas naus que percorriam o Atlântico em direção à América. Entre os que sabiam ler e escrever, também não faltou quem quisesse retratar a terra e seus moradores. Administradores e sacerdotes, magistrados e mercadores produziram relatórios, descrições ou mesmo poemas com um simples intento: descrever, dominar e tirar proveito do que os cercava. José de Anchieta foi pioneiro, produzindo um dos primeiros livros escritos entre nós e publicado, num impecável latim, em Lisboa em 1563. Tratava-se de um poema épico sobre o governador Mem de Sá com cinematográficas descrições sobre suas crueldades em relação aos indígenas. O jesuíta escreveu, também, poesias e autos teatrais, sempre tendo em vista catequizar os infiéis, evitando, segundo o jesuíta Simão de Vasconcellos, “entretenimentos menos honestos”. Seu auto sacro Pregação universal, pura obra de devoção, é dos mais importantes desses textos, pioneiro, todavia, pela forma como misturava latim, português e tupi. A preocupação em usar a língua para colonizar almas expressou-se também na Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil, tentativa bem-sucedida de aproximar os jesuítas dos índios. Dentro da mesma linha de edificação religiosa, Simão de Vasconcellos escreveu posteriormente uma crônica sobre as atividades da Companhia de Jesus no Brasil.

Paralelamente à preocupação religiosa, os livros procuravam noticiar as riquezas da terra. A mais clara informação sobre a natureza e sobre os moradores da terra de Santa Cruz nasceu da pena de um sensível senhor de engenho baiano, Gabriel Soares de Souza. Referimo-nos ao já mencionado Tratado descritivo do Brasil, terminado em 1587. Resultante de um pedido da Coroa espanhola que então subjugava Portugal, o livro narra com minúcias o lugar que o autor adotara (era português) e onde passara da pobreza à riqueza graças ao açúcar. Para redigir seu texto, Gabriel Soares se valeu de “muitas lembranças por escrito” que anotara ao longo dos dezessete anos vividos no Brasil, relatando com absoluta graça e precisão a topografia da Bahia, as plantas do Novo Mundo, a zoologia americana, a agricultura que se praticava e até as formas pelas quais nossos antepassados indígenas exerciam a medicina. Seguindo essa tradição, Diálogos das grandezas do Brasil, composto pela altura de 1618, é outra obra com informações sobre a terra e sua gente. Seu autor é, mais uma vez, um plantador de cana, Ambrósio Fernandes Brandão, que o realiza em forma de diálogos platônicos, muito na moda em Portugal. Mal passado um século de colonização, o autor já percebia a indiferença dos funcionários metropolitanos diante das realidades coloniais, assim como a indolência dos emigrados que se negavam a trabalhar, tudo empurrando para os escravos. Segundo ele, a transformação dos “labregos boçais” que aqui aportavam em “cavalheiros” se fazia graças ao comércio ultramarino e à adoção de hábitos copiados da aristocracia europeia. Ambos os autores faziam propaganda da imigração, prometendo aos pobres que viessem do Reino “uma terra que a todos agasalha”, verdadeiro remédio para os desamparados. Ambos acentuavam as maravilhas desse novo Éden: os peixes aqui tinham muito mais sabor, o bolo de aipim era melhor do que o pão de trigo português, os bovinos eram mais fecundos, as éguas baianas, “tão formosas [...] como as melhores de Espanha”, as galinhas, mais gordas do que as de além-mar, as figueiras não davam bicho, como em Portugal, nem as atacavam as formigas; o manjericão, o pepino e as abóboras eram maiores do que os da Metrópole e a beleza e o cheiro do abacaxi deixavam longe todas as frutas espanholas.

Pouco a pouco, essas descrições da terra brasileira vão dando lugar a relatos históricos. O primeiro brasileiro a escrever tal prosa foi Vicente Rodrigues Palha, na verdade, frei Vicente do Salvador. Nascido em 1564, em Matuim, a seis léguas ao norte de Salvador, onde fez estudos na escola da Companhia de Jesus, seguiu mais tarde para Coimbra, onde se doutorou. Concluiu sua História do Brasil em dezembro de 1627, tendo falecido cerca de dez anos depois. Seu texto é revolucionário na medida em que introduz os verdadeiros personagens de nossa história: índios, negros, mulatos e brancos, cujas histórias são contadas em tom popular. Nele, anedotas e fatos folclóricos misturam-se a ditos do rei do Congo, às peripécias de seu escravo Bastião, quando da invasão holandesa à Bahia, e a explicações sobre a construção dos engenhos ou sobre a pesca da baleia. Frei Vicente foi o primeiro a criticar a posição dos portugueses, alheios, então, à conquista do sertão. Critica também os monarcas portugueses que pouco caso fizeram do Brasil, a ponto de não lhe usarem o nome, preferindo se intitularem reis da Guiné, “por uma caravelinha que lá vai e vem”. Os comerciantes portugueses, por sua vez, eram acusados de só virem “destruir a terra, levando dela em três ou quatro anos que cá estavam quanto podiam”. O comportamento dos lusos lembrava-lhe o dos “caranguejos”, que só faziam arranhar o litoral.

O século XVII trouxe outras novidades. A luta contra franceses e holandeses suscitou novos textos históricos. O Valeroso Lucideno (1648), de frei Manuel Calado, A Nova Lusitânia (1675), de Francisco de Brito Freire, e O Castrioto Lusitano (1679), de frei Rafael de Jesus, entre outros tantos e menores, representam, de certa forma, o sentimento localista entre os colonos, sentimento este inspirado nas tensões militares contra o estrangeiro. Contudo, antes da Batalha dos Guararapes e da rendição de Taborda, os holandeses contribuíram para recuperar a tradição lusitana seiscentista de descrições da natureza. Isso foi possível graças a Maurício de Nassau, que trouxera consigo uma pequena corte de cientistas, como o cartógrafo Cornelis Golijath, os médicos e naturalistas Willem Piso e Georg Markgraf, assim como artistas do porte de Frans Post, Albert Eckhout, Zacharias Wegener e Pieter Post – que alguns historiadores consideram o arquiteto do plano geral do Recife. A profusão, o colorido e as dimensões de seres absolutamente novos não cessarão de despertar a curiosidade desses intelectuais e seus textos vão se cobrindo de sentimentos entre o espanto maravilhado e o utilitarismo.

Apesar de alguns comentários de Anchieta, coube a Piso e Markgraf dar início às investigações sobre as ciências naturais e físicas entre nós. Cada bicho, cada planta ou mineral era cuidadosamente descrito e acrescentado ao conjunto já conhecido pelos europeus. A natureza era então vista como a manifestação do poder fecundo do Deus Criador. Nessa perspectiva de harmonia entre macro e microcosmo, ambos os autores batavos mencionados, mas sobretudo Piso, tiveram oportunidade de identificar na medicina indígena e na riqueza de nossas florestas um manancial de remédios para a cura de doenças: o açúcar servia para os olhos, assim como para os ardores do fígado e dos rins. O tabaco – surpreendentemente visto como um excelente medicamento – matava piolhos e vermes, fortificando o estômago, beneficiando o coração e curando certas afecções de pele. De caspa a queda de cabelos, da utilização de certas plantas como cosméticos até o tratamento do bicho-do-pé ou a utilização de óculos verdes para proteger os olhos da luz dos trópicos, tudo se encontra no livro de Piso.

Além desses autores, surgiram na Bahia do século XVII dois grandes nomes: Antônio Vieira e Gregório de Matos Guerra. Não eram homens isolados, pois, na mesma época, outros poetas compunham o “grupo baiano”. Entre eles, Bernardo Vieira Ravasco e Manoel Botelho de Oliveira. Embora nascido em Portugal em 1608, Vieira passou a maior parte da vida no Brasil, onde morreu em 1697. Muito mais do que simples jesuíta, Vieira foi homem político inserido em questões importantes que atravessaram seu século: confessava a rainha de Portugal, aconselhava d. João IV, desafiou os senhores de escravos pela liberdade dos índios, defendeu a aliança com os comerciantes judeus contra a fúria da Inquisição, que também o perseguiu. Tinha, contudo, uma obsessão: transformar o Brasil na sede de magnífica monarquia, intitulada Quinto Império Português. Sua pena sempre esteve a serviço de seus ideais. Seus sermões, pregados aqui para índios e mazombos, e, na Europa, para a rainha Cristina, da Suécia, eletrizavam os ouvintes, levando-os às lágrimas. Numa oratória densa, plena de alegorias, expunha suas ideias e projetos. Foi, sem dúvida, o maior orador sacro de nossa língua. Escreveu ainda um texto que ficou inacabado, História do futuro, uma galeria de profecias ilustrada com fatos históricos antigos e recentes dos quais se poderiam concluir “os futuros”. Na sua maneira de ver, havia uma nítida repetição na história da humanidade, reservando a Portugal dias melhores, como os do século anterior, sob d. Manuel, o Venturoso.

Contemporâneo de Vieira, Gregório de Matos (1636-95) teve uma vida igualmente surpreendente. Seu reconhecimento ainda vivo foi de tal ordem que dele se queixava o eminente jesuíta dizendo “maior fruto fazem as sátiras de Matos do que os sermões de Vieira”. Filho de um fidalgo luso e de uma rica brasileira, Matos foi cedo estudar em Coimbra, onde se formou em leis e onde suas “cançonetas” faziam furor. Sua veia satírica o fez cair em desgraça na Corte. Ao voltar para cá já homem maduro, compôs uma obra onde se encontram poemas líricos, religiosos e satíricos, retrato da Bahia seiscentista. Neles, pintou a violência com que brancos exploravam índios e negros, a desfaçatez com que maus governantes da Bahia maculavam seus cargos na hierarquia, a desonra dos homens da Igreja a correr atrás de mulheres, a crueza da vida sexual e amorosa de seus conterrâneos.

Enquanto alguns esculpiam as coisas da terra com palavras, outros o faziam na madeira e no barro. Dos mesmos conventos que abrigaram nossas primeiras bibliotecas, saíram nossos primeiros artistas. Tal como ocorria com a literatura, majoritariamente sacra, nossos entalhadores, escultores e pintores se dedicaram, no século XVII, a pintar as coisas do céu. No mosteiro de São Bento, de Salvador, um português que viera para cá muito jovem, frei Agostinho da Piedade, foi o responsável pela modelagem de madonas, relicários e estátuas de pequeno porte marcadas por singelo fervor místico. No mosteiro de Sant’Ana do Parnaíba, um carioca, frei Agostinho de Jesus, trabalhou, por mais de trinta anos, em dezenas de imagens em barro paulista. Outro beneditino português, frei Domingos da Conceição da Silva, esculpiu anjos gordos enrolados em sinuosas volutas. Seu Cristo morto, transformado em crucifixo na igreja de São Bento, do Rio, assim como o espaldar da cadeira abacial da mesma igreja, são exemplos da fineza de seu estilo e forma. Em barro, madeira e ferro, as imagens recebiam encarnação, douração e policromia, constituindo-se parte importante da decoração de igrejas ou de moradas. Como ocorreu no século precedente, os pintores de maior importância, como o luso Domingos Rodrigues (1632-1706), vinham da Europa. O jesuíta belga Remacle Le Gott (1598-1636) aqui permaneceu pouco tempo. Vindo de Colônia, o frei alemão Ricardo do Pilar deixou no mosteiro de São Bento, do Rio, pinturas reveladoras de sua profunda fé. No entender de especialistas, as pinturas sacras do século XVII saíam do pincel de práticos e de aprendizes. Se, por um lado, sua origem denota a falta de especialização, por outro, elas irradiam o profundo sentimento religioso da Colônia: a crença nos anjinhos, nas nossas senhoras e santos vestidos para a festa do Juízo Final e no semblante triste do Cristo a mirar os pecadores.

A vida cultural que vai timidamente se desenvolvendo também trouxe vitalidade à arquitetura em diversas regiões do Brasil. O “barroco mineiro” alternou fachadas sóbrias com interiores altamente trabalhados. A concorrência entre confrarias e irmandades religiosas pela decoração de suas igrejas traduziu-se em resultados suntuosos. No litoral, as despesas com a construção de igrejas obedeciam a orçamentos rigidamente respeitados. No interior, notadamente em Minas Gerais, como tais orçamentos eram mais irregulares, seus resultados também variavam. Igrejas onde o esplendor artístico deslumbra o espectador se acotovelavam ao lado de pequenas capelas, fruto apenas da devoção, e não de recursos financeiros. Observa-se, também no interior, uma maior improvisação quanto aos cânones europeus que eram facilmente adaptáveis no litoral. Na falta de azulejos ou outros materiais de luxo, artesãos brancos, negros e mulatos alforriados respondiam com inovações. O uso de pedra-sabão – que teve em Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, seu mais genial partidário – é um exemplo disso.

A pintura, por sua vez, deveria respeitar um abecedário do emprego das cores, fixado pela Igreja: branco e preto significavam severidade; pardo e cinza, desprezo e abjeção; azul e branco, pureza e castidade; vermelho, amor e caridade; verde, penitência e esperança; roxo, luto. Tal tendência foi registrada na “escola fluminense”, cujo precursor, mestre José de Oliveira Rosa, teve entre seus alunos João Francisco Muzzi e João de Souza. No Rio de Janeiro setecentista também operava o mulato Manuel da Cunha, que, depois de libertar-se da condição de escravo, desenvolveu uma obra da maior importância. Em Minas, ultrapassava-o outro mulato: Manuel da Costa Ataíde. Isso para não mencionarmos os também mineiros Manuel Alves dos Passos, José Soares de Araújo e Antônio Martins da Silveira, talvez os primeiros a aplicar ilusões prospectivas arquitetônicas no mundo colonial. Em São Paulo destacaram-se o pintor Jesuíno do Monte Carmelo – também arquiteto e músico – e José Patrício da Silva Manso. Ao passo que, em Pernambuco, João de Deus Sepúlveda deixou registrada a Batalha dos Guararapes no forro da igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares.

Como seria de esperar, o Século de Ouro trouxe mudanças para a literatura. A nova riqueza alimentada pelo ouro e pelos diamantes empurrou para o Sudeste boa parte da incipiente vida literária. O Rio de Janeiro, escoadouro das riquezas minerais e capital colonial a partir de 1763, e as cidades mineradoras passaram a sediar novas expressões estéticas. Mariana, sede do bispado de Minas, tornara-se foco de instrução graças ao seminário ali instalado por obra de ricos proprietários interessados em garantir estudo aos seus filhos, antes de enviá-los a Coimbra. Fruto deste interesse por livros e por escrever, as academias literárias começavam a se organizar. Em 1724, criou-se em Salvador a primeira delas, a Brasílica dos Esquecidos. O nome aludia ao fato de que nas academias portuguesas ninguém se lembrava de incluir um brasileiro. Aos seus quadros pertenceu Sebastião da Rocha Pitta, autor de uma História da América Portuguesa (1730), marcada pelo sentimento de apreço pela terra local e a tendência de encontrar soluções redentoras para seus problemas. Entusiasmado, ele registrou que em “nossa portuguesa América (e principalmente a província da Bahia que na produção de engenhosos filhos pode competir com a Itália e a Grécia...) fundara-se uma ‘doutíssima academia’, presidida por ‘eruditíssimos sujeitos’”. Tal situação foi seguida, em 1759, pela fundação da Academia Brasílica dos Renascidos, com quarenta sócios efetivos e oitenta correspondentes. No Rio, nascia em 1736 a Academia dos Felizes e mais tarde, em 1752, a dos Seletos. Ao tentar imitar os modismos metropolitanos e refletir simplesmente a inspiração oficial, tais academias não resistiram. Tiveram existência inglória e transitória.

Fora das academias há nomes a destacar: o do judeu fluminense Antônio José da Silva, queimado pela Inquisição em 1739, autor de “óperas” em que misturava personagens e histórias populares, fazendo se torcer de rir aristocratas e gente do povo, no teatro do Bairro Alto em Lisboa. Outro nome a ser lembrado é o de Nuno Marques Pereira, um presbítero secular nascido em Cairu, Bahia, em 1652, autor de um longo Compêndio narrativo do peregrino da América. Livro dedicado à Virgem, através do qual Pereira procurava realizar – como, aliás, o título indica – uma obra de edificação religiosa, retratando inúmeras situações do cotidiano colonial, onde se misturavam casais concubinados, frades mulherengos e rituais religiosos africanos. Nessa peregrinação fictícia em direção às Minas do Ouro, o padre descreve também a situação do tempo: engenhos de fogo morto, casas abandonadas, retirada dos habitantes e a temida Guerra dos Emboabas que aproveita para condenar. Houve, ainda, Feliciano Joaquim de Souza Nunes, cuja obra, os Discursos político-morais (1758), versando o descontentamento intelectual na Colônia, foi confiscada e destruída pelo governo português. O jovem do Rio de Janeiro, de fato, ali se queixava do desprezo dos reinóis, da falta de oportunidade para os intelectuais brasileiros, assim como do obscurantismo a que ficavam relegados. Uma das curiosidades de sua obra é o Discurso III, em que discute as qualidades e os defeitos que as esposas têm, sublinhando a importância da honestidade feminina. Sem ela, a mulher é “pobre, miserável [...] Mas, se pelo contrário é virtuosa, honesta, honrada e discreta, todos os bens conserva, todas as riquezas possui, toda a nobreza goza, todas as felicidades consigo traz”.

A “escola mineira” produziu intelectuais bem mais expressivos, como Cláudio Manuel da Costa, (Obras, 1768; Vila Rica, 1773), Basílio da Gama (O Uraguai, 1769), Tomás Antônio Gonzaga (Cartas chilenas, 1788-9; Marília de Dirceu, 1792), José de Santa Rita Durão (Caramuru, 1781). Quando começaram a poetar, vicejava em Portugal um estilo, o arcadismo, cujos cânones recomendavam que, tal como ocorrera com os clássicos, a arte deveria imitar a natureza, identificando-se com a vida bucólica do campo; a obra de arte tinha também que possuir fim moral e edificante. Nossos líricos somaram a tais características um “nativismo comovido”, como disse importante crítico. A gente e a natureza americanas seguiam sendo assunto, embora com sabor distinto. Em ordem cronológica, Cláudio é o primeiro deles. Nascido em 1729 em Mariana, era um dos cinco filhos de pais abonados, cuja fortuna viera da mineração. Aluno do colégio dos jesuítas, formou-se em cânones, em Coimbra, voltando ao Brasil em 1753 ou 1754 para exercer advocacia e dar início às funções de secretário do governo em Vila Rica. Suas poesias tinham imediata repercussão entre seus confrades, sobre os quais exercia grande influência intelectual. Em Vila Rica, narra o encontro das diferentes culturas na cata do ouro e a vitória da civilização sobre a confusão provocada pelos aventureiros. O poeta suicidou-se – ou, mais provavelmente, foi assassinado – em 1789, pouco após a prisão dos envolvidos na Inconfidência Mineira. A realidade da região mineira aparece igualmente em poemas de Alvarenga Peixoto e Tomás Antônio Gonzaga, amigos fraternos, condenados, nas mesmas circunstâncias, ao exílio na África.

Gonzaga, nascido no Porto em 1744, de pai português, morou na Bahia durante a adolescência. Bacharel por Coimbra, voltou para cá em 1782, com o título de ouvidor de Vila Rica. Tornou-se poeta graças a suas rimas a Marília e outras mulheres, publicadas parcialmente em Portugal em 1792, mesmo ano de sua condenação ao desterro. Hoje, são-lhe atribuídas as Cartas chilenas, nas quais faz uma amarga crítica a certo governador de Minas Gerais acusado de nepotismo e corrupção. O carioca Inácio José de Alvarenga Peixoto também estudou com os jesuítas no Rio, seguindo posteriormente para Portugal, onde concluiu sua instrução. Em Coimbra, formou-se em leis. Em Sintra, foi juiz de fora. Um casamento com certa senhora mineira levou-o a estabelecer-se em São João del-Rei, onde trocou a atividade de magistrado pela de fazendeiro e minerador. Ia muito a Vila Rica, onde convivia com Cláudio Manuel da Costa, daí sua participação na conjura. Deixou sonetos, liras e odes incompletas. Desterrado em Ambaca, faleceu em 1793. Outro membro do grupo foi Manoel Inácio da Silva Alvarenga, nascido em Vila Rica, em 1749. Diferentemente de seus colegas de letras, era mestiço – seu pai era pardo – e pobre. Na universidade, escreveu o poema herói-cômico O desertor (1774), apoiando as reformas de modernização dos estudos proposta pelo marquês de Pombal e afirmando o espírito mais liberal desse tempo. Foi também ferrenho animador de certa sociedade literária e científica, fundada com a ajuda do marquês de Lavradio no Rio de Janeiro, cenário de discussões sobre a prepotência portuguesa e os movimentos revolucionários na França e nos Estados Unidos. Seus rondós, impregnados de imaginação e sentimentalismo, foram reunidos em sua obra principal, Glaura (1799). Esteve preso por quase três anos, acusado de ter participado da Conjura Carioca, findos os quais lhe foi restituída a liberdade.

O século XVIII foi marcado ainda por outras manifestações que, mais do que retratar literariamente a natureza, procuravam investigá-la. Essa mudança de atitude se deve à chegada das ideias ilustradas e filiadas ao racionalismo francês. Na Metrópole, a segunda metade do Século das Luzes se caracterizou por uma revolução nos estudos universitários com forte ênfase em ciências e história natural. Coimbra teve seus estatutos reformados em 1772, abrindo-se Portugal para as ciências modernas. Pombal nomeara o padovano Domingos Vandelli, amigo de Lineu, para a cátedra de história natural, dando início à formação de uma geração de naturalistas cujo alvo era o desenvolvimento da pátria portuguesa. Vale lembrar que a botânica não era apenas considerada uma disciplina acadêmica, mas um instrumento de exploração dos recursos agrícolas. Nessa perspectiva, vários alunos de Vandelli foram enviados em expedições às colônias na África e à Índia. O Brasil, contudo, centralizava as atenções, e entre nós os nomes de José Mariano da Conceição Veloso e Alexandre Rodrigues Ferreira se sobressaem pela importância das tarefas que realizaram. Nascido em 1742, em Minas Gerais, tendo estudado inicialmente história natural com os franciscanos do Rio de Janeiro, Veloso seguiu para Portugal como editor de estudos técnicos, memórias e estudos sobre as plantas pertencentes à flora brasileira. Sua obra Florae Fluminensis, terminada em 1790, catalogou quatrocentas espécies, antes ignoradas, observadas nas matas que rodeavam o Rio. Com ele, se embrenhava na floresta frei Francisco Solano, responsável pelas ilustrações e por belas telas nas igrejas cariocas.

Ferreira, considerado o primeiro zoólogo do Brasil, nasceu em Salvador a 27 de abril de 1756. Aos 14 anos, tornou-se aluno em Coimbra, onde cedo passou a ser “demonstrador” nas aulas de Vandelli. Seus estudos incidiam sobre várias áreas: geografia, mineralogia, espeleologia e, sobretudo, agronomia. Ao doutorar-se, foi indicado para chefiar uma expedição que deveria inventariar as riquezas naturais que pudessem servir aos interesses da Coroa portuguesa. Em 1783, teve início a maior expedição de cunho científico em domínios americanos, encarregada de “observar, acondicionar e remeter para o Real Museu da Ajuda os produtos dos três reinos: animal, vegetal e mineral”, além da observação de como viviam as pessoas no Brasil. Ela percorreu as capitanias do Grão-Pará, São José do Rio Negro (Amazonas) e Cuiabá (Mato Grosso), ou seja, aproximadamente 39 mil quilômetros de matas e sertões. As dificuldades por que passou só podem ser compreendidas pelos que lerem sua obra: trata de todos os aspectos práticos da observação científica, mas também das condições de alimentação, saúde e viagem de cerca de quinhentas pessoas, entre soldados, guias, escravos e índios. À medida que avançava sertão adentro, ia enviando ao Real Museu de Lisboa o material coletado, “mais de duzentos volumes em treze remessas”. Muita coisa se perdeu e, por excesso de zelo da Coroa portuguesa, a coleção teve um infausto destino: desenhos, textos, aquarelas e manuscritos permaneceram dois séculos sem publicação.

Outro aspecto da cultura que se desenvolveu durante o Setecentos foi o do teatro, na forma da diversão mais popular. Atores ambulantes percorriam cidades encenando, nas praças e mercados, autos como Inês de Castro, Princesa Magalona e o vicentino Auto da Lusitânia, e reunindo entusiasmados espectadores. Atuava-se sobre tablados armados, aos domingos, dia em que as pessoas da roça acudiam aos centros comerciais e urbanos. Fantoches, circos de cavalinhos e mamulengos, com seus palhaços e dramatizações rudimentares, faziam parte do espetáculo. Nas Minas Gerais, durante as festividades organizadas em torno do natalício ou do casamento dos reis portugueses havia representações. Construíam-se tablados, com seus bastidores e ricos cenários e apresentavam-se peças ou comédias do repertório espanhol, inclusive de Calderón de la Barca. Quando da aclamação de d. José I, Cláudio Manuel da Costa viu levar ao palco, a 5 de dezembro de 1768, o seu O parnaso obsequioso, “drama para se recitar em música”, escrito em homenagem ao jovem governador conde de Valadares. Quando das festas reais de 1786, em celebração aos desponsórios do futuro d. João VI, as celebrações incluíram “três óperas cantadas”, levadas na Casa da Ópera já existente em Ouro Preto. Essa Casa da Ópera, considerada por especialistas como um dos mais antigos prédios teatrais da América do Sul, teve sua cobertura concluída em 1769, sendo seu proprietário e construtor o contratador dos quintos reais e entradas coronel João de Souza Lisboa. Cinquenta anos depois, inaugurou-se em Sabará outro estabelecimento do gênero. Bem longe de Minas, em 1794, construiu-se a Casa da Ópera da Vila de Porto Alegre, na sua fundação conhecida como Casa de Comédia. Embora fosse um barracão de pau a pique, tinha capacidade para trezentas pessoas e começou a funcionar durante o contrato firmado entre o empresário Pedro Pereira Bragança e a “cômica representante” Maria Benedita de Queirós Montenegro. Como se pode observar, também dentro de alguns aspectos da cultura na Colônia as mulheres tiveram o seu papel.

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Veja também:

Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

  • [1] Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 70 a 789, Capítulo 10.

  • [2] José de Anchieta: “... autor da literatura catequética quinhentista. Ele escreveu poemas e peças de teatro evangelizadores, além de ser autor da primeira gramática de tupi”. Texto e Imagem disponíveis em: <https://brasilescola.uol.com.br/literatura/jose-anchieta.htm>. Acesso em 23/11/2022.

11 novembro 2022

Cidades Coloniais

Por

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato  [1]

Centro Histórico de Salvador [2]

Façamos a viagem de volta, do campo para a cidade [ver O século sertanejo]. Uma primeira pergunta: como eram as cidades do tempo dos nossos arquiavós? Os documentos coloniais não deixam dúvidas. Para além de um “ajuntamento de homens no mesmo lugar com casas contíguas ou vizinhas”, a cidade era também um “povoado no qual a boa fortuna é mãe da inveja e a má fortuna, do desprezo. Lugar em que para ser grande é preciso tiranizar os pequenos, e para ter com que passar é necessário andar, buscar, correr e lidar”. Enfim, a opinião oficial da época não era exatamente das melhores, e com razão. Muitas cidades portuguesas, assim como suas congêneres coloniais, eram o cenário de uma tremenda desordem, espaço de permanentes disputas e conflitos sociais. Além disso, as cidades reuniam os grupos mais empobrecidos da sociedade. O que levava as autoridades metropolitanas, como fez o marquês de Lavradio, de maneira preconceituosa, a comparar os moradores da Bahia a “macacos” e “vermes”, queixando-se de ter que governar um “povo grosseiro e ingrato”. Comentário não muito diferente do registrado, três anos mais tarde, no Rio de Janeiro, cujo cenário urbano foi considerado “sumamente pobre” e marcado por “clima e gente infernal”.

Prolongando a tradição medieval, nossas cidades, na sua grande maioria, foram construídas não em áreas planas, como recomendava Vitrúvio – autor do tratado De architectura (27 a. C.), em voga desde o Renascimento –, mas em lugares altos e de difícil acesso. Morro abaixo, serpenteavam ruelas e becos sobre os quais aglomeravam-se casas toscas. O casario apertado fazia sombra às vias estreitas e escuras, nas quais se jogava, dia e noite, todo tipo de lixo. Inúmeros cronistas registraram seu mal-estar. Anchieta dizia que Salvador estava “mal situada num monte”. Em 1610, o francês Pyrard de Laval queixava-se de seu difícil acesso, e seu conterrâneo Froger, décadas mais tarde, dizia que lá não havia uma única rua direita. Com todos os defeitos, Salvador foi, até 1763, a capital da possessão portuguesa, e nela se concentravam a alta fidalguia lusitana, o alto clero e os magistrados que administravam a Colônia. Os lucros com o açúcar incentivaram a construção de edifícios oficiais e religiosos, assim como de algumas luxuosas residências. Estas, na forma de sobrados geminados de três ou quatro pavimentos, começam a ser erigidas no século XVII. O solar dos Sete Candeeiros é um exemplar deste tipo de obra. Outro exemplo de arquitetura residencial suntuosa se encontra no Solar do Unhão, com suas quatro fachadas livres e originalmente morada do desembargador Pedro de Unhão Castelo Branco. Pequenas capelas foram erigidas desde os primeiros anos: a da Conceição, junto ao porto, na faixa litorânea, origem da atual igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia; a da Ajuda, na Cidade Alta, que funcionou como matriz e como igreja dos jesuítas, antes da construção da Sé e da igreja do colégio dos padres da Companhia. A Sé, edificada depois da chegada do bispo Fernandes Sardinha, foi iniciada por Tomé de Souza e assim descrita por Mem de Sá, em 1570: “Fiz a Sé dessa cidade de pedra e cal, com três naves e de boa grandura”. Escrevendo em 1587, Gabriel Soares de Sousa complementava, sobre o Colégio dos Jesuítas: “tem esse colégio grandes dormitórios e muito bem acabados, parte dos quais ficaram sobre o mar com grande vista; cuja obra é de pedra e cal [...] com uma formosa e alegre igreja, onde se serve ao culto divino, com mui ricos ornamentos, a qual os padres têm sempre mui limpa e cheirosa”.

A existência de casario com arquitetura mais rebuscada levava ao surgimento de opiniões favoráveis ao meio urbano colonial. Segundo o professor português Luís dos Santos Vilhena, morador da capital baiana em 1790, a maior parte dos sobrados desembocava na Praia, ou Cidade Baixa. Sete calçadas levavam desta à Cidade Alta. “Há nela”, explicava o autor, “muitos edifícios nobres, grandes conventos e templos ricos e asseados”. Salvador tinha ainda três praças: a Nova da Piedade, onde os regimentos faziam exercícios militares; a do Palácio, em torno da qual se concentravam a residência dos governadores, a Casa da Moeda, a Câmara, a Cadeia, o Paço da Relação, o corpo da Guarda principal, outras tantas casas particulares e seis ruas que se comunicavam com toda a cidade; o Terreiro de Jesus, cercado pelo colégio e igreja dos jesuítas, posteriormente à sua expulsão transformado em Hospital Militar, a igreja dos Terceiros de São Domingos, a igreja da Irmandade de São Pedro dos Clérigos e inúmeras casinhas bordejando sete ruas que ali desembocavam. Nas cercanias da cidade encontrava-se o bairro de São Bento, planície aprazível cortada por ruas largas, onde se tinham estabelecido belas residências e algumas igrejas; o bairro da Praia, endereço de opulentos comerciantes, o de Santo Antônio, menos importante. A preocupação de Vilhena era, contudo, com a construção demasiada em terreno impróprio. Segundo ele, encarapitadas morro acima, por “evidente milagre, não rolavam” morro abaixo. “Visto que todas são feitas de tijolo, sobre delgados pilares do mesmo, levantados em precipícios escarpados, e sem terreno para segurança dos alicerces cuja vista infunde terror ao mais afoito e destemido”, queixava-se. Sua preocupação era tão maior quanto nas fachadas de tais sobrados sobrepunham-se varandas com grades, cobertas com telhadinhos. A escuridão dava ao “tapume de rótulas”, como o chamava, um aspecto fúnebre. Ainda criticando a fragilidade do urbanismo de Salvador, lembrava que, se “troassem canhões” de nações inimigas sobre a Cidade Alta, esta arruinaria a Cidade Baixa. A grande animação da vida urbana ficava por conta de inúmeras quitandas – em substituição a um grande mercado –, nas quais negras vendiam carnes, nacos de baleia e de peixes, hortaliças ou toucinho. Nas lojas finas ofereciam-se sedas de Gênova, linhos e algodões da Holanda e Inglaterra, tecidos de Paris e Lyon, mesclados de ouro e prata. O fausto e a falta de comodidade urbana andavam de mãos dadas.

Também no Recife, a riqueza do açúcar tratara de concentrar a população e promover a construção de altos sobrados, chamados sobrados magros, que conviviam com uma multidão de mocambos de escravos e homens pobres. Nos sobrados, o comércio ocupava o térreo; no primeiro andar, o escritório com apartamentos para caixeiros e sucessivamente alcovas e salas; no último andar, em função do calor excessivo, localizava-se a cozinha. Ia longe a época em que Gabriel Soares de Sousa definia Recife, no século XVI, como um simples povoado de “pescadores e oficiais de ribeira”. No início do século XVII, a capital pernambucana era considerada por frei Vicente do Salvador como o porto mais frequentado do Brasil. Diferentemente de outras tantas cidades coloniais, Recife estabeleceu uma relação especial com as águas, principalmente as do Capibaribe, que emolduravam o espaço urbano. No bairro de Santo Antônio ficava o palácio da Boa Vista. O Recife propriamente dito – onde ainda fica o porto – estava unido a Olinda por um istmo de areia de praia facilmente encoberto pelo mar em dias de ressaca forte. Santo Antônio, a Mauritstadt de Nassau, concentrava as lojas de comércio, sendo que expressiva atividade – portas adentro ou portas afora – era exercida por mulheres, entre as quais muitas negras quitandeiras e prostitutas. Na época em que chegaram os holandeses, Santo Antônio, antiga ilha de Antônio Vaz, não passava de um vasto pântano coberto pelas marés. Nas proximidades erguia-se o convento de São Francisco e algumas casas de morada. Na direção de Afogados, passava-se ao pé do forte das Cinco Pontas. O palácio da Boa Vista, de longe a maior construção, estava mais no interior, pontilhado de casas grandes, com quintais extensos e até sítios. Um braço do Capibaribe cortava o sudoeste daquele subúrbio e, ao norte, um afluente do rio Beberibe e os manguezais de Santo Amaro das Salinas – local de desembarque de escravos africanos – iam, aos poucos, separando a ilha que abrigava o palácio da Boa Vista da terra firme até chegar à divisa com Olinda, a antiga capital.

Ao redor desse núcleo, estendiam-se as terras verdes dos engenhos. Os rios escoavam, como estradas, a produção açucareira até o porto do Recife; os senhores preferiam morar em lugar mais salubre: as colinas de Olinda. O incêndio provocado pelos holandeses em 1631, nesta última, fez desabrochar Recife, que cresceu ao longo das águas. O nó da antiga povoação feito de um conjunto de armazéns, depósitos de açúcar e pequenas casas de pescadores fora substituído, no tempo dos flamengos, pela rua dos Judeus, com suas residências, comércio e sinagoga. Ao longo do rio, debruçavam-se moradias de todos os tipos mirando o movimento imenso de canoeiros escravos ou livres, levando gente, víveres, mercadorias, água potável e animais em todas as direções. O Poço da Panela, de águas cristalinas, era o lugar onde as famílias abastadas se refugiavam durante os tórridos verões. O Varadouro, barragem natural a separar a água doce da salobra, foi melhorado por sucessivos governadores, tornando-se não só o manancial da cidade como porto das canoas que iam e vinham de Recife. Nas margens do Capibaribe de águas caudalosas, sobretudo em época de cheia, concentravam-se as lavadeiras da cidade, assim como os mocambos – feitos de barro batido, mariscos, cipós, madeira e folhas –, em que moravam escravos e famílias pobres.

Ancorada entre os charcos formados pelo Tamanduateí, o Pinheiros, o Juqueri e o Cotia, São Paulo parecia aos olhos dos viajantes estrangeiros melhor aglomeração urbana do que suas congêneres. No alto de uma pequena elevação sobressaíam as torres de suas oito igrejas, seus dois conventos e três mosteiros. Casas em taipa branqueada com tabatinga, uma espécie de argila clara, davam-lhe ares de incrível limpeza. As ruas, no entender de vários observadores, eram “largas, claras, calçadas, espaçosas e asseadas”. Aqui e ali, chafarizes reuniam a multidão de escravos e mulheres em busca d’água. O do largo da Misericórdia era dos mais concorridos. O clima ameno e saudável também impressionava: “O clima de São Paulo é um dos mais amenos da terra”, exclamavam Spix e Martius, depois de torrar sob o intenso calor carioca. Transposto o riacho do Tamanduateí, entrava-se na parte mais animada: o mercado ou rua das casinhas – com lojas de víveres – que se esparramavam pela rua do Buracão ou ladeira do Carmo. As casas de moradia dos que tinham mais posses costumavam ter dois andares dotados de balcões, onde se instalavam homens e mulheres. Neles tomavam a fresca da manhã e da tarde e assistiam ao desfilar das procissões em dias de festa de santos. Outras possuíam corredores laterais sustentados por pilares em madeira, assim como umbrais de portas e janelas decoradas. Até o início do século XVIII, muitos índios eram carpinteiros e seu estilo deixou registros na ornamentação das casas. Quanto ao seu interior, Saint-Hilaire, viajante francês do século XIX, descreveu-as como limpas e mobiliadas com gosto. As paredes, pintadas com cores claras e guarnecidas de rodapés nas casas novas, contrastavam com as das antigas, ornadas com arabescos e desenhos. Singelas construções religiosas dominavam o contorno da capital: a catedral da Sé, o mosteiro de São Bento, os conventos de São Francisco, Carmo e Santa Teresa e, mais afastado, o da Luz. O cedro garantia a fabricação de altares e retábulos. Capelas particulares, como a de Fernão Paes de Barros, eram elegantemente decoradas com folhas de ouro, exóticas chinesices e tetos pintados. Outras construções se sobressaíam ao casario uniforme e austero: eram elas o palácio do Governo, a cadeia, o quartel e o hospital militar. Segundo um cronista, as igrejas pouco tinham de notável. Para além da colina central descobria-se, ao norte da cidade, o Jardim Botânico construído em 1799 por Antônio Manuel de Mello Castro e Mendonça, governador da capitania; do lado do Brás, da Consolação ou Santa Ifigênia, pequenas chácaras com seus pomares e roças bem cuidadas indicavam a presença de moradores. Mais longe, além dos rios que banhavam o sopé da colina, freguesias periféricas sediavam fazendas que abasteciam, com seus produtos, o mercado de alimentos.

A presença de terreiros e praças, tão comum em nossas cidades, notadamente nas costeiras, não se fará sentir nos núcleos de mineração que se formaram de pequenos arraiais, como Ouro Preto e São João del-Rei. Ocorrendo o ouro em regiões montanhosas, os arraiais nasciam ora junto aos regatos, ora nas encostas. Entre eles se formou uma rede de ruas irregulares e íngremes, nas quais se encravavam pequenos pátios. Em meio ao emaranhado de vielas, travessas e becos se equilibravam, a princípio, casas de pau a pique cobertas de telhas do barro facilmente encontrado na região, as casas de sopapo, posteriormente trocadas, pelo menos entre a elite, por construções mais duráveis. Ao longo do século XVIII, as austeras paredes de taipa começaram a abrir-se em janelas e vãos que davam às casas mineiras uma extraordinária harmonia. Os povoados rapidamente se transformaram em vilas, concentrando colonos e imigrantes que, com seus escravos, vinham em busca de ouro, e autoridades que ali se instalavam para controlar a extração aurífera. Nessas mudanças, os casarões se assobradaram e, como em outras partes do Brasil, instalava-se um negócio no térreo. Ipês, braúnas, cedros e casca-de-cobra foram madeiras largamente utilizadas na construção de residências, igrejas e edifícios públicos. Seus interiores ganhavam tetos lisos ou com painéis ricamente decorados com grinaldas, desenhos geométricos, colunas e figuras de animais. Com o mesmo objetivo de embelezar, a esteira de bambu achatado, processo trazido pelos portugueses do Oriente, recebia curiosas pinturas. Os imóveis eram acessados por corredores, muitas vezes pavimentados com hematitas e quartzos rolados. Uma escada metida entre as paredes levava ao primeiro andar. Nele se encontravam o salão de visitas – de frente para a rua – e a sala de jantar, nos fundos, abrindo-se para uma varanda. Os quartos de dormir abriam-se para o primeiro recinto. As cozinhas, para a varanda. Aí também se localizava o quartinho em que eram depositados os vasos de serviço íntimo e onde, em gamelas ou bacias de arame, se tomava banho. Uma outra escada ligava a varanda ao pátio interno. Para além do pátio, estendia-se a horta familiar. Debaixo da casa, junto ao galinheiro, às cocheiras e ao quarto de arreios, localizava-se o espaço onde os escravos dormiam. Segundo especialistas, com poucas variantes, esse foi o tipo de construção comum à elite nos distritos do ouro e dos diamantes. A partir da segunda metade do século XVIII, o uso da pedra lavrada de tradição minhota foi frequente em igrejas, casas solarengas, edifícios públicos e fazendas nas regiões de tapanhoacanga. Este é o caso, por exemplo, do sítio do padre Faria, do Taquaral, e do arraial da Passagem de Mariana.

A prosperidade da vida urbana mineira incentivou uma série de melhoramentos arquitetônicos e domésticos: as fachadas começaram a ganhar sacadas rendilhadas em pedra-sabão, grades em ferro de inspiração italiana, ornamentos em cantaria nas soleiras. Jardins à francesa, recortados em canteiros de variadas flores, chamavam a atenção dos viajantes, como os da casa dos Motta, em Ouro Preto. Em Goiás, cidades do ouro, como Jaraguá, viram surgir o uso da malacacheta em lugar de vidros na janela e de seixos rolados na ornamentação de vestíbulos. Fontes inspiradas na escola de escultura de Mafra murmuravam, refrescando as tardes. Residências médias e grandes abrigavam capelas com altares em jacarandá ou cedro onde senhores e escravos assistiam à missa. Nas casas sem capela, o quarto dos santos, em que uma cômoda alta sustentava oratórios e imagens, atendia às promessas e orações de todos. Numerosas oficinas de carpintaria davam conta de encomendas de estátuas, terços, coroas e rosários. A mobília, inspirada em desenhos importados de Portugal, ganhava desenhos em auto-relevo, garras de leão ou burro, embelezando camas, cadeiras, cômodas, contadores e bufetes. Espelhos e ferragens sofisticam-se. As arcas, onde se guardavam roupas finas e bens preciosos, também ganhavam decorações com tachas douradas. Para alegrar as paredes, religiosos italianos vendiam quadros de procedência europeia. A prata convertia-se em baixelas, serviços de penteadeira e arreios, sendo produzidos por prateiros baianos e mineiros. O linho cultivado nos distritos do Rio das Mortes e o algodão de Montes Claros transformavam-se em finas alfaias domésticas. Em Mariana, Prados e Congonhas do Campo, pequenas olarias forneciam louça grossa para o uso diário.

Até a descoberta do ouro em Minas Gerais, a cidade do Rio de Janeiro não tinha muitos encantos. Possuía, no século XVII, uma fortaleza bem guarnecida de canhões e um centro comercial muito animado por embarcações vindas do Rio da Prata e de Angola. Da América espanhola, especialmente do Peru, vinham muitas patacas de prata para pagar escravos clandestinos. A importância desse comércio ficou gravada na devoção a Nossa Senhora de Copacabana – de origem boliviana –, mais tarde instalada na pequena capela da praia do mesmo nome. Para a África era enviada a farinha de mandioca, produzida no Recôncavo Fluminense, e lá vendida, segundo o cronista Brandônio, por “alto preço”. Igualmente do Rio saía parte do tabaco baiano destinado a comprar escravos em Angola. Até meados do século XVII, a cidade possuía quinze igrejas e instituições religiosas: o colégio dos jesuítas, no extinto morro do Castelo, o mosteiro de São Bento, o convento do Carmo, a igreja de Nossa Senhora da Conceição ou da Cruz dos Militares que sinalizavam a prosperidade da cidade. Seu perfil, contudo, era ainda de um Rio de Janeiro rural. A cidade tinha, há pouco tempo, descido dos morros, onde a plantara inicialmente Mem de Sá, para invadir várzeas e vales entre montes. Ao longo da ribeira, plantavam-se trapiches encarregados de armazenar açúcar. Entre o quadrilátero dos morros do Castelo, Santo Antônio, de São Bento e da Conceição delineavam-se as primeiras vias: a rua Direita, da Vala, da Misericórdia. No atual Catete instalaram-se olarias que abasteciam a cidade com tijolos e telhas. Na lagoa de Socopenapã (mais tarde, Rodrigo de Freitas) moía o engenho del Rei restaurado por Martim de Sá. Duas capelas importantes foram, então, construídas: a da Candelária, erguida, em promessa, pelo abastado Antônio Martins da Palma, que pagava um voto que fizera durante terrível travessia do Atlântico, e a da Penha, que desde sua construção, por Baltazar de Abreu Cardoso, ganhou fama de santuário milagroso. Medidas de higiene combatiam com timidez o péssimo estado sanitário: isolaram-se doentes de varíola em lazaretos e obrigou-se o destripamento em alto-mar das baleias caçadas ao largo da costa: “para que o mau cheiro que exalavam não infeccionasse a cidade”. A Cadeia Pública e a Casa da Câmara desceram do Castelo e se instalaram na várzea, no antigo terreiro da Polé, depois praça do Carmo e atual XV de Novembro. Na Ilha Grande, erigiu-se um estaleiro, destinado a fabricar galeões e fragatas empregados no comércio marítimo e no policiamento do litoral brasileiro. Os primeiros quilombos, constituídos por negros fugidos dos engenhos, começavam a concentrar-se nas margens do Paraíba.

No início do século XVIII intensificaram-se o tráfico negreiro para a extração do ouro e o aumento da produção do açúcar fluminense. Como ficou a cidade? Crescida, inchada, ela via aumentar dia a dia os problemas com limpeza. Os viajantes estrangeiros consideravam o Rio de Janeiro, como disse dela um inglês, “a mais imunda associação humana vivendo sob a curva dos céus”. Em contraste com a belíssima baía azul e montanhosa, as casas eram feias. As ruas, sujas, atraíam porcos ou outros animais domésticos que vinham comer os restos de lixo jogados porta afora. O desasseio das praias, em cujas águas se derramavam os dejetos domésticos, preocupava as autoridades: “despejos cujos eflúvios voltam para a cidade e a fazem pestífera”. Melhorados em 1743, os armazéns do rei se transformaram em residência dos governadores e, a partir de 1763, em residência dos vice-reis. Branca, retangular e baixa, a construção era modesta e seus vastos salões abrigavam pouca mobília. À sua direita, na linha do casario voltado para a praia, erguiam-se os telhados íngremes da casa dos Telles. Ao lado, portas abertas indicavam a estalagem do francês Philippe, bodegueiro conhecido dos imigrantes portugueses que buscavam os caminhos para Minas Gerais. Um chafariz na praça reunia escravos que vinham buscar água em sonoro tumulto.

As lojas dos mercadores abrigavam-se do sol forte sob toldos de pano riscado. Tabuletas indicavam os ofícios: barbearia, chapelaria, oficina de bate-folhas. Indicavam também “Bom e Barato!”. Na porta, caixeiros de tamanco aguardavam as ordens dos patrões, na sua maioria portugueses do Minho ou das Ilhas. Nos cantos de muitas ruas, oratórios com velas acesas lembravam aos devotos a oração das seis da tarde. Na esquina do Rosário com a Quitanda havia um em louvor de Nossa Senhora da Abadia; no canto de Ourives com Assembleia, outro em honra de Nossa Senhora do Monte Serrate; o da fuga para o Egito, na rua do Piolho, e assim por diante. As fachadas das residências quase desapareciam por trás das grades dos muxarabiês, pelas quais as senhoras e suas escravas observavam, sem ser vistas, o movimento da rua. As paredes duplas, responsáveis por indescritível calor, raramente tinham decoração. Quando muito, forravam-nas com chitão ou damasco. O salão de receber, vazio de mobiliário, somava-se à pequena sala de jantar. No centro da construção, pátios ajudavam a iluminar e arejar os fechados ambientes. Sem numeração, as casas eram conhecidas pelos nomes dos que nelas residiam ou pelo comércio que ali se praticava.

Num porto onde o tráfico de escravos era determinante, onde ficava tal mercado? O Valongo, nome que o sinistro local recebeu, localizava-se entre o outeiro da Saúde e o morro do Livramento. Erigido sob as ordens do marquês de Lavradio, quando se instalou no Rio em 1769, consistia em armazéns alinhados, beirando a praia, cada um com sua porta aberta para receber a mercadoria humana vinda da África. Depois da travessia em condições terríveis, os cativos encaveirados eram engordados com farinha, banana e água, podendo ganhar “até cinco libras por semana”. Cartazes do lado de fora anunciavam a chegada de “negros bons, moços e fortes”, e de preços com “abatimento”.

No Rio de Janeiro ou em outras cidades coloniais, a massa de escravos dominava boa parcela dos ofícios urbanos. Atarefados, oferecendo seus serviços ou os produtos feitos na casa do senhor, cumprindo obrigações, levando recados, carregando água, os cativos estavam em toda parte. Sua presença associada ao transporte privado é constante nas gravuras sobre o período. Eram eles que carregavam o banguê, velha liteira, particular ou de aluguel, cujo telhado de couro em forma de baú protegia do sol quem ia dentro. Portavam nos ombros as cadeirinhas, mais refinadas, feitas de couro de vaca e forradas de damasco carmesim, cujas cortinas fechavam-se a cada vez que nelas se transportava uma dama. Levavam, também, a serpentina, espécie de palanquim indiano com cortinas, tendo um leito de rede. O madeiramento em que se pendurava o traste e que era valentemente erguido pelos cativos possuía esculturas: pombas, anjos, flores, frutos, obras de talha, enfim. Fardas de melhor qualidade e perucas francesas vestiam os andas, escravos encarregados de transportar senhores abastados. Mas cruzava-se pelas ruas com outros tipos de carregadores: os de pesados tonéis amarrados em tramas de corda e pau. E os dos tigres: barris carregados de lixo doméstico normalmente enterrados em buracos nas praias das cidades litorâneas. Uma bandeira preta indicava a saturação dos mesmos.

Nas estradas das capelas, nos becos sujos, encontravam-se pelo chão aqueles que tinham se tornado os dejetos da escravidão. Doentes, aleijados, moribundos eram deixados a mendigar ou a morrer pelas ruas da cidade. Misturavam-se a outros pedintes, muitos deles imigrantes sem sorte e sem trabalho, camponeses pobres, crianças abandonadas, soldados expulsos das tropas. Todos personagens das nossas cidades. As camadas mais despossuídas da população encontravam-se, depois das ave-marias, nas tabernas, nas vendas, nas casas de alcouce ou de prostituição: eram espaços de sociabilidade onde se bebia cachaça barata, cantava-se ao som da viola, em São Paulo, ou da marimba, no Rio de Janeiro, e jogavam-se dados e cartas. O chão de terra batida, sobre o qual se cuspinhava o fumo mascado, recebia não poucas vezes o corpo de um ferido de briga ou de uma prostituta cujos serviços eram prestados ali perto. Em muitos desses locais misturavam-se os dialetos africanos com a fala reinol. Soavam atabaques, rabecas, berimbaus.

Durante o dia, as ruas das cidades se animavam com outros sons. O peditório dos irmãos das confrarias era um deles. Bandeja à mão, esmolavam de pés descalços para suas festas: a do Divino, a do Rei Congo, a do Santíssimo. A voz insistente também pedia: “Para a cera de Nossa Senhora! Para as obras da capela! Para as alminhas de Deus!”. Campainhas informavam sua presença, que era respondida pela criançada gritando: “Pai Nosso! Pai Nosso!”. O santo viático, quando passava, também causava comoção. Irmãos de opa anunciavam pelo triste badalo da campainha que estavam levando os últimos sacramentos a um moribundo. Uma multidão consternada seguia atrás em oração. Nas artérias mais importantes cruzavam-se os funcionários do governo, os soldados da milícia da terra, frades e padres seguidos de beatas, mazombos – enriquecidos graças ao açúcar, ao ouro ou ao tráfico de escravos –, mulatos, mamelucos, cabras, peões, oficiais mecânicos, ciganos, degredados e milhares de escravos. Mulheres, as trabalhadoras, cativas, forras ou brancas pobres, vendiam, elas também, os seus serviços de lavadeiras, doceiras, rendeiras, prostitutas, parteiras, cozinheiras, etc. Pouco se viam senhoras e sinhás. Reclusas, não deixavam de realizar tarefas domésticas, expondo-se apenas em dias de festa religiosa.

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Veja também:



Fonte / Referência bibliográfica:

DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.


Notas:

  • [1Texto copiado na íntegra (e com adaptações) de: DEL PRIORI, Mary e VENANCIO, Renato. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010, pp., 61 a 69, Capítulo 9. 

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